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"Sem nunca jogar a toalha", por George Foreman


George Foreman era um tubarão. Um grande tubarão negro. Seus olhos miúdos e sua couraça imponente não deixavam margem à dúvida. Se ele viesse em sua caça, você estava morto. Não importava quem você fosse, seu destino era um só. Lona.

Seu auge foi há meio século atrás, em 1974. Lembro como se fosse hoje.

À época, seu próximo adversário, Muhammad Ali, era um mito. Os jornais ainda se referiam a ele como Cassius Clay, o nome que renegara. É que o mais carismático lutador de todos os tempos tinha dois nomes. O Clay, que repudiava, era seu nome de escravo. Ali era seu nome de liberto.

Não só. Cassius Clay fora encarcerado por se recusar a lutar na Guerra do Vietnam. Rejeitava o país e sua política, a ponto de adotar um nome muçulmano. Já George Foreman se tornara campeão olímpico de boxe e desfilara com uma bandeirola dos Estados Unidos nas mãos.

Ou seja, não faltava lenha nessa fogueira. Dois cíclopes em cantos opostos do ringue e do orgulho racial. Era a vez do novo campeão encarar o anterior. Do novo rei do boxe enfrentar a antiga lenda. E ninguém acreditava que o velho mito, um gigante falastrão, fosse capaz de vencer a fera.

Eu, criança, fiquei pilhado para essa luta, entre o tubarão predador e o ex-campeão lendário. Poucos anos antes, ele fora destronado por Joe Frazier (vi essa luta também, em preto-e-branco, numa transmissão que varou a madrugada), que depois fora despejado, debaixo de cascudo, por Foreman.

A imprensa proclamava que a luta entre Cassius Clay, ops, Muhammad Ali, e Joe Frazier era a "luta do século". Eu, bobinho, acreditava. Depois vieram mais umas quinze "lutas do século" - e o século ainda era o mesmo. Descobri que a "luta do século" era sempre a última.

Ali e Frazier eram o topo do boxe. Era como Roger Federer e Rafael Nadal foram anos depois, no tênis - absolutos. Aí surgiu o intruso George Foreman e implodiu Frazier em questão de minutos. Foi como se o Djokovic chegasse e eliminasse ambos por quarenta a zero no primeiro game.

A luta entre o campeão tubarão e a presa desafiante se daria no Zaire, um país africano que nem existe mais (eles vivem trocando o nome dos países por lá, dependendo do tirano da vez). Foi batizada de "The Rumble in the Jungle" e talvez tenha sido a maior luta de boxe de todos os tempos.

Ou seja, dá para dizer que esse confronto em Kinshasa, em 1974, foi mesmo a "luta do século".

Tanto que virou livro ("A luta", por Norman Mailer, postado aqui no blog dez anos atrás) e filme ("When We Were Kings", lançado em 1996). Você leu? se não, leia. Você viu? Se não, veja. É uma história épica. A jornada do herói. Sim, o inconcebível aconteceu. O ex-campeão abateu a murros o temível tubarão. E, não tivesse sido o avesso do nocaute esperado, não teria entrado para a história.

Mas o inesperado se deu. Muhammad Ali, a versão islâmica de Cassius Clay, cansou as mandíbulas do tubarão. O monstro definhou de fome. Morreu de tanto dar dentadas a esmo, sem destroçar sua presa. A tática maluca utilizada por Ali foi batizada de rope-a-dope

Não é qualquer ser humano que pode performar uma rope-a-dope strategy. Você precisa ficar pendulando para trás e para a frente nas cordas do ringue, enquanto um animal te espanca. A ideia é fazer o animal (o adversário) cansar de te bater. Se você não for nocauteado e sobreviver, aí sim você esmurra o animal cansado, que, extenuado, cai.

Foi o que fez Muhammad Ali contra George Foreman. Em seu livro "God in my corner", bisonhamente traduzido em português como "Sem nunca jogar a toalha", Foreman diz, contudo, que o "dope" da tal técnica foi literal. Ele teria sido dopado com uma espécie de sonífero, antes da luta.

E não só. Foreman confessa que o árbitro teria pedido 25 mil dólares ao seu agente para não desqualificá-lo. George resolveu pagar. Ele tinha fama de ser um lutador que dava socos abaixo da linha da cintura. Não quis correr o risco de ser desqualificado e ter seu cinturão roubado.

Algum tempo depois soube que o agente de Ali havia pago 35 mil dólares ao mesmo árbitro. Só aí entendeu melhor a pressa com que ele havia feito a contagem que deu a vitória ao adversário.

"Lutei limpo, e não fiz nada que teria me desqualificado, por isso desperdicei 25 mil dólares sem necessidade", reclama. "Mas quando Ali me derrubou, o árbitro contou rápido demais. Quando me levantei no oito, ele contou 'oito-nove-dez' como uma palavra só".

Certamente soam como desculpas. Mas fazem todo sentido. Eu, menino - reitero -, vi a luta. Tudo indicava que Ali seria trucidado pelo tubarão, sem dó nem piedade. Mas o tubarão, com 25 vitórias e zero derrota, "cansou". Eu, ehm. Todos celebraram que a estratégia suicida funcionou.

Eu também fiquei feliz. Torci muito pelo Cassius Clay contra o grande tubarão preto.

O livro de Foreman conta que essa luta foi decisiva para a sua vida. Segundo o próprio, ele perdeu, mas ganhou. Teria sido ali que ele começou a trilhar o caminho para Deus. Fico feliz demais por ele. Mas esse é só um prenúncio do que é o livro. É um (bom) exemplo do que se convencionou chamar no mercado editorial de literatura de auto-ajuda.

Nele, o ex-campeão mundial de boxe George Foreman traz conselhos de como superar as adversidades e como encontrar a si mesmo através da fé. Foreman foi um legítimo campeão e escreve um texto convincente (óbvio que com a ajuda de um ghost-writer, no caso, Ken Abraham).

Há muitas lições a aproveitar. Foreman se abre com tocante sinceridade e nos oferece palavras de conforto e conselhos sábios. Muitas das suas afirmações me comoveram. Mas o livro não é o que eu pensara. Só embarque nessa canoa se este for o tipo de literatura que você está procurando.

"Depois que encontrei Cristo, consegui olhar novamente para aquela luta de boxe e na verdade agradecer a Deus", reflete. "Embora eu não soubesse naquela época, o que parecia ser a pior coisa era na verdade a melhor. Por quê? Porque aquela derrota me iniciou na minha busca por Deus".

Há também conteúdo relevante sobre a trajetória do ex-campeão - distribuído de maneira esparsa. Picotada. Noutras vezes, de forma redundante. Só que o carro-chefe do texto é a sua conversão à fé.

São dezenas de páginas de reflexões íntimas e espirituais, orientação comportamental e proselitismo. Se você quiser saber o contexto detalhado das lutas do campeão, vá beber noutra fonte.

A obra nos faz simpatizar com George Foreman. De verdade. Ele deixa para trás a imagem de tubarão predador e se transforma na pantera amiga do menino Mogli. Mas confesso que não queria simpatizar com Foreman. Já simpatizo com gente demais. Me bastava apenas conhecer sua história.

Se minha curiosidade voltar, vou ter que procurar noutro lugar. Se achar, eu conto aqui.

Editora Thomas Nelson Brasil, 275 páginas  |  1a edição 2007  |  tradução  Rafael Mantovani

Título original: "God in my corner"

"O plano Flordelis", por Vera Araújo


O livro é o relato organizado, cronológico e, pena, monocórdio de registros, notícias e depoimentos relativos ao crime aparentemente concatenado por Flordelis e cometido por seus filhos. Adianto que a narrativa da jornalista Vera Araújo se limita ao conteúdo disponível na mídia sobre Flordelis, além da investigação e dos procedimentos processuais.

Ainda que escrito com correção e sobriedade, o texto decepciona o leitor interessado em um aprofundamento dos personagens envolvidos. Verdade que segue o indigente padrão editorial do país. Como é comum nos livros-reportagem brasileiros, o trabalho do autor é pobre em material exclusivo. Oferece pouco, algumas vezes nada, além do já publicado.

Não é uma crítica à autora, e sim ao mercado, do editorial ao leitor, que se satisfaz com o oferecido. É um cata-cata, um copia-e-cola, feito aqui com monótona competência. É o que temos.

O crime veio a júri popular nesta segunda-feira, 7 de novembro, e a previsão é de que o julgamento se encerre amanhã, domingo, ou, no mais tardar, na próxima segunda, 14. A pastora, cantora gospel e ex-deputada Flordelis dos Santos de Souza, 61, é acusada de ser a mandante do assassinato do seu marido, Anderson da Silva, 41.

A ré ficou famosa no fim dos anos 90, quando os programas de TV descobriram a estória de uma religiosa que se afirmava mãe adotiva de 55 filhos. Não obstante, o amor e a generosidade que aparentavam ser sua motivação exclusiva não resistiam a uma espiadela mais meticulosa.

Financiada por filantropos (após a divulgação da sua caridade), o que se constata é uma rigorosa estrutura hierárquica, onde os três filhos biológicos estão no topo da cadeia alimentar e disciplinam - com prepotência e algumas vezes com violência - os níveis inferiores da "filiação" adotiva.

Um primeiro nível ainda goza de privilégios parciais, mas aos "filhos adotivos" (na verdade não o eram, eram apenas jovens admitidos na casa, alguns permanentemente, outros temporariamente) cabiam os trabalhos domésticos e uma alimentação básica, sem acesso à geladeira vip.

Logo no início da formação desta família peculiar, a mãe, Flordelis, então com 35 anos, se casa com um dos adolescentes, Anderson, então com 17 anos, que namorava a sua filha biológica, Simone.

O envolvimento dos dois tem uma versão diferente para cada um que você escuta entre os 57 moradores da casa. E, no caso da ré, a verdade de qualquer circunstância é muito difícil de apurar, pois a narrativa de Flordelis é todo o tempo enviezada, com contradições contrapostas por clichês e reações emotivas teatralizadas.

Dependendo do tamanho da divergência entre fato e versão, via de regra Flordelis escapa do assunto com alguma platitude relativa a algum outro tema e começa a chorar. Geralmente funciona. Talvez não com a lei.

Ressalto o mérito da autora, Vera Araújo, em entregar substância suficiente para que o leitor possa compor o seu próprio panorama da família (muito ajudado pelo ótimo diagrama das páginas iniciais, que traz o nome dos filhos mais próximos e as respectivas camadas familiares).

No acompanhamento da investigação, espanta a ingenuidade e o amadorismo com que Flordelis arquitetava as tentativas de assassinato. Passa a impressão de que ela tinha absoluta confiança de que o nível de credulidade da sociedade como um todo seria idêntico àquele que ela desfrutava em casa e àquele que ela usufruía na comunidade evangélica frequentadora dos seus cultos.

O assassinato é tosco. O compartilhamento de informações incriminatórias por intermédio da rede de celulares da família é risível. Filhos interagiam entre si, via aplicativo de mensagem, combinando emboscadas ou procurando matadores de aluguel. Pesquisavam venenos na internet.

E o pior: tudo isso foi tentado. Um pistoleiro foi contratado e pago. A vítima, porém, ainda com sorte, mudou a rotina no dia. Então envenenaram a comida de Anderson, que foi parar no hospital, mas não morreu. Os filhos reclamaram entre si, por mensagens, que o sujeito "não morria de ruim".

Dezenas destas mensagens incriminadoras partiram do próprio celular de Flordelis, orientando os filhos ou discutindo detalhes do crime com eles. Na polícia e no tribunal, ela achou que era suficiente alegar, para limpar a própria barra, que o celular dela não possuía senha (!) e todo mundo usava. 

Lógico que não colou.

Incontáveis versões se sobrepuseram, cada uma tentando consertar os buracos da anterior, confrontada com novas descobertas. Tão inverossímeis que começaram com uma tentativa de roubo seguida de morte e terminou em uma vingança passional da filha por assédio sexual.

Agora escolheram uma outra. Neste início de novembro de 2022, a nova alegação da banca de advogados de defesa é que Anderson estuprava a esposa, transformando a vítima em culpado e a culpada em vítima. Embora estapafúrdia, certamente esta é a versão que os causídicos contratados consideraram aquela que ofereceria mais chances para reduzir a pena da mandante do crime.

Faltou combinar com o júri popular, que talvez não engula mais uma nova estória.

Voltando aos fatos, o plano com que finalmente conseguiram matar Anderson foi simplório. Flordelis arrastou o marido para Botafogo (alguns depoimentos afirmam que eles foram a um clube de swing, hábito antigo deste casal-celebridade de pastores evangélicos) por algumas horas, enquanto os filhos mancomunados com a pastora ficaram em casa, preparando a emboscada.

O casal chegou depois das três da manhã e entraram na residência. Após já ter tirado a roupa, Anderson foi de cueca até a garagem (deduzo eu que a esposa deva ter pedido que ele voltasse para buscar alguma coisa "esquecida" por ela no carro), quando foi surpreendido pelos filhos biológicos de Flordelis, Flávio e Simone, que deram mais de 30 tiros no padrasto, boa parte deles na genitália.

Não posso nem dizer que matar foi "fácil", haja visto tantas tentativas frustradas, mas, realmente, matar foi a parte mais fácil do crime, diante das dificuldades óbvias de de camuflá-lo depois. A alegação de de Flordelis de terem sido seguidos por motoqueiros, que entraram na garagem atrás de Anderson e o executaram, para roubá-lo, não parou em pé nem por 24 horas.

Não só porque nenhuma das afirmações dela pôde ser comprovada (na verdade, diversos detalhes foram logo desmentidos), como toda a sua versão do idílico passeio a dois que fizeram naquela noite, em comemoração do aniversário de casamento, não batia com os sinais de celular captados.

A tecnologia atual não dá mole. Sinalzinho de celular é o maior dedo-duro do século 21.

A partir daí foi uma sucessão de versões-tampão derrubadas a cada nova tentativa de confundir os investigadores. Crime mal planejado - a bem da verdade, pelo relato de Vera Araújo, aparenta ter sido mesmo um crime desnecessário, um capricho da pastora -, com muito a perder e pouco a ganhar. Deu ruim e a cantora-gospel deputada e líder evangélica está na cadeia desde agosto de 2021, quando foi destituída do seu mandato popular. 

Me vem à mente o que não quer calar - será que nenhum daquelas dezenas de agregados que ela chamava de filhos momento algum fez a pergunta certa a se fazer - "E se descobrirem?"

Eu, curioso para tentar entender melhor este núcleo tão brasileiro, encomendei o "Flordelis, pastora do diabo", do Ulisses Campbell. Se eu tiver tempo e estômago para ler, comento aqui em breve.

Editora Intrínseca, 296 páginas  | 1a edição | Copyright 2022

"Uma breve história do Islã", por Tamara Sonn


O subtítulo promete ser este "um guia indispensável para compreender o Islã do século XXI". Não se fie na chamada. A obra passa longe disso. Lançada originalmente nos Estados Unidos em 2004, mas publicada no Brasil somente em 2011, chegou aqui exatamente uma década após o seu leit motiv: defender e recontextualizar a cultura muçulmana para um recalcitrante cidadão ocidental, abalado pelo 11 de setembro contra as torres gêmeas.

O resultado passou longe do objetivo. A densidade do livro é irregular e em momento algum há equilíbrio entre as narrativas religiosa, histórica e política. A primeira é dominante e monocórdia. Uma ênfase excessiva nas divisões grupais surgidas após a morte de Maomé, há um milênio e meio atrás, ocupa boa parte do trecho inicial da obra.

A questão proposta é a divergência entre diversos grupos - e Sonn discorre sobre qual deles seria o genuíno representante do legado maometano. A legitimidade de cada facção em se dizer o autêntico porta-voz do islamismo é, para nós, inextrincável. Não temos conhecimento prévio, nem a obra nos faculta uma fração que seja deste discernimento. Assim, a insistência no tema faz com que o livro se assemelhe mais a um tratado religioso do que a uma análise histórica.

Mais à frente, após uma primeira metade engessada, o livro se aventura em contornos mais seculares - com a chegada das Cruzadas e, posteriormente, do Império Otomano - e há uma significativa redução do peso da religião na narrativa.

Nas páginas dedicadas aos séculos XIX e XX a tônica se torna a organização política dos países muçulmanos. É quando a autora se sente mais à vontade, embora ainda aqui o texto se ressinta de fluidez, essencial a qualquer obra. A opressão imperialista, as cisões internas, os ditadores de ocasião e a decadência do Ocidente se tornam o novo foco de Tamara Sonn. 

Não obstante, o bloco inicial, histórico-religioso, não traz respostas e desdobramentos à complexidade do tema; e o bloco final, histórico-político, não tem a musculatura necessária para nos esclarecer sobre um período tão conturbado da geopolítica mundial.

Fica no leitor a impressão de que, em meio à superficialidade e indefinição temática da obra, há algumas boas passagens, mas que não logram constituir unidade. Resta então incompleta a missão à qual o livro se propôs: resgatar a personalidade da cultura islâmica perante o cidadão do Ocidente.

Outrossim, muito pouco do que é narrado nos permite um aprofundamento na rica história do Islã - que, pela sua enorme contribuição para a história moderna, merecia uma dissertação mais bem fundamentada. Para quem supõe fosse este o escopo da obra, a tentativa foi em vão.

Fora isso, há que se considerar que houve dezenas de outros ataques subsequentes ao atentado de 11 de setembro, data fatídica que a autora pretenderia dissociar do Islamismo. Homens-bomba em boates cheias de jovens e caminhões atropelando multidões deliberadamente não ajudaram a melhorar a imagem dos jihadistas.

Transmissões ao vivo de jornalistas sendo decapitados também contribuíram muito pouco - nada, na verdade - para dissociar o terrorismo sem fronteiras da cultura islâmica milenar.

Na última década, a França se tornou o epicentro das agressões de grupos terroristas muçulmanos, mas não a única: eles se distribuíram por outros países e continentes, África e Ásia incluídas. 

A pandemia paralisou a escalada das ações. Não há dúvida de que o vírus mata diariamente muito mais ocidentais que o mais bem sucedido dos ataques. Um pouco antes da sua suspensão, porém, nós, brasileiros, fomos também atingidos (embora a América do Sul venha se mantendo longe do roteiro de atrocidades, ocasionalmente cidadãos brasileiros têm suas vidas ceifadas).

Ainda que não tenhamos muita experiência em sermos atacados, é notório que não há como uma vítima se defender de um atentado terrorista. Tudo acontece antes que se perceba e antes que a vítima tenha a oportunidade de questionar o carrasco, na hora fatal: "Sou inocente e não tenho nada a ver com isso. Você está me trucidando por que mesmo?"

Esta simples frase, por exemplo, não pôde ser dita pela imigrante baiana Simone Barreto. A brasileira foi morta enquanto rezava em uma igreja em Nice, sul da França. Mãe, negra, religiosa, morreu degolada em um ataque covarde - em nome de uma causa que nós aqui não fazemos a menor ideia do que seja. Nem entendemos também sob que aspecto o assassinato aleatório de civis pacíficos poderia contribuir para que árabes que se supõem injustiçados conquistem o que reivindicam cometendo injustiças contra populares inocentes.

Mesmo um bom livro teria dificuldade em defender uma cultura da conduta terrorista de radicais.

Um mau livro, nem pensar.


José Olympio Editora, 274 páginas

"Sara", por Marek Halter


Um romance bíblico, escrito em um estilo antigo, narrado em primeira pessoa por Sara, no tempo em que ela se chamava Saraí e era a filha cobiçada de um dos mais ricos potentados de Ur. Estão presentes na narrativa referências bíblicas mais e menos conhecidas. Muitas eu ignorava totalmente, o que não surpreende ninguém, porque eu, na minha ignorância, sou incapaz de dizer o que é bíblico e o que não é. Mas o trecho da História (ou lenda) recortado por Halter é belíssimo e me encheu de perguntas. Muitas sobre o conteúdo, outras sobre a forma, e ainda mais algumas sobre o autor. Ou seja: mesmo já tendo lido o livro, e gostado, tenho muito mais perguntas que respostas. Marek Halter havia me impressionado alguns anos atrás, quando li seu posfácio de "Rutka", tão encorpado conceitualmente que para mim é um livro à parte. Não conhecia o autor, e a digressão histórica que ele fez sobre a presença judaica na Polônia me impactou. Embora agora eu tenha trocado sua análise factual do judaísmo polaco para esta sua criação lendária do povo semita, fiquei novamente desconcertado com a leitura do seu texto, ainda que por razões diferentes. Registro, entretanto, que é a segunda vez que Marek me surpreende. Vou resumir aqui o livro, com spoiler - mas, se você conhece a narrativa bíblica, eu não tenho como lhe trazer novidades, já que o subtítulo do livro é "as heroínas da Bíbilia". Se você não conhece, relaxe, porque também não vai fazer muita diferença. O texto inicia narrando a apreensão de Saraí, pré-adolescente, tendo a sua primeira menstruação. Seu pai, um dos manda-chuva locais, a oferece em casamento a um outro figurão poderoso de Ur. Após a cerimônia (cuja descrição é interessantíssima), a noiva foge desabalada da casa e dos limites da cidade, sem permitir a consumação do matrimônio. Na fuga, ela conhece um jovem camponês, Abrão, que a acolhe, na primeira noite; mas poucas horas depois ela é capturada pelos próprios guardas do pai e é posta sob vigilância. É mantida isolada da convivência familiar, pela desonra que trouxe ao pai, que promete jamais falar com ela novamente. Saraí, atentada, consegue uma poção de ervas que a incapacita para a gestação - com isso, tem sucesso no seu plano, que era o de evitar ser dada novamente em casamento. É enviada para uma instituição religiosa, e lá, após alguns anos internada (o autor simplesmente dá um salto nesta parte), se torna a principal sacerdotisa do país, voltando a ser motivo de orgulho para a família. Não obstante, ela não desiste de sua paixão à primeira vista por Abrão, e foge novamente, para se unir a ele. Daí, ambos partem na direção de Canaã e do Egito, para cumprir seu destino bíblico, que Marek narra com vigor e passionalidade. Sua Sara é um personagem feminino obstinado e sensual. Injusta e ciumenta. Eu me senti tomado pela leitura e, após fechar o livro, fui buscar referências que ainda não encontrei. Pouco achei no Google. As sinopses chegam a ser engraçadas, de tão ruins, como a descrição do livro no site da Livraria Travessa, chamando Abraão e Sara de "o primeiro casal 20 da História". Eu queria entender mais a pesquisa histórica que Halter emprega para escrever seus livros. Se o conteúdo é sedutor, a narrativa é anacronicamente escrita em um estilo rococó (pode chamá-lo também de ultrapassado). Entretanto, com ou sem seu cacoete obsoleto, me fascinou pela fartura de detalhes da rotina dos moradores de Ur. Talvez nem tão cedo eu consiga respostas sobre o seu processo de criação. Os livros dele que mais me interessaram não foram editados em português, e ainda não me atrevi a tentar lê-los em francês, o idioma em que foram originalmente publicados. É sua língua derradeira. Sua biografia tem um percurso sofrido e provocador - a Polônia do pré e do pós-guerra, a Rússia invadida, a Israel idealizada e a França redentora -, mas ele escreve sobre a Cananeia. Sua própria fisionomia sugere alguém oriundo de um tempo que não é o nosso. Seu romance é como aquelas cavernas de parques temáticos, verdadeiras em tudo, exceto que são de resina e papelão. Mas quem se importa?

Editora Nova Fronteira, 267 páginas

"As Sete Vidas de Fenelon", por Hermínio Miranda

O livro se debruça sobre os sonhos do psicanalista holandês Erlo van Waveren, discípulo e amigo de Carl Jung. Van Waveren, muito a contragosto, revelou na etapa final da sua vida ter tido sonhos, de origem pretensamente mediúnica, que narravam algumas de suas vidas anteriores - entre elas o arcebispo Fenelon, preceptor do delfim francês. A partir daí, o respeitado e sempre sóbrio autor Hermínio Miranda envereda pelo relato de cada uma destas existências, começando por Judas Barsabás, discípulo de Jesus, e que teria participado do primeiro grupo a disseminar as palavras do Mestre. Em seguida, uma série de nomes proeminentes da Igreja foram etapas da trajetória terrena do holandês: Asterius, bispo de Amásia; Wilfrid, bispo de York; Walter de Gray, bispo de Worcester; e Fenelon, arcepispo de Cambrai. Pesquisador minucioso, Hermínio reuniu (em um período pré-internet, destaque-se) um enorme volume de informações sobre cada uma destas personagens históricas. Eu, ao tomar conhecimento da grandeza e complexidade de cada uma destas passagens pela matéria, fiquei encafifado com a pobreza intelectual e circunstancial (se me permitem) de Erlo van Waveren na atualidade, após ter personificado tantos nomes de peso.  E, mais, não fica bem demonstrado o vínculo mediúnico de van Waveren com suas vidas anteriores, pois os devaneios que originaram o livro mal são citados. Isso faz do livro uma sequência de biografias de nomes da antiguidade, com fartura de lacunas e baixo grau de interesse - não desconsiderando, em absoluto, a erudição dos comentários e das transcrições trazidas por Hermínio Miranda. Ao fim, o autor se arrisca a propor o nome do suiço Johann Kaspar Lavater como uma encarnação posterior do psicólogo, com base em um conjunto de afinidades. Não duvido da coerência da comparação (as pinturas mostrando a fisionomia de um e de outro impressionam), mas também não me entusiasmo. Minha apatia se deve mais a uma incompreensão de como um Espírito, que teve encarnações de grande exigência espiritual, poderia retornar, após séculos de estrada terrena, como um burguês incrédulo. E, no que tange a este mesmo Lavater indicado por Hermínio, me espantou a contracapa informar "Miranda chegou a uma descoberta sensacional: a de uma outra encarnação de van Waveren, como uma das figuras mais polêmicas da história humana." Um surto do contracapista, que talvez não tenha lido o livro. Porque não foi uma "descoberta", e sim uma hipótese; não foi "sensacional", e creio que "convincente" já seria muito; e Lavater não foi uma das figuras "mais polêmicas da história humana". Ainda que o redator tenha deixado os dinossauros de fora, acho que o emérito Lavater não pegava o Z4 da série D. Digamos que pode ter sido uma das figuras mais polêmicas da hístória da sua cidade, Zurich - e passa a régua. Assim, sem saber até onde procede o relato das encarnações anteriores de van Waveren, me contentei, à guisa de ilustrar o post, em conseguir a certidão da última. Já é alguma coisa.

Editora Lachâtre, 313 páginas

"As vidas sucessivas", por Albert de Rochas

A pergunta "Há vida depois da morte?" é uma obsessão do ser humano, diante do vazio opressivo. Mesmo os mais céticos hesitam. Todos querem crer que a vida não se encerra aqui. Alguns poucos conseguem. Felizardos. As religiões vêm cultuando o monopólio da resposta. Discordam entre si e apostam seus óbulos em uma explicação exclusivista. O céu passa por elas. Mas por uma delas, apenas. Como se fosse um Silvio Santos místico, possuído pelo Mr. Natural de Robert Crumb, há um deus no Olimpo perguntando: "É eessaaa? É eessaaa?". Vá saber. Talvez sejam todas. Se o misticismo é pródigo em explicações, já a ciência não tem tido essa generosidade. Madrasta, para ela a morte é o fim de tudo. C´est fini en le Maracanã. Para ela, o corpo e a personalidade que animava o corpo eram indissociáveis. Com a morte de um, o outro também pede a conta. Ou não. Porque, mesmo que dominante, este é o entendimento de apenas parte da ciência. Assim como nas religiões, há correntes. O saber humano comporta várias "ciências". Há, por exemplo, estudos sobre a fisiologia humana que são aceitos por um determinado círculo acadêmico, mas questionados em outros. Ou mesmo simplesmente rejeitados alhures. Podemos classificá-las como áreas controversas, onde o processo empírico que norteia o saber científico não foi esgotado. Nesta categoria temos, entre outras, a homeopatia, a acupuntura e a fisioterapia. Cada uma delas, a seu tempo e a seu grau, foi negada, tolerada, aceita (ou quase) e absorvida. Então, mesmo a ciência, tão rígida, volta e meia abre seu flanco. Uma destas raias, porém, permanece na vala acadêmica, sem acesso ao salão nobre da medicina: o Magnetismo e sua frequente companheira, a Hipnose. É uma faculdade mais bem aceita nos shows de auditório, com assistentes de maiô, do que nos consultórios. A discriminação é justa? Há algo de procedente no hipnotismo ou ele é mero charlatanismo? Ó dúvida. Um dos mais abrangentes livros sobre o tema foi escrito há um século atrás - e permanece sendo uma das obras mais citadas pelos estudiosos do assunto. Seu autor, Eugéne-Auguste Albert de Rochas d'Aiglun, foi um francês que, na primeira década dos 1900, se dedicou à hipnose e aos resultados dela advindos. Sem convicções prévias ou teses a provar. De Rochas era um pesquisador. Um curioso. E se viu exposto a um mundo que antes não imaginava - e para o qual não tinha rótulos. Dos seus pacientes (denominados sujets, no jargão dos entendidos) ele colheu um largo espectro de reações. E, mais do que tudo, uma surpresa: à medida em que o processo hipnótico avançava, em estágios que ele ia classificando de acordo com a profundidade do transe, relatos de outras vidas começaram a surgir - e de Rochas se viu diante do que ele não imaginara: a regressão da memória às vidas passadas do hiptonizado. Cético, não partidário da doutrina espírita ou qualquer outra tese reencarnacionista, ele incentivou o mergulho em épocas cada vez mais distantes. Para uma melhor aferição e idoneidade dos procedimentos, zelava para que houvesse sempre observadores externos em suas sessões - e, muitas vezes, ele saía da condição de hiptnotizador e passava à de observador, responsável pela transcrição dos relatos. Sem ideias pré-concebidas e sem defesa de teses, o pesquisador francês investigou os diferentes níveis de reação do cérebro humano à hipnose. O leitor, além da farta, convincente e criteriosa produção, se vê cativado e desconcertado pela honestidade intelectual do autor. De Rochas, em seus viés puramente científico, descarta qualquer doutrina mística ou religiosa. Frente ao que lhe parece inconclusivo, deixa diversas questões em aberto e questiona os casos em que atuou, os que assistiu e aqueles de outrém, cujo relato lhe parecia confiável. Parte das transcrições nos é fornecida, com a reprodução dos diálogos mantidos com dezenas de sujets hipnotizados. Assim, se a narrativa sobre as supostas vidas anteriores merece crédito, ou não, cabe, em parte, ao leitor decidir. O fato é que surpreende que hoje, cem anos depois, tão pouco se saiba sobre os meandros da mente. Que janelas para um universo desconhecido e enigmático permaneçam fechadas, por um rigor que, no futuro, podem ser rotuladas de obscurantismo. Fato é que ferramentas inusuais, como a hipnose, foram relegadas ao descaso, talvez mais por falta de conhecimento sobre o que acontece com os suscetíveis ao processo hipnótico do que por real falta de convicção sobre o método. É uma pena que assim seja. O livro, além destes relatos, traz ainda o resumo de crenças e religiões, e também uma síntese do pensamento de nomes como Platão, Apolônio de Tiana e Voltaire. Para quem se interessa sobre a mente humana e o universo de alternativas presentes em um mundo que não vemos, uma obra relevante.

Publicações Lachâtre, 379 páginas

"Guerrilheiros da intolerância", por Hermínio Miranda

Não, o título não tem nada a ver com o dia de hoje, quando o Congresso se reúne para votar o impeachment da presidente Dilma Rousseff e o gramado foi dividido por um muro de aço, para impedir que manifestantes pró e contra o governo se engalfinhem. O "Guerrilheiros da intolerância" em questão é um comparativo entre as biografias produzidas sobre três vultos históricos: Hipácia - a filósofa de Alexandria -, Giordano Bruno - monge e filósofo italiano do século XVI -,  e Annie Besant, ativista inglesa e presidente da Sociedade Teosófica. São personagens interessantes, principalmente o segundo, e a intenção de Hermínio com o comparativo é defender que foram os três vultos analisados manifestações diferentes de um mesmo espírito. O autor hoje também pertence ao mundo espiritual: o incansável Hermínio Miranda nos deixou há poucos anos, e, na sua longeva temporada entre nós, trabalhou com generosidade, delicadeza e humildade intelectual. Sua produção literária é exemplo de pesquisa científica e histórica fundamentada. Admirador confesso que sou, foi uma grata surpresa redescobrir no meu exemplar uma gentil dedicatória - que imagino me tenha sido presenteada em uma palestra no Palácio de Cristal, que exatamente daqui a uma semana completará 17 anos. Obrigado, Professor. Outrossim, não obstante meu carinho, gratidão e reverência pelo autor, procuro não permitir que influencie na minha análise do conteúdo do livro abordado. A verdade é que não me convenci que há elementos evidentes para identificarmos serem os três personagens a mesma pessoa. Mais: também considerei o livro um gigantesco verbete enciclopédico, engessado, onde a vida dos biografados não palpita e, como consequência, nos deixando perceber somente uma imprecisa silhueta de quem realmente foram. A impressão que fica é que os biografados são coadjuvantes de uma biografia alheia. Mesmo o maior volume de informações sobre Besant (cuja vida foi quase contemporânea da do autor), ainda que muito maior do que os demais, padeceu do mesmo mal. Soube mais de Madame Blavastky, Leadbeater e Krishnamurti do que sobre ela mesma; uma Annie muito adjetivada, mas pouco aprofundada. Hipácia praticamente não teve fundamentação histórica sobre a qual nos debruçarmos. A parte de Bruno foi picaresca, mais pelo seu caráter dúbio do que por sua pretensa relevância. O aparente mau-caratismo de Bruno, a propósito, em nada parece com a têmpera de Besant - seriam a mesma pessoa? Sinto o impulso de negar: ainda que amenizada, creio que a canalhice de outrora traria um pouco mais de molejo para a obstinada e volúvel biografada. Em suma, meu querido guia e professor Hermínio Miranda não conseguiu sair da armadilha da subordinação literária, meramente ecoando o andamento das biografias nas quais se baseou. Sua narrativa, assim, é marcada pelas lacunas e pelos saltos. Nela não se fixa a substância dos biografados, marcadamente a das duas mulheres. Pena. Diante da sua gigantesca produção, um momento aquém do seu brilho. Mas, convenhamos, até o Pelé perdeu pênalti.

Editora Lachâtre, 248 páginas

"Eu sou Camille Desmoulins", por Hermínio Miranda e Luciano dos Anjos

Camille Desmoulins morreu aos 33 anos, guilhotinado. Se formou advogado, mas brilhou na política, como jornalista. Desempenhou importante papel na Revolução Francesa - inicialmente, deflagrando-a; ao fim (literalmente), combatendo-a. Foi amigo de infância de Maximilien Robespierre, que o condenou à morte. Foi também amigo e aliado político de Georges Danton, ao lado de quem foi despachado. Camille Desmolins é co-autor do livro, mas o escreveu quase dois séculos após a própria morte: reencarnado no Brasil dos anos 60, quem o ditou foi o jornalista brasileiro Luciano dos Anjos. É a poeira cósmica dos tempos. Ainda que trate de mortos que falam pela boca dos vivos, o livro não é de ficção ou psicografado. É obra de cunho histórico-científico, lastreado em pesquisas bibliográficas e sessões de hipnose e regressão de memória às quais se submeteu Luciano dos Anjos. Já o autor "principal", Hermínio Miranda, é nome proeminente no Espiritismo científico. Um estudioso erudito e ponderado. Os temas que aborda são, via de regra, históricos ou teológicos - com inúmeras concessões à Psicologia, quando Hermínio envereda pelas entranhas da mente (memória, autismo e múltipla personalidade foram, cada um a sua vez, pauta principal de livros seus). Miranda geralmente age como observador e compilador, intervindo de maneira cuidadosa e se mantendo pessoalmente à prudente distância. Neste "Eu sou Camille Desmoulins", sua presença difere um pouco da sua praxe, ao se colocar no centro da ação, com o livro trazendo sessões mediúnicas em que o próprio Hermínio esteve presente. O ponto de partida foi uma sessão no longíquo ano de 1967, em que o jornalista espírita Luciano dos Anos, reticente quanto à própria sugestionabilidade, se submete ao desafio de um transe hipnótico. Nele, para sua surpresa posterior, Luciano se assumiu um personagem secundário da História francesa, disse coisas inusitadas e despertou a curiosidade de Hermínio. Mas a excursão pelo subconsciente de Luciano não foi à frente; a fita da sessão foi esquecida em uma gaveta;  e não mais tocaram no assunto nos 13 anos seguintes. O hiato teve sua razão. Ao pesquisar a vida de Desmoulins, Hermínio identificou no relato de dos Anjos uma série de incongruências, tornando-o suscetível a questionamentos. Houve divergência de nomes e informações conflitantes. Melhor deixar de lado, se o tema já é naturalmente controverso. Em 1980, entretanto, tendo inusitadamente deparado com fontes que respaldavam as afirmações de Luciano na década anterior, Hermínio e o médium combinaram novas sessões - e o material coletado foi o alicerce do livro, que resolveram escrever a quatro mãos. É impactante a descrição dos pequenos detalhes, como a lembrança de Camille do trajeto em que seguia com os demais condenados do dia, rumo à execução. Em prantos, o autor reencarnado admite sua covardia perante a guilhotina e reverencia a postura corajosa de Danton. Antes, contou mais, e nos agrada ouvir da própria boca de um contemporâneo minudências rotineiras, como a relação de valores de trabalho e produtos existente à época. Não só: é prazeiroso caminhar pelos palácios, tavernas e calabouços de um momento decisivo da política européia e mundial. Fato é que viajar no tempo é o sonho máximo dos devotos da História, e o testemunho de um personagem "redivivo" constitui um presente ímpar. Isto posto, não obstante o brilhante esforço de Hermínio, meticuloso e honesto, seu monumental estudo não rendeu um bom livro. As falas de Desmoulins/dos Anjos são dispersas e picotadas; e as notas históricas após cada capítulo são demasiadas. Extensas e maçantes. O livro não flui. É uma rodovia de calçamento irregular, com quebra-molas de variada altura, dispostos a cada 100m. Ademais, se a primeira parte, escrita por Hermínio, contribui para a comprovação da reencarnação como verdade histórica, a segunda revela a baixa qualidade do texto do médium, que responde pela parte final do livro. Nela, dos Anjos se jacta verborragicamente em cada uma das páginas e descreve em minúcias sua atual história de vida, que é desinteressante. Outrossim, se sua passagem anterior pelo planeta, como Camille Desmoulins, teve mais importância, esta, de forma consoante, revela um personagem fútil e desagradável, a despeito de seu eventual (e relativo) protagonismo. Se a obra fundamenta a convicção das vidas sucessivas, deixa claro também que os chatos e presunçosos têm enorme probabilidade de reencarnarem chatos e presunçosos. Como bem o sabem os leitores do Pentateuco, o aprendizado é lento.

Lachâtre Publicações, 375 páginas

Obs.: Pesquisando sobre Luciano dos Anjos na internet, fui cair em blogs sensacionalistas, mal diagramados e com uma agressividade descabida, denunciando os 160 anos da doutrina como uma trajetória de farsas e imposturas. Retrógrado. Não é difícil imaginar o grupo religioso-capitalista por trás dessa sandice. Técnica digna do século 19. Diante do acinte e do despropósito, só me resta repetir: o aprendizado é lento.



"Jerusalém, a biografia", por Simon Sebag Montefiore

Montefiore olhou para o deserto e pensou: "Vou construir uma pirâmide." Se não foi isso, foi algo parecido. Ninguém - ou quase ninguém - se propõe a escrever uma biografia sobre uma cidade. Mais ainda uma cidade com milênios de história. Que pertenceu a dezenas de povos e que foi arrasada e reerguida incontáveis vezes. Pois é. Montefiore encarou essa parada indigesta e descreveu, uma por uma, todas as vezes em que Jerusalém foi posta abaixo e reconstruída, incluindo os intervalos de - vá lá - paz. Ao fazer isso, alinhavou um documento fenomenal. Bebendo em autores que viveram os diversos períodos dessa história única, Simon dá cores ao inimaginável. Se esmera na montagem de um mosaico que entrelaça diferentes culturas e conquistadores. Exibe a desimportância a que a Cidade Santa foi relegada durante séculos - e como isso, súbito (em perspectiva, né), mudou: o brilho; o ocaso; o apogeu. Porém, mesmo sendo assim um livro grandioso, durante as primeiras 400 páginas "Jerusalém" não me encheu os olhos. Talvez minha culpa. Ou porque as toneladas de informação comprimidas faziam do relato um patê inodoro, com guerreiros matadores e príncipes gananciosos que se sucediam às carradas. Mas, à medida em que as fontes se tornam mais fartas, a obra é premiada com substância e consistência. Os últimos 130 anos e as sucessivas tentativas em estabelecer um lar judaico na Palestina são o grande banquete oferecido pelo livro de Montefiore. Ele mesmo um descendente de um dos principais articuladores e mecenas do retorno dos judeus à Terra Prometida, procura (já dizer se consegue, são outros quinhentos; não tenho estofo para aquilatar) demonstrar equilíbrio e tratar com isonomia as atrocidades de cada um dos povos que escravizaram e mataram por aquela estreita e poeirenta faixa de terra. Evitando entrar em um cenário político que ainda se desenrola, Simon Sebag Montefiore interrompe na Guerra dos Seis Dias, nos anos 60, seu acompanhamento temporal. Nos fica uma sensação óbvia de incompletitude, mas é compreensível sua reserva: não quis ele macular sua narrativa discorrendo sobre circunstâncias onde a verdade histórica ainda não deu sua sentença final. Sem sombra de dúvida, uma obra de porte. É injusto comparar este livro ao seu primoroso "A corte do czar vermelho", mas confesso que me rendi duplamente: à relevância da obra e à tonelagem do conteúdo. Simon lega aos leitores e estudiosos um belo panorama de uma cidade que reúne as paixões do mundo, para o Bem e para o Mal. E de como os auto-assumidos defensores do primeiro tiranizaram os pretensos praticantes do segundo.

Companhia das Letras, 799 páginas

"Zelota", por Reza Aslan

Fui iniciar a leitura desse livro em Belém, porque Jesus nasceu em Belém. Eu já tinha comprado o livro; por uma outra razão, resolvi ir a Belém; juntei ambos, porque achei que juntos ficariam bem. Mas o autor de "Zelota" me disse logo no início que Jesus não era de Belém e que isso era uma farsa promulgada através dos tempos. Uma mistificação. Jesus, o Nazareno, era de Nazaré. Paciência. A Belém em que estive, a do Pará, já não era a da Judéia, mas em compensação, oferecia uma longa rua chamada Nazaré. Fui até ela e acomodei os fatos: assim, a verdade é que estive em Belém e em Nazaré, no período em que lia o livro. Com minha consciência apaziguada e minha pendência particular resolvida, vamos ao que importa, que é o livro. O artigo de jornal que originalmente me motivou a comprar a edição dizia que a obra versava sobre a busca do Cristo histórico - e que em nada abalaria as convicções religiosas dos leitores. Bem, só se for para quem apenas folhear ou não entender nada do que está escrito, porque a pesquisa de Aslam dá um verdadeiro ippon em tudo o que se crê tenha sido a passagem de Jesus pelo planeta. Antes de mais nada, adianto que a obra é brilhante. A contextualização política da Palestina nas décadas anteriores e posteriores à chegada de Jesus nos remete a um mundo em tudo parecido com o nosso - só que distante no tempo, sem tecnologia e dominado pela cobiça sem escrúpulos. O autor inicia com um corte de tempo e espaço na história de Jerusalém, analisando a compulsão religiosa e messiânica do povo judeu e a rede de poder que entremeava os puristas, os sacerdotes e o romano invasor. Retira da narrativa do período a predominância da passagem de Jesus e permite que a dinâmica histórica ao longo do século dite seu curso, sem se subordinar à trajetória de um personagem específico (não importando que ele fosse o mais importante personagem de todos os tempos). Em tempos dados à mais ostensiva carnificina, Reza Aslan descreve os governantes da Judéia e seus vínculos e alianças com Roma - acordos onde não raro a matança indiscriminada era instrumento de controle e persuasão. Nos apresenta o "zelo", conceito judeu de purismo étnico e religioso, cujos seguidores eram chamados "zelotas", entre os quais crê se alinhe Jesus de Nazaré. Após a decupação do período que se encerra com a destruição de Jerusalém e o quase extermínio do povo judeu - início da diáspora que só veio a iniciar seu processo de reversão 20 séculos depois - (que é o primeiro bloco da obra), o autor retorna à passagem de Jesus. Enfatiza como um judeu, cujo comportamento em nada diferia das dezenas de outros candidatos a Messias que povoaram aqueles tempos, pregou aos judeus defendendo a pureza da fé judaica, sua ojeriza às práticas sacrílegas do Templo corrupto e sua não submissão a Roma. E, importante para a historiografia, atribui a responsabilidade pelo relato da passagem de Jesus sobre a Terra a dois grupos: o grupo de Jerusalém, liderado por Pedro e, principalmente, por Tiago, o Justo, irmão de Jesus; e o grupo helênico, que já pregava sobre Jesus em Roma, em grego, idioma estrangeiro em que foram escritos todos os evangelhos (a propósito, Aslan cruza o período histórico da disseminação de cada um deles, demonstrando a influência de um sobre outro e como trechos eram reescritos, gerando gradativamente mudanças de percepção e conteúdo). Sobremodo, expõe como os apóstolos mantiveram os valores defendidos por Jesus, cuja base era o respeito (o "zelo") pela fé judaica. Se debruça sobre a nova linha estabelecida por Paulo e seus violentos embates com Tiago e os demais apóstolos (diante das acusações desses de que ele não havia convivido com o Mestre, ele se dizia mais autorizado do que os demais, porque Jesus teria aparecido para ele pessoalmente e era quem o instruía). Mostra como Paulo recriou a passagem de Jesus - não mais um judeu pregando a fé judaica, mas um judeu renegado pregando uma nova fé -, versão que se impôs à posteridade. Crê Reza Aslan que o Jesus que é a representação imortal da fé cristã, o Deus encarnado, deriva da forma com que Paulo descreveu, muitos anos depois de ocorrida, a passagem pela Terra de alguém que ele nunca viu, se opondo à narrativa dos que conviveram com ele e também veneravam seus ensinamentos. Embora tenha me deixado fascinar pelo livro, não tenho conhecimento para incensá-lo ou desacreditá-lo. A interpretação que o autor dá à construção da narrativa evangélica é convincente, original e embasada - para refutá-la, só uma outra obra, que trilhe os passos seguidos pelo autor e os desminta. Até lá, permanecerei fortemente impressionado pela visão desse Jesus histórico, ainda grandioso, porém mais enigmático do que aquele em que sempre cri.

Editora Zahar, 281 páginas

"Kardec, a Biografia", por Marcel Souto Maior

Logo que soube que o ótimo Marcel Souto Maior - que havia feito um trabalho fantástico com "As vidas de Chico Xavier" - estava por lançar a biografia de Allan Kardec, compilador da Doutrina Espírita, me enchi de interesse. Me entusiasmava imaginar que iria conhecer a história do professor lionês, de enorme importância para a história das religiões. E confesso: importante também na minha história. Porém, se antes eu pouco sabia sobre sua vida antes do desenvolvimento do Espiritismo, não logrei saber muito mais; porque essa sobre a qual falo não é uma biografia investigativa. Aliás, essa talvez não devesse se auto-denominar uma biografia. Ela é mais um acompanhamento dos textos publicados por Allan Kardec na Revista Espírita, nos periódicos da época e nos seus próprios livros, do que o relato da sua vida - e fica aquém da expectativa provocada. O livro em si e sua publicação estão certamente subordinados a propósitos específicos, que, ainda que legítimos, não necessariamente atendem ao que esperavam os leitores mais exigentes, aos quais cabe se resignarem com o que lhes foi servido, sendo esse tanto pouco ou muito (não podemos ignorar que a publicação está atrelada a interesses de mercado). Possível que os objetivos comerciais da edição tenham pautado sua confecção e feito do livro um prisioneiro da forma, por entendê-la tão ou mais importante que o conteúdo. Seus invariáveis parágrafos curtos, capítulos idem, distribuídos em meio a uma profusão de páginas em branco, nos induzem a crer que sua prioridade foi ser palatável, assegurando mais vendas e uma ansiada popularidade - e desconheço se conseguiram essa última. Temo até que não. É inegavelmente um livro liso, sem reentrâncias ou complexidades, rasura que, por conseguinte, não caracterizou os livros de Kardec, que, mesmo assim - ou, talvez, também por isso - ganharam o mundo. Mas essas são queixas de quem esperava muito e encontrou pouco. O que, em suma, Souto Maior fez, e o fez razoavelmente bem, foi uma reorganização sintética do que foi levado a público durante os anos em que Kardec esteve à frente do movimento espírita - e com isso nos propôs uma concisa biografia do início do Espiritismo. Não obstante, de modo algum nos entrega a biografia de Allan Kardec, título da obra. Assim, quem esperava conhecer Monsieur Hippolyte Leon Denizard Rivail (nome de batismo de Kardec, antes de adotar por pseudônimo o de uma antiga existência sua como druida) que se conforme com o que encontrou nesse pequeno e arrumado pacote. Hippolyte, um aplicado pedagogo e guarda-livros, ao estudar as manifestações espíritas fez do mundo imaterial o novo terreno da sua bem amarrada contabilidade. Submeteu ao seu raciocínio lógico as enigmáticas comunicações dos espíritos. Por consequência, suas conclusões vêm tendo peso decisivo na vida de dezenas de milhares de pessoas, em todo o mundo, ao longo do último século e meio. Fascinante, não? Pois é. Pena que o livro não nos conte isso a contento. Fica para uma outra vez.

Editora Record, 360 páginas

"Mahatma Gandhi", por Huberto Rodhen


Selecionava algum livro na estante para ler – vi a lombada descorada e peguei. Chequei a folha de rosto: o exemplar nas minhas mãos foi impresso em junho de 1960, pouco mais de uma década após o assassinato covarde de Mahatma Gandhi. Como aquele livro veio parar na minha estante? Herança do meu gigantesco tio Felipe Mayer, a quem eu tanto devo e que tanto me influenciou na paixão pelas palavras encadernadas, amante dos livros e dos cigarros de palha, sempre com uma cuia de chimarrão na mão e rodeado de cães senis e gatos fedorentos? Ou era produto de algum arrastão que empreendi num sebo acanhado no centro antigo do Rio, que eu já nem me lembrava? Não importa. Iniciei a leitura e vi que era, acima de tudo, uma dissertação em cima da trajetória e dos feitos do Mahatma. Não estava recordado também do nome do autor – havia uma certa familiaridade, mas nenhuma certeza. Dei uma googlada e vi que ele foi um intelectual místico, profícuo e, provavelmente, bastante respeitado em seu tempo. O tempo, a propósito, é implacável: o livro tem um ritmo característico d'antanho, do período analógico de disseminação de conteúdo, onde éramos poupados da overdose de informação que hoje nos soterra – é um texto reflexivo, com estorietas salpicadas e muita apologia do, com o perdão da palavra, biografado. Sobremodo datada, a obra se dedica a defender a postura crística do hindu Gandhi e tem também passagens exóticas, como a denominação de “sofrimento-crédito” e “sofrimento vice-gerente”, neologismos que, à época, poderiam ser admissíveis - mas que hoje soam somente estapafúrdios. O livro em tudo destoa da prosa atual: arrastado, opinativo, deifica o personagem seguindo parâmetros demasiado pessoais e dá esparsas pinceladas na história do homem a quem se propôs biografar - vide o título. Assim, episódico, seletivo, o autor encerra projetando o nome de Vinoba Bhave como legítimo sucessor do Mahatma, líder espiritual de quem eu nunca havia ouvido falar. Parti para uma nova pesquisa no Google, onde a Wikipédia me chamou de ignorante e revelou a extraordinária personalidade de Bhave, que morreu em 1982, deixando importante legado. Em sua coletânea de reflexões e referências, Rodhen buscou escrever um livro à frente do seu tempo, mas que não resistiu à avalanche do futuro. Normal.

Freitas Bastos, 143 páginas

"Deus é justo", por Grigore Valeriu


Se o título fosse “Confissões de um Idiota”, não seria de todo ruim. Peguei pesado? não creio. O autor disserta sobre sua vida, partindo do nascimento na Romênia ocupada e da infância atribulada no regime comunista. Culpa a muitos pela suas desditas na Europa e também pelo seu início no Brasil; se lá foi uma criança problemática, aqui se revelou um adulto excêntrico. Judeu com o proverbial tino para os negócios, não tardou a se resolver bem financeiramente, vendendo - como corretor, a princípio -,  e depois comprando - como investidor -, uma série de imóveis. Embora não diga quantos, insinua que adquiriu muitos, antes mesmo do casamento com a ex-empregada doméstica do tio. Grigore, abonado, vivia em um quarto e sala sem móveis, e só depois de casado confessou à esposa que não era pobre, e sim suficientemente rico. A morte do pai e o suicídio da mãe o perturbaram e, até então ateu convicto, acabou indo parar em um templo da Universal, onde se desfez de todos os bens em prol da Igreja do Bispo Edir Macedo. Como doou tudo e não trabalhava, tornou-se um miserável, e foi na porta da própria Igreja espoliadora que ele foi bater em busca de emprego. Foi rechaçado, mas, como não desistiu, acabaram por aceitá-lo (segundo ele, se deu assim). Embora não tivesse experiência como advogado, logo se tornou o mais importante advogado da seita e íntimo do Bispo Macedo, a quem, em seu relato, livrou de muitas e boas. Como, porém, não aceitou ser o agente da tentativa de suborno de um juiz (Rocha Mattos, o da cabeleira, há muitos anos preso por participar de um esquema de venda de sentenças), se indispôs com a Universal e voltou à miséria anterior. Fez um acordo trabalhista e, não obstante no acordo tenha renunciado ao seu direito de processar a Igreja, assim o fez, traindo o acordado. Conseguiu um novo acordo e recebeu de volta o dinheiro equivalente aos imóveis que doou. Ponto final. Essa é a síntese da versão de Grigore Avram Valeriu. Porém, além de ser uma estória de um sujeito de atitudes sobremaneira idiotas, é inverossímil, rocambolesca nas suas reviravoltas  e simplista no que tange ao comportamento dos personagens.  O autor faz dele próprio um monumento à ingenuidade, ao expor a sua relação de explorado pela Igreja até o último centavo, mas se torna o mais malicioso e ponderado dos seres, ao assumir o papel de advogado da seita e depois, ao final, de escritor. São personalidades suspeitamente contraditórias. Os encaixes são todos tão favoráveis à tese de que o autor foi lesado em sua irreprimível boa fé, da qual é irresistível não desconfiar. No mais, ainda que a obra dê nome aos bois e só livre – e bem – a cara de Marcelo Crivella, é um livrinho pitoresco, em sua primeira metade, e aborrecido,  na segunda. Sabe quando alguém se faz de sonso, contando uma estória, bem na sua cara, e você vê que tem truta debaixo do monte de blablablá? Pois é. O livro é fraco. A estória, um concurso de mentirosos entre pastores e o ex-enganado. Não me convenceram, não. Eu, se fosse você, ia rezar (ou orar) noutra paróquia.

Idéia & Ação, 213 páginas

"Resgatado do Reich", por Bryan Mark Rigg


A capa da primeira edição é horrorosa e o título induz você a imaginar que teremos aí uma história marcada pela crueldade nazista entremeada às situações de perigo, heroísmo e superação pessoal. Troque de livro: nesse, não há nada parecido. É o relato da manipulação burocrática de cordéis – onde, por intermédio de petições, lobbies e esforços diplomáticos, um líder religioso judeu já trancafiado no gueto polonês da Varsóvia ocupada pelos nazistas é de lá retirado para a Lituânia e em seguida despachado para Nova York. Fácil? De forma alguma. Requereu habilidade, pressão, dinheiro e tráfico de influência. Mas a recuperação do surpreendente e tortuoso caminho que levou à liberdade do Rebbe, líder espiritual dos Lubavitchers (seita hassídica do judaísmo), revela como a sociedade e os políticos norte-americanos se posicionaram - incluindo a colônia judaica, com todas as suas idiossincrasias - antes, durante e após o resgate do Rebbe e sua família. Embora seja coadjuvante no complexo mecanismo de fuga do protagonista, o grande personagem do livro atende pelo nome de Ernst Bloch, judeu mischling (meio judeu, meio alemão) e oficial nazista. Sua trajetória incomum traz brilho e nobreza à obra. O Rebbe nos EUA? Condenou as vítimas e classificou o Holocausto como justa vingança divina contra os judeus desvirtuados, que comiam carne de porco e praticavam outras heresias. O Rebbe, autor da afirmação, e seus companheiros se salvaram, destino diferente de 6 milhões de judeus. O rabino, até a morte, se queixava ainda que seus livros não foram resgatados. E Max Roades, advogado judeu determinante para o sucesso da empreitada, reclamava, por sua vez, que não o pagaram... Amigo, ficar tranqüila: não haver problema. Ser tudo patrício

Editora Imago, 230 pgs