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"Entre anjos e cangaceiros", por Frederico Pernambucano de Mello


Houve uma vez um gringo que seguiu sozinho o rastro dos piores bandidos do sertão. Filmou e fotografou os facínoras. Fez postais dos cabras para vender na feira. Ganhou fama. Acabou morto com quarenta e duas facadas. Mais de meio século depois, virou filme e mereceu biografia.

É desta que trato.

Frederico Pernambucano de Mello, o famoso biógrafo do cangaço, chamou esta tarefa para si. E começa sua estória lá nos ermos do Oriente Médio. Uma estória pra lá de inusitada.

Diante do alistamento compulsório para defender o exército turco na Primeira Guerra Mundial, o adolescente libanês Benjamim Abrahão Calil Botto deu no pé. Desembarcou no Recife em 1915.

Era oficialmente sírio - porque o Líbano àquela época havia sido incorporado à Grande Síria -, mas dizia a todos ter nascido em Jerusalém e ser conterrâneo de Jesus. Já o pessoal aqui da terra, desde o início, chamava ele de turco, mesmo.

Parentes e amigos da família o receberam em Pernambuco. Deram a ele casa, comida e emprego - atrás de um balcão. Inquieto, resolveu ganhar a vida como caixeiro-viajante e foi dar nos costados do Ceará, mais precisamente em Juazeiro, terra do Padre Cícero, tido mais por santo do que por padre.

Conseguiu cativar o santo homem, que o acolheu na própria casa, e, imprevidente, fez do gringo contador e tesoureiro. Benjamim, que de santo não tinha nada, logo começou a fazer suas contas tortas na jogatina local (sem contar seus métodos heterodoxos de contabilidade).

Metido no jogo e no comércio, se fiando nas costas quentes do padrinho - o tal padim padi Ciço de Zeca Diabo -, deu um passo maior que as pernas e foi jurado pelo principal coronel local, Floro Bartolomeu. Por respeito ao padre, o turco foi humilhado, mas não foi passado no fio da navalha.

O avanço da coluna Prestes fez de Floro comandante do Exército, que, por sua vez, convocou Lampião e fez dele capitão. O apoio não valeu de grande coisa, porém. A coluna recuou, Lampião debandou e Floro foi à capital da República cobrar o dinheiro das provisões, que não chegava.

Nunca voltou. Floro caiu doente no Rio de Janeiro e morreu por lá mesmo. Benjamin pôde enfim repor suas manguinhas de fora e retornar ao cargo de assistente pessoal do Padre Cícero, que santamente o recebeu de braços abertos. 

Ardiloso - ou picareta, para alguns -, fez espalhar aos quatro cantos que o padre estaria por dar sua "última benção". Romeiros de todo o Nordeste afluíram para Juazeiro, enriquecendo a lojinha de artigos sacros recém aberta por Benjamin Abrahão.

O movimento estimulou o Diário de Pernambuco, o maior jornal do Brasil fora do Sul-Sudeste do país, a enviar um repórter para registrar a romaria. Recebido na própria casa paroquial, o jornalista Otacílio Alecrim se surpreendeu com o padre de pantufas, escutando música em uma vitrola de corda, com uma corneta dourada, e assessorado por um secretário estrangeiro.

O artigo, intitulado "O desencanto de Macunaíma", não saiu lá muito laudatório: "Francamente, com um turco e uma vitrola, não há messias que possa ser levado a sério..."

A foto de capa do livro mostra o célebre Padre Cícero de Juazeiro, sentado em uma marquesa de palhinha, tendo ao lado Benjamin Abrahão, que segurava uma edição do jornal "O Globo", do Rio de Janeiro. É que o comerciante e faz-tudo, que não dava ponto sem nó, estava cavando uma boquinha para se tornar correspondente da imprensa do Sul; com a foto, conseguiu.

Faturou também com a morte do próprio padrinho, que se deu pouco depois. Fotografou o cortejo e  vendeu o santo defunto em cartões postais. Filmou o cadáver e cortou mechas do seu cabelo, que foram comercializadas, em saquinhos, vendidas para centenas de devotos. Como se houvesse tal quantidade de cabelo na cabeça do padre, que era santo, mas não era Sansão. 

Com a partida do ícone, porém, Abrahão se viu desprotegido e foi atrás de novas fontes de renda. Com a chegada da Zeiss alemã ao Ceará, na esteira da febre mundial pela pela produção de imagens fotográficas e cinematográficas, Benjamin se apresentou, propondo fazer o que ninguém até então havia feito: documentar e fotografar o bando de Virgolino Ferreira da Silva. O famigerado Lampião.

A audácia de se meter sozinho na caatinga, atrás do líder cangaceiro, sujeito temido, sanguinário e impiedoso, não era de todo desmiolada e desprovida de chance de sucesso. Abrahão e o capitão Lampião haviam se conhecido dez anos antes, quando do combate à coluna Prestes.

Nem por isso não era um excesso de ousadia e confiança do turco, que partiu de Fortaleza em 10 de maio de 1935, como representante da Aba-Film. Por quase um ano vagou de vilarejo em vilarejo atrás do bandido. Em março de 1936, nas "caatingas alagoanas da ribeira do Capiá, soltas bravias do Canapi, então do município de Mata Grande, no limite entre as fazendas Lajeito Alto e Poço do Boi", Benjamin foi detido pelos cangaceiros Juriti e Marreca, "que o tinham prendido e escoltado até o chefe para ser morto".

Lampião, já a esta altura um chefe ponderado, sabedor do seu poder, foi condescendente na saudação ao fotógrafo: "Não sei como você veio bater aqui com vida, cabra velho".

Só troçou. Na condição de ex-secretário particular do Padre Cícero, o turco foi bem recebido. E mais: o próprio Virgolino se entusiasmou com as possibilidades do registro. Posou para dezenas de fotos, organizou o grupo para simulações de combate e às vezes chamou para si a função de cineasta.

Mandou mensagens aos chefes dos subgrupos do cangaço para virem participar das tomadas. Foram convocados os bandos de Salamanta, de Corisco, de Moderno, de Zé Sereno, de Mané Moreno, de Labareda, de Pancada, de Gato, de Canário. Lampião parecia o Orson Welles do sertão.

"Lampião estava pronto para confirmar sua presença na História através da linguagem moderna do cinema", assinala Mello. "Somente a ocorrência dessa troca de postos", diz o autor, se referindo ao gosto de Virgolino pela direção, "explica o número de cenas que irá se obter nos cerca de quinze minutos de película e cerca de noventa fotografias que se salvaram para a história".

A cabroeira desempenhou com gosto o papel de figurantes das próprias vidas. O único arredio foi Moreno, que alertou o chefe: "Capitão, o senhor é o cangaceiro mais velho, o chefe de todos os cangaceiros, mas anda facilitando". Zeloso, arrematou: "Vou ficar com o galego na pontaria, capitão. Fique sossegado. Qualquer coisa, atiro nele e na máquina. Estouro tudo!".

Moreno atirou no que viu e acertou no que não viu. As fotografias e filmagens do grupo foram um sucesso jornalístico imediato, assim foram publicadas, mas geraram uma forte reação do novo governo que se instalara no país - o Estado Novo.

O registro da bandidagem serelepe, que as autoridades há décadas não conseguiam conter, mas que se auto-promoviam como se fossem estrelas de Hollywood, foi um tapa na cara das forças policiais e dos governos locais. Significou o ponto de partida para um esforço concentrado pela captura e aniquilamento do bando.

Aqui Pernambucano de Mello abre um interessante capítulo sobre as relações escusas entre o cangaço e a polícia, que parecem uma reprodução do eterno cotidiano carioca. Corrupção e violência policial se igualam. Conta do arrego recebido pelas volantes e da selvageria praticada pelos macacos contra a população - crimes cometidos justo por aqueles que deveriam defendê-la.

A reação das autoridades constituídas ao histórico trabalho documental de Benjamin Abrahão fez do registro o canto de cisne do cangaço. E também o seu próprio: impedido de vender o resultado do serviço e com uma coleção considerável de inimizades caatinga afora, o turco acabou morto a facadas - quarenta e duas, para ser mais exato - em uma circunstância que jamais foi bem esclarecida.

Lembrando a bizarra morte de PC Farias, tesoureiro e guardião de segredos inconvenientes do governo Collor - morte atribuída aos ciúmes da sua namoradinha, que matou o velho e depois teria se matado de amor -, Abrahão foi esfaqueado e estripado por um aleijado que não andava. Um certo marido traído. Versão inconvincente. No mínimo.

Aqui se encerra a trajetória do sírio que veio adolescente para o Brasil e produziu o que nenhum nativo foi capaz de produzir. O imigrante enriqueceu a narrativa do cangaço. E, graças ao trabalho dedicado do pesquisador Frederico Pernambucano de Mello, sua picaresca biografia fica aqui preservada para a posteridade.

O livro abre também diversas janelas sobre a cultura nordestina e seu tradicional universo político. Ressalvo, porém, que o rico texto do autor é idiossincrático. Muito do que é trazido de bandeja se torna de difícil digestão, temperado pela prosa engalanada de Mello. Mas que tem lá seu sabor.

Destaco também o delicado projeto gráfico, que fez do belo alfabeto árabe a vinheta da edição.

Por fim, vale frisar que o autor não afirma, mas dá margem para supormos que a morte de Benjamin, em 7 de maio de 1938, tenha se dado a mando do próprio Lampião - ainda que Mello compreenda outras hipóteses. Vá saber.

E o próprio rei do cangaço foi emboscado pouco mais de dez semanas depois. A 28 de julho, em Angico, nos grotões do Sergipe. Ao amanhecer.

Até hoje muitas versões cercam a morte de Lampião e Maria Bonita - mas a caçada feroz que precedeu sua morte teria sido estimulada pelos ares de celebridade do cangaceiro, cujas fotos, estampadas na capa dos grandes jornais do país, enfim atiçaram a sanha do governo e das polícias.

O turco, na sua inocência aventureira, ilustrou e pôs o ponto final na história do cangaço.

Editora Escrituras, 351 páginas  | 1a edição, 2012

"A invenção de Paris", por Eric Hazan


Antes de mais nada, que fique claro: é um livro para parisienses. Aviso logo.

Não pense você, ingenuamente, que irá se divertir às pampas com um guia histórico-turístico ilustrado. Nã-nã-ni-nã-não. É um tijolaço em papel couchê, com muitas fotos e ilustrações (mas em quantidade muito inferior àquela que o leitor curioso, esse pobre desavisado, se animaria a supor) e com uma maçaroca de informações da Paris primitiva: suas ruas, bairros e muralhas.

Bom demais. Para quem conhece Paris a fundo e pode se deleitar com a autópsia narrativa das ruas que existiam (ou não) nos lugares em que hoje existem outras ruas, ou não (no estilo do impagável "História das ruas do Rio", do catarinense Brasil Gerson, Görensen).

Um inventário precioso. Quem não gostaria de se aprofundar na formação dos primeiros arrondissements, no surgimento dos faubourgs, na revolução haussmaniana? Ok, talvez nem todo mundo seja candidato à nobre experiência. A erudição excessiva e o liliputiano labirinto de citações de Hazan deixa o leitor - esse leigo - mais perdido do que cachorro caído de caminhão de mudança.

E a própria concepção da obra deixa a desejar. A Paris revolucionária ocupa espaço demasiado em um livro de fotos e reminiscências. Nem se coloca entre as edições de profundidade histórica, nem perfuma aquela folheada aleatória, como quem flana pelo tempo através de imagens antigas.

Minha expectativa pelo conteúdo dismilinguiu.

Confesso que caminhei duas semanas por Paris, de fora a fora, depois de ter lido o texto calórico e apaixonado de Hazan, e tirei pouco proveito da leitura. Andei por muitos dos endereços comentados, mas ou não atinei ou não vi neles resquício das memórias dissecadas pelo livro.

Talvez eu não estivesse pronto para o texto, ou o texto não fosse feito para mim. Seja como for, nós dois não nos demos lá muito bem.

Segue um trecho do livro, para você mesmo avaliar se minha mão pesou demais.

"Como toda ruptura, este desenlace provoca a nostalgia. Se é verdade, como disse Michelet, que cada época sonha com a seguinte, é ainda mais evidente que cada época vive na nostalgia da precedente, principalmente num período em que este sentimento, promovido como um detergente, se integra perfeitamente num andaime ideológico, aquele da estratégia dos fins - da história, do livro, da arte, das utopias. A Paris das turbulências faz parte da lista desses fins programados, o que não impede de se tomar as medidas necessárias para conjurar os espectros que, receiam eles com certa razão, possam voltar a assombrar as ruas."

A coisa segue firme e forte neste diapasão. Definitivamente, eu não estava preparado.

Reitero que tem muito mais texto do que foto, e muito menos fotos do que eu gostaria - mas ainda assim, a edição traz belas imagens. Gostaria de destacar algumas delas para a ilustração do post, mas, por assaz reduzidas, optei por apenas uma, em página dupla, sobreposta à capa da edição.

É uma foto belíssima de um momento de triste memória, a Paris ocupada pelos nazistas. Um souvenir da França de Vichy e de Pétain. Não obstante, é uma das preciosidades da edição. Uma foto rara. Conta só um tantinho de Paris. Mas conta muito do século.

Verdade que nenhum parisiense escolheria esta foto. Mas acontece que eu sou carioca.

Estação Liberdade, 447 páginas | 1a edição, 2017 | Tradução Mauro Pinheiro | Copyright 2002

Título original: "L'invention de Paris"

P.S.: Consultando os créditos da edição, vi que o copyright da primeira edição, a original, data dez anos antes da primeira edição ilustrada, de 2012. Isso explica o descompasso entre textos e imagens. Era um livro de palavras, que somente depois foi aquinhoado com as fotos. Entendido.


"Rio Belle Époque", por Alexei Bueno

Um álbum de fotos pode construir uma narrativa? Este surpreendente "Rio Belle Époque" prova que sim. Com dezenas de imagens inéditas, a obra é uma provocante coletânea de fotografias antigas sobre o Rio de Janeiro, lançada por ocasião das comemorações dos seus 450 anos. Como guarnição, o texto afiado do poeta e ensaísta Alexei Bueno. O desafio de oferecer um novo ângulo de uma metrópole tão registrada não era pequeno. A musa, a cidade, deve ter sido a mais fotografada das capitais sul-americanas - não só pela paixão pioneira do Imperador Pedro II pela nova arte (ele que fomentou a vinda de diversos fotógrafos europeus para o Brasil), como pela pretensiosa reforma urbana promovida pelo prefeito Pereira Passos. A edição ficou supimpa. Pena que a editora, a Bem-Te-Vi, sucumbiu logo depois do lançamento. Se despediu em grande estilo, em uma época ingrata para o produto impresso. A publicação, em papel couchê e capa dura, é para ser guardada. É uma viagem de primeira classe a um passado carregado de simbolismo - e determinante na formação da aura carioca. No período registrado pelas fotos, a estrela do Rio era a Avenida Central. Nascera sofisticada em uma cidade insalubre, uma réplica tropical da Champ-Élysées. Mas, ainda que presente, aqui ela cede seu protagonismo para um episódio mais coerente com a história da capital. O cenário que domina a edição é o sórdido arrasamento do Morro do Castelo, levado a cabo em 1922. Ao seu monumental desmonte se somam outras dezenas de registros, de manobras militares ao desfile de misses - incluindo imagens em primeira mão de Santos Dumont (em uma das fotos, posa à frente de um monomotor, ao lado do ás francês René Fonk, que teria abatido 75 aviões na Grande Guerra) e uma prosaica sequência com a cabeça do Cristo Redentor, que chegou de navio e passou um bom período ao rés do chão. O rico conteúdo, por si só uma joia, ainda prima por inédito - caso raro em se tratando de fotos centenárias. É que a origem do livro é curiosa: o último governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, ganhou como presente uma mala com centenas de frágeis negativos de vidro e algumas poucas películas. O mimo insólito virou herança, que coube ao filho editor preservar. O material, ao que tudo indicava jamais revelado, não tinha anotação de autoria e tampouco data e local. Bastava tê-lo em mãos, porém, para constatar que, em sua maioria, eram flagrantes do Rio de Janeiro nas três primeiras décadas do século XX. Um tesouro. E esta preciosidade veio a público somente agora, na bem vinda onda editorial que cercou a celebração dos 450 anos. A lamentar que o maior ícone deste espólio já não esteja entre nós, o finado Morro do Castelo. O promontório em cima do qual a cidade foi fundada, e ao redor do qual a cidade cresceu, foi posto abaixo. Caso raro de um marco topográfico assassinado; crime cujo mandante foi o prefeito da cidade, Carlos Sampaio, que encomendou seu desmanche a jatos dágua (veja aqui no blog um livro exclusivamente sobre o desmonte, em post de 2015). Esta edição comemorativa registra as principais locações do Castelo, à beira do vergonhoso bota-abaixo. A coletânea reúne fotos comoventes da Velha Sé, eternizando as vielas de gente humilde e os prédios quinhentistas, então os únicos contemporâneos do século de fundação do Rio. A celebração da missa derradeira tem uma multidão a cobrir o morro, na véspera do seu dissolvimento (os varais das lavadeiras, com roupas brancas ao vento, emulam um ignorado pedido de rendição). O Castelo veio abaixo e não salvaram nem as portas e janelas dos prédios históricos. Se me dói hoje, eu que não subi suas ladeiras, imagino o que não sofreram os apaixonados pela História, na época em que o crime foi perpetrado. Carlos Sampaio, o meliante, teve a proteção de Epitácio Pessoa, que, só por isso, não merecia ser o atual nome da via que contorna a antiga lagoa Sacopenapã (antes também Piraguá, mas que há três séculos atende por Rodrigo de Freitas). A propósito, a nomenclatura das ruas do Rio de Janeiro e demais cidades brasileiras é um acinte - a que se presta nominá-las não com seu nome e significado originais, mas com o nome de desconhecidos e reles políticos? Segundo a wikipedia, a Rodrigo de Freitas tinha sido antes Lagoa de Amorim Soares e depois Lagoa do Fagundes. A encalhada bisneta deste zé ninguém, a Petronilha Fagundes, casou-se aos 35 anos com um jovem sicrano português, de meros 18 anos - o tal Rodrigo de Freitas, que também era de Carvalho, o que, como dizia eu, não tem importância alguma. Freitas deu o golpe do baú na Petronilha e voltou para Portugal, viúvo, alguns anos depois, sem jamais imaginar que os séculos se passariam e a "sua" lagoa jamais perderia o nome. Antes fosse Lagoa da Petronilha. Digressões ranzinzas à parte, o álbum de imagens deixa claro que irá muito além das ditas cujas, enviesando pela tortuosa política brasileira. O ensaio de Alexei Bueno circunstancia o país que há pouco havia proclamado a sua República, e desde então vivia metido em convulsões urbanas e políticas. Nada a estranhar. Mas ressalvo que a pertinência e acidez da abordagem fizeram toda a diferença. Ao invés de uma apresentação protocolar, corriqueira neste tipo de obra celebrativa de efemérides, Bueno entrega conteúdo adicional para o leitor e outorga personalidade à publicação. Mais que isso, driblando a prevalência de imagens do morro, atribui unidade conceitual ao conjunto fotográfico disperso, identificando uma unidade temporal e estética que lhe permitiu batizar a obra com o título de "Rio Belle Époque". Boa. Como diria a rapaziada, formou. Escolha acertada para celebrar o Rio. Remete a um período de intensa transformação cultural na Europa (da Guerra Franco-Prussiana, finda em 1875, à Primeira Grande Guerra, iniciada em 1914). Assim, nos lembramos que o efervescente cenário artístico e arquitetônico europeu cruzou o Atlântico e deixou sua marca também no Brasil - como testemunham as imagens presenteadas à Lacerda. Com o livro em mãos, o felizardo leitor (bota felizardo nisso, porque a edição está esgotada até nos sebos) poderá se deleitar com fotografias que narram a beleza peculiar da época, vraiment une belle époque. E, para nosso pesar, dimensionam o tamanho da História que nós já botamos abaixo.

Editora Bem-Te-Vi, 285 páginas

P.S.: Não adianta procurar no livro a imagem que ilustra o post. Catei na internet. Me pareceu tão belle époque que sobrepus mar, sacada e cabeça do Cristo num plano só. O blog é incorreto e caprichoso.

"Kolory wojny", por Julien Bryan

O fotógrafo norte-americano Julien Bryan, que desde meados dos anos 30 vinha testando novos filmes e tecnologias, foi o autor das primeiras fotos em cores registradas em um campo de batalha - melhor dizendo, em uma operação de guerra, com aviões alemães explodindo a cidade de Varsóvia. As imagens que produziu eram fortes, pioneiras, e foram publicadas com estardalhaço na revista semanal norte-americana Look, na edição de 5 de dezembro de 1939, três meses após tiradas. Sob a manchete What Hitler's Lightning War Will Do To England, vinte e duas fotos em preto-e-branco foram diagramadas nas páginas de 11 a 15 e três fotos em cores publicadas nas páginas 16 e 17, onde se destacou seu ineditismo: "The pictures reproduced here are the first war photographs in history made in color." Mas o avanço técnico era um pormenor desprezível diante da tragédia que acabara de começar - e que o mundo ainda não tinha a menor ideia da dimensão que tomaria, muito menos Bryan. Não à toa ele foi o pioneiro. Ele estava envolvido em um projeto de documentação fotográfica de pequenas comunidades do Leste Europeu quando a guerra eclodiu. Sentindo que o dever de repórter lhe chamava, rumou imediatamente para a Polônia, país em que estivera fotografando alguns anos antes. Chegou em Varsóvia em 7 de setembro e relutou a crer na violência dos ataques nazistas contra a população civil. Autorizado pela resistência polonesa, Bryan pegou seu equipamento e saiu registrando o que via pela frente. Seu texto demonstra que ele, pasmo, não esperava que a destruição que testemunhava fossem apenas os primeiros dias de uma guerra que levaria anos; que era o início do início, e não o fim; e jamais poderia imaginar que ela seria desenrolada de forma tão criminosa. Uma de suas primeiras séries fotográficas registra a destruição do hospital "Transfiguration of the Lord", um então moderno prédio de cinco andares, que, em sua própria expressão, "looked as if a giant with an ice-cream scoop had taken out the entire central section", ou seja, como se um gigante tivesse tirado integralmente a parte central do prédio com uma concha de sorvete. Outra série registrou a destruição de uma antiga igreja de uma região mais pobre da cidade, onde não havia nenhum alvo militar. Pior. Não foram só igrejas e hospitais as vítimas indefesas. Com a população já sofrendo com o desabastecimento, ele testemunhou o ataque de duas aeronaves nazistas a sete mulheres em uma reles plantação de batatas. Segundo ele, primeiro lançaram uma bomba de 250 quilos, que matou uma das mulheres; no retorno, a segunda ofensiva foi com tiros de metralhadora, que matou outras duas mulheres, incluindo uma adolescente de tranças. Enquanto Bryan a custo fotografava os corpos, uma menina de doze anos, que escapara do ataque, virou o corpo da irmã morta, em desespero, tocando a face ensanguentada da vítima: "Please, talk to me! Please, oh, please! What will become of me without you!" O que poderia ser uma descrição piegas ganha o peso do mundo, quando se lê o relato e se vê as imagens (muitas das fotos tiradas por Julien neste momento estão no livro). Comovido, ele abraçou a menina e um membro da sua equipe fotografou a cena. Uma destas fotos ilustra este post. O bombardeio nazista sobre os civis de Varsóvia, na segunda semana da Segunda Guerra Mundial, era apenas o início de um pesadelo que destruiria boa parte da Europa e levaria a vida de dezenas de milhões de pessoas. Bryan foi testemunha deste momento trágico da história da civilização ocidental, e o que mais nos impacta no seu relato é que estamos acostumados a ler sobre a Segunda Guerra pela análise fria dos historiadores, feitas décadas depois - mas Bryan era um documentarista historiando o fato no momento em que ele acontecia, com reações humanas se misturando ao distanciamento esperado do narrador. Em uma outra passagem, ele assiste o raid da esquadrilha nazista, despejando bombas sobre Varsóvia, e registra o exato instante em que um dos esquadrões anti-aéreos acerta um avião alemão, que se despedaça no contato ao solo. Ele vê quatro alemães sairem vivos da aeronave e serem imediatamente mortos pelos poloneses - e confessa que intimamente celebrou, ainda que pesarosamente: "O que eu via era que aqueles que estavam covardemente bombardeando e matando a população inocente foram abatidos, esquecendo por um instante que eles também tinham suas famílias. Mas é isto o que a guerra faz com a gente." Não esconde o sofrimento também ao visitar uma maternidade destruída pelo bombardeio. As grávidas e mães com recém-nascidos sobreviventes se amontoavam no porão, ao lado de crianças e adultos feridos, todos sob cuidados de médicos e enfermeiras que passaram os últimos sete dias também no porão, sem acesso a nenhuma ajuda externa e temendo que um novo bombardeio soterrasse a todos. Estes e outros relatos dramáticos são ilustrados com dezenas de fotos dos acontecimentos relatados, nos fazendo compartilhar dolorosamente este testemunho; e eram apenas os primeiros quinze dias de uma guerra genocida. Depois disso, frente ao bombardeio crescente de todas as áreas da cidade, Bryan buscou abrigo na embaixada norte-americana. Já temia não haver escapatória, pois a cidade estava sendo sistematicamente arrasada. Para sua surpresa, no dia 21 de setembro foi promovido um cessar-fogo de três horas, das duas às cinco da tarde, onde todos os estrangeiros de posse de um passaporte válido poderiam abandonar a cidade. Esta foi a brecha para que Julien Bryan voltasse para a América e divulgasse o que registrou. Mas o mundo reagiu com indiferença. Ainda estavam todos fazendo o máximo e engolindo sapos para não se envolverem (os Estados Unidos só entrariam na guerra dois anos depois, quando Pearl Harbour foi bombardeada pelos japoneses). Para Julien, este não foi o ponto final. Quase vinte anos depois ele voltou à Varsóvia, em 1958, e visitou o hospital e a maternidade reconstruídos. Reencontrou crianças e adultos que fotografara. Dos poucos retratados sobre os quais conseguiu recuperar as histórias, soube terem tido por destino os trabalhos forçados na Alemanha ou os campos de concentração na Polônia (incluindo o menino louro com o pássaro na gaiola). Localizou o padre da igreja destruída. E a mãe que dera luz à gêmeos (as crianças sobreviveram ao bombardeio, mas não ao levante da cidade, no qual morreram, cinco anos depois). Conseguiu ainda reencontrar algumas das mulheres que escaparam ao metralhamento na plantação de batatas, incluindo a pequena menina que consolara. Passadas duas décadas, era mãe de duas lindas crianças. Mas estórias felizes, mesmo que parcialmente, eram raridade. Se muito, eram sofridas trajetórias de superação, misturadas às cicatrizes da guerra. Descobri agora que Bryan deixou também o registro em filme das cenas que presenciou (veja no link http://bit.ly/warsawsiege), além das centenas de fotografias. Eu, ignorante que sou, desconhecia seu trabalho. Achei esta encadernação em capa dura, verdadeira preciosidade, em versão bilingue, polonês e inglês, em uma simpática livraria de uma rua deserta de Varsóvia. Eu, meio perdido, meio andarilho, vinha caminhando da elegante Krakowskie Przedmiescie e ziguezagueava à procura da Avenida Marszalkowska, no meu lento descobrimento da capital reconstruída. Vi a loja de livros e não resisti à vitrine. Entrei, fucei as estantes. À primeira vista, folheando o livro, não fui capaz de estimar o tesouro que tinha em mãos. Só alguns minutos depois, esmiuçando seu conteúdo, é que ficou claro que eu tinha que levar este testemunho comigo. Seu autor e os personagens não estão mais aqui. Passaram-se oitenta anos e estão todos mortos. Mas o registro está vivo. Enquanto houver quem o leia, a história das vítimas, seu derradeiro legado, sobrevive.

Osrodek Karta, 160 páginas

"Ligeiramente fora de foco", por Robert Capa

Terminei de ler o colossal livro de Antony Beevor sobre o Dia D e já emburaquei no livro de Bob Capa, o mais celebrado dos fotógrafos de guerra e tido como o principal fotógrafo da linha de frente da Segunda Guerra Mundial. Capa costumava dizer aos seus colegas correspondentes de guerra: "Se suas fotos ainda não estão boas o suficiente, talvez você ainda não esteja perto o suficiente." Eu não esperava demais do livro de Robert Capa, depois da avalanche de informações de Beevor. Ledo engano. Era um livro vibrante e entusiasmado - com um protagonista louco por uma guerra, e beeeem perto de todas elas. Capa se metia nos conflitos e queria estar na vanguarda da vanguarda. Ele conta como conseguiu ir para a linha de frente que combatia os alemães no Norte da África. E como conseguiu depois saltar com os primeiros paraquedistas americanos na invasão da Sicília. E como estava na primeira leva da primeira companhia de desembarque na Praia de Omaha, na Normandia, no Dia D. E como estava ao lado dos soldados que primeiro chegaram para libertar Paris. E como seguiu para a fronteira hispânica, onde reencontrou amigos com quem havia participado da Guerra Civil Espanhola contra o fascismo de Franco. E o melhor é que todas estas estórias, absolutamente impressionantes, são narradas com humor blasé por este judeu húngaro, aventureiro e bon vivant. O fato de ser húngaro, a propósito, o deixou em maus lençóis algumas vezes. Ao saltar de paraquedas por trás das linhas inimigas (detalhe, ele nunca tinha saltado de paraquedas na vida), à noite, caiu em cima de uma árvore e ficou pendurado sem poder gritar por socorro - pois graças ao seu arrevezado sotaque húngaro, os próprios colegas iam achar que era um alemão com péssimo inglês e iam metralhá-lo pendurado mesmo. Teve que esperar amanhecer para ser retirado dos galhos. Capa não perdia chance de caçoar de si mesmo. Na Sicília, tendo ultrapassado a vanguarda (de novo...) para fotografar um ataque, acabou ficando preso no fogo cruzado, e, pior, sem ter onde se proteger: "Ali, deitado como uma panqueca no chão frio entre duas linhas de guerra, só tinha duas alternativas: ficar apavorado de bruços ou ficar apavorado de costas." Mas era mesmo estar no centro da guerra o que Capa mais amava. Quando fotografava regiões já livres do tiroteio, com os nazistas expulsos das cidades, se lastimava: "Fazer o registro da vitória é como tirar fotos de um casamento na igreja dez minutos depois que os recém-casados foram embora." Suas impressões de Nápoles, depois de libertada, eram pouco generosas com a italianada: "Os napolitani faziam bons negócios com as coisas que tinham roubado do nosso exército, oferecendo aos americani tudo, até as próprias filhas." Robert Capa conta também sua ligação com Hemingway, polêmico escritor americano que citei no último post e citarei também em um dos próximos. Se reencontraram na Londres pré-Dia-D e, para comemorar a ação que se aproximava e o reencontro dos dois, Capa ofereceu uma festa ao Papa, tomaram todas e, voltando para seu hotel, o quase indestrutível Hemingway acabou com a cabeça rachada e 48 pontos de costura, por conta de uma batida de carro. Depois se desentenderam, já guerra Europa adentro, por conta do fotógrafo ficar fazendo fotos do escritor, estropiado, quando os dois se protegiam e Hemingway havia levado a pior. A verdade é que Bob Capa não perdia uma foto. Eu já comentei que Capa estava na primeira leva a desembarcar na Normandia. Também é sabido que 9 em cada 10 soldados que participaram deste primeiro desembarque morreram afogados ou sob fogo alemão. Mesmo antes, Capa já sabia que as chances de sobrevivência eram incertas. Dentro da barcaça que em poucos minutos iria descer sua rampa sobre o mar, lançados n'água sob artilharia inimiga, a 100m da praia, Robert Capa ouviu a proposta do coronel Taylor, a seu lado. O comandante sugeriu a ele que não fosse com a Companhia E, a primeira leva de soldados aliados a desembarcar na praia de Omaha, no alvorecer de 6 de junho - e sim que esperasse um pouco e seguisse com a Companhia B, que estaria também no âmago da ação, mas com chances mais favoráveis de se manter vivo. Capa, com medo, escutou o coronel. Ainda com medo, refletiu sobre a diferença entre um correspondente de guerra e um soldado comum: "Um correspondente de guerra consegue mais drinques, mais garotas, melhor pagamento e mais liberdade do que um soldado, mas creio que ter a permissão de ser um covarde, sem ser executado por isso, é uma tortura. Então resolvi ir mesmo na primeira leva." As páginas seguintes são as melhores do livro e o livro é um dos melhores da estante. Bob conta a invasão. Muito poucos dos que participaram dela sobreviveram para testemunhá-la. Ele fez mais: fotografou-a. As fotos saíram trêmulas, ligeiramente fora de foco. Pior: quase todos os filmes que fez foram velados na revelação. Sobraram poucas fotos, uma delas entre as mais famosas da guerra, que também ilustra este post (e o livro sobre o Dia D, em detalhe na resenha anterior). Capa conta mais, mas quem quiser que leia o livro. Ele analisa a fibra do soldado alemão: "Foram muito duros em sua bem preparada fortaleza, mas não tão duros a ponto de lutar até o último alemão: apenas até o primeiro americano que chegou perto o bastante para ser perigoso - então eles ergueram os braços, gritaram 'Kamerad!' e pediram cigarros". Depois, muito depois, quando a Alemanha já estava tomada pelos americanos, ele conta como era difícil um correspondente de guerra com sotaque húngaro avançar, principalmente porque os soldados americanos perguntavam, diante do seu inglês suspeito, esquisitices como "Qual é a capital do Nebraska", coisa que ele nunca soube e que lhe valeu virar alvo de alguns tiros. Ao fim do livro, eu, que esperava pouco, já me queixava de como seriam tristes os meus próximos dias sem Robert Capa. Mais que história e bom humor, este húngaro debochado presenteia o leitor com dezenas de fotos fantásticas tiradas com a sua Contax. Muito tempo depois, em 1954, fotografando um conflito na Indochina, Bob pisou na mina terrestre que o matou. Seria mesmo ridículo se ele morresse de derrame em Nova York. Tinha 41 anos e pelo menos meia dúzia de fotos que se tornaram emblemáticas de algumas das mais sangrentas guerras havidas no planeta. Endre Ernö Friedman, o verdadeiro nome de Robert Capa, é daqueles sujeitos com um tal grau de desprendimento e ousadia que renovam nossa esperança na humanidade - se há caras como Bob, nem tudo está perdido. Por fim, no meu cantinho "descendo o pau na capa", avisem ao designer genial que fez a capa do livro do Capa que ela ficou uma merda.

Editora CosacNaify, 293 páginas

Obs.: Perdoem-me esta montagem picareta que fiz sobre a mais famosa foto do Dia D e de Robert Capa, comigo de canastrão altaneiro no mirante da praia e colocando o próprio Capa, fardado, sentado na mureta. Poderia dar muitas justificativas para o acinte, mas só tenho uma: não resisti. Foi mal.

"A conquista da honra", por James Bradley e Ron Powers

Wallace, o zagueiro barbudo do Flamengo, plantou no centro da arena de Manaus a bandeira do clube. Ainda não vi ninguém explicando a inusitada atitude. Mas andei meio ocupado. De toda forma, me lembrou a mais famosa cena de todos os tempos de uma bandeira sendo fincada. Tão significativa que virou livro, e depois virou filme. "A conquista da honra" é um livro sobre uma foto - e sobre absolutamente tudo que existiu por trás dela. Há quem a repute a foto mais reproduzida de todos os tempos. É, porém, uma fotografia tirada há 70 anos, e, de lá pra cá, inventaram os celulares que fotografam, a internet e os aplicativos, que pulverizam as imagens por milhões de plataformas em tempo real. Deve ter perdido seu posto de número um. Permanece, porém, ícone de uma era e pioneira no marketing de mobilização nos Estados Unidos. É uma foto em preto e branco, tirada no calor da ação, cujos protagonistas são seis fuzileiros navais cravando a bandeira americana no solo hostil de Iwo Jima. Molecada. O momento eram os meses finais da Segunda Guerra Mundial, com os EUA atolados até o pescoço em diversas frentes. Combatiam os alemães na França e na Itália e os japoneses no Pacífico. Fora do seu contexto no teatro de guerra, a fotografia tirada no Monte Suribachi foi fundamental no esforço de arrecadação de fundos para a manutenção da presença ianque na região: ela mobilizou o cidadão americano e reverteu em milhões de dólares doados às forças armadas. Os fuzileiros foram alçados a heróis. Símbolo do destemor patriótico. Mas nada é como parece. Enquanto fotografia, estática; como expressão de um país, irresistível; como história, uma farsa. Não havia glória naquele lugar. A ilha era o inferno. Oitenta mil americanos desembarcaram na chapada negra e repleta de buracos perdida no mar asiático. Vinte mil soldados japoneses, dentro dos tais buracos - isso mesmo que você leu -, defendiam a ilha. Sete mil americanos morreram. Foram concedidas mais medalhas em Iwo Jima do que em qualquer outra batalha em que os Estados Unidos participaram. Quem desembarcava em Iwo Jima transpunha o Hades. E nunca mais era o mesmo. Falo dos sobreviventes. O autor deste livro é filho de um deles, o paramédico John Bradley. O pequeno James foi sempre fascinado pela imagem épica dos seis heróis contra o vento e contra o Império do Sol Nascente; já o pai, o herói que se tornou exemplo do soldado americano, se negava a falar da foto, da bandeira e da guerra. James nunca entendeu. Pelo menos não até escrever este livro e desvendar o segredo. A história dos seis jovens é um relato que vai da melancolia a tragédia. John foi o único dos seis a ter sua vida de volta; dois seguiram a sina dos veteranos de guerra e se tornaram alcoólatras; a metade deles jamais retornou. Não vivos. James conta a história de cada um dos seis. Sua narrativa me transportou para a inimaginavelmente inóspita ilha de Iwo Jima. Me jogou na cara não só o enxofre que era típico do seu solo, como também o quanto ideais e realidade são conceitos ainda opostos um ao outro. É uma leitura doída. O livro te mastiga. Terminei o livro prostrado. Gemendo, babando. Destroçado. Semanas depois da última página, eu continuava na ilha. O cenário dantesco grudou em mim e me segurava pelas canelas. Demônios insistentes. "A conquista da honra" é um libelo contra a guerra, como sói serem todas as descrições de guerra. A foto, magnífica, permanece me inspirando as mais nobres virtudes. Mas, por trás da encenação, eram só jovens pré-cadáveres encarnando o último ato de um roteiro que não lhes pertencia.

Ediouro, 391 páginas

"Recados da bola", por Jorge Vasconcellos

Lembra de toda a celebração, aqui, no "País do Futebol", quando o futebol brasileiro completou 100 anos? Lembra dos eventos e das extensas reportagens, que remontaram às origens do esporte bretão por estas plagas? Não, aposto que você não lembra. Também, não tinha como. Aqui não houve festa. A data foi solenemente ignorada. Mas, bem longe daqui, na rádio BBC de Londres, naquela ilha fria e chuvosa onde inventaram o futebol, o pessoal não achou que a data devia passar em branco. Tanto que contrataram jornalistas brazucas para produzir a série "Brasil: um século de futebol (1894-1994)", composta dos depoimentos, gravados, de um monte de foras-de-série que estiveram dentro de campo e fora dele. Bacana. Trabalho feito, nossos profissionais da imprensa mandaram as fitas pros ingleses e, sabiamente (e com todo o direito), arquivaram o material coletado. Dez anos depois, em 2004, um dos jornalistas, Jorge Vasconcellos, publicou alguns daqueles depoimentos - meros oito, entre os trinta obtidos, mas os mais relevantes entre eles. Eram os de Domingos da Guia, Jair Rosa Pinto, Zizinho, Barbosa, Ademir Menezes, Didi, Bellini e Rivelino. Entusiasmado com a repercussão, voltou às ruas para novas conversas com craques do passado, acrescentando ao time os bicampeões do mundo Nilton Santos, Zito e Djalma Santos, e mais o dr. Sócrates, um craque de exceção. O resultado final constitui obra ímpar, reunindo a legitimidade e a falta de pompa do discurso oral (revelando o pensamento e a personalidade de grandes artistas da bola), alinhavados em uma edição soberba, com apenas 5.000 exemplares. Sou um dos sortudos. O cuidado editorial da Cosac Naify - que recentemente fechou as portas, após duas décadas de excelência gráfica - valorizou as excepcionais imagens de uma época em que o futebol brasileiro era o melhor do mundo. Pela programação visual e pela pertinência, é peça de colecionador. Não tenha dúvida de que só as fotos já valem o livro - mas, mesmo assim, o conteúdo não fica atrás. O trabalho delicado de Jorge Vasconcellos preservou parcela importante da memória do futebol brasileiro, resgatando uma época em que a cobertura esportiva se restringia aos jogos nos estádios, com escasso registro visual. Assim, reunir a fina flor da inteligentsia dos gramados é um presente e tanto para quem é apaixonado pelo relato de quem fez parte da história. Novidades? Poucas. Mas uma leitura sempre saborosa. Os entrevistados reafirmaram a veracidade de fatos já conhecidos e vazaram também estórias e ângulos pouco ou sequer sabidos. Barbosa conta que durante a Copa de 50, no Joá, ficavam tranquilos até que chegasse o encarregado com a senha: "Vamos descer para liquidar esses gringos e voltar". Domingos da Guia celebra Leônidas da Silva e a bicicleta (que julgava perigosa para a cabeça dele, zagueiro), mas elege Friedenreich o melhor que viu jogar. Rejeita qualquer influência sobre a qualidade do filho, Ademir da Guia ("não lhe ensinei nada"), e agradece o nome com que foi batizado: "Meu nome, Domingos, me ajudou muito. Eu jogava sempre no meu dia." Jair Rosa Pinto foi extremamente elogiado pelos craques entrevistados (diziam que Jair batia forte e colocava a bola onde queria) e, no seu depoimento, deixou claro como se portava: "No meu tempo, técnico não mandava nada." Aconselhou um Pelé de 16 anos, na primeira partida: "O futebol aqui é violento, quando for disputar a bola com o beque, pega ele primeiro." Jogou até os 43 anos e tinha uma receita sui-generis para a longevidade: "Depois dos jogos, ficava meia hora na banheira com sal, tomava uma canja de galinha, fumava um cigarro e dormia." Zizinho valorizava o passe: "Nunca dei valor ao gol. Meu prazer era dar o último passe e deixar o companheiro na cara do goleiro, pra meter a bola e vir abraçar a gente. Hoje o cara sai correndo na direção da torcida, mas devia agradecer o amigo que deu o passe. O público não tem nada com isso." Mestre Ziza rebate uma frase mais que repetida: "Dizem que os jogadores de antigamente não teriam lugar no futebol de hoje. Eu não ligo. Não converso com quem não sabe nada de futebol." O ídolo vascaíno Ademir Menezes lembrou de Heleno de Freitas: "Grande jogador, mas muito nervoso. Boa pinta, branco, alto, advogado, mas xingava muito. Por conta da sífilis, acabou louco." Ademir, o Queixada, fala da final de 50: "Quando o Uruguai fez 2x1, a torcida emudeceu. O silêncio pesou sobre mim e eu queria ficar parado. Só o Zizinho e o Augusto reagiram." Djalma Santos - cujo nome verdadeiro era Dejalma dos Santos -, que entrou na final da Copa de 1958 e acabou eleito o melhor lateral-direito da Copa, diz que o Dida, ídolo do Flamengo, se intimidava - por isso, na opinião dele, o guri Pelé era mais indicado para ser titular em 58: "Dida era bom jogador, mas baixava a cabeça. O Pelé você ameaçava quebrar a perna dele e ele respondia na lata que, se quebrasse a dele, ele ia quebrar as suas duas." Djalma não esconde que chamou a atenção de Didi, na Copa de 62, porque contra a Espanha o botafoguense queria se vingar do boicote que sofrera no Real Madrid - mas ressalva que o próprio Didi, ao lado de Zito e Bellini, foi o grande líder da Seleção. Djalma faz coro com os que criticam a desorganização brasileira na Copa de 1966, a última em que participou, acusando João Havelange e sua campanha pela FIFA como principais responsáveis pela derrota. Critica também o técnico Zagalo da Copa de 1998, por insistir em colocar um Ronaldo sem condições físicas para jogar a final. Zito jogou ao lado daqueles que talvez sejam os dois maiores jogadores brasileiros de todos os tempos: Zizinho e Pelé. Na opinião do meio-campista da Seleção das Copas de 58 e 62, "Pelé tinha um ímpeto semelhante ao de Zizinho, que era para o Brasil o que Labruna era para a Argentina, o maior mito argentino até o aparecimento do Maradona. O Zizinho não era um lançador, era um jogador que fazia gols, de condução de bola e dribles bonitos." Enfatiza ainda que "todos nós admirávamos o futebol argentino, na época o melhor futebol da América." Didi, além do relato pessoal de quem liderou o escrete brasileiro em duas Copas, revela o segredo que fez sua fama nas cobranças de falta: "A folha seca é jeito muito difícil de bater na bola, tem que cortar a bola no meio, fazendo muita força com a ponta dos dedos. Usava a chuteira bem justa, um número menor, para, com a pontinha dos dedos, com a unha mesmo, cortar a bola." Didi teve tal importância para o futebol brasileiro que, mesmo depois de Pelé e Garrincha terem surgido, a imprensa tinha o maestro do Botafogo e da Seleção Brasileira na conta de Rei do Futebol (no destaque, o detalhe de uma autêntica "fotonovela", feita à época em que o craque era assediado por clubes da Europa). Já o depoimento de Bellini traz desconforto quando ele revela que "mesmo nas peladas de rua, gostava de cabecear, os mais velhos elogiavam meu cabeceio, a forma de golpear a bola de olhos abertos". Os sucessivos traumas cranianos foram a causa mortis do jogador. Hilderaldo Luiz Bellini é o capitão campeão do mundo que, cansado, ao erguer com as duas mãos a Taça Jules Rimet, em 1958, para que os fotógrafos que estavam mais atrás pudessem fotografá-la e ele pudesse sentir menos o peso do troféu, criou um símbolo imortal: o capitão campeão do mundo erguendo a taça sobre a cabeça. A partir daí, todos repetiram o gesto. Virando a página, a foto de Nílton Santos, a "Enciclopédia do Futebol", com toalhas enroladas na cabeça e no corpo como se fosse um tuaregue, é impagável. O jogador se gaba de ter disputado 26 finais ao longo da sua carreira - e ter ganho todas. Tem mais é que se gabar (lembrando que duas delas foram finais de Copa do Mundo). Não perdoa o técnico da Seleção de 50, Flávio Costa, que o barrou, na Copa perdida para o Uruguai, porque exigia que ele jogasse com chuteira de bico duro, dizendo que "jogador de defesa de time dele não usava chuteira de bico mole, se não como fazia na hora do bico?" Nílton Santos, ainda em início de carreira, ao ser repreendido por Flávio, no vestiário da Seleção, contestou: "Não tenho raiva da bola, ela sempre me obedece. E eu que sei o que é bom pra mim, porque quem chuta sou eu." Ao mesmo tempo em que o lateral arrancou gargalhadas do resto do time, perdeu definitivamente a posição. "A derrota na Copa de 50 tem nome: Flávio Costa. Dizer que o time uruguaio era melhor que o nosso é bobagem. Ganhamos o Pan-Americano de 52 e batemos o mesmo Uruguai por 4x2." Nílton nunca esqueceu a perda. "Quando ganhamos em 1958 e depois ganhamos em 1962, eu já com 38 anos, dediquei o bicampeonato a quatro caras: Danilo, Zizinho, Jair Rosa Pinto e Barbosa." O craque, que estreou pelo Botafogo em 1948 (e foi campeão) e disputou quatro Copas do Mundo, se considera um predestinado: "Entrei no futebol com o pé direito. Fui bicampeão mundial e, de 48 a 64, só vesti a camisa de um clube: o Botafogo." Rivellino (que ganhou mais um "l" no nome, depois de aposentado), tido como o maior craque da história do Fluminense, onde jogou na segunda metade dos anos 70 , confessa ter tido uma passagem "maravilhosa" pelo tricolor, mas não deixa dúvida quanto à sua condição de corintiano: "O Corinthians foi tudo para mim. Eu adoro o Corinthians!" Um capítulo à parte é a entrevista com Sócrates, craque também corintiano, que nos deixou antes da hora. Médico e atleta, paradoxalmente morreu vítima do excesso de álcool. Uma perda precoce. Embora tenha sido autor de jogadas geniais - a maior parte delas utilizando o calcanhar (recurso que justifica pela pouca condição física, dizendo que "minha sobrevivência dependia do desenvolvimento de uma técnica alternativa, comecei a jogar dando um toque só na bola, para evitar o contato físico, porque eu era muito magro"), se destacou mais pelo que fazia e dizia fora do campo.  É que, nos gramados, nunca nos faltaram os gênios; mas nossos atletas sempre foram pobres de discurso. Evidentemente, este não era o caso do dr. Sócrates. Comumente chamado simplesmente de "Doutor", ocupou um espaço antes não ocupado por nenhum outro jogador, com um discurso politizado em uma linha que costumamos denominar de "esquerda". Ele ressalta que "o ambiente de ditadura militar potencializou o processo, você tem um cara num meio popular pregando uma coisa que é contra a realidade política do país, e eu era um porta-voz talvez maior que qualquer outro". Se orgulha das posições que mantinha abertamente contra a Globo, se recusando a conceder entrevistas: "um confronto entre um indivíduo que tem um monte de opiniões contra o maior poder do país." Sócrates foi o líder da "Democracia Corintiana", uma badalada experiência no ambiente interno do clube, ação altamente paparicada pela mídia, onde todos votavam se o suco ia ser de laranja ou de maracujá, ou em que posto de estrada o ônibus ia parar na volta do Guarujá. Por sua vez, o celebrado Doutor entende que aquele foi um movimento político. Na verdade, me pareceu bem mais uma grande exploração midiática, exponenciada pelo oportuno nome pespegado pelo Olivetto, o (ótimo) marqueteiro do grupo. Sócrates superestima o que aconteceu: "Todas as forças conservadoras ou reacionárias queriam nos derrubar. Do outro lado, estavam as forças progressistas. O desfecho do que criamos acontece com a votação no Congresso da emenda das Diretas já." Falando de futebol, que é o que mais vale, Sócrates foi um dos destaques da Seleção na Copa de 82, cuja eliminação considera "o seu maior trauma e sua maior lição". Sobre a Copa de 86, em que perdeu um pênalti e acabamos eliminados pela França, não aceita ser recriminado pela perda: "No pênalti, os critérios de avaliação são muito subjetivos. Se eu for levantar da cama e for bater pênalti, faço 99 e erro um." Mas em seguida reflete e faz um mea culpa: "Na verdade, aprendi a bater pênalti no último ano de carreira. Três anos depois de parar ainda estava desenvolvendo algumas técnicas. Só existe uma situação ideal - você toma a menor distância possível da bola, mantém o goleiro parado e acerta no canto. Na Copa de 86 eu usava uma técnica onde ameaçava chutar e esperava o goleiro definir o canto, porque em geral os goleiros pulam antes de você bater. O goleiro francês não escolheu nenhum, aí eu joguei no meio de um lado e o goleiro pegou." Voltando aos temas da nação, Sócrates é definitivo sobre a importância do esporte: "Nada é mais barato como educação do que o esporte, e nada mais político neste país do que o futebol." Vai com Deus, Doutor. Fecho de brilho para uma edição de classe.

Cosac Naify, 240 páginas


"O Rio de Janeiro do bota-abaixo", por Augusto Malta e Marques Rebelo

Acabou mais uma apuração do desfile da Sapucaí. A Beija-Flor de Nilópolis, sob protestos, homenageou a Guiné Equatorial - e levou. Sintomático enredo, para uma quarta-feira de cinzas em que cinzas são justamente o que há de sobra na cidade. Para onde quer que se vá, há obras, com direito a trânsito interrompido ou invertido, temporária ou definitivamente. O Rio é um grande canteiro. Tomara que, em tudo se acabando, fique um registro decente da confusão armada. Pois é de registros que falo. "O Rio de Janeiro do bota-abaixo" se propôs a exatamente isso: uma compilação de imagens retratando a transformação visceral que foi imposta ao centro da capital do País - que aspirava Paris, mirava Buenos Aires e cheirava a peste. Foi um momento em que parte importante do centro urbano foi desapropriado e posto abaixo (embora nada que se compare, em termos de interrupção da vida alheia, ao atravancamento de agora), em prol de uma cidade melhor. À época, o Rio trocou seu tapete urbano de cortiços decrépitos por um malha de avenidas largas e elegantes, que mereceram palacetes e carruagens. Ventos do passado. Hoje não se entende bem o que é feito, nem como ficará, mas já há um bom par de anos que nada anda. Paciência. Voltemos, novamente, cento e dez anos: ao livro. A bem impressa edição da Salamandra, patrocinada pela Prefeitura da década de 90, traz belas fotos desse Rio oitocentista e sua roupa nova para um novo século. A maior parte das imagens captadas pelas lentes do habilidoso e dedicado fotógrafo Augusto Malta exibe o Rio pré-reforma, e apenas um terço do acervo expõe a capital verdadeiramente esburacada. Há - vá lá - duas dúzias de retratos exibindo uma cidade com palácios em andaimes e avenidas com montes de entulho. Uma boa noção, mas que mais atiça a curiosidade do que extasia. Agrava o fato de que o tamanho das fotos não ajuda - não enchem as páginas, na maioria -, e também a impressão aparenta estar mais lavada do que o ideal. Não obstante, a curta mostra permite um passeio pelas avenidas empoeiradas e revela um pouco da metrópole afrancesada em que se tornaria o Rio (cuja boniteza não durou no tempo, essa ansiada nova cidade já se foi há muito). Contudo, um registro, ainda que acanhado, é rica memória. Para nós, cariocas, vale ouro, ainda que desse "ouro" só se tenha o reflexo - com o brilho do seu insinuante passado ofuscando seu desconfortável presente.

Editora Salamandra, 150 páginas

"Era uma vez o Morro do Castelo", por José Nonato e Núbia Melhem

Não é normal tirarem um pedaço de uma cidade. Muito menos um morro gigantesco. Menos ainda um morro gigantesco que era justamente o local onde essa cidade foi fundada. Essa é, porém, a história do Rio de Janeiro e do Morro do Castelo. A história de um morro que, por sua altura e localização estratégica defronte à baía, foi escolhido como o ponto ideal para defender a vila que recém se formava (e curiosamente cujo futuro seria assombrado pelas dezenas de morros que desde sempre a circundam). Essa história estaria semi-perdida não fosse a abnegação de alguns pesquisadores: a obra organizada por eles e editada pelo Iphan é um presente para a memória do Rio. São dezenas de fotos do morro e do seu tão anunciado desmonte. Triste é que o imponente Morro do Castelo, que se prestou inicialmente ao forte erguido para defender o município, logo se tornou obsoleto. Embora povoado pelas igrejas, institutos, seminários e centenas de residências, ele era demasiado íngreme e restrito para uma cidade que cedo revelou sua vocação de metrópole. Descartado como ponto central, se tornou vilão do clima, dos ares, da salubridade e da provinciana urbanização do Rio. Por séculos, políticos advogaram contra ele, e seu desmonte seria o elixir que tudo resolveria - não resolveu. O grande gigante foi reduzido a escombros e seus restos mortais tiveram por destino aterrar boa parte da baía. Dele sobrou um cotôco, meros trinta metros de uma ladeira (que não leva a lugar nenhum, cai em precipício) que cheira a bosta, a lixo e a cola. Reduziram a uma caricatura o histórico Morro do Castelo. Seu espírito, todavia, não se perdeu - até agora, cem anos depois de retirado o seu último grão de terra, os cariocas se encontram no Castelo, seus ônibus partem do Castelo, pegam o metrô na estação Castelo. As ruas traçadas no seu vazio até hoje rescendem a prótese. A obra de Nonato e Melhem empresta às gerações seguintes um pouco daquilo que o Rio não é mais.


Iphan, 368 páginas

"O Rio antigo do fotógrafo Marc Ferrez", por Gilberto Ferrez








Não tenho como ser imparcial ao falar desse livro. Foi presente de mamãe e, mais, perdi a conta das vezes em que esmiucei cada uma das suas dezenas de fotografias. Confesso: o fazia com tal intensidade que ou elas me hipnotizavam ou eu a elas. Na verdade, era o que eu queria. Boquiaberto, observava os transeuntes do passado, como se passassem agora. A verdade é que eu nunca antes houvera tido em mãos imagens tão vivas desse Rio do qual só ouvira falar. Era um tempo pré-internet e retratos assim não se achavam. Eram uma miragem em preto e branco. Um Rio de Aluísio de Azevedo e de Machado de Assis. De cortiços e quiosques. De muretas em Botafogo onde as ondas batiam e espumavam nas casas. De navios pesqueiros e vendedores de panelas. De escravos ainda escravos, os olhos baços, servis, no fundo dos quais eu olhava procurando me ver. Marc Ferrez foi um gênio e um estivador. Os ângulos aéreos que obteve daquela cidade de casario baixo e imundo eram o presente que merecia, após subir os morros levando nas costas sua pesada tralha fotográfica. Os panoramas que ele me trouxe - ou aos quais ele me levava - me proporcionaram viajar um século no tempo. E não só a mim: quem quiser comprar um bilhete, e embarcar nessa amarelada cronomáquina, basta ter o livro em mãos. E reserve alguns dias: se fizer como eu, que economizava as pranchas e me limitava a três ou quatro imagens de cada vez (para não gastar minha capacidade de me surpreender e emocionar com o que via), é passeio pra mais de quinzena. O itinerário é um Rio antigo que os Ferrez nos concederam inesquecível.

Editora Ex Libris, 221 páginas