Mostrando postagens com marcador Marketing & Negócios. Mostrar todas as postagens

"Cartão vermelho", por Ken Bensinger


"Depois de uma hora, Burzaco voltou ao tribunal e ganhou as manchetes internacionais novamente com seu depoimento de como a Torneos, com a gigante da mídia mexicana Televisa e com a brasileira TV Globo, havia pago US$ 15 milhões em propina a um alto executivo da Fifa, em troca dos direitos televisivos das Copas do Mundo de 2026 a 2030".

Não é de estranhar que as denúncias de corrupção no futebol feitas insistentemente pelo norte-americano John Textor sejam alvo de depreciação sistemática pelo jornalismo da TV Globo, que oscila entre o negacionismo e o sarcasmo. Compreensível. A platinada tem telhado de vidro. Segundo declarado à justiça americana, a emissora brasileira era parte ativa do esquema de corrupção.

O caso em questão passou a ser conhecido na imprensa mundial como o Fifagate, parodiando o célebre Watergate, que nos anos 70 levou à renúncia do presidente americano Richard Nixon.

O esquema denunciado envolveu grandes dirigentes do futebol mundial, os presidentes das principais federações de futebol do planeta e os mais altos executivos da FIFA. A investigação iniciou em 2011 e se estendeu por anos. As delações começaram em 2013 e o julgamento ocorreu em 2017.

Conseguir que um esquema internacional de corrupção no soccer fosse julgado nos Estados Unidos só foi possível graças a uma intrincada operação de follow the money, permitindo que a justiça norte-americana tivesse ingerência legal sobre atos criminosos cometidos por cidadãos estrangeiros fora dos EUA. Assim, à medida em que provas iam sendo acumuladas, suspeitos foram detidos e instados a colaborar, denunciando seus comparsas, estimulados por acordos de delação. 

Um dos peixes graúdos colhidos nessa rede foi o brasileiro J. Hawilla, dono da Traffic, e um dos principais articuladores da rede internacional de pagamento de suborno a presidentes de federações esportivas. Hawilla acabou se tornando um pária por suas delações - que levaram à prisão de muitos de seus colegas -, e sua história pessoal foi contada no livro "O delator", já resenhado aqui no blog.

Hawilla, a propósito, foi fundamental, com suas gravações secretas, para que o FBI construísse o caso. Ben Kensinger, o autor, demonstra passo a passo como um pequeno indício chamou a atenção de um agente, de como este agente identificou no indício o germe de um caso, de como o caso evoluiu para uma investigação, de como essa investigação se desenvolveu na coleta de provas, e de como as provas obtidas subsidiaram o processo, a prisão e a condenação dos investigados.

(Enquanto aqui Mr. John Textor é ameaçado de banimento por denunciar a existência de indícios.)

O relato nos proporciona compreender como uma investigação se desenrola nos Estados Unidos. Você sabe. O que acontece na Justiça de lá não tem paralelo com a Justiça brasileira. Aqui tudo se resolve. Tanto que tradicionalmente somos um destino acolhedor para fugitivos. Seja nos filmes, como na vida real. O Brasil é um país conveniente para quem é procurado pela justiça internacional.

Não só para corruptos, como para ladrões de banco, e também para assassinos, terroristas e genocidas. O italiano Cesare Battisti foi condenado à prisão perpétua na Itália pela morte de quatro pessoas. Fugiu para o Brasil em 2002, onde circulou com liberdade, escrevendo livros e participando de talk-shows. Somente em 2018, com a troca de governo, perdeu seu status de "perseguido político". Aí Battisti deu no pé. Mas foi preso na Bolívia e extraditado para a Itália. 

E assim com tantos outros, do assaltante inglês Ronald Biggs ao genocida alemão Joseph Mengele.

Mas, voltando ao futebol e ao Fifagate, é no mínimo divertido saber que, depois da investigação vir a público, o então presidente da CBF, o viajadíssimo Marco Polo del Nero, nunca mais se aventurou em uma viagem internacional - sabia que acabaria no xilindró. Foi banido do futebol mesmo assim. Vive hoje rico e feliz - exclusivamente em solo pátrio. Viva o Brasil.

Já Hawilla ficou em prisão domiciliar nos Estados Unidos por quase cinco anos. Mas não foi o único brasileiro preso, nem o de maior prestígio. Embora a memória coletiva seja curta e a mídia esportiva jamais o cite, outro ex-presidente da CBF, José Maria Marin, foi preso pelo FBI em Zurique, em 2015.

Levado para os Estados Unidos, ficou também em prisão domiciliar, até seu julgamento, em 2017. O mesmo tribunal que mencionei no início do post, presidido pela juíza Pamela Chen, em que Burzaco revelou o envolvimento da TV Globo. Marin foi condenado em nove de doze acusações, incluindo fraudes relativas à Copa do Brasil, à Taça Libertadores e à Copa América. 

No julgamento foi demonstrado o pagamento de US$ 3 milhões para uma conta de Marin no banco Morgan Stanley, nos Estados Unidos (significativo como dessa mesma conta foram gastos perdulários US$ 118.220,49 em artigos de luxo - pasme, em apenas um mês).

José Maria Marin foi hóspede do sistema prisional norte-americano de 2017 a 2020, quando, atendendo aos pedidos da defesa, foi libertado pela idade avançada. Aos 88 anos, voltou ao Brasil, onde circula serelepe. Também por piedade, Hawilla havia retornado ao país em 2018, aos 74 anos, já doente. Mas o delator morreu três meses após o retorno.

O leque de corruptos é extenso. O bando se valia de suas posições privilegiadas na FIFA (e em outras confederações continentais e federações nacionais) para amealharem fortuna, em detrimento dos países representados. O livro não poupa ninguém. Dá nome, sobrenome e endereço.

Vai dos grandes figurões da FIFA - o brasileiro João Havelange, o suiço Sepp Blatter e o francês Jérôme Valcke - à cartolada do Caribe e da América do Sul. Os protagonistas do propinoduto internacional incluem ainda Jack Warner, Chuck Blazer (o primeiro delator), Jeffrey Webb, Enrique Sanz, Alfredo Hawit, Nicolás Leoz, Juan Angél Napout, Julio Grondona, Ricardo Teixeira, além dos já citados J. Hawilla, Marco Polo del Nero e José Maria Marin - e muitos, muitos outros.

Voltando ao momentoso caso de John Textor, após denunciar suas suspeitas de manipulação e suborno no futebol brasileiro, vale dizer que o americano passou a ser atacado diariamente na imprensa, em sistema de rodízio, pelas "autoridades" esportivas.

Um dia era o atual presidente da CBF (que o processa), no outro era o presidente da Federação Paulista de Futebol, no outro era a presidente do Palmeiras, no outro o presidente do São Paulo, no outro o presidente do STJD (apêndice da CBF) ou mesmo um funcionário de menor escalão. A mídia esportiva - notadamente o site Uol - fazia coro às acusações.

Ações estapafúrdias na justiça esportiva começaram a ser movidas em profusão, sem sustentação. Ainda agora o tal STJD o ameaça com "dois anos e meio de suspensão" pelo crime de denunciar... que há suspeitas de manipulação dos resultados esportivos. Aqui os suspeitos mandam prender.

Uma veterana colunista paulistana chegou a titular uma matéria com "John Textor está nu". Um jornalista brasileiro ligado ao Flamengo publicou um material supostamente investigativo ligando o empresário a oligarcas russos e insinuando que ele burlara a justiça dos... EUA.

Após quase um ano se defendendo apenas com declarações formais (e outras nem tanto...) à imprensa brasileira, Textor anunciou que irá processar na Justiça americana todos os envolvidos naquilo que ele chama de "smear campaign" - uma articulada campanha difamatória. 

Dono da Eagle, um conglomerado multiclubes que reúne clubes de futebol pelo mundo - Lyon, na França, Crystal Palace, na Inglaterra,  Molembeek, na Bélgica, e Botafogo, no Brasil -, o empresário está por lançar um IPO na Bolsa de Valores dos Estados Unidos. Ser uma empresa presente na Bolsa dos EUA faz com que os tentáculos da Justiça norte-americana alcancem cidadãos de outros países que, em alguma instância, participem ou influam nos seus negócios e reputação.

Em outras palavras, sujeita os envolvidos a um processo e eventual prisão. Assim, em caso de entrada nos Estados Unidos ou em algum país que tenha acordo de extradição com os EUA, o difamador inconsequente pode acabar tendo a sua viagem de negócios ou de turismo abreviada. A hospedagem pode ser por tempo indeterminado e em inóspitas acomodações coletivas.

Não misturo alhos com bugalhos. O cerne dos acontecimentos atuais aos quais me refiro é o mesmo que move o livro. Corrupção no futebol. O próprio autor reconhece que os dirigentes presos no caso que se tornou conhecido como o Fifagate foram substituídos por outros criminosos, que mantiveram as práticas ilegais anteriores.

O Brasil, talvez o maior celeiro do futebol mundial, tem uma parte importante do seu potencial gerador de riqueza sequestrado por um grupo de dirigentes e empresários corruptos. Como em qualquer outro país do Terceiro Mundo, aqui os mecanismos de combate à corrupção são frágeis.

Nem tudo está perdido. Para azar do coronelato local dono do futebol, um player oriundo da principal economia do planeta resolveu fazer negócios no latifúndio Brasil. Seu projeto desemboca na realização de lucros garimpando e produzindo atletas e os exportando com adição de valor agregado.

Para tanto, o visionário vai ter que superar a máfia local. Ainda falta muito para o fim do filme.

Editora Globo (que ironia), 402 páginas | 1a edição, 2019 | Copyright 2018

Título original: "Red Card: how the U.S. blew the whistle on the world's biggest sports scandal"

"Topa tudo por dinheiro", por Mauricio Stycer


Em meio a tantas biografias de meia-tigela que existem por aí (por mais que eu tente evitar, vez por outra levo gato por lebre), sobre os mais variados sujeitos, essa aqui escrita pelo Mauricio Stycer é uma que vale o que pesa. Fala pouco e bem. Biografa o homem de negócios. Radiografa o negócio em si. O mercado da comunicação. O universo televisivo no Brasil, dos anos 60 aos anos 2000.

Já a vida pessoal do biografado, Mauricio pula. "Evitei escarafunchar aspectos da vida pessoal de Silvio nesse livro", explica o autor. "Deixo essa tarefa para a infinidade de biógrafos que já fizeram e ainda farão isso", esclarece.

A biografia, você sabe, é sobre Silvio Santos, morto mês passado. Foi escrita em 2018, quando o então octagenário apresentador ainda se mantinha no ar, todo serelepe. Ou quase.

Sempre tive curiosidade pelo personagem; mas comprei o livro também porque Silvio faz parte da minha memória afetiva. Cresci escutando sua risada, em uma época em que o aparelho de TV era onipresente. Era posto em um altar no melhor ponto da sala (tinha que ver se o lugar era bom para a antena). Só exibia três ou quatro canais, que "funcionavam" até pouco depois da meia-noite.

Depois dessa hora as emissoras saíam todas do ar e a sensação de solidão se tornava absoluta.

Pelo menos esse era o meu sentimento notívago de guri. Por volta das onze havia a "Sessão Coruja", encerrando a programação. O bagulho era tão pomposo que tinha até apresentadora. Uma espevitada senhorinha de voz fanhosa, a Célia Biar, opinava que o filme era bom por isso ou por aquilo, nos convidando a vê-lo - por ser palpitante, ou romântico, ou assustador.

E falava isso sob a luz de um abajur, sentada numa poltrona rococó, ao lado de uma coruja zoiuda.

Às sextas e sábados rolava a "Sessão Dupla", em que um longa-metragem era seguido por outro, fazendo com que a TV Globo ficasse no ar até quase quatro da matina. Para mim, moleque, era uma aventura. Eu gostava dos filmes velhos, e também das novelas, "Casos Especiais", séries, enlatados... mas achava enjoados os programas de auditório, como os do Silvio Santos.

Mesmo assim, ele era a cara do domingo. A gente escutava a voz dele e sabia que era domingo. E domingo é uma coisa boa. Então, não dá para desconectar o telespectador mirim da entidade Silvio Santos - o que aguçou meu interesse, quando vi uma biografia sobre o apresentador. 

Atirei no que vi e acertei no que não vi. O que o botafoguense (tamo junto) Stycer escreveu é muito maior e melhor do que uma biografia convencional sobre um animador de auditório. Ele fala, sim, do camelô que vendia carnês e bugigangas na tevê, mas, principalmente, da rota bajulatória do concessionário de canais de televisão e dono de banco.

A propósito, essa coisa de "camelô" dá pra por na rubrica da mitologia sobre o Silvio Santos - cujo nome de batismo é Senor Abravanel, descendente de uma milenar família judia. Stycer enfatiza o quanto o apresentador inventou, mistificou e mentiu sobre sua vida pessoal. Acho que dá pra incluir essa estória de ter sido camelô nessa construção da lenda.

Após se tornar famoso na TV, Silvio se categorizava como "artista". E achava que a vida dos artistas deveria ser "misteriosa". Tanto, que alternava em se dizer solteiro, na maior parte das vezes, com outras em que dizia ter "oito esposas". A esposa verdadeira, Cidinha, morreu de câncer em 1977 e posteriormente o artista se declarou arrependido por escondê-la.

Mas, antes de ser famoso, Silvio alugava espaço na programação televisiva da época, cheia de espaço vazio e carente de dinheiro. Comprou um negócio falido de um colega de TV - o "Baú da Felicidade", do Manoel da Nóbrega - e, com seus talentos de businessman e apresentador, fez da arapuca um baú de dinheiro. Para ele mesmo.

Tenho lugar de fala. Minha avó, ou minha mãe, sei lá (ambas telespectadoras assíduas do animador), caíram na conversa do Silvio e fizeram o tal carnê. A promessa era que você pagaria x por mês durante um ano e poderia ser sorteado e ganhar prêmios (improváveis). Se não ganhasse, trocaria o dinheiro gasto com o carnê por tralhas variadas nas lojas do Baú.

Como a inflação já comia solta, ao cabo de um ano um valor de, digamos, R$ 50,00 por mês (R$ 600,00 no ano) dava para trocar por uns quatro copos e uma bandeja. Negoção da china pro Silvio.

Stycer nos conta como - com os horários na TV e o carnê - o homem foi de vento em popa. Era líder de audiência e empresário bem-sucedido. E aí se segue toda a sua determinação em obter uma concessão de canal de televisão, sua bajulação da ditadura, seus negócios escusos e sua astuta relação com outros magnatas da mídia.

Sem contar a sua aventura como banqueiro, que deixou um rombo de 4,3 bilhões de reais. Quem investiu se f..., porque o banco quebrou e o Silvio - rárárá - não pagou ninguém. Nem perdeu um mísero saca-rolha do próprio patrimônio. Foi a Brasília, se reuniu com o presidente e saiu dali com tudo resolvido. O governo (ou seja, nós) pagaria o pato.

Ninguém reclamou, muito menos as colegas de auditório. O próprio Silvio já tinha dito, em uma entrevista de 1987 ao Estadão: "O povo brasileiro é manso, não é lutador como o povo dos Estados Unidos". Ainda arrematou: "O brasileiro fica satisfeito com um bife".

Em outra entrevista, muitos anos depois, em 2010, foi perguntado sobre a quebra do seu Banco Panamericano. "Em público, questionado por jornalistas, fingiu demência", escreveu Stycer. Para Monica Bergamo, da Folha, negou saber quem era Rafael Palladino (o principal executivo do banco e primo da Iris, esposa do Silvio Santos):

"Palladino? Que Palladino? Nunca fui ao banco. Nem sei onde é o prédio."

Para outros, Silvio admitiu ter ido ao banco "uma única vez". A quebra da instituição não aconteceu por acaso, nem por má gestão. O autor relata uma fraude.

"A fraude no banco, revelado no fim de 2010, teve origem em uma prática, comum no mercado financeiro, de venda de carteiras de empréstimos entre bancos", explica Mauricio. "O golpe se dava no momento em que um programa de computador devolvia os empréstimos vendidos à conta original, o que inflava ativos e receitas e reduzia despesas".

Destaco eu que, pelas datas apresentadas, a quebra do banco do Silvio ocorreu no mesmo período da "marolinha" (como então o presidente Lula adjetivou a crise financeira que desestabilizou a economia mundial, inclusive a brasileira). Provável que o Silvio (ou o tal Palladino) tenha apostado no crescimento do subprime e, como tantos outros bancos, tenha ruído quando a bolha furou.

Mas o autor não aprofunda o tema.

O livro mesmo é esculpido em seis grandes capítulos, sendo um deles dedicado às suas relações com os outros empresários do setor ("Entre Roberto Marinho e Edir Macedo") e outro à sua escancarada puxação de saco dos ocupantes do poder ("Sou um office boy de luxo do governo").

O último fala da rede de televisão que criou, o SBT. Certamente a mais peculiar programação de todos os tempos, sempre subordinada aos interesses comerciais do seu proprietário. Não à toa, os próprios funcionários diziam que SBT significava "Silvio Brincando de Televisão".

Parece que há duas semanas foi lançado nos cinemas o filme "Silvio". O pouco que li a respeito diz que o filme é ruim demais. Percebi certo consenso. Tô fora. Já o livreco, modesto, é bom.

A capa é acanhada, o formato é semi-bolso e a "área de cobertura" é limitada. Mas, pela inteligência e agudeza com que contou a história de Silvio Santos, Stycer fez o suficiente para colocar o seu livro na prateleira de cima.

Editora Todavia, 256 páginas  |  1a edição  |  Copyright 2018



"Queda livre", por Isabela Palmeira e Chico Otávio


Apesar do apelido pomposo do protagonista - Faraó dos Bitcoins -, o livro não traz nada do antigo Egito, nem do atual mercado financeiro. Fala de uma mega fraude e de uma pirâmide de pessoas enganadas. Se cada uma das pirâmides de Gizé era formada por 27.000 blocos de calcário, os clientes lesados pela empresa que já se apresentaram à Justiça passam de 122.000.

E contando.

Essa quantidade de gente caiu - ou quis cair - no golpe da pirâmide, um velho esquema onde o dinheiro de cada cidadão que ingressa é direcionado para as pessoas que entraram antes dela. O esquema, batido, foi requentado como se fosse um sistema de investimento. No caso, um pretenso investimento em criptomoedas, popularmente conhecidas como bitcoins.

Ressaltam os autores que "um piramideiro experiente não apenas elabora golpes com obstinação, como também tem sempre a postos um plano de fuga pra deixar a cena. Sabe usá-lo na hora certa, quando clientes lesados e autoridades estão prestes a descobrir a jogada. Não foi o caso do Faraó dos Bitcoins".

Talvez o timing tenha sido perdido pelo Faraó, o ex-pastor Glaidson Acácio dos Santos. Seu esquema não parava de progredir, e ele talvez não visse razão para ter um plano de fuga engatilhado. Vacilou. Derrapou na curva ao cutucar com vara curta um inimigo mais poderoso do que imaginara. E que estava em guerra aberta com ele, pelo controle de um mesmo público-alvo.

Um lado, o de Glaidson e seus parceiros, chamava este público de "investidores"; o outro lado, o do oponente, batizava este público como "fiéis". Seja lá qual for o mais adequado, estão se referindo a um mesmo público: o crente, o "dizimista", aquele que deposita semanalmente o seu suado dinheirinho nas contas da IURD - a Igreja Universal do Reino de Deus.

Não é segredo para ninguém que a IURD persuade seus fiéis a entregarem à igreja todo o seu ganho, como na tal Fogueira Santa, sob as mais variadas promessas de recompensa divina. Deu ruim porque a GAS estava chegando antes e secando a fonte. E ainda estava seduzindo os seus vendedores.

"O grupo estava em guerra com a Igreja Universal, em razão da debandada de pastores da instituição para trabalhar como consultores da GAS", revelam os autores, de acordo com o apurado em um grampo telefônico da Operação Kryptos (o grampeado era Michael de Oliveira Magno, ex-corretor de imóveis, um dos apóstolos de Glaidson Acácio dos Santos, ex-pastor da Universal, o cara das iniciais da GAS).

Chamar de "apóstolos" os executivos de uma empresa de bitcoins não deixa dúvida de quão estreitos eram os vínculos entre o modus operandi da IURD e os da GAS.

A Região dos Lagos mostrou a Glaidson que seu negócio era uma verdadeira máquina de imprimir dinheiro - e não fazia sentido a GAS se limitar unicamente à região. A empresa passou a prospectar seus clientes Brasil afora. Não havia restrição de fé ou geográfica. A única fezinha necessária era ter dez contos para investir. O sujeito aplicava em "cripto" (com um depósito na conta do apóstolo, que respondia aí pela alcunha de "trader") e passava a ganhar 10% como rendimento mensal.

Cada dez mil aplicados geravam R$ 1.000,00 mensais de "rendimento". A GAS pagava em dia. Mas a maioria deixava os 10% na própria conta, para render mais. O investidor não é bobo. Ou é?

Fiz um mero exercício matemático aqui. Um cidadão que depositasse R$ 10.000,00 em janeiro de 2018 em um dos dezenas de CNPJs da GAS - e não sacasse nunca nem o valor principal nem o rendimento de dez por cento - teria acumulado, em julho de 2024, R$ 18.621.820,13.

Bom, né? Você aplica dez milzinho. Seis anos depois, tem dezoito milhões. Vamos supor que você (o investidor) ganhe dez mil por mês e aplique o salário do mês - de julho, vá lá - inteiro e nunca mais mexa nessa grana. Em seis anos, você tem na sua conta o equivalente a 150 anos de salários. Um século e meio. Seria como se você trabalhasse apenas um mês na vida, aplicasse e depois de seis anos recebesse de uma vez só os salários que você teria direito até o ano 2168. Ô vidão.

Era o pote de ouro no fim do arco-íris. Mil e oitocentos salários filhos de um único salário.

Para não restar dúvida, vou recapitular o bagulho aqui. Sempre de acordo com o livro, que é quem traz toda essa estória. O cara da GAS - o Glaidson Acácio dos Santos - era um sujeito humilde, de família simples, incluindo alguns condenados. Entrou para a Universal e virou pastor. Foi mandado para a Venezuela. Lá conheceu uma fiel venezuelana, a Mirelis Diaz, procurada por golpes financeiros envolvendo bitcoins. Ele foi demitido da empresa do bispo, ela precisava fugir do país do Maduro.

Já casados, vieram pra Cabo Frio, no Brasil, e abriram uma empresa de bitcoins. Ele, bom de lábia, começou a vender a aplicação para os fiéis da IURD. Deu tão certo que os pastores se bandearam da igreja e foram trabalhar para o rolo do casal.

Era irresistível. O ex-pastor, ex-garçon, ex-guardador de carros Glaidson tinha tanto jeito para a coisa que o negócio não parava de crescer. O sistema era tosco, mas mesmo assim funcionava: bastava a vítima, ops, o investidor, fazer um depósito na conta do vendedor (que abria um CNPJ e depois uma conta em banco, com esse CNPJ como titular, para ir recebendo a grana dos investidores).

O investidor, por sua vez, recebia religiosamente os prometidos dez por cento mensais.

Como não investir? O núcleo da GAS, como vimos, era oriundo de Cabo Frio, mas o sucesso local resultou em expansão nacional. Iniciando pelas capitais do Nordeste, logo estenderam tentáculos gulosos na capital do país. Foram extremamente bem-sucedidos no Distrito Federal.

"A fórmula para crescer na capital foi igual à que consolidou a GAS do Faraó no Rio de Janeiro", revelam os autores. "Uma forte pregação nos templos, reforçada pela conversão de pastores locais em consultores". Como explicam Chico e Isabela, "o impacto destas investidas e das adesões ao mercado de bitcoins gerou uma crise na Igreja Universal em Brasília".

Epa, problema. Até então estava tudo certo. Um grupo de pilantras vinha convencendo dezenas de milhares de pessoas a colocarem suas economias em um esquema fictício de criptomoedas. E o bom (para os traders) é que nenhuma agência do governo estava em cima. Normal. Braasil. Mas aí você mexe num vespeiro. O cerne do negócio não tinha Estado para fiscalizar, mas tinha dono para cobrar.

E o dono daquele povo que vinha dando a grana para a GAS era a Universal.

A cúpula da IURD, se sentindo traída, não ficou na desconfiança. Partiu para dentro. Influente, com um pelotão de deputados, a igreja foi acusada pelos pastores de ter quebrado ilegalmente os sigilos bancários deles, para tentar comprovar movimentações e aplicações em bitcoins.

Opa, quebra de sigilo? Isso não é ferramenta exclusiva do Estado? Pois é...

Temos aí um antigo grupo trilionário, a IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), e um recente grupo bilionário, o GAS, competindo pelos mesmos agentes e pelo mesmo insumo (o dinheiro "disponível" na conta-corrente dos trabalhadores).

A corda roeu do lado mais fraco. Vai ver foi coincidência. Assim, do nada, a GAS foi denunciada. Antes, sob o comando forte de Glaidson, a GAS tinha dado seu jeito para neutralizar a concorrência miúda da vizinhança. Com os traders locais mais atrevidos, Glaidson resolveu de forma mais direta. O Faraó mandou matar alguns concorrentes mais saidinhos. Aleijou outros. Mas, na grande disputa pelo mercado, foi implodido por um rival bem superior.

Não dá para sair matando os graudões. Provavelmente nem tentaram. Melhor assim. 

Os autores contam em minúcias o processo de investigação. Puxam o fio da meada desde o início. Trazem os valores, os comparsas, os novos players, as prisões. 

É coisa grande. Segundo a investigação, o negócio da GAS movimentou, de maneira ilícita, "pelo menos 38 bilhões de reais, por meio de pessoas físicas e jurídicas no Brasil e no exterior".

Como um ex-pastor pouco instruído, de origem humilde e aparência idem (apesar do seu volume roliço de ricaço), pôde aliciar tantos parceiros e convencer milhares de pessoas a transferirem para ele todas as suas economias, conta muito sobre o Brasil e os brasileiros.

Quando a casa caiu, eu, por coincidência, estava em Cabo Frio, com a família, tostando na praia. Fiquei pasmo com a carreata em frente ao tradicional hotel Malibu. Um buzinaço de mais de um quilômetro de extensão, em protesto contra a prisão do Faraó.

O populacho (formado todo ele por investidores em pânico) clamava pela liberdade de Glaidson. A procissão de carros importados trazia gente na capota, cartazes e coros ensaiados ("Soltem o papai"). Eu tinha visto a matéria sobre o Faraó na tevê, na semana anterior, e me parecia que prender o cara era a coisa razoável a ser feita. 

Pelo visto, a população local discordava com veemência da minha opinião.

Os autores trazem o relato de quem via a prisão do dono do esquema como um ataque "a um homem negro, de origem pobre, que desafiou o sistema bancário e incomodou muita gente".

"A empresa cumpriu com o tratado com os clientes. Havia contrato, tudo direitinho. Eles pagavam no prazo. Muita gente se levantou com o negócio. Só que incomodou alguns órgãos e bancos por ele estar tendo muito lucro. Foi um complô contra a GAS", argumentou Felipe Henriques Velloso, de 35 anos, vendedor do comércio no centro de Rio das Ostras, que investiu 10 mil reais e recebeu apenas duas parcelas mensais.

Mas nem todos os clientes viram as coisas do mesmo modo. Se a maioria, a princípio, defendeu a a soltura de Glaidson como a fórmula para reaver o dinheiro aplicado, com o tempo as pessoas concluíram que a GAS não parecia imbuída em honrar os contratos.

O advogado Jeferson Brandão, investidor (aplicou 392 mil reais na empresa, assim como a esposa e o escritório, cada um com contratos de 115 mil), chegou a ser uma das "lideranças do movimento pró-Glaidson, e esteve presente em quase todas as manifestações, ajudando a organizá-las".

Apesar do seu esforço, com a passagem do tempo entendeu "que a empresa não estava de fato interessada em devolver o dinheiro aos clientes e reconsiderou a posição pró-GAS". Sua atividade constante para reaver o dinheiro perdido fez até com que mudasse de ramo: de especialista em ações contra bancos, mudou seu foco para os golpes financeiros.

Enquanto o processo segue em curso, a quase totalidade dos envolvidos na execução do golpe responde em liberdade. O faraó não teve este benefício por conta dos assassinatos atribuídos a ele. A esposa, Mirelis, fugiu para os Estados Unidos e lá se tornou instagramer e influenciadora, divulgando a alimentação natural e voltando a operar com investimentos, empréstimos e bitcoins. 

Venezuelana, morando fora do Brasil, se sentia bastante segura. Em alguns posts, chegou a zombar dos clientes lesados. Mas, depois que foi denunciada pela Polícia Federal brasileira, parece que o governo americano identificou algum problema com o seu visto de entrada no país. Desde então, Mirelis está presa, privando o público das suas indicações diárias sobre finanças.

Lá não é possível postar da cadeia.

Editora Intrínseca (selo História Real), 207 páginas  |  1a edição, 2024


"A organização", por Malu Gaspar


Acabei de ler uma relíquia. Uma peça de antiquário. Um "Protocolo dos sábios do Sião" às avessas. Explico. Como todos sabem (sabem?), o tal protocolo foi um livreto de araque encomendado pelo czar russo para fundamentar pogroms de Estado, visando desmoronar a elite financeira judaica.

Muita gente, ou de bobo ou por má-fé, "caiu" nessa. O livro era uma arapuca. Uma mentira conveniente, para desestabilizar uma realidade inconveniente.

Aqui, o logro é o oposto. Ele está do lado de fora, enquanto a verdade está do lado de dentro. "A organização" retrata a sofisticada estrutura de suborno de agentes políticos - aqueles caras com acesso aos cofres públicos - conduzida pela empreiteira Odebrecht ao longo de décadas.

A mentira está do lado de fora, onde os corruptos de carteirinha dizem que o suborno sistemático nunca existiu. Agora, com a luxuosa chancela da Suprema Corte Brasileira. Vá contar isso para o Drousys (o super-secreto sistema informatizado da Odebrecht), que gerenciava o pagamento de propina para os políticos com influência na contratação de obras e liberação de verba.

É uma história antiga e que foi se modernizando. "Aliada" de todos os governos desde os tempos da ditadura, foi no governo do PT que a empresa baiana, fundada por um descendente de alemães, atingiu o auge. O acerto foi a união da fome com a vontade de comer. O petismo no poder - do vereador ao presidente da República - refestelou-se. A esquerda, enfim, tinha chegado lá. 

Não teria dado a m... que deu, entretanto, se não fosse o futuro inimigo público número 1 do Brasil - um paranaense caipira, um cabeçudo de fala esganiçada -, ter se posto no encalço dos "mal feitos" da Odebrecht e seu propinoduto. O nome do caipira - você sabe (sabe?) - era Sergio Moro.

Então, se o tal "Protocolo" era um livro mentiroso criado para construir uma situação falsa que embasasse uma perseguição real, este "A organização" é um livro que decupa uma história real transformada em falsa pela versão oficial de um governo comprometido até o talo com o crime.

Já o livro é uma obra de arte concatenada pela jornalista Malu Gaspar. Ao escrevê-lo, ela não tinha como saber que o mais ilustre condenado do esquema de suborno - o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva - seria liberado da cadeia, que a Lei da Ficha Limpa cairia e que ele se tornaria novamente presidente da República (jurando que é inocente e que nada do que é relatado no livro aconteceu).

Malu proporciona ao leitor interessado a possibilidade de julgar por si mesmo. Os fatos realmente se deram como descreve a jornalista? Os crimes descobertos, as delações obtidas, os políticos condenados, as multas bilionárias pagas pelas empresas corruptoras, as punições emitidas pelo sistema judiciário dos países envolvidos - tudo isso de fato existiu ou foi uma trama maquiavélica conduzida pelo caipira que falava fino?

Com a palavra, o leitor.

(No caso, só pode ser considerado leitor aquele que leu, de cabo a rabo, a obra em questão; quem não a leu, ou apenas folheou, ou percorreu o texto de forma salteada, não é aqui reconhecido como leitor - como não é maratonista quem assistiu a maratona ou apenas colou um número nas costas.)

Se você tiver paciência, permita que eu me estenda um pouco, reproduzindo alguns trechos da jornalista. Para você degustar, um pouco que seja, desta obra destinada à obsolescência jurídica.

Não vai aqui nenhuma pretensão de permutar a leitura da obra por estas rápidas ciscadelas. A leitura é insubstituível e ciscar - ora, bolas - é apenas ciscar.

E vale destacar que não vou minimizar a genialidade da Odebrecht e seu conceito de "domínio do cliente" apenas porque eles foram pegos no pulo do gato. Eles não chegaram aonde chegaram - e isso foi bem alto e bem longe - sem o desenvolvimento de um esquema inteligente, bem azeitado e cumprido por sujeitos de talento e nitidamente vocacionados.

Sem ofensa, roubar também é uma arte.

Antes de mais nada, é preciso ressaltar ainda que a empresa, como outras mega-empreiteiras, não é mega porque é "competente" na sua atividade-fim. Ela é mega porque sabe se relacionar com os governos locais. E esta relação não é, como gostam de camuflar os políticos, "republicana"; ela é essencialmente desonesta. É necessário um agente público interessado em ganhar um "por fora" para que o negócio da empreiteira se dê em sua plenitude.

Quanto mais alto estiver o agente, mais sigilosa deve ser a operação. Já as cifras acompanham o status do cargo. Você também sabe como funciona. Não vou ensinar o padre a rezar missa.

Outra que você também está careca de saber: não há vantagem, para este tipo de empresa, neste modelo de negócio em países onde a corrupção é investigada e punida. Quanto mais frouxa a fiscalização, mais corrupto é o país e mais atrativa a prospecção. É aí que o dinheiro graúdo mora.

Vamos deixar de lado, por batido, o descritivo da corrupção comezinha, aquele combo básico licitação armada + valor inflado + pagamento por fora para o político que autorizou a obra. Isso é o bê-a-bá. Era o pão-com-manteiga do governo. Vamos focar nos pratos mais elaborados, que necessitam criatividade e sintonia entre as partes. O tango se dança a dois.

Por isso, o cenário para a Odebrecht durante o governo petista foi melhor do que a encomenda. Além da polpuda grana local, a trupe baiana conduzia a charmosa dançarina - Lula - pelos salões do Terceiro Mundo. O ex-sindicalista, pessoalmente, abria portas para investimentos bilionários, subsidiados pelo BNDES, onde governantes ávidos pelo enriquecimento pessoal se deleitavam com o esquema trazido pronto e acabado pela Odebrecht.

Que, como de boba não tinha nada, nadava de braçada no cofre público. 

"Ao decidir pautar sua expansão pela influência do Brasil no exterior, a Odebrecht colou ainda mais sua trajetória à do governo brasileiro e traçou uma estratégia que seria ao mesmo tempo o motor de sua ascensão e de seu fracasso", explica diligentemente a autora.

Definição precisa.

"Em atitude inversa à da concorrência, que aportava num país, fazia a obra e desmobilizava o pessoal em seguida, a Odebrecht se estabelecia, contratando pessoal local e montando escritórios para se manter por um longo tempo", continua Gaspar. "Seus dirigentes se faziam amigos dos governantes e se mostravam interessados no desenvolvimento daquela nação. Era uma forma de vender os projetos de seu interesse como se fossem os melhores para o país, criando, inclusive, a demanda por novas obras".

Era um golpe de mestre. Bem pensado, bem executado e que soube se valer do melhor aliado possível: o carismático presidente da República. O executivo número um do Brasil era astuto, habilidoso e lia nas entrelinhas. Para ele, também, um aliado como a Odebrecht, com capacidade de drenar dinheiro público e redistribuí-lo em privado, era um parceiro de mão cheia.

Em 2008, Marcelo Bahia Odebrecht e Luís Inácio Lula da Silva tinham o mundo ao seu alcance.

Mas ninguém pense que, por fazerem o desvio dos cofres de forma mais eficiente, a dupla era original; Fernando Collor e PC Farias já tinham demonstrado sua capacidade no início dos anos 90. Como ressalta Gaspar, "na República de Alagoas, para levar qualquer contrato, de qualquer tipo, era preciso pagar 7% de propina".

Ops, convém esclarecer os neófitos:  "República de Alagoas" era como muitos, jocosamente, se referiam ao governo de Collor de Mello.

E a Odebrecht já era figurinha carimbada nesse esquema. Veio à tona, à época, um pedido de PC para que o Banco do Brasil liberasse um empréstimo de 82 milhões de dólares para uma obra da Odebrecht no Equador.

Um jornalista do JB pressionou o presidente da companhia, Emílio Odebrecht (que viria a se tornar depois um grande amigo de Lula), perguntando, na bucha: "O senhor já subornou alguém?" A resposta do pai de Marcelo foi emblemática:

"Essa é uma pergunta que... primeiro vamos analisar o que é subornar".

O governo Collor caiu, mas para a Odebrecht o escândalo não deu em nada. O DOE - Departamento de Operações Especiais - da Odebrecht continuou a todo vapor neste e nos governos seguintes. Mas o seu grande momento realmente começou em 2002, com a chegada do PT ao poder. Como narra Gaspar, todo o investimento feito por Emílio em Lula, desde os anos 70, pôde enfim ser espetacularmente monetizado.

Apenas como exemplo do salto em números da companhia, em meros dez anos, no período 2006-2015, a empreiteira baiana foi de R$ 24 bilhões de faturamento anual para R$ 132,5 bilhões. De 40.000 funcionários para 171.000 funcionários, distribuídos por 26 países. Uma máquina. Um transatlântico descomunal, azeitado por um óleo que passarinho não bebe.

Este "azeite" sempre jorrou frouxo nos governos anteriores. Mas era uma coisa individual - não "oficial". Só que a rubrica de propina "oficial" passou em 2003 a ser a norma - e a Odebrecht descobriu que teria que cumpri-la já no seu primeiro contrato com a Petrobras no governo petista.

Conta Malu que a empresa venceu, sem armação, o contrato para construção da plataforma que escoaria o óleo produzido na Bacia de Campos. Mas o gerente de serviços da Petrobras, Pedro Barusco, número dois de Renato Duque, diretor de serviços e engenharia da estatal, ao saber do negócio exigiu 8 milhões de reais para liberar a obra, alegando que 1% de todos os contratos deveria ser pago ao PT.

O executivo Marcio Faria - fazer o que - autorizou o pagamento de propina. Mas, como detalha Gaspar, "o contrato da PRA-1 inaugurou uma prática nova até para o experiente Faria". A autora explica que Marcio "prestava serviços para a Petrobras havia décadas e já pagara propina a diversos funcionários públicos, em vários contratos. Eram, contudo, pagamentos avulsos, negociados caso a caso. A cobrança de uma porcentagem fixa de todos os contratos para o partido político era uma inovação".

Mais do que uma mera inovação. A jornalista adianta que ela foi apenas "a primeira de uma série".

Surpreende uma das comparações utilizadas por Lula. Ao invés das costumeiras alusões ao casamento e ao futebol, Lula progrediu para uma referência histórica. No palco da comemoração dos 60 anos da empreiteira, Luís Inácio mandou que o "programa de incentivo às exportações de serviços e o BNDES fariam pela América Latina o que Bolívar não conseguiu fazer com a espada".

Rapaz, o Simon deve ter dado umas quinze voltas na sepultura.

Bestialidades deste porte passam batidas pelo grande público. Até porque, no Brasil, o eleitorado se demitiu do cargo de cidadão e passou a se fantasiar de "torcedor". Ele não fiscaliza o governo. Ele torce por um grupo de sujeitos. Aqui, os grupos se dividem entre a charanga ideológica dos "Amantes da D." e a charanga ideológica dos "Amantes da E.". Cada grupo se imagina composto por seres humanos sensíveis e responsáveis e que o grupo adversário é formado por débeis mentais.

Sei não. Vai que estão certos.

É praxe entre os "torcedores" de uma ou outra agremiação partidária acusarem determinados veículos de comunicação de terem se vendido para o partido rival do seu. Afora a Globo, acusada por todos de discriminar o seu próprio partido e favorecer o concorrente eleitoral, diversas publicações são tachadas de parcialidade.

O caso da Carta Capital é emblemático. Malu Gaspar conta como o próprio ministro da Fazenda (no caso o Guido Mantega) usava o peso do cargo para ajudar financeiramente os veículos que defendiam as causas do governo. "Precisamos fazer um apoio à Carta Capital, o Mantega tá pedindo", disse Marcelo Odebrecht ao seu diretor financeiro. "Vamos fazer no caixa dois, porque eu não quero esse apoio aparecendo", advertiu Marcelo, complementando: "É para eles pagarem, não é a fundo perdido, não!"

No caso, a propina não conseguiu compensar a incompetência administrativa da publicação. Levaram R$ 3 milhões de reais para financiar o plano de marketing da revista, que deu em nada. Mais dinheiro foi dado e a publicação permanecia no vermelho. 

"A revista - que elegeu a Odebrecht a empresa de construção mais admirada do ano em suas premiações de 2004, 2005, 2006 e 2007 - continuou em dificuldades, e Lula continuou pedindo ajuda a empresários amigos", esclarece Gaspar.

Se para os amigos Mantega pedia essa ninharia - os tais R$ 3 milhões - para o partido o sarrafo era colocado mais alto. Um desejo da empreiteira era que o governo implementasse um programa de refinanciamento de dívidas. O governo não se fez de rogado. Para os amigos, tudo. Foi criado o Refis da Crise, que representaria um perdão de R$ 4,6 bilhões de reais para a Braskem, empresa do grupo.

O preço, vultoso. "Bem, Marcelo, você sabe que haverá uma expectativa de ajuda para a campanha", disse o ministro, e estendendo um pedaço de papel onde estava escrito "R$ 50 milhões".

Repare o leitor que o desvio de dinheiro público não é apenas da alta cifra escrita no papelote. Ele é cem vezes maior. Na maracutaia entre PT e Odebrecht, o Estado deixaria de receber os R$ 4,6 bilhões de reais devidos pela Braskem, e mais cinquentinha seriam depositados no caixa dois do partido.

O acerto demonstra a extensão do dano para as finanças do país da corrupção sistemática. Apenas neste exemplo bobo, é possível imaginar quantas escolas, ou hospitais, poderiam ser construídos com esta mínima parcela de dinheiro desviado. Pena que as auto-proclamadas pessoas de bem, em sua inocência, ou ignorância, não atentem para os números transitados.

Minha cidade do coração (ao menos seu nome de batismo) também é personagem do livro. E que personagem. A Cervejaria Petrópolis era a principal envolvida na "Operação Avalanche", um esquema de fraude fiscal investigado pela Polícia Federal. Dezessete pessoas foram presas ao amanhecer do dia 10 de outubro de 2008.

A Odebrecht era parceira da fraude, trocando os dólares - que recebia por baixo do pano lá fora - por reais que a cervejeira faturava aqui dentro de forma ilegal (a empresa desviava parte da produção, que assim não era tributada, e que era vendida em dinheiro vivo no comércio local). Uma ajudava a outra a enganar a Receita.

De toda maneira, era um ano com uma lauta circulação de dinheiro. Emilio não se vexou em pedir um aumento da linha de crédito do Brasil para Angola, o que redundaria em mais dinheiro enchendo as burras da empresa. "Se o senhor puder nos prestigiar, para que não tenhamos dificuldade...", se insinuou o Odebrecht com o Inácio. 

Segundo Gaspar, "Lula disse que ia ver o que dava pra fazer - mas orientou Emílio a pedir ao filho que procurasse o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, para conversar sobre um apoio". Os dois se reuniram em março de 2008. E o funcionário do governo não deu muita volta. "O ministro foi claro: o aumento da linha de crédito com Angola custaria 40 milhões de dólares".

É tanta nota pra lá e pra cá que eu já não consigo contar. Recentemente o novo governo, pretensamente oposto ao anterior, pôs em circulação a nota de R$ 200,00. Dizem que é para facilitar o transporte por mala. Faz sentido. Dinheiro vivo em quantidade é difícil de carregar.

Seja como for, chega, né? O livro traz centenas (é isso mesmo, não estou exagerando) de exemplos de armações e maracutaias, com nome, endereço e CPF. E a autora relata, em minúcias, como cada pequena engrenagem do esquema se locupletava, sem medo do amanhã.

Esta farra com o dinheiro público, jorrando aos borbotões e irrigando centenas de valas petistas, parecia o toque de Midas. Os primeiros escalões do partido estavam seguros de terem conquistado a chave para o paraíso. Até que não estavam errados; o brasileiro médio não se incomoda com corrupção e acha normal que os eleitos roubem o governo. Não se acham pessoalmente roubados.

Vá entender.

Tudo permaneceria de vento em popa não fosse surgir, lá dos cafundós do país, o tal cara que falava fino. Que não saía da linha, não pisava em falso, não aceitava propina e não tinha medo de cara feia. Muito azar. 

Pena que, no futuro (para nós um passado já distante), o caipira que inventou a Lava-Jato se deixou seduzir pelo boquirroto da rachadinha. A quadrilhada viu aí a deixa pra cair matando. A "opinião" pública caiu no conto do vigário. Caiu nos últimos duzentos, por que não cairia nesse?

Essa história de roubo é invenção do honesto pra caluniar o ladrão.

Com isso, num passe de mágica, tudo acabou. Os condenados foram soltos, o dinheiro devolvido passou para a conta do buraco negro, os políticos corruptos se tornaram em fração de segundo em cidadãos ilibados. São todos agora "guerreiros do povo brasileiro".

Aí eu, como povo, me pergunto: esse "A organização" deve ficar na prateleira dos livros de ficção?

Ou deixo no limbo, mesmo? Fica assim um livro em suspenso, uma hipótese narrativa, uma confissão esquecida, como se todos combinássemos em consenso que estamos com amnésia? Talvez funcione.

Já eu, que não esqueço fácil, prefiro considerar que o livro me permite dois enfoques. Um deles é o conflito empresarial familiar. Um "Succession" tupiniquim, pena que sem a Sarah Snook. O confronto entre pai e filho, tutelado pelo patriarca, o avô, que prefere este àquele, mas que morre no meio. Uma moqueca shakespeariana. 

Ou o meu predileto, a visita guiada aos intestinos da corrupção estatal brasileira. O Olimpo onde sujeitos desqualificados, autorizados por um eleitor ignorante, constroem uma fortaleza com privadas de ouro - cujo esgoto desagua nos rios que abastecem as torneiras da população.

Soube agora pelo Gabeira que os irmãos Batista, Joesley e Wesley, da J&F, que ficaram famosos no governo Temer pela gravação que os ligava ao Eduardo Cunha, estão de novo com passe livre no Palácio. A multa de R$ 10,3 bilhões definida no acordo de leniência (que deveria ser paga ao Estado brasileiro) foi perdoada pelo ministro do STF Dias Toffoli. 

Roberta Rangel, mulher de Dias Toffoli, indicado ao Supremo por Lula, tinha trabalhado como advogada dos Batista, informou Gabeira, que concluiu que "parece ter sido uma coincidência".

Os irmãos Batista ampliaram seu leque de negócios. Além de vender boi, passaram a vender energia para a falida Amazonas Energia. Vender energia para uma empresa falida não é bom negócio, mas uma MP do atual governo petista perdoou a dívida de R$ 10 bilhões (que passou a ser do contribuinte brasileiro) e os irmãos vão comprar a ex-falida. Virou um negoção.

Dez bilhões aqui, dez bilhões ali, numa ação entre amigos, todos já denunciados e condenados - e depois repentinamente absolvidos. E, como a cereja do bolo, se candidatam e são eleitos pelo povo.

Corromper-se é uma questão humana. Sociedades mais desenvolvidas e inteligentes ("Tostines vende mais porque está sempre fresquinho ou está sempre fresquinho porque vende mais?") criam anteparos que as protegem do cancro da corrupção. Sociedades mais rudimentares, como a nossa, estão visceralmente envolvidas com ela. Difícil impedir a metástase.

Alguém já disse que a democracia é péssima, mas é uma solução melhor do que todas as outras. Em grupamentos gigantescos, com mais de cem milhões de eleitores, onde a grande maioria é precariamente alfabetizada e o grau cognitivo é baixo, eleições se restringem à escolha das celebridades mais convincentes.

Não há público interessado em currículos, retrospectos, projeções, números consolidados, prioridades, uma mínima linha do tempo. Há pessoas carismáticas, arrojadas, que encarnam símbolos - que são decodificados e aclamados por milhões de analfabetos funcionais.

Com este diagnóstico, uma cura é improvável. Estamos condenados a uma longa existência à margem do mundo civilizado.

O Brasil é uma Rocinha em frente à São Conrado.

Companhia das Letras, 639 páginas  |  1a edição  |   Copyright 2020

"Império da dor", por Patrick R. Keefe


O "Império da dor" é um manual de redação. Uma aula sobre como tornar interessante uma estória chata e intrincada sobre um produto farmacêutico. Sobre como voltar no tempo e contar a trajetória de quatro gerações de uma mesma família, incluindo as amantes, sobrinhos e bisnetos. 

O livro, a propósito, é sobre o OxyContin. Conhece? Eu nunca tinha ouvido falar. Mas não sou medida para isso - tenho aversão a remédios e curandeiros. Soube aqui que é um medicamento bastante receitado mundo afora. Exagerada e criminosamente, como revela o autor, Patrick Radden Keefe.

O produto foi lançado nos anos 90 nos Estados Unidos e já gerou dezenas de bilhões em vendas. Trinta e cinco bilhões de dólares, para ser mais exato. É um opióide à base de oxicodona. Seu uso continuado é suscetível a provocar dependência química. Pode também levar a óbito. 

Isso não o tirou do mercado. Embora alvo de processos e ações judiciais há mais de duas décadas, a droga permanece à venda em muitos países. O Brasil é um deles. Digitando o produto na internet, pipocam ofertas pelas principais farmácias online. A Drogaria São Paulo anuncia a caixa da dose de 10mg, com 14 comprimidos, por R$ 191,14. A Panvel oferece por R$ 188,83 (mas se você aderir ao "Programa de Laboratório", o preço da caixinha com 14 unidades sai pela pechincha de R$ 151,06).

As drogarias informam que o produto é vendido somente sob receita. E informam que o OxyContin é "indicado para o tratamento de dores moderadas a severas, quando é necessária a administração contínua de um analgésico, 24 horas por dia, por período de tempo prolongado".

O problema é que a prática desmente a bula. O livro publica pesquisas que demonstram que a administração contínua do medicamento leva a uma necessidade de doses cada vez maiores - de 10mg para 20mg, e daí para 40mg, e daí para 80mg. Tudo em busca do mesmo efeito inicial.

Parece droga, né? Pois é.

O uso continuado exige o aumento da dosagem. O aumento da dosagem leva à ineficácia do produto. E este uso continuado, em doses progressivamente crescentes, provoca o vício no princípio ativo do medicamento. Como resultado, uma parcela dos consumidores morre.

No site "Consulta Remédios", a posologia indicada é a de 12 em 12 horas. Mas não diz que, além de viciante, o efeito do comprimido não dura todo o período apregoado. Se limita a ressalvar que o produto é "um opioide que atua como analgésico com ação semelhante à da morfina".

A Purdue Pharma, a empresa farmacêutica norte-americana que desenvolveu o produto e faturou bilhões de dólares comercializando-o, foi encostada na parede e, após vinte anos, optou pela falência. Aqui, porém, você ainda pode comprá-lo. Basta uma receitinha.

A receita, vale destacar, é o x do problema. Como Keefe nos conta, nos EUA dezenas de clínicas se tornaram fábricas de prescrição de receitas. Muitas foram investigadas, seus médicos-donos condenados e tiveram que fechar as portas. Não foi suficiente. Sempre havia um novo lugar para adquirir o produto. Criou-se até um mercado paralelo. Tráfico. 

E por que toda essa demanda? O que o OxyContin tem de especial? É que o remédio dá barato. É derivado do ópio, que é extraído da papoula. Sua ingestão entorpece, alucina, vicia e mata.

Não basta, entretanto, tomar o remédio para sentir o barato. Você tem que triturá-lo e cheirá-lo. Porque o pulo do gato da Purdue estava aí. Ela criou uma cápsula ao redor do comprimido de oxicodona. A cápsula impedia a absorção imediata da substância. Ela era lentamente liberada. 

Ingerida da forma correta, ela não dá onda; mas vicia mesmo assim. Ela é um remédio para a dor. Como a morfina. Você toma e a dor desaparece por algumas horas. Depois a dor retorna e você precisa tomar mais oxicodona. E, com a passagem do tempo, a dose inicial  já não é suficiente para impedir a dor. Então o paciente precisa de doses continuamente maiores. E o organismo vicia. Entra em crise de abstinência se não recebe a sua cota da droga.

Paralelamente a isso, dezenas de milhares de pessoas, centenas de milhares, descobriram que podiam se drogar sem recorrer aos traficantes. Compravam OxyContin. Esmagavam e cheiravam.

Então a empresa que produzia o medicamento era a responsável pelo vício e pelo tráfico. Partindo de uma premissa ingênua, a empresa colocou no mercado um medicamento para dor e não soube avaliar corretamente seus efeitos colaterais. Muito menos o seu uso indevido.

A solução, também ingênua, seria advertir a Purdue. Ela pararia a produção, recolheria o produto ainda disponível e indenizaria as vítimas. O problema é que não foi nada disso.

Antes mesmo de colocar o medicamento nas prateleiras, a Purdue Pharma investiu em uma mega estratégia de vendas. O foco era no convencimento dos médicos de que um opioide poderia ser uma solução honesta e sem riscos para o paciente. Campanhas milionárias de marketing e publicidade foram lançadas. Representantes de vendas enriqueceram e eram instigados a dobrar suas vendas. Médicos eram estimulados a multiplicar suas receitas. Os médicos que mais receitavam eram contratados para darem palestras para outros médicos.

A Purdue Pharma, liderada por Richard Sackler, da segunda geração da família, criou um case de sucesso comercial estratosférico.

A questão era que a ação em si era criminosa. Do início ao fim.

Como Patrick Keefe meticulosamente nos conta, já nos primeiros anos as evidências do crime começaram a surgir. Clínicas que distribuíam milhares de receitas por dia. Usuários viciados. Pacientes mortos.

Queixas, protestos, processos. Consumidores, vítimas e o sistema legal dos Estados Unidos se puseram em ação, já na virada dos anos 2000. Mas a empresa faturava mais e mais e destinava parte do seu faturamento a custear uma extensa estrutura de advogados e de autoridades corrompidas.

Enquanto essa briga se arrastou, o OxyContin permaneceu na liderança de vendas e enriquecendo a família - que, a propósito, posava há décadas como magnatas da filantropia. O nome Sackler estava em universidades e galerias de arte mundo afora. Já a empresa farmacêutica mantinha o nome da época em que fora comprada por Arthur Sackler. Purdue Pharma. Era como se nem se conhecessem.

Mas, ao longo dos anos, as rotas de fuga à responsabilidade foram sendo mapeadas e cortadas. E, à medida em que o cerco se fechava sobre a farmacêutica, coagindo suas possibilidades de lucro, a empresa se voltou para novos mercados. Para países em que a legislação não proibisse sua comercialização. Criou-se uma multinacional para representar o produto, a Mundipharma.

O Brasil é também um destes mercados.

Em sites brasileiros de vendas de remédios, você pode acessar um resumo sobre a companhia. Em um deles está escrito que "na década de 50, membros da família Sackler adquiriam a Purdue, dando início a (sic) história da marca. Porém, foi apenas em 1972 que a primeira Mundipharma foi de fato fundada, na Suiça. Desde então, ela vem se desenvolvendo cada vez mais e lançando no mercado medicamentos e tratamentos que têm como objetivo aumentar a qualidade de vida dos seus consumidores".

Segundo a justiça americana, porém, o OxyContin não "aumenta a qualidade de vida dos seus consumidores". Para a justiça dos EUA, o OxyContin vicia e mata.

Se por um lado o trabalho de Patrick Radden Keefe é exemplar, por remontar às origens da família e esmiuçar a trajetória profissional do fundador da dinastia - Arthur Sackler -, por outro é frustrante que, até a publicação do livro, os Sackler tenham escapado impunes.

É valiosa demais, entretanto, a contribuição do autor para a desmistificação da indústria farmacêutica e da atuação "desprendida" e "desinteressada" dos profissionais de medicina. Persiste até uma inocência coletiva sobre esse mercado. Como em qualquer outro setor da economia, há bons e maus profissionais. O ideal é que respeitemos os primeiros e rejeitemos os últimos. Mas há que saber discernir entre eles. E, para isso, o livro de Keefe é uma boa ferramenta. 

Não posso deixar passar em branco a série homônima da Netflix, "Império da dor". Entendo que os roteiristas fossem instados a criar uma forma atraente e "moderna" de contar a história. Optaram por uma sátira mezzo documental mezzo cômica, se valendo de clichês contemporâneos da indústria do entretenimento. Ok. Uma série de streaming é um produto. 

Como o OxyContin.

Editora Intrínseca, 543 páginas  |  1a edição  |  Copyright 2022  |  Tradução Bruno Casotti

Título original:  "Empire of pain"



"A armadilha", por Bertille Bayart e Emmanuel Egloff




Não sei você. Eu sempre fiquei curioso quando o nome de Carlos Ghosn aparecia na imprensa. Era apresentado como o brasileiro que presidia simultaneamente três das maiores montadoras de automóveis do mundo, a francesa Renault e as japonesas Nissan e Mitsubishi.

Eu estranhava, porque não temos tradição na exportação de CEOs. Nem técnicos de futebol exportamos para o Paraguai. Mesmo os nossos "maiores" líderes, os presidentes da República (o atual e o anterior), são rasos e monoglotas, o que já dá uma pista. Por isso me intrigava o caminho que ele teria percorrido para chegar lá. E também ninguém mencionava seu retrospecto por aqui.

Lendo o livro, passei a saber o que a mídia não sabe ou sequer procurou saber (nossa imprensa é ufanista). O fato é que a vinda da família Bichara para o Brasil teve certas nuances sombrias. O pai, o libanês George Bichara, que negociava com diamantes na África, certa feita matou um padre por lá e acabou condenado. Achou prudente se escafeder com a esposa para a América do Sul.

Foi aqui que Carlos Ghosn Bichara nasceu, em Porto Velho, Rondônia, nos anos 50. Veio para o Rio de Janeiro aos dois anos, por conta de uma doença, e aos seis anos se mudou de vez para Beirute, onde cresceu. Fez carreira nas francesas Michelin e Renault. Tem cidadania libanesa, brasileira e francesa.

Este é Carlos Ghosn, filho de libaneses, criado no Líbano. O tema do livro? Bem, mais ou menos.

Para entender melhor a que se propõe a obra, é importante saber quem são seus autores. Bertille Bayard é jornalista do tradiconal Le Figaro, onde cobre, como redatora-chefe, repórter e cronista, o cotidiano empresarial. Já Emmanuel Egloff é especializado em jornalismo econômico - passou pelo Le Revenu e pelo Le Journal des Finances - e cobre a indústria automobilística para o Le Figaro.

Então o que que eles nos entregam - e, aparentemente, com razoável competência - é a história da união da Renault com a Nissan, o contexto econômico e político dessa aliança e, como pano de fundo, a ascensão e queda do seu grande executor: o franco-brasileiro-libanês Ghosn Bichara.

O livro investe no detalhamento societário da Renault e da Nissan, no seu corpo de funcionários e nos intrincados pormenores da aliança. Fala pouco dos produtos - carros. Fala até bastante de Carlos Ghosn. Mas não, como disse ele não é o protagonista do livro. Este privilégio cabe às empresas.

E não só: o governo francês, a justiça japonesa e duas dezenas de coadjuvantes também ocupam o palco. Sem falar nas empresas criadas ao redor das duas, da associação com a Mitsubishi e do constante namoro com outras montadoras. O que não falta nesta estória é personagem. 

Dito isso, tenho que alertar o leitor brasileiro que, como eu, queria saber mais sobre Carlos Ghosn, que ele terá que se contentar com menos do que esperava de um livro cuja capa é uma foto em close do pretenso protagonista. Tem bastante Ghosn, mas o que tem mesmo é Renault e Nissan.

Isso não impediria o livro de ser bom. Na verdade, ele não é, mas não por isso. O texto é sem sabor. É quase uma ata corrida, uma verborragia sem fim sobre as idas e vindas da montadora francesa, a participação societária do governo, a disputa interna de poder, os complexos micro-detalhes de uma guerra de bastidores travada entre Europa e Ásia.

Talvez seja interessante para o seu público-alvo, os franceses. A Renault mexe com o nacionalismo do povo, é entranhada na miscelânea capitalista com background socialista que é o Estado francês - uma zorra esnobe que eu não entendo, e imagino que nem eles. E também muitas das passagens para mim mal explicadas talvez sejam cristalinas para quem acompanha o noticiário local.

O que certamente não é o meu caso.

Em resumo, "A armadilha" é um livro sobre o relacionamento entre duas empresas deficitárias, a Renault e a Nissan, salvas da falência por um libanês que nasceu no Brasil. O salvador da pátria ganhou status de lenda no Japão (virou personagem de mangá), mas meteu os pés pelas mãos e acabou sendo preso pelo governo japonês, acusado de ganhos indevidos à frente da Nissan.

Em resumo, foi assim: depois de 18 anos de carreira na Michelin, Ghosn foi contratado para a Renault em 1996. Um arrojado cost killer, sua performance fez com que em três anos a gigante francesa passasse de paquiderme negativado (eufemismo brasileiro hehe) a superavitária investidora.

Confiante no talento do libanês nascido em Porto Velho, em 1999 a Renault investiu todas as suas fichas na compra de uma gorda participação societária na Nissan (R$ 5 bilhões de euros por 36,8% da empresa), gigante japonesa que vinha chafurdando na crise há alguns anos. Seus carros eram ótimos, mas eram vendidos abaixo do custo de produção. Não à toa, a empresa apresentava um buraco de US$ 20 bilhões de dólares em dívidas.

Assim, coube a Ghosn uma tarefa que antes parecia impossível: recuperar duas montadoras faraônicas de um aparentemente inevitável caminho rumo à bancarrota. Já tinha sido bem sucedido com a francesa, que, por sua vez, apostava que ele poderia fazer o mesmo com a japonesa.

Quando os planos da Renault de adquirir parte do capital societário da Nissan vieram à público, o presidente da Volkswagen, Ferdinand Piëch, pilheriou: "Não é cruzando duas mulas que se faz um cavalo de corrida".

Não só ele fez troça. Bob Lutz, da General Motors, não deixou por menos: "É o mesmo que por R$ 5 bilhões em um navio de carga e afundá-lo". Jacques Nasser, presidente da Ford, também deu uma debochada: "Não iremos desperdiçar dinheiro ganho com sofrimento no pagamento de dívidas contraídas na negligência".

Os tiros vinham de todos os lados. Até os japoneses, desesperados por uma boia de salvação, eram reticentes quanto às virtudes do candidato a salvador. "Temos dificuldade de entender como uma empresa que não sabe fabricar carros pode nos comprar", teria dito um executivo da Nissan.

A união era desigual. Ambas as montadoras vendiam 2,5 milhões de carros por ano, mas havia um abismo entre elas. A Renault injetaria o dinheiro para estabilizar a queda da endividada, e se beneficiaria dos avanços de engenharia já obtidos pela Nissan, notadamente na área da propulsão elétrica.

A confiança de Louis Schweitzer - o presidente da Renault que passaria a batuta a Ghosn - nos poderes de seu predileto se comprovou justificada. O brasileiro-libanês era um sujeito sem pudor para cortar cabeças. O enfant terrible fechou 5 fábricas no Japão, cortou 21 mil empregos (14% do total de funcionários da Nissan), reduziu as compras em 20%, fechou 10% das concessões e se desvencilhou da participação societária em 1.390 empresas - manteve na carteira apenas as quatro que eram consideradas imprescindíveis para a montadora.

Após o impacto e a inevitável apreensão, o que se viu foi que o libanês fez a mágica acontecer. De novo. Em poucos anos, sob o comando de Carlos Ghosn, a Aliança entre as duas produziu um império planetário:  450 mil empregados, 122 instalações industriais e 10,6 milhões de automóveis vendidos em mais de 200 países. Ghosn era uma estrela no Japão.

Em 2006, embalado pelo sucesso estrondoso, a Business Week chamava Ghosn de "rock star da indústria automobilística". Já a The Economist recorria aos números para classificá-lo: "O homem que vale 10 bilhões de dólares". Era o único caso na história de um mesmo cara ser o CEO de duas empresas listadas na Forbes 500.

"Foi no Japão que Ghosn se tornou Luís XIV", disse em off um antigo funcionário da Renault.

Sob suas rédeas, a Aliança se tornou a maior vendedora de carros do mundo no biênio 2017/18.

Bonito. Porém... sempre tem um porém. Como sói acontecer na vida real, nem tudo eram flores. Se os franceses reclamavam que Ghosn privilegiava a Nissan, os japoneses reclamavam que se sentiam subordinados à Renault. A RNBV, com sede na Holanda, foi criada com o intuito de ser uma espécie de holding controladora das duas empresas, aparando as arestas e abafando os ruídos.

Na prática, um único sujeito presidindo por quase duas décadas duas empresas bilionárias, que dividiam setores e projetos e estavam fisicamente separadas por um continente e meio, não tinha como resultar numa situação normal. Elas estavam entranhadas, emaranhadas, e só uma pessoa sabia onde estava cada nó. A parceria se tornou um caldeirão de insatisfações mútuas.

Durante todo o tempo, o ponto de equilíbrio da relação entre as duas sócias estava em Carlos Ghosn. Mas, sem que os franceses soubessem, a partir de um determinado momento a batata do libanês começou a assar. Confiante em seu poder ilimitado, ele tinha montado uma engrenagem paralela que trafegava impunemente milhões de dólares para cá e para lá, muitas vezes com amigos seus envolvidos. Outras vezes, com parentes próximos envolvidos.

E muitas outras com ele mesmo envolvido.

Muito peixe graúdo já não tolerava mais essa desfaçatez do gênio. Sem que ninguém pressentisse, sob o nariz dos franceses e do confiante Ghosn, a Nissan denunciou seu próprio CEO à justiça japonesa e ele, que cruzava o planeta em um jato particular, com quarto de dormir exclusivo, foi preso e algemado quando desembarcava em Tóquio para mais uma singela semana de trabalho.

Foi trancafiado sem processo e sem uma acusação pública - apenas rumores. Durante dias, semanas e meses Carlos Ghosn foi mantido incomunicável. Tecnicamente, era uma prisão preventiva continuamente renovada. O acusado não tinha o direito de falar com a própria família. 

Os autores oscilam entre reverenciar Ghosn (o que fazem com recato), evidenciar a cupidez dos seus mal-feitos (o que fazem com gosto) e questionar se a Nissan, ao prender Ghosn, não estava na verdade dando um golpe na Renault.

Quanto a esta suspeita, eles são bastante enfáticos e enfileiram um bom rol de argumentos. Tudo leva a crer, pela forma com que conduzem a narrativa, que a Nissan se aproveitou de deslizes do seu CEO, o desvio aqui e acolá de milhões de dólares (muitas vezes, frise-se), para criar uma situação que invertesse a dependência estratégica à qual a empresa se via acorrentada na relação com a Renault.

Parece que deu certo. Com Ghosn fora do circuito, a montadora francesa teve que renegociar longamente com a sua sócia japonesa. Cedeu em pontos nos quais por mais de uma década a Nissan se sentia espoliada. A ausência do brazuca do Líbano foi determinante para isso.

O custo imposto pelo ataque da Nissan à Aliança foi enorme. A prisão de Carlos Ghosn impactou o valor das ações do grupo. O prejuízo foi de quinze bilhões de dólares. Equivalente a 75% da dívida de anos atrás. Mas foi uma perda especulativa. Os japoneses lucraram ao se livrar do controle turbinado dos franceses, ao derrubarem Carlos Ghosn. A conta de chegada lhes foi favorável.

Mal comparando, é como matar o pistoleiro depois que ele fez o serviço sujo.

A queda de braço entre as duas foi parcialmente resolvida durante uma visita do primeiro-ministro francês Emmanuel Macron ao Japão. Tinha feijão embaixo desse yakisoba. Carlos Ghosn, com quem Macron sempre andou às turras, estava preso. Apesar dos apelos da família do detido, Macron se recusou a intervir diretamente no caso. As duas montadoras rumaram felizes para um acerto.

O livro mal menciona o que acontecia à época com o detido, então em prisão domiciliar. Também só no posfácio abre dois parágrafos para a fuga de Ghosn, escondido em uma mala, e audaciosamente transportado dentro dela, de Tóquio a Beirute. Uma escapada cinematográfica.

Mas não se engane: o libanês nascido no Brasil, Carlos Ghosn Bichara, que está na capa e na abertura do livro "A armadilha", era apenas o queijo. O livro é sobre os ratos.

Editora Gryphus, 336 páginas  | 1a edição, 2020 | tradução Teresa Dias Carneiro

Título original: "Le piège"

"A Doença como caminho", por Thorwald Dethlefsen e Rüdiger Dahlke


Um amigo fisioterapeuta sugeriu a leitura e insistiu em me emprestar o exemplar. Ele tanto falou das maravilhas do livro que capitulei. "Esses caras mudaram minha forma de ver o corpo humano", enfatizou. OK. Ressalto que nem o tema, nem a abordagem, faziam a minha cabeça; mas, diante da recomendação ardorosa, fui em frente. Deixei de lado até minha resistência em ler livros que não os meus (só leio rabiscando e a boa educação recomenda não rabiscar o livro alheio).

Dei uma chance, né. É que o amigo, a quem quero bem, estava entusiasmado com as teorias promulgadas pelos autores, os simpáticos arianos Dethlefsen e Dahlke. Não sei se era para isso tudo, mas o fato é que ele não estava sozinho no entusiasmo. Os dois teóricos são incensados há décadas. 

O alemão Thorwald Dethlefsen nasceu em 1946 e, além de co-autor desta obra, escreveu também títulos como "O desafio do destino", "Édipo" e "A regressão a vidas passadas como método de cura." Tido como um psicólogo e escritor esotérico, foi da astrologia à hipnose. Fundou algumas instituições místicas, das quais foi mentor. Tendo se recolhido ao fim da vida, passou desta para melhor em 2010 e ainda não fez contato.

Já o também alemão Rüdiger Dahlke, nascido em 1951, teve uma carreira mais midiática e continua bem vivo. Há menos de dois anos esteve no Brasil, participando do "Congresso de Ciência, Consciência e Espiritualidade" (realizado em São Paulo, com ingressos entre R$ 900 e R$ 1.300). Médico e psicoterapeuta, sua bibliografia ultrapassa os 40 títulos, que mereceram tradução em 28 idiomas. Seus "A doença..." são uma verdadeira franquia. Além deste "A doença como caminho", publicou também o "A doença como símbolo", "A doença como linguagem da alma" e "A doença como linguagem da alma da criança", além dos "Agressão como oportunidade", "Mandalas", "Guia do sono saudável", "Jejum", "Depressão" etc etc. Prolífico.

Apresentados assim os autores (que depois romperam entre si), vamos ao livro.

Subtítulo da obra: "Uma Visão Nova da Cura como Ponto de Mutação em que um Mal se Deixa Transformar em Bem" (as iniciais maiúsculas são por conta do livro). Nas primeiras dezenas de páginas a dupla de, digamos, estudiosos dá preferência ao conceito de "polaridade", o qual, no entender deles, é a mola para se compreender o mundo e seus males - a tal parada do Yin e do Yang.

Eles vão e vêm, os autores, atribuindo à polaridade o funcionamento do universo, do umbigo e dos elevadores. Há quem ache genial e transcendente; outros poucos, menos espiritualizados, consideram as afirmações do livro um autêntico samba do chucrute doido; sei não.

Mas, como professa meu fisioterapeuta, há uma certa unanimidade na apologia do livro e dos iluminados que o escreveram. Até hoje os seus muitos seguidores oscilam do fascínio à pura devoção. Raso que sou, não partilho desses sentimentos profundos e vou me abster. Passo a palavra, portanto, aos especialistas no assunto, os dois catedráticos que assinaram o livro.

Como você poderá constatar, a palavra será toda deles (ainda que vez por outra eu dê umas comentadas). Me restringi a selecionar umas duas dúzias de trechos que podemos considerar como o supra sumo da obra. Permito assim que meus obstinados três leitores se esbaldem nesta profusão de conhecimento, que, como se verá a seguir, ultrapassa os liames da existência.

"O tempo pode apagar a realidade dos fatos e dos acontecimentos, mas assim que o eliminarmos da equação podemos perceber a essência que subjaz às formas em que se condensou. Neste complexo e pouco compreensível inter-relacionamento está a base da terapia da reencarnação."

Profundo (ao menos, me pareceu). Audazes, eles vão do tempo à luz:

"No começo era a Luz, na forma da Unidade oniabrangente. Além da Luz não havia nada pois, do contrário, a Luz não seria oniabrangente. Junto com a polaridade surgiu a escuridão, apenas para tornar a Luz visível. Portanto, apesar de mero subproduto da polaridade, as trevas são imprescindíveis para tornar a Luz visível à consciência polarizada. Com isso, as trevas se tornaram servas ou facilitadoras da Luz, como nos lembra o próprio nome Lúcifer." 

Mais claro que isso, impossível. A treva serva. Um bom título para uma peça, ehm? nada mau. Ao tempo e à luz, já explicados acima, os autores adicionam a sua peculiar interpretação do mal:

"O Mal é um produto sintético da nossa consciência polarizada, assim como o tempo e o espaço, e serve como um intermediário para a percepção do bem, sendo de fato o próprio útero da luz. É por isto que o mal nunca é o oposto do bem: a polaridade em si é que é má, ou um pecado, pois o mundo da dualidade não tem um limite natural e, assim sendo, não tem experiência própria."

Sintético porque polarizado, óbvio. Em seguida os autores mandam uma das minhas prediletas:

"Tal como a causalidade nos torna cientes dos relacionamentos nivelados, a analogia busca os princípios subjacentes às associações perpendiculares através de todos os níveis de manifestação."

Que isso, ehm? Não há o que acrescentar. Deth & Dahl já disseram tudo (desculpem a intimidade, mas, para mim - que sou, além de burro, ignorante -, estes nomes nórdicos são impronunciáveis). Ainda que esta sintetização, causal, análoga e subjacente seja páreo duro para uma outra:

"Esse livro deseja completar sua observação unilateral com a função do pólo ausente." 

Caraca. Nunca tinha pensado na função do polo ausente. A propósito, que polo é esse? Chego à conclusão que, apesar da minha euforia com as teses de Deth & Dahl, talvez eu não esteja entendendo nada. Eles também desconfiam da minha burrice, tanto que quase chegam a desenhar:

"A maioria das pessoas não sabe lidar com analogias e símbolos. Esse livro se destina a ensiná-las a pensar e ver."

Antecipo que vou ter que ler de novo. Deu pane aqui. Mas continuo citando os professores:

"Por trás de todo sintoma existe uma finalidade, que apenas se utiliza das possibilidades disponíveis no momento para se tornar visível em forma palpável. Por conseguinte, uma doença pode ter a causa que preferir."

Acho essa parte crucial para empolgar o pessoal da área médica. O que pode ser mais desafiador, e rentável, do que uma doença que escolhe a própria causa? Qualquer coisa pode advir de qualquer lugar, o que só engorda o caixa, das farmácias aos seminários, com um pit stop no consultório. Uma indigestão por conta de um céu nublado, uma dor de dente devido ao cachorro da vizinha, um torcicolo proveniente de um abacaxi mal descascado. Quantas possibilidades de diagnóstico descortinadas.

E o bom também é que o conteúdo nutre a mente, nos abastecendo com um teor filosófico de gabarito, facilmente decodificável pelos bem dotados de intelecto (o que não é o meu caso):

"A evolução é a compreensão consciente de um padrão sempre presente".

Supimpa. Para não dar margem à dúvidas (imagino que você, que [nos] lê, não tenha nenhuma), os doutores esclarecem:

"A busca das causas no passado nos desvia da informação real, visto que abdicamos da responsabilidade que nos cabe, e projetamos a culpa numa causa hipotética".

Se algum dos meus três leitores não estiver entendendo bem, já estava previamente esclarecido pelos autores que a culpa é exclusivamente do leitor burro (temo que, ofendidos assim, não me vá sobrar nenhum). Porque o texto de Deth & Dahl transborda de coerência e limpidez:

"As toxinas acumuladas no corpo correspondem aos conflitos reprimidos dentro da psique. No entanto, essa analogia não significa que os conflitos produzem as toxinas ou que as toxinas provocam os conflitos."

E aí? Boa, essa, não?  É muita erudição concentrada em frases lapidares.

"A intenção de mudar alguma coisa só consegue provocar o efeito contrário."

Essa é séria candidata a hours-concours. Mas segura a onda que isso é só o início. 

"A agressividade não desaparece só porque nos recusamos a olhar pra ela. Durante todo o tempo em que a agressão se mantém oculta na sombra, ela desaparece de nossa consciência e é essa a razão porque é perigosa."

"Os problemas não surgem de vidas passadas, visto que sua origem não está no mundo formal. Eles são formas de expressão inevitáveis da polaridade e, portanto, existem a priori."

"Qualquer princípio não vivido na consciência insiste no seu direito à vida, através dos sintomas físicos. Com nossos sintomas somos constantemente forçados a viver e a concretizar aquelas coisas que não pretendíamos realizar. É assim que os sintomas compensam qualquer unilateralidade."

Se contenha, que eu não cheguei nem na metade. A partir da página 100, os autores começam a subir o nível do conteúdo e a forma de expressá-lo. Eu a essa altura já me sinto um jegue:

"A matéria só pode servir como tela de projeção: em si mesma nunca é o lugar onde se podem resolver os problemas. Nesta função, o corpo pode prestar uma ajuda ideal a um melhor reconhecimento; no entanto, a descoberta só pode ser realizada pela própria consciência. Assim, o processo de toda doença física representa a concretização simbólica de um problema específico cujos frutos educativos só fecundam a consciência."

Só um retardado (como eu) para não entender um enunciado cristalino desses. A matéria não é o lugar, mas o corpo ajuda e a consciência resolve. Garganta inflada, unha encravada?

"Quem mostra predisposição a inflamações está tentando evitar conflitos. Pergunte-se: qual conflito existe em minha vida que até agora não vejo? que conflito estarei evitando? qual tento fingir que não existe?"

A metralhadora giratória da cura universal açambarca de um tudo. Seu pet é um gatinho? É tara.

"As pessoas associam o pêlo do gato a carinhos e carícias - ele é macio e gostoso de pegar. É um símbolo para o amor e tem uma conotação sexual."

Na sua janela tem aquele vasinho inofensivo, com aquelas florezinhas singelas?

"O pólen é um símbolo de fecundidade e da reprodução, bem como o auge da primavera é aquela estação do ano na qual os que sofrem da febre de feno mais padecem. Pelos de animais e pólen, enquanto fatores alérgenos, nos mostram que os temas 'amor', 'sexualidade', 'desejo' e 'fertilidade' estão repletos de ansiedade e, por isso, as pessoas resistem a eles de forma agressiva."

Espirrou, assim, do nada? Logo vi que era um tirano.

"Os alérgicos também não tem limites em seus jogos de poder: os animais de estimação são eliminados, ninguém pode fumar em sua presença, etc. Nessa tirania sobre o meio ambiente, o alérgico encontra um belo campo de ação para concretizar sua agressividade reprimida."

"O alérgico é hostil à vida."

Seguem de lambuja umas frases de perder o fôlego.

"A respiração nem faz parte de nós, nem nos pertence. Vivemos na respiração como se estivéssemos dentro de um útero gigantesco."

"Toda dificuldade respiratória é sinal de medo, medo de dar o primeiro passo rumo à liberdade e à independência."

"Os asmáticos usam os sintomas de sua doença para dominar o mundo ao seu redor. O ponto máximo dessa ânsia pelo poder são os ataques que põem sua vida em risco, e que se manifestam exatamente quando mostramos ao asmático seu desejo pelo poder. São acessos chantagistas e perigosos para o próprio paciente. É sempre impressionante observar até que ponto um doente causa a própria ruína apenas para exercer o seu poder."

"As pessoas asmáticas anseiam por amor. Pelo fato de desejarem tanto ser amadas é que inspiram tanto ar. Como não conseguem dar amor aos outros, são impedidas de expirar."

Que mais posso dizer? no mínimo, inspirador.

Mas se você acha que a esta altura o melhor momento da obra ficou para trás, se enganou. Há a recomendação científica de um método de cura que reputo o ápice da obra. 

"Uma das medidas mais eficazes da medicina natural para os casos de asma e alergia é injetar na pessoa a sua própria urina."

Genial. E não pense que uma afirmativa dessas vem assim, de ímpeto, num jato. Tem explicação.

"Do ponto de vista simbólico, vemos que o tratamento (de se auto-injetar a própria urina) obriga o paciente a aceitar de volta aquilo que ele rejeitou, ou seja, sua própria sujeira e detritos; obriga o paciente a lidar com seus resíduos, a integrá-los outra vez no seu organismo. Esse processo cura!"

Que oportunidade o mundo não vem perdendo. O texto foi doado (força de expressão, os autores vendem todo tipo de tralha esotérica: manuais, fluidos, pedras, workshops, ícones etc) à humanidade no longínquo 1983, ou seja, há 38 anos - e durante todo este tempo a cura da alergia esteve a uma esguichada de distância.

Ao alcance da mão! E mais barato que isso, nem a Coronavac: não precisa de IFA, nem vem da China, nem requer certificação da Anvisa. Sem burocracia, investimento zero, o lucro é todo líquido. O doente produz o medicamento dentro de si mesmo, a matéria prima pode ser água da bica. Melhor ainda que não precisa nem esterilizar a ampola, já que a dita cuja será mijada mesmo.

Depois dessa revelação sublime, o sujeito para ser alérgico tem que ser descrente, analfabeto ou ter um grave problema de bexiga - que, lógico, os doutores Deth & Dahl estão aí mesmo para consertar, e nem vou sugerir como.

Sendo tão substanciosa a aplicação da urina, dei falta aqui quanto à orientação para desfrutar de outros resíduos corporais. Já antevejo uma auto-degustação completa, o corpo como uma verdadeira fábrica de medicina natural, com subprodutos das mais variadas cores e consistências.

Mas, por ora, os autores não ousaram tanto. Será que a humanidade ainda não está preparada? Ou talvez falem disso num outro livro, que não lerei. Mas não à toa, à guisa do tema, encontramos logo à frente uma pista do que passa pela cabeça dos psicoterapeutas: 

"Nos chama a atenção a semelhança entre o intestino e o cérebro."

Que posso me atrever a dizer, depois dessa? Só me resta concordar, pensando nos mais altos cargos da nação.

Para poder fechar (finalmente) em grande estilo essa bagaça, esse rol enciclopédico de citações de escol, vou servir umas curtinhas que lhes (a vocês três) fiz o favor de pescar nesta obra emblemática.

"Resfriados são expressões da elaboração de conflitos."

"Engolir é um ato de de fazer entrar, é um ato de aceitação."

"A fome é um símbolo do desejo de introduzir em si mesmo" (uau, essa eu aplaudo de pé).

"Os macrobióticos têm medo de amar e tanta animosidade por conflitos que têm que ser alimentados por via intravenosa."

"A pessoa que tem dentes ruins carece tanto de vitalidade como da capacidade de enfrentar e conquistar a vida."

"O ascetismo, em geral, lança uma sombra e o nome dessa sombra é cobiça."

"Os olhos se tornam ativos quando damos uma olhada em alguém."

"A dentadura não passa de uma exibição comprada de agressividade."

"Homens de moral conservadora dão preferência a alimentos em conserva."

Tem sempre um estraga-prazeres que pode rotular essa sucessão de análises profundas como uma bobajada comercial difícil de engolir. Será? mas para isso os autores também têm uma tese. 

"Muitas vezes temos de engolir coisas na vida que, de fato, nem queremos, como por exemplo, ser despedidos do emprego. Fica mais fácil se lhe acrescentarmos algo líquido, especialmente se se tratar de um bom gole. O gole de bebida alcoólica serve para ajudar a engolir uma coisa 'entalada'. É por isso que o alcoólatra substitui a comida pela bebida."

Há que se fazer um brinde a tanta clarividência e ao merchan de uísque. Certamente os dois arianos são bons bebedores. Mas a engolida não acabou. E você? Engole, arrota, p...a ou vomita?

"O paciente deve sempre fazer uma pergunta a si mesmo: 'O que está acontecendo agora na minha vida que não posso ou não quero engolir?' Entre os distúrbios desse tipo está o fato de engolirmos ar, a 'aerofagia'. Literalmente, significa 'devorar ar'. Não queremos engolir determinada coisa, não queremos assimilá-la, mas fingimos estar dispostos a fazê-lo na medida em que 'engolimos ar'. Essa resistência disfarçada contra o ato de engolir se expressa depois como um arroto ou na forma de gases intestinais."

"A mulher que vomita durante a gravidez expressa resistência inconsciente contra o próprio filho, contra o sêmen do homem que ela não quis 'incorporar'." 

"A pessoa que sofre do estômago é alguém que sente saudades da infância livre de conflitos."

"O que as pessoas com problemas estomacais têm de aprender é tornarem-se mais conscientes de seus próprios sentimentos." 

"Portadores de úlceras precisam admitir seu desejo infantil de segurança e dependência maternal." 

"O diabético não pode assimilar o amor."

"Quem sofre do intestino delgado tende a encontrar defeitos em tudo."

Suspeito aqui que os doutores aproveitam para falar mal de quem eles não gostam. Porque eles pegam pesado com quem tem colite, a inflamação crônica do intestino grosso. Dizem eles que essas inflamações "são acompanhadas por dores no corpo todo, por corrimentos sanguinolentos e por muco ao defecar". Fazem o centésimo paralelo com a sabedoria popular: "Todos conhecem as pessoas pegajosas, grudentas. Uma pessoa pegajosa age de forma sub-reptícia a fim de se fingir de boazinha. No entanto, agindo assim, ela tem de sacrificar a própria personalidade, tem de renunciar à vida pessoal, a fim de viver 'por empréstimo' (quando se vive 'puxando o saco de alguém'). Quem teme perder a vida, ou afirmar a própria personalidade, perde sangue e muco."

Resumindo: o pobre-coitado que sangra pelo rabo é pegajoso e puxa-saco.

"Um fígado doente mostra ideais elevados demais."

"A capacidade desintoxicante do fígado pressupõe uma possibilidade de discriminar e de avaliar, pois a desintoxicação se torna impossível quando não se consegue separar o que é venenoso do que não é."

"Uma barriga gorda lembra às anoréxicas a possibilidade de engravidar."

"Anoréxicos sentem medo de tudo que é redondo."

Bem, depois dessa última, vou dar uma olhada numa outra coisa pra fazer, porque acho que essa aqui já deu. Tenho umas prateleiras pra pendurar e metade da casa pra varrer. O livro é um enfileirar sem-fim de citações desse calibre aí. Pelo sucesso que vêm fazendo há quase quarenta anos, dá para fazer uma boa ideia do tipo de teoria que seduz os nossos contemporâneos.

E, mesmo que lhe pareça que me estendi, as aspas que abri não cobrem nem 0,01% de todo o palavrório inspirado que abunda o livro. Se lhe despertou o paladar, compre-o já, porque há nele muito mais do mesmo. Não economize - tenha em mente que se você gostou, você merece.

Por fim, resta esclarecer que este meu amigo (que me emprestou o livro) recebeu um exemplar tinindo de novo de volta. Tive que comprar um zerinho, né? rabisquei o livro todo. E as coisas que eu rabisquei ali, o meu amigo, empolgadaço com os ensinamentos, não merecia ler. 

Perco os quarenta merréis do livro, mas não perco o amigo.

Editora Cultrix, 262 páginas












"João Santana, um marqueteiro no poder", por Luiz Maklouf Carvalho


Se você imagina que vai descobrir aqui mutretas do arco-da-velha sobre a relação de João Santana com o PT - coisa pouca, que resultou na sua condenação a sete anos e meio de prisão, por lavagem de dinheiro (atenuados pela delação premiada que negociou) -, pode tirar o seu cavalinho da chuva. O livro foi escrito no longínquo 2015 - com Dilma Rousseff no Palácio do Planalto e o lulopetismo completando 14 anos no poder.

Não é, antecipo, um livro sobre crimes e criminosos, como tantos outros que surgiram no esteio da Operação Lava-Jato (hoje ela própria transformada em arqui-vilã da política e alvo sistemático da mais alta corte do país). É um livro de celebração da competência do marqueteiro biografado. Capacidade novamente posta a teste, hoje, com seu retorno ao anfiteatro das urnas.

Santana está de volta. Ciro e o PDT foram buscar o homem tido como o cérebro por trás da reeleição de Lula e das duas vitórias eleitorais de Dilma Rousseff. Seu poder é tão temido que, diz-se, a notícia da sua contratação abalou o ex-presidente Lula. Não à toa. Santana saberia demais. 

Mas isso é o agora, e o agora não está em questão (não aqui, não nestas páginas). O livro é sobre o passado pré-Lava-Jato. Não consideraremos os últimos cinco anos. Até mesmo porque este passado ainda está por ser reescrito, como qualquer passado no Brasil (a CPI da Covid é mais uma prova que tudo o que aconteceu ontem à noite ganha uma nova versão hoje de manhã).

Vamos então nos transportar para uma outra era. Do término do primeiro mandato petista ao início do último. O fim do périplo dissertativo de Maklouf é novembro de 2014. Um momento de êxtase. A página derradeira de "Um marqueteiro no poder" transborda de confiança redentora, com Dilma, a mãe do PAC, mais uma vez vitoriosa e com o futuro pela frente. A presidenta, reeleita, de branco, e Lula, triunfante, de guayabera.

Sob este aspecto, a publicação surpreende. Não é bem esse o estilo que nos acostumamos a encontrar nos demais trabalhos do jornalista Luiz Maklouf Carvalho (que nos deixou há um ano, precocemente, em maio de 2020, que Deus o tenha). Que o leitor, em sua ansiedade, não espere o profissional combativo de livros como "O cadete e o capitão" e "O coronel rompe o silêncio".

Espere não. Maklouf aqui se rende de bom grado à verve e ao sucesso de João Santana. Como sempre, o texto é limpo, a estória é bem contada - mas nele é dificil reconhecer a caneta incisiva do velho jornalista. A gente pode até mesmo dizer que o experiente Luiz dá uma tietada em João. 

Nada contra; ou, se tenho, não vem ao caso, por ora. O que importa é que o autor, o jornalista Maklouf Carvalho, é dos bons, e parece que o marqueteiro (e também jornalista) João Santana é tido por melhor ainda - de acordo com a quase totalidade dos depoimentos arrolados na edição. Portanto, vou manter de fora, aqui, e ao menos por enquanto, os meus juízos de valor. Ainda que os tenha de sobra e não os esconda de ninguém.

Vou também aproveitar a deixa do livro para dar espaço não só aos feitos do marqueteiro, como às suas concepções de marketing político - incluindo também algumas das suas invectivas, digamos, nem sempre prenhes de consonância com a dureza dos fatos, este ingrato.

Ah, os fatos... falando neles, e nas suas múltiplas aparências, temo que a política tenha sido madrasta com o Brasil. A sua filha dileta, a retórica, vem nos levando no bico. E a classe política, esse Olimpo, turbinado pelo livre acesso ao tesouro nacional, usa e abusa dos mecanismos do marketing, como sobejamente provado aqui, neste altaneiro perfil de assessor de candidato.

Feita a digressão, voltemos a ele.

João Santana tem berço político. Nascido na cidade baiana de Tucano (o que deve ter rendido uma quantidade irritante de trocadilhos), seu pai foi prefeito pela Arena e ator influente na política local. Mas, noves fora, isso influenciou bem pouco a carreira do filho. João partiu para a capital, entrou para a cena musical de Salvador (onde não fez feio) e depois enveredou para o jornalismo.

E com destaque: ganhou, ao lado de Augusto Fonseca e Mino Pedrosa, o prêmio Esso, com a reportagem "Testemunha-chave", publicada na Isto É de julho de 92. A matéria-bomba trazia o furo do Fiat Elba no governo Collor. Já abalado pelas denúncias do irmão (veja aqui no blog o livro "Passando a limpo", depoimento acusatório escrito pelo caçula Pedro Collor) e pelos rastros enlameados de PC Farias, a entrevista com o motorista Eriberto França foi o tiro de misericórdia nas esperanças, já moribundas, do jovem presidente de se segurar à cadeira.

Fernando Collor, hoje senador por Alagoas, acabou destituído da presidência do Brasil pelo rito de impeachment. A votação no Congresso, no fim de setembro, ratificada pelo Senado, menos de uma semana depois, determinou seu afastamento temporário do cargo. No dia 29 dezembro de 1992, véspera do anúncio oficial - por todos já sabido -, Collor renunciou. A renúncia visava evitar a perda dos seus direitos políticos. O Senado, bem mais severo do que viria a ser com Dilma, em 2016, ignorou a malandragem e sacramentou o impeachment no dia seguinte, 30 de dezembro.

Já à essa época, conta Maklouf, Santana estava longe das eleições, mas bem situado na vida (que nunca lhe foi perversa). Tirou um período sabático em Trancoso, com uma das suas muitas esposas (o autor chega a numerá-las: beltrana I, sicrana II e por aí vai), onde escreveu um romance político-erótico, muito reverenciado e pouco vendido (os trechos reproduzidos por Maklouf não são suficientes para que se os possa elogiar, mas há neles o bastante para um caboclo não comprar).

Em seguida, disparando a torto e a direito a máxima "jornalismo não dá camisa a ninguém", foi trabalhar com Duda Mendonça no marketing político. Ali começou a trajetória bem-sucedida do marqueteiro, a tal ponto que, em 2014, veio a ser chamado de "João Goebbels Santana". Na ocasião, o autor do epíteto foi o cineasta Fernando Meirelles, do multipremiado "Cidade de Deus".

Santana não gostou e processou Meirelles, cuja entrevista a um blog tinha sido replicada na Folha, o que potencializou a repercussão. Maklouf reproduz a tal citação do diretor:

"Dilma prometeu que faria o diabo na campanha e ao menos esta promessa está cumprindo. Até amigos petistas se dizem constrangidos com a truculência desleal. Outro dia li uma frase que resume bem esta campanha do PT: 'Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade', a frase vinha assinada por João Goebbels Santana (sic). Foi na mosca, é exatamente dali que vem a inspiração do marqueteiro-mor. Como se pode votar numa candidata cujo principal colaborador é um marqueteiro que lhe aconselha mentir e ela obedece?"

O livro não traz o resultado do processo, que deveria estar ainda tramitando à época. Eu também não sei que bicho que deu.

Como destaca Maklouf, a manjada comparação com Goebbels não era novidade para Santana. O jornalista Augusto Nunes, que havia trabalhado com João na Veja, chamou o antigo colega de "Ministro da Propaganda" do PT. Só que, no caso, teve a delicadeza de omitir o nome do seu "equivalente" alemão, ressalta o autor.

Mas, alto lá - os causos são tantos, que eu coloquei o carro na frente dos bois. Santana, contava eu, ainda estava começando na seara marqueteira e eu desbaratei lá na frente, nessa overtrip gobbeliana, com ele no ápice. E é justo como esse percurso se deu o que Maklouf nos traz, ainda que resumidamente. Então eu resumo o resumo.

Ele e Duda se tornaram sócios e depois se separaram. Duda era o marqueteiro de Lula no primeiro mandato e se enrolou no caso do Mensalão do PT: confessou, em meio à uma crise nervosa, na CPI dos Correios, que recebeu do partido a bolada de R$ 11,9 milhões, via caixa 2.

Coube assim à João Santana a preferência de Lula para fazer a campanha do segundo mandato. Os dois já tinham uma história juntos. No final de 2000, conta o próprio João, segundo depoimento a Maklouf, houve um jantar a cinco - Lula, Dirceu, Palocci, Duda e Santana. Sem confiar no taco de Lula, Duda insistia nos nomes de Suplicy ou Tarso para concorrerem à presidência pelo PT. Disse João:

"Naquele momento havia um descrédito absoluto em relação à capacidade de vitória do Lula - até do próprio Lula."

João prossegue, descrevendo as quantis e qualis que coordenou, as quais apontavam Lula como o candidato ideal: "O Duda era visto como malufista, então fui eu que apresentei [as pesquisas], primeiro ao Lula e à direção executiva, e, depois, a uma reunião ampliada do Diretório Nacional, com uns trinta caciques do PT. Ficaram fascinados, e foi assim que a candidatura de Lula renasceu."

Curioso é constatar, sabendo o que sabemos hoje, que Duda e Santana tiveram como um dos primeiros jobs para o PT a criação de uma "campanha contra a corrupção". Não sei se convenceram o público, mas parece que internamente a campanha não foi persuasiva.

Donde resta claro que propaganda não é essa coca-cola toda.

Se Santana foi influente na primeira eleição de Lula, como vemos, foi decisivo na segunda. Quem diz é o ex-assessor da presidência de Lula e ex-ministro da Secretaria Geral da presidente Dilma, Gilberto Carvalho (cujo primeiro destaque nacional foi ter o nome envolvido na investigação do sequestro e assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, caso até hoje polêmico e que foi matéria do excelente livro de Silvio Navarro, resenhado aqui no blog - confira a resenha, leia o livro). 

A chegada de João Santana à campanha foi justamente no cerne da repercussão do Mensalão, com o país aturdido ao constatar que o PT praticava as mesmas práticas corruptas que até então criticara. Diz Carvalho: "O João veio e provocou um impacto imediato, porque trouxe muita convicção de que era possível reverter a crise. Eu ficava desconfiado, porque confesso que não tinha muita certeza. Mas ele devolveu a confiança, fez o próprio Lula recobrar o ânimo, e acertou a mão."

Sócio de João, Eduardo Costa, entrevistado por Maklouf, vaticinou: "A reeleição do Lula foi a grande virada na vida da Polis". Costa comenta o convite de Lula para que Santana assumisse a campanha da reeleição: "Nossa primeira reação foi de susto, porque achávamos que o Lula estava liquidado."

O sócio destaca aquele que acredita ter sido o insight essencial da campanha. "O mote da ascensão social dos brasileiros foi fundamental. Até ali o governo não tinha sabido consolidar e aproveitar isso, a mídia muito menos. O grande mérito do João foi transformar isso em um conceito que veio a ser o mote do Brasil sem miséria."

Após a reeleição, Maklouf revela que João Santana levou para o governo o jornalista Franklin Martins, pedindo à Lula que o presidente transformasse em ministério a Secretaria de Comunicação Social. Lula acatou o pedido. O hoje ex-ministro se refere à Santana, no livro: "O João tem o toque de Midas eleitoral. Desde o governo Lula nós tocamos de ouvido."

Santana sempre tocou de ouvido; mas nunca foi de ignorar a partitura. Na relação de leituras que entregou ao jornalista, o leque, sofisticado, vai da "A mistificação das massas pela propaganda política", de Serguei Tchakhotine, a "A psicologia das multidões" de Gustave Le Bon e "The Image Makers", do William Meyers.

Eugênio Bucci, ex-presidente da Radiobras no governo Lula, vê nos marqueteiros os novos protagonistas do discurso político:

"Os marqueteiros estão hoje para os partidos políticos como os ideólogos estavam no começo do século XX. Pensavam num programa máximo, num programa mínimo, e isso era fundamental na luta política. Hoje, o ideólogo é nada. É tudo docudrama. O que existe é um pensamento publicitário."

Segundo o autor, Bucci, empolgado, tentou citar Tirésias, em Édipo Rei, de Sófocles, mas se enrolou. 

O professor-doutor Paulo Nassar, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, vê Santana como "uma Sherazade", a narradora de As mil e uma noites: "João Santana entende bem que a política é uma indústria de narrativas". O professor coordenava à época o Grupo de Estudos de Novas Narrativas e tem uma visão bem própria do marketing político.

"Estudamos a política como produto", ele explica. "A gôndola do mercado político, a indústria da propaganda política, o candidato-produto."

O livro oferece também a visão do publicitário Fernando Barros, dono da Propeg, sobre João Santana, a quem considera um "estrategista": "A campanha da reeleição da presidente Dilma é um exuberante exemplo da comunicação política guiada por um pensamento estratégico bem definido", esclarece. "Desconstruiu desafiantes e reconstruiu o perfil da presidente".

Uma "desafiante" pra lá de desconstruída foi Marina Silva. Para quem não a conhece, a acreana foi senadora por seu estado por 16 anos (de 1995 a 2011), Ministra do Meio Ambiente do governo Lula por 5 anos (2003 a 2008) e candidata por três vezes consecutivas à Presidência da República, perdendo as duas primeiras para a candidata do governo, Dilma Rousseff, e a última para Jair Bolsonaro.

Embora tenha em uma das ocasiões o expressivo montante de 20 milhões de votos, Marina nunca chegou a um segundo turno.

A desconstrução de Marina se tornou uma referência emblemática da disputa eleitoral brasileira. Maklouf dedica todo um capítulo para esmiuçar como se formulou a estratégia do PT para derrotar a ex-petista Marina Silva e eleger a ex-pedetista Dilma Rousseff. Como eu também acho esse ponto bastante interessante, vou abrir um lauto espaço para ele aqui.

Após o término do primeiro debate entre os candidatos à Presidência, no SBT, em 1o de setembro de 2014, Dilma, Lula, Mercadante e Santana rumaram para um jantar-reunião na suíte de Dilma, no Hotel Unique. Completavam o grupo Rui Falcão, Luiz Marinho e Ricardo Berzoini, um dos aloprados. O prato principal a ser desossado foi Marina, que não parava de crescer nas pesquisas. 

"Marina cresce porque corre solta, intocável, pairando nos céus", destrinchou Santana, explicando: "Ninguém a confronta." Mercadante assentiu, Santana foi mais enfático: "Melhor partir já pro confronto do que deixar a iniciativa para o Aécio, que vai retardar a decisão ao máximo", alertou. "Senão vamos enfrentar uma Marina muito fortalecida na rodada final."

Aí veio a convocação ao grupo. "Nós não temos outra opção que não antecipar o segundo turno", vaticinou João Santana. "Mas eu só farei isso se todo mundo concordar." Todo mundo concordou, inclusive Dilma. Seguro do que falava, Santana complementou: "Marina tem queixo de vidro."

Metaforicamente falando, a partir daí Marina Silva tomou uma saraivada de golpes não só no queixo, mas nas costelas, no fígado, na nuca etc (na nuca todo mundo sabe que é proibido, mas o pessoal dá assim mesmo, porrada é porrada). Nunca se recuperou do atropelo acusatório.

O baiano Antonio Risério (que Maklouf classifica de redator a antropólogo, de poeta a colunista político), parceiro frequente de João Santana, trabalhou ativamente na criação da segunda campanha de Lula e na primeira de Dilma. Na campanha de 2014, porém, mudou de cliente, e foi trabalhar para o candidato do PSB, Eduardo Campos. Foi combatente e testemunha.

Perguntado sobre o que tinha a dizer sobre a última campanha da ex-cliente Dilma, Risério não teve papas na língua: "Foi de uma falta de escrúpulos que eu nunca tinha visto".

João Santana rebate o argumento: "Foi uma campanha de forte embate político e ideológico. Ela não avançou mais porque não encontramos oponentes à altura. Eles fugiram do debate por covardia ou soberba."

A campanha presidencial de 2014 foi mesmo forte - e os golpes da propaganda eleitoral petista contra Marina Silva são um must em qualquer seleção dos piores momentos. Mas Santana não aceita a aversão generalizada às manobras com as quais ele, Santana, atacou a ecologista.

"Fala-se muito que fizemos jogo sujo com Marina, 'uma mulher santa'. Ora, nosso embate com Marina foi 100% político e 200% programático", teoriza Santana, para emendar: "Marina não revidou as nossas críticas ou por ingenuidade, ou por fragilidade teórica, ou por soberba. Talvez mais por soberba, por se achar acima do bem e do mal."

O marqueteiro ora gosta de pespegar o rótulo de "soberba" nos adversários, ora opta por acusá-los de terem iniciado as agressões, assumindo a posição de quem se defendeu dos ataques.

"O que salvava Marina é que seu aspecto aparentemente frágil, sua voz macia, permitiam que ela batesse com virulência sem parecer agressiva. Mas foi ela quem começou a agressividade na campanha. Os fatos mostram isso."

Fiquei meio em dúvida quanto à referência de Santana "ao que salvava Marina". Parece que "o que salvava Marina" não salvou. O filme publicitário em que Santana contrapôs uma mesa de banqueiros ladinos à mesa de uma família humilde, onde a ação nefasta dos banqueiros fazia sumir a comida da mesa dos brasileiros, teria sido o direto no "queixo de vidro" de Marina?

Difícil dizer. Desidratada pela sucessão de ataques, dos quais tentava se defender com sua voz esganiçada, a campanha da acreana lentamente sossobrou. Coube a Aécio conquistar a vaga no segundo turno, cumprindo o desejo do estrategista da campanha do PT.

Para quem não lembra, a peça de 30 segundos tinha uma mesa formada por sujeitos de terno e gravata, rindo diabolicamente, com o locutor em off alertando que Marina, se eleita, daria autonomia ao Banco Central. Prossegue dizendo que isso significaria dar aos banqueiros um grande poder de decisão sobre a vida das famílias. Enfileira de forma aleatória as palavras juros, salários, empregos.

Enquanto isso, as imagens que mostram a família se reunindo para jantar vão se tornando fúnebres. O physique-du-rôle da família é impotente e amedrontado. Na mesa farta havia salada, frango, suco de laranja - mas no take seguinte a família olha assustada para os pratos subitamente vazios. Toda a comida desapareceu. O locutor explica:

"Os bancos assumem um poder que é do presidente e do Congresso, eleitos pelo povo. Você quer dar a eles esse poder?"

Embora as afirmações narradas não correspondam aos fatos no mundo real, as imagens são fortes. A população captaria a mensagem nuclear da peça. Marina Silva iria dar autonomia ao Banco Central, o que significaria "entregar" o comando aos banqueiros (o que é uma falácia, pois o Banco Central é uma instituição de governo, que rege os bancos, ao invés de ser regido por eles), que, por sua vez, explorariam o povo.

Se o autor tivesse me perguntado qualquer coisa, eu diria que "a peça é um mini-dramalhão demagogo para impressionar uma audiência ignorante". Mas, como ele não me perguntou, e agora é tarde, fiquei sem a oportunidade de dizer a ele o que verdadeiramente acho.

Santana, o biografado, se expressou à vontade. Se queixa da repercussão negativa. Reclama de uma escritora que, na, na Folha, queria proibir "filme que coloca prato de comida sumindo na frente de crianças". Ele, ao contrário, enaltece a produção e vê com euforia o próprio filme de 30". 

"Se houve exagero ali, permita-me a presunção, foi de qualidade fílmica e criativa. E exagero, também, de silêncio de resposta da campanha de Marina." Segundo o biografado, faltou mesmo foi reação: "Se houve exagero na argumentação de nossa parte, por que eles não responderam à altura?"

Entusiasmado com o sucesso obtido, Santana exalta o tempo de TV da campanha de Marina, "suficiente quando se trabalha com competência". Eram dois minutos e três segundos, enquanto Dilma tinha 11 minutos e 24 segundos. João, cheio de si, volta à sua recorrente teoria da soberba:

"Se não responderam, foi por pobreza teórica, lerdeza técnica ou soberba mística. Ou as três coisas juntas. O que não pode é partir para o ataque vão e tardio. Isso é coisa de mau perdedor. O filme funcionou porque era verossímil, dizia coisas plausíveis e era bem-feito."

(Não lembra do filme? Copie e cole no seu navegador: http://bit.ly/MarinaEOsBanqueiros)

Marina, a da soberba e do queixo de vidro, não resistiu e rolou ribanceira abaixo na curva seguinte. O adversário que seguiu para o segundo turno contra a candidata petista foi Aécio Neves. Àquela época ainda não havia os áudios da JBS e o neto de Tancredo Neves ostentava uma aura progressista e meritocrata.

(Eu disse que ia dar um espaço generoso para este episódio do filme do prato vazio. Está dado.)

O grande embate final da campanha de 2014 ficou entre o PT e o PSDB, mais uma vez. Maklouf traz a opinião dos marqueteiros das duas campanhas - o de Dilma, João Santana, e o de Aécio, Paulo Vasconcelos -, que falam cada qual sobre o outro. Paulo elogia, mas confessa algum ressentimento.

"Ele novamente provou seu talento", diz Paulo sobre João. "Mas discordei publicamente do uso profissionalizado que a campanha fez das baixarias e das mentiras", acrescentou, para arrematar: "Acredito que isso serve para deseducar o eleitor e distanciá-lo da política".

"É mentira que nossa campanha tenha feito uso profissional da baixaria", retorquiu Santana. "Mas a verdade é que a dele fez uso amador da mediocridade".

João prosseguiu, se recusando a deixar barata a crítica do colega: "O marketing do Aécio fez uma das campanhas presidenciais mais medíocres, do ponto de vista criativo e estratégico, que o Brasil já viu".

Seu vaticínio sobre o responsável pela campanha de Aécio Neves é taxativo: "Este rapaz é um marqueteiro de segunda divisão que entrou, por acidente, na primeira. Por isso está caindo fragorosamente para a terceira divisão."

Santana retruca também com veemência as críticas assinadas por Nelson Motta, em novembro de 2014. O jornalista escreveu o artigo "O império da mentira", que despertou a ira do publicitário, principalmente neste trecho:

"Marqueteiros políticos são uma espécie moderna de mentirosos profissionais de alta performance, que são mais eficientes quando distorcem fatos e números e ampliam supostos defeitos e suspeitas sobre os adversários. O problema é o candidato vencer as eleições e continuar acreditando na campanha do marqueteiro."

João alisa antes de revidar. Reforça que tem carinho pessoal pelo "Nelsinho" Motta e que o artigo é inteligente. Mas não aceita a carapuça.

"Ele reforça a falsa ideia de que mentimos na campanha. Na realidade, é bem o contrário. Vários políticos e analistas vinham acreditando na própria mentira que eles criaram, a de que o governo Dilma era um grande e rotundo fracasso."

Santana se orgulha de ter contribuído para o sucesso do governo moldando desde o início a sua comunicação. Se jacta de já no segundo mês do primeiro governo Dilma ter emplacado o slogan "Brasil - país rico é país sem pobreza".

Segundo informações publicadas no livro, parece que rendeu um bom dinheiro. Gostei não. Me soa tipo "piscina cheia é piscina com água". Mas o cliente gostou e pagou bem.

Santana elenca aquelas que considera as grandes conquistas do partido. Se vale de uma frase repetida mil vezes, que seria inegável "o vigoroso processo de ascensão social que começou com Lula e que continuou no governo Dilma".

Como sócio-proprietário número um deste distinto blog, vou me permitir aclarar este comentário do grande marqueteiro. A verdade é que o Brasil, na primeira década dos anos 2000, foi beneficiado por uma dupla conjuntura inesperada. Um cometa imprevisto: o sucesso na contenção da inflação, que passou para a história como o Plano Real, e o boom econômico mundial, que gerou uma tsunami de lucros que precisava ser investida em algum lugar. O mundo escolheu o Brasil, que, recém organizado, se tornou o destino preferido do dinheiro internacional. Este excesso de dinheiro foi instrumento nas mãos do governo seguinte - o petista -, que o gastou muito mal, aumentando o funcionalismo, enriquecendo ainda mais os ricos, praticando um assistencialismo inflado e estimulando o crédito aos pobres, que pagava juros de agiota para trocar de tv.

Entre os demais argumentos para enaltecer os governos Lula e Dilma, João Santana cita "os estádios da Copa", "a transposição do São Francisco", a "hidrelétrica de Belo Monte" e o "Mais médicos". E também se gaba do "combate à corrupção".

Seria ótimo se tivesse sido bom. Mas hoje todo mundo sabe que os estádios foram elefantes brancos bilionários, que a transposição foi uma falácia, que Belo Monte foi um desastre ambiental criminoso e que os humildes médicos cubanos trabalhavam para que o dinheiro fosse para a aristocracia comunista de Havana. Já o "combate à corrupção" acabou com a corrupção levando todos os petistas para a cadeia, do presidente ao marqueteiro.

O projeto petista de poder incluía também uma cubanização da relação governamental com a imprensa. Risério, o ex-colega que foi trabalhar para outros partidos, teve uma visão despótica da organização, quando experimentou o lado amargo de enfrentar o PT.

"O PT persiste em seu desempenho prático de controle partidário da mídia, inclusive acionando computadores palacianos para alterar perfis de jornalistas na wikipedia."

A propósito, a catástrofe da política das relações exteriores do Brasil não começou de agora, com o Eugênio Araújo (quem?). Como vimos depois, nos inquéritos abertos na operação Lava Jato, com dezenas de confissões e farta devolução de dinheiro desviado, o PT celebrava acordos com países sul-americanos, caribenhos e africanos, onde o BNDES entrava com o dinheiro e, no rastro, as empresas de Marcelo Odebrecht e João Santana se instalavam como executoras de obra e prestadoras de serviço. Ambos confessaram e foram condenados.

Na época do depoimento dado ao livro, entretanto, João Santana se refere à Cuba como se exemplo cabal de uma ação meritória do governo brasileiro.

"Disseram que o governo brasileiro tinha dado dinheiro aos cubanos, quando, na verdade, o Brasil nem mesmo empréstimo fez a Cuba, mas sim a empresas brasileiras, gerando emprego aqui no Brasil", retrucou um exaltado Santana, na publicação.

Pois foi justamente este triângulo - governos de Brasil e Cuba, mais as empresas brasileiras - o tripé do conluio criminoso, descoberto na lendária operação de combate à corrupção. Reiterando o que eu disse no início, para se livrar da cadeia João Santana negociou com a Justiça brasileira uma delação premiada e a consequente redução de sua pena de prisão.

Na época do livro, ninguém imaginava que tudo seria revelado. Estávamos com doze anos sucessivos do petismo no poder. O marqueteiro possuía mais influência que Rasputin. E o próprio, João Santana, não tinha dúvida do papel que exercia no cenário político, na função de marqueteiro:

"O maior equívoco é querer separar, como fazem alguns, o marketing, ou a comunicação, da política. O marketing e a comunicação são linguagens da política. Ela e ele estão umbilicalmente ligados. Fazem parte de um mesmo corpo."

Este mesmo João Santana é agora o marqueteiro da campanha de Ciro Gomes. As novas peças já  divulgadas na mídia investem na comparação entre Ciro Gomes e Joe Biden, tentando emplacar Ciro como o Biden brasileiro.

A linha é óbvia, o que não a faz pior por isso. Biden destronou Trump. Bolsonaro ocuparia este papel de Trump na eleição nacional, o que faria de um Biden tupiniquim o candidato ideal. Mas tem um problema nisso. Como alguns dos colegas de Santana apontaram, o problema seria a "verdade".

Ciro Gomes não tem nada em sua trajetória que o assemelhe a Biden. Pelo contrário, os dois têm perfis opostos. Biden foi sempre um parlamentar estável, de muitas realizações e de discurso moderado. Ciro foi sempre um agitador instável, de muitas teorias e de discurso agressivo.

Uma boa chance para João Santana comprovar a sua habilidade em criar narrativas.

Editora Record, 251 páginas