"Cartão vermelho", por Ken Bensinger
"Depois de uma hora, Burzaco voltou ao tribunal e ganhou as manchetes internacionais novamente com seu depoimento de como a Torneos, com a gigante da mídia mexicana Televisa e com a brasileira TV Globo, havia pago US$ 15 milhões em propina a um alto executivo da Fifa, em troca dos direitos televisivos das Copas do Mundo de 2026 a 2030".
Não é de estranhar que as denúncias de corrupção no futebol feitas insistentemente pelo norte-americano John Textor sejam alvo de depreciação sistemática pelo jornalismo da TV Globo, que oscila entre o negacionismo e o sarcasmo. Compreensível. A platinada tem telhado de vidro. Segundo declarado à justiça americana, a emissora brasileira era parte ativa do esquema de corrupção.
O caso em questão passou a ser conhecido na imprensa mundial como o Fifagate, parodiando o célebre Watergate, que nos anos 70 levou à renúncia do presidente americano Richard Nixon.
O esquema denunciado envolveu grandes dirigentes do futebol mundial, os presidentes das principais federações de futebol do planeta e os mais altos executivos da FIFA. A investigação iniciou em 2011 e se estendeu por anos. As delações começaram em 2013 e o julgamento ocorreu em 2017.
Conseguir que um esquema internacional de corrupção no soccer fosse julgado nos Estados Unidos só foi possível graças a uma intrincada operação de follow the money, permitindo que a justiça norte-americana tivesse ingerência legal sobre atos criminosos cometidos por cidadãos estrangeiros fora dos EUA. Assim, à medida em que provas iam sendo acumuladas, suspeitos foram detidos e instados a colaborar, denunciando seus comparsas, estimulados por acordos de delação.
Um dos peixes graúdos colhidos nessa rede foi o brasileiro J. Hawilla, dono da Traffic, e um dos principais articuladores da rede internacional de pagamento de suborno a presidentes de federações esportivas. Hawilla acabou se tornando um pária por suas delações - que levaram à prisão de muitos de seus colegas -, e sua história pessoal foi contada no livro "O delator", já resenhado aqui no blog.
Hawilla, a propósito, foi fundamental, com suas gravações secretas, para que o FBI construísse o caso. Ben Kensinger, o autor, demonstra passo a passo como um pequeno indício chamou a atenção de um agente, de como este agente identificou no indício o germe de um caso, de como o caso evoluiu para uma investigação, de como essa investigação se desenvolveu na coleta de provas, e de como as provas obtidas subsidiaram o processo, a prisão e a condenação dos investigados.
(Enquanto aqui Mr. John Textor é ameaçado de banimento por denunciar a existência de indícios.)
O relato nos proporciona compreender como uma investigação se desenrola nos Estados Unidos. Você sabe. O que acontece na Justiça de lá não tem paralelo com a Justiça brasileira. Aqui tudo se resolve. Tanto que tradicionalmente somos um destino acolhedor para fugitivos. Seja nos filmes, como na vida real. O Brasil é um país conveniente para quem é procurado pela justiça internacional.
Não só para corruptos, como para ladrões de banco, e também para assassinos, terroristas e genocidas. O italiano Cesare Battisti foi condenado à prisão perpétua na Itália pela morte de quatro pessoas. Fugiu para o Brasil em 2002, onde circulou com liberdade, escrevendo livros e participando de talk-shows. Somente em 2018, com a troca de governo, perdeu seu status de "perseguido político". Aí Battisti deu no pé. Mas foi preso na Bolívia e extraditado para a Itália.
E assim com tantos outros, do assaltante inglês Ronald Biggs ao genocida alemão Joseph Mengele.
Mas, voltando ao futebol e ao Fifagate, é no mínimo divertido saber que, depois da investigação vir a público, o então presidente da CBF, o viajadíssimo Marco Polo del Nero, nunca mais se aventurou em uma viagem internacional - sabia que acabaria no xilindró. Foi banido do futebol mesmo assim. Vive hoje rico e feliz - exclusivamente em solo pátrio. Viva o Brasil.
Já Hawilla ficou em prisão domiciliar nos Estados Unidos por quase cinco anos. Mas não foi o único brasileiro preso, nem o de maior prestígio. Embora a memória coletiva seja curta e a mídia esportiva jamais o cite, outro ex-presidente da CBF, José Maria Marin, foi preso pelo FBI em Zurique, em 2015.
Levado para os Estados Unidos, ficou também em prisão domiciliar, até seu julgamento, em 2017. O mesmo tribunal que mencionei no início do post, presidido pela juíza Pamela Chen, em que Burzaco revelou o envolvimento da TV Globo. Marin foi condenado em nove de doze acusações, incluindo fraudes relativas à Copa do Brasil, à Taça Libertadores e à Copa América.
No julgamento foi demonstrado o pagamento de US$ 3 milhões para uma conta de Marin no banco Morgan Stanley, nos Estados Unidos (significativo como dessa mesma conta foram gastos perdulários US$ 118.220,49 em artigos de luxo - pasme, em apenas um mês).
José Maria Marin foi hóspede do sistema prisional norte-americano de 2017 a 2020, quando, atendendo aos pedidos da defesa, foi libertado pela idade avançada. Aos 88 anos, voltou ao Brasil, onde circula serelepe. Também por piedade, Hawilla havia retornado ao país em 2018, aos 74 anos, já doente. Mas o delator morreu três meses após o retorno.
O leque de corruptos é extenso. O bando se valia de suas posições privilegiadas na FIFA (e em outras confederações continentais e federações nacionais) para amealharem fortuna, em detrimento dos países representados. O livro não poupa ninguém. Dá nome, sobrenome e endereço.
Vai dos grandes figurões da FIFA - o brasileiro João Havelange, o suiço Sepp Blatter e o francês Jérôme Valcke - à cartolada do Caribe e da América do Sul. Os protagonistas do propinoduto internacional incluem ainda Jack Warner, Chuck Blazer (o primeiro delator), Jeffrey Webb, Enrique Sanz, Alfredo Hawit, Nicolás Leoz, Juan Angél Napout, Julio Grondona, Ricardo Teixeira, além dos já citados J. Hawilla, Marco Polo del Nero e José Maria Marin - e muitos, muitos outros.
Voltando ao momentoso caso de John Textor, após denunciar suas suspeitas de manipulação e suborno no futebol brasileiro, vale dizer que o americano passou a ser atacado diariamente na imprensa, em sistema de rodízio, pelas "autoridades" esportivas.
Um dia era o atual presidente da CBF (que o processa), no outro era o presidente da Federação Paulista de Futebol, no outro era a presidente do Palmeiras, no outro o presidente do São Paulo, no outro o presidente do STJD (apêndice da CBF) ou mesmo um funcionário de menor escalão. A mídia esportiva - notadamente o site Uol - fazia coro às acusações.
Ações estapafúrdias na justiça esportiva começaram a ser movidas em profusão, sem sustentação. Ainda agora o tal STJD o ameaça com "dois anos e meio de suspensão" pelo crime de denunciar... que há suspeitas de manipulação dos resultados esportivos. Aqui os suspeitos mandam prender.
Uma veterana colunista paulistana chegou a titular uma matéria com "John Textor está nu". Um jornalista brasileiro ligado ao Flamengo publicou um material supostamente investigativo ligando o empresário a oligarcas russos e insinuando que ele burlara a justiça dos... EUA.
Após quase um ano se defendendo apenas com declarações formais (e outras nem tanto...) à imprensa brasileira, Textor anunciou que irá processar na Justiça americana todos os envolvidos naquilo que ele chama de "smear campaign" - uma articulada campanha difamatória.
Dono da Eagle, um conglomerado multiclubes que reúne clubes de futebol pelo mundo - Lyon, na França, Crystal Palace, na Inglaterra, Molembeek, na Bélgica, e Botafogo, no Brasil -, o empresário está por lançar um IPO na Bolsa de Valores dos Estados Unidos. Ser uma empresa presente na Bolsa dos EUA faz com que os tentáculos da Justiça norte-americana alcancem cidadãos de outros países que, em alguma instância, participem ou influam nos seus negócios e reputação.
Em outras palavras, sujeita os envolvidos a um processo e eventual prisão. Assim, em caso de entrada nos Estados Unidos ou em algum país que tenha acordo de extradição com os EUA, o difamador inconsequente pode acabar tendo a sua viagem de negócios ou de turismo abreviada. A hospedagem pode ser por tempo indeterminado e em inóspitas acomodações coletivas.
Não misturo alhos com bugalhos. O cerne dos acontecimentos atuais aos quais me refiro é o mesmo que move o livro. Corrupção no futebol. O próprio autor reconhece que os dirigentes presos no caso que se tornou conhecido como o Fifagate foram substituídos por outros criminosos, que mantiveram as práticas ilegais anteriores.
O Brasil, talvez o maior celeiro do futebol mundial, tem uma parte importante do seu potencial gerador de riqueza sequestrado por um grupo de dirigentes e empresários corruptos. Como em qualquer outro país do Terceiro Mundo, aqui os mecanismos de combate à corrupção são frágeis.
Nem tudo está perdido. Para azar do coronelato local dono do futebol, um player oriundo da principal economia do planeta resolveu fazer negócios no latifúndio Brasil. Seu projeto desemboca na realização de lucros garimpando e produzindo atletas e os exportando com adição de valor agregado.
Para tanto, o visionário vai ter que superar a máfia local. Ainda falta muito para o fim do filme.
Editora Globo (que ironia), 402 páginas | 1a edição, 2019 | Copyright 2018
Título original: "Red Card: how the U.S. blew the whistle on the world's biggest sports scandal"
0 comentários: