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"A vida por escrito", por Ruy Castro


Tido por muitos como o maior biógrafo brasileiro, o jornalista Ruy Castro tira um tempo para escrever uma coisinha ou outra sobre a arte da biografia. Puro néctar. O subtítulo "Ciência e arte da biografia" dá um ar técnico à edição. Mas antecipo que é menos um curso e mais um bate-papo.

Bate-papo, aliás, é a suprema ciência do Ruy, que escreve como quem conversa.

Generoso, ele dá o passo-a-passo de como escrever uma biografia. Da escolha do biografado à pesquisa, da redação final à impressão do livro, do tamanho da equipe à forma como é remunerado.

Se você sonha, porém, em se tornar um biógrafo, não se iluda com as doces promessas do autor. Porque à vera, mesmo, nada do que ele revela faz mágica. Não há transferência de talento por osmose. Ninguém vai virar um baita biógrafo apenas por ter a leitura do livro do Ruy no currículo.

Bem, não que ele não creia na hipótese. Sugere mesmo uma universidade dedicada à biografia. Situa a atividade - como diz na capa - entre a arte e a ciência. Mas, cá para nós, a pequena apostila de capa colorida é, sobretudo, um mimo para o leitor assíduo das suas bios.

Porque ele revisita cada uma delas. Destrincha os detalhes, dá informações internas, faz uma espécie de making of de cada uma das suas publicações. Quem leu-as todas tem aí um banquete copioso. Já eu, para minha sorte, ainda tenho uma ou duas para ler. O livreto só aumenta a vontade.

Curiosamente, a leitura de biografias é considerada um estilo à parte. Ué. Percepção curiosa. Para mim, tudo é vida e tudo é fato. Seja como for, eu gosto; ainda que discorde do viés. Há quem desdenhe: "Esse aí gosta é de ler biografia". Não vou refutar. Deixo isso por conta do Ruy.

"Sempre gostei de ler biografias", revela o biógrafo, abrindo o livro. "Tem a ver, talvez, com o meu (nosso) lado voyeur - a possibilidade de espiar o lado B das pessoas que admiramos ou por quem temos curiosidade".

Discordo até do Ruy, neste aspecto. Vejo o panorama aprofundado sobre a vida de um certo alguém como uma expedição às entranhas de uma época. A bio permite que eu me transporte para uma década que não é a minha, para um século que não é o meu.

Mas Ruy endossa esse meu ponto-de-vista, com uma definição, lógico, muito mais bem escrita. Diz ele que levantar o passado "não implica nostalgia ou saudosismo, mas uma obsessão em descobrir como eram o dia a dia e a cultura quando ele ainda não existia".

"O passado é um país estrangeiro", compara. "Às vezes, parece distante. Porém, quando se mergulha nele, descobre-se que pode estar logo ali. E dispensa passaporte, visto e vacina", arremata.

O condutor precisa ser profissional, contudo. Ruy desautoriza as biografias autorizadas e não faz gosto das autobiografias: "Nenhuma autobiografia é confiável".

Mas alerto que o simples fato de ser escrita por um biógrafo profissional não é selo de qualidade da biografia. Sei disso por experiência própria. Nem sempre nossas altas expectativas são atendidas.

Porque algumas vezes o biógrafo é esforçado, reúne uma lauta pesquisa pessoal e põe nas livrarias uma edição sobre um nome instigante. Mas o trabalho publicado é frágil no texto, pouco original na seleção das informações e carece de entrevistas com quem cruzou a vida do ente biografado.

Já topei com diversas deste quilate, para minha tristeza. Elas frustram o interesse do leitor. Por exemplo, dois calhamaços que li, dedicados aos compositores Adoniram Barbosa e Dolores Duran. Resenhei-as aqui no blog. Aquém dos biografados e além dos fã-clubes. Entulhadas de devoção e redundância, pobres de substância. Tudo nelas já era do conhecimento público, só foram reempacotadas. E mal.

Já o velho jornalista Ruy Castro, pesquisador e entrevistador de mão cheia, meticuloso e obstinado, traz sempre um excesso de conteúdo inédito. E não só - desenvolveu ainda a arte singular de fazer de uma biografia entretenimento puro.

E até hoje nenhuma biografia ficou pior por ter sido magistralmente escrita.

Sobre o próprio livro, diz ele que "mais do que um manual de como escrever uma biografia, é um relato da experiência de alguém que, depois de vinte anos nas principais Redações de jornais e revistas do Rio e de São Paulo, descobriu um novo mundo a ser explorado pela única ferramenta que o acompanha pela vida: a palavra".

Para mim, particularmente, ainda mais bacana foi saber que a centelha da paixão pela biografia foi acesa em Ruy quando da leitura de "Noel Rosa", bio escrita a quatro mãos por João Máximo e Carlos Didier. Foi uma das primeiras biografias que li. Tenho até hoje o tijolaço. Um tesouro. Me fascinei com o talento e sofri as dores do Poeta da Vila até o seu fim.

E ainda desfrutei da graça do Rio de Janeiro suburbano e boêmio dos anos 20 e 30. A Vila.

Este é o verdadeiro prazer da biografia: ser tomado pelo brilho e intensidade de vidas vividas em momentos-chave da história e da arte, como se estivéssemos lá. Como não nos render?

Ruy fala de autores e obras clássicas, como "O mundo que eu vi", de Stefan Zweig (postado aqui no blog) e "Memórias do cárcere", de Graciliano Ramos, e ainda dá uma desdenhada no célebre texto de Gay Talese, "Frank Sinatra está resfriado" (também postado aqui no blog).

Discorre também sobre biografados e candidatos a, como Phillip Roth, Woody Allen, Dorival Caymmi, Dercy Gonçalves e Tom Jobim. E ainda sobre biografar épocas e movimentos, como os anos 20 e a bossa nova.

Como bom jornalista, Castro traz também depoimentos contrários ao ofício dos biógrafos. Tipo o da biógrafa (e também jornalista) americana Janet Malcolm, falecida há dois anos, em 2021. "O biógrafo é um arrombador profissional que invade uma casa, revira as gavetas que possam conter joias ou dinheiro e foge exibindo em triunfo o produto de sua pilhagem".

Exatamente como Roberto Carlos se sentiu ao ver uma biografia sobre ele chegar às livrarias. Não se conformou, foi à Justiça, interditou a obra, retirou o livro do mercado. Outros artistas aderiram à censura prévia sobre as próprias vidas. Mas, em uma decisão célebre e acertada do Supremo, a ministra Carmen Lúcia vaticinou, para a história: "Calaboca já morreu".

Mas isso é tema para outro post. Vamos voltar à madame Janet Malcolm.

Ela não alivia também a sua outra classe, a dos jornalistas. "Todo jornalista que não seja estúpido demais ou muito cheio de si para não perceber o que acontece à sua volta sabe que o que ele faz é moralmente indefensável". Segundo Ruy, ela quis dizer que "todo jornalista molda seu texto seguindo suas próprias inclinações e que tal texto reflete mais o autor do que a suposta realidade que ele descreve".

O Ruy biógrafo se defende, entretanto. "Se Janet pensa tão mal dos biógrafos, o que dirá dos historiadores, que são biógrafos seriais?". E ressalta que a biografia "é uma prática tão sujeita a distorções quanto o ensaio literário, a escavação arqueológica ou a extração dentária, e nem por isso todos os ensaístas, arqueólogos e dentistas devem ser condenados à morte".

Eu, como já disse, gosto de biografias. Certamente porque gosto de História. E parte do segredo para me divertir com ambas é mérito de quem as escreve. E isso demanda vocação, método e tempo.

"Sem apuração bem feita, não há biografia", diz o mestre das biografias. "A fórmula da apuração é simples: começa pelo levantamento de tudo o que já se sabe sobre o biografado e só então se parte para a busca de tudo o que não se sabe".

É isso. Eu, a História e toda a apaixonada torcida alvinegra queremos saber isso: o que não se sabe. Os itálicos, dele, revelam onde está a ênfase. Que conclui: "A primeira etapa pode levar três meses; a segunda, três anos". E emenda: "Eu disse que era simples; não disse que era fácil".

Por essa e por outras, reitero - quem gosta de ler, precisa ler Ruy Castro. É craque.

Companhia das Letras, (meras) 191 páginas  | 1a edição  |  Copyright 2022

P.S.: Se eu fosse cunhar um slogan para vender seus livros, diria: "Bio é com o Ruy. O resto é obituário." Hummmm... seria injusto com inúmeros biógrafos talentosos? Sim. Mas o Ruy merece o chiste.

"Latim em pó", por Caetano Galindo


Uma breve e interessante excursão pela história da linguagem e dos idiomas - descendo rios, cruzando mares e desaguando no nosso português. Para quem gosta do tema, um pitéu (apesar, temo, da abordagem superficial). Os mais exigentes talvez digam que o recheio lembre mais um pastel de vento. Gostosinho, mas com mais lero-lero do que conteúdo.

Oito ou oitenta? Talvez a questão nem esteja aí. De bom é que somos apresentados a uma série de exemplos curiosos da evolução das línguas, priorizando as origens do latim e seus desdobramentos. Certamente temos aí a parte mais instigante do texto de Galindo.

Eu, que além de ignorante no geral sou leigo no específico, adorei saber um monte de coisa (a propósito, essa ausência do "s" praticada pelo populacho em uma palavra que o vernáculo determina ser posta no plural também é defendida pelo autor; ele pretende, aliás, um uso bem mais concessivo, se deliciando com "os menino caiu"; eu, mais conservador, acho que aí já é demais).

O bom é que ele volta bastante no tempo. Cata fósseis. Entre outras, conta ele que em archi, língua falada no Daguestão, um verbo pode assumir "mais de um milhão de formas diferentes em situações reais de uso". E eu, bobinho, achando que a maior virtude dos daguestaneses era o sambô.

E também que acredita-se hoje que o sânscrito é irmão do grego e do latim, e não seu antepassado.

Mais: nos recorda que "soer" (costumar) caiu em desuso. Verdade. E - complemento eu - como sói acontecer às melhores tradições d'outrora...

Outro tour linguístico proposto por Galindo é o leque de variações de uma mesma palavra com raiz no latim, e que foi adaptada em cada região europeia de fala românica com o acento peculiar da população local. As derivações, aponta o autor, costumam seguir um padrão reiterado.

É o caso do octo (latim), que virou oito (português), ocho (espanhol), huit (francês), otto (italiano) e opt (romeno). Ou lacte, que virou leite (português), leche (espanhol), lait (francês), latte (italiano) e lapt (romeno).

Legal. Os genuinamente apaixonados pelo latim desfrutaram até 2019 de uma rádio que transmitia diariamente as principais notícias do planeta exclusivamente em língua de missa, a Nuntii Latini, uma emissora da... Finlândia. Não escutou? perdeu.

Eu não sei você, mas algumas expressões sempre me deixaram encafifado. Como a tal "a última flor do Lácio". Ok, vem do poema do Bilac, mas o que o Lácio tem a ver com as calças? Não sabia o burrinho aqui, até o Galindo me contar, que Lácio é a forma aportuguesada de Lazio, região italiana que abriga Roma e que é o berço do latim (a propósito, "lácio" em latim é "latium"). Aí ficou fácil.

A Lazio, time de futebol da bota, eu conhecia. O Lácio, só de ouvir (o Bilac) falar...

Vale mencionar que o latim que pariu essa cacetada de idioma - português, romeno, francês, italiano, calabrês, espanhol, catalão, sardo, dalmático, vêneto e o escambau - não era a língua douta, falada nos ambientes cultos de Roma, e sim a praticada pelo vulgus. O povão. Vulgo o zé povinho (como também ensina Galindo, vulgus nada mais é que "povo").

Ainda assim, para que este idioma praticado pelo populacho atravessasse as épocas, precisava ser registrado por escrito. Verba volant, scripta manent, como qualquer tabelião sabe. "As palavras ditas voam, as escritas permanecem". Mas só no século IV uma espécie de gramática - na verdade, uma lista de como se devia escrever e como não se devia escrever - surgiu, o Appendix Probi

A zorra total que era a grafia começou a ganhar limites. Regras eram delineadas (tipo você deve escrever "todos" e não "todes"). Mas, como é praxe na vida comum, com o passar do tempo boa parte das regras foi para o vinagre - enquanto outras, mais azeitadas pela prática popular, ganharam seu lugar na salada geral.

O português do qual nos orgulhamos hoje foi gestado mais ou menos por esta época, num vatapá (opa, essa palavrinha preta chegou mais de mil e duzentos anos depois) que embolava esse latim vulgar - exportado Europa afora pela invasão romana - com a linguagem dos falantes celtibéricos.

Mas não ficava só nisso aí, não. Vieram para a Península os bárbaros, no caso os vândalos, os alanos e os suevos, no intuito de aporrinhar os romanos e tascarem um pedaço do território, detonando a - mui alardeada nos filmes da Metro - famosíssima pax romana.

Nestas ondas bárbaras, os suevos foram os que privilegiaram (um eufemismo para "atacaram") os lusitanos, e sua presença demorada deixou marcas no idioma galego-português, como, por exemplo, com a queda das consoantes n e l em ambientes intervocálicos. Chique, né?

Traduzindo essa bagaça em miúdos, a tal queda significa a supressão que especificamente o português fez de certas sílabas, presentes, não obstante, no latim e nas outras línguas românicas dele originárias. Confundi? Os exemplos permitem a gente entender melhor. 

O latim vulgar colore virou color em espanhol, couleur em francês, colore em italiano e culoare em romeno. Mas em português esse l entre as vogais (daí o intervocálico) foi limado, ficando cor em português. A mesma coisa com dolor (para nós, dor), caliente (para nós, quente) et cetera - ó o latim aí.

Curioso é que as palavras de uso mais sofisticado derivadas desses substantivos mantiveram em português o "l" de nascença latina, como um marcador genético: colorido, dolorido, caloroso. A beleza dos idiomas é que eles deixam pistas claras como um pé deixa uma pegada no barro.

(Se você está achando complicado, a culpa é minha - garanto que o Caetano faz parecer simples.)

O livro é rico nestas pequenas descobertas agradáveis sobre a língua que praticamos todos os dias, desde que aprendemos a falar (põe tempo nisso). E não discrimina os proprietários da norma culta, os eruditos, daqueles que falam apenas a língua das ruas, os tidos por ignorantes.

Como vemos no texto, aliás, o ignorante pode até fundar a sua própria língua. O autor nos traz o conceito do "idioleto", que considera que cada falante "fala uma versão singular do próprio idioma", sendo, segundo Caetano, "o idioma de apenas um usuário".

Talvez eu mesclar putz com cáspite seja um sintoma disso. É o meu hilário idioma particular, uma farofa que inclui centenas de palavras herdadas de índios, pretos, turcos e galegos. Tenho inclusive minhas prediletas por origem, como saudade, dengo e jururu. Ou almanaque, cafuné e curumim.

Mas palavras são palavras - cantava Bethânia - e um idioma é muito mais complexo que isso. E, para explicar seu funcionamento, o autor não tem como fugir a um desenrolar mais acadêmico do tema. A partir do momento em que o português está estabelecido e oficializado como a língua pátria lusitana, Caetano se debruça sobre o desenvolvimento do idioma no Brasil.

No meu modesto entendimento, porém, é a partir daí que ele dá uma pisada na bola, puxando a brasa pra sua sardinha de teórico e nos caitituando para abraçar a perspectiva que ele, Galindo, criou sobre a formação do nosso português atual.

Falando da influência dos diversos idiomas que conviveram, no Brasil, com o português do colonizador, ele defende - grosso modo - que os idiomas indígenas perderam a prevalência e um eventual monopólio futuro da linguagem brasileira, por conta da presença dos escravos africanos.

Tese ousada e original. E como ela se aplica, na visão do autor? 

Em resumo, o português teria sido a língua comum com que a elite portuguesa se comunicava com a população escrava. Essa mesma população negra precisava do português para se entender entre si, já que vinham de tribos e regiões diferentes da África. Ou seja, os escravos não se entendiam uns com os outros em "africanês" e precisavam do português para interagir e integrar a cadeia produtiva (produtiva para o branco, e cadeia para o negro, troço eu).

Avançando na tese de Caetano Galindo, o idioma português somente teria se disseminado Brasil afora porque os escravos eram o motor da economia nacional e foram distribuídos do Oiapoque ao Chuí - e a língua de uso comum entre brancos e pretos era o português. Disse o autor:

"Se é para pensarmos no português brasileiro como algo que se encontra num caldeirão, é preciso reconhecer quanto o conteúdo desse caldeirão teve que ser mexido e remexido para produzir a nossa atual paisagem linguística. E é preciso reconhecer também que os primeiros e mais importantes desses movimentos foram determinados pela grande massa de falantes africanos que iam carregando e modificando essa língua durante todo o processo" (os itálicos são meus). "Refundado e recaracterizado por eles", conclui.

Todo respeito ao autor e à sua intenção de transformar seu livro - de uma simpática coleção de curiosidades sobre a evolução do idioma ao patamar de uma tese linguística inovadora. Mas não vejo a situação da mesma forma que ele vê.

A mim parece que seu ponto de vista está distorcido por um viés que hoje denominamos identitário - no caso, ele visa atribuir à uma fatia étnica (a preta) uma propriedade que ela não possui (por mais que ela tenha incontáveis méritos, que não estão aqui em questão ou em análise).

Galindo se estende, frisando que "apesar das adversidades, foi a língua falada por negros e mestiços que dominou o Brasil. Somos um país que fala português como fruto direto da presença negra". O autor se entusiasma com a própria tese e chega mesmo a poetizar em cima do tema: "O português brasileiro foi um broto africano, flor de Luanda".

Eu diria que Caetano superestimou a contribuição escrava neste quesito. Mas ele vai além. 

"Talvez não vejamos nosso 'português negro' não porque ele não esteja aqui, mas por estarmos o tempo todo imersos nele. No Brasil, o pretoguês é (...) o único português real".

Sem nenhuma desconsideração pessoal com o autor, julgo a afirmação descabida e pretensiosa.

Fosse real o que propõe o neologismo de Galindo, os portugueses de Portugal, não sujeitos a estes quatro séculos de influência africana, não entenderiam o português refundado, o tal pretoguês. Mas parece que eles não têm problema nenhum em entender o idioma. E nem nós o idioma deles. Afinal de contas, ambos - brasileiros e portugueses - falamos o mesmíssimo idioma: o português.

Não preciso ir longe. Quem acompanha futebol já se familiarizou com a avalanche de técnicos portugueses dirigindo as principais equipes do país. Abel Ferreira, um português multicampeão treinando o clube paulistano Palmeiras, dá entrevistas coletivas semanais e discute acaloradamente com os árbitros locais. Suas entrevistas não têm legenda e os repórteres brasileiros entendem em minúcias cada coice verbal do gajo. Os árbitros já deram a ele 50 (cinquenta) cartões, entre amarelos e vermelhos, pelas barbaridades que ele diz à beira do campo.

Parece que todo mundo entende bem o português do português. 

É inegável que é mais bem falado que o nosso, não porque tenhamos qualquer complexo de inferioridade diante do domínio do idioma por parte do "colonizador", mas porque o discurso dos técnicos portugueses tem mais ideias, mais conteúdo, mais clareza, mais conceitos e abstrações do que o discurso repleto de clichês temáticos e verbais oferecido pelos treinadores brasileiros.

No caso, a diferença não está no idioma, mas no grau de conhecimento e na capacidade de expressão.

O próprio autor nos traz a teoria por trás deste uso: é a diastrática, a variação que o idioma apresenta dentro das diferentes camadas sociais. É como se o português praticado pelo palestrante nativo de Portugal pertencesse a uma camada social superior, advinda de uma bagagem acadêmica superior.

Galindo inclusive se enrola quando faz alusões preconceituosas ao português paulistano, que só teria absorvido formas mais populares da língua quando "transportadas" pelo imigrante italiano, pois antes o quatrocentão se recusaria a absorver o idioma popular, contaminado pelos negros. Creio eu que a contaminação é a pauta identitária, não o processo natural de evolução do idioma. 

Afinal, Galindo diz no início que "as regras de uso de uma língua não podem ser mais determinantes do que o coletivo de seus usuários. Se uma maioria expressiva de falantes se comporta de forma contrária ao que a regra prevê, isso aponta para a necessidade, sim de alterar a regra e fazer com que ela expresse mais adequadamente os os usos da língua na sociedade."

Com isso estou totalmente de acordo. Mas ele se contradiz, ao final, quando afirma que "a narrativa desse embate entre o português brasileiro real e a norma escolar ainda está muito longe de ser resolvida e, nas últimas décadas, assumiu definitivamente o aspecto de um confronto entre os mundos rural e urbano".

Ora, ou a evolução do idioma é orgânica, e determinada pelo seu coletivo, ou ela é um confronto das ruas com a academia. O que acha, na verdade, o autor? Em se tratando do idioma, vale a voz do povo ou o regramento imposto pelos estudiosos? (normatização que, muitas vezes, é uma tentativa elitista de apropriação da língua, em prol de um determinado grupo de interesses em comum).

Se o latim que está no DNA do português que falamos hoje vem do vulgo, e não do latim culto, a tese que o teórico Caetano Galindo defende é a visão culta (a dele, de linguista acadêmico) de uma pretensa particularidade popular, em prejuízo da evolução natural da língua. 

A língua é o uso coletivo dos seus usuários. Estou com ele neste axioma (palavrinha que não vem do latim, e sim importada do grego axios). E, mais, acho que os estudos podem nos contar o passado das línguas, mas não podem modificar o seu presente, nem determinar o seu futuro.

A língua é o que o povo fala, e o povo é todo mundo. Senão, nem tinha serventia a tal da diastrática.

Companhia das Letras, 227 páginas

Obs.: A editora costuma ter uma revisão caprichosa. Não foi o caso dessa pequena edição. O "momumento" na página 21 e o "bossa bronquice" na página 30 não poderiam ter passado em branco  (aproveitando que - por enquanto - a expressão ainda não foi cancelada pelo azedume identitário).

"A invenção de Paris", por Eric Hazan


Antes de mais nada, que fique claro: é um livro para parisienses. Aviso logo.

Não pense você, ingenuamente, que irá se divertir às pampas com um guia histórico-turístico ilustrado. Nã-nã-ni-nã-não. É um tijolaço em papel couchê, com muitas fotos e ilustrações (mas em quantidade muito inferior àquela que o leitor curioso, esse pobre desavisado, se animaria a supor) e com uma maçaroca de informações da Paris primitiva: suas ruas, bairros e muralhas.

Bom demais. Para quem conhece Paris a fundo e pode se deleitar com a autópsia narrativa das ruas que existiam (ou não) nos lugares em que hoje existem outras ruas, ou não (no estilo do impagável "História das ruas do Rio", do catarinense Brasil Gerson, Görensen).

Um inventário precioso. Quem não gostaria de se aprofundar na formação dos primeiros arrondissements, no surgimento dos faubourgs, na revolução haussmaniana? Ok, talvez nem todo mundo seja candidato à nobre experiência. A erudição excessiva e o liliputiano labirinto de citações de Hazan deixa o leitor - esse leigo - mais perdido do que cachorro caído de caminhão de mudança.

E a própria concepção da obra deixa a desejar. A Paris revolucionária ocupa espaço demasiado em um livro de fotos e reminiscências. Nem se coloca entre as edições de profundidade histórica, nem perfuma aquela folheada aleatória, como quem flana pelo tempo através de imagens antigas.

Minha expectativa pelo conteúdo dismilinguiu.

Confesso que caminhei duas semanas por Paris, de fora a fora, depois de ter lido o texto calórico e apaixonado de Hazan, e tirei pouco proveito da leitura. Andei por muitos dos endereços comentados, mas ou não atinei ou não vi neles resquício das memórias dissecadas pelo livro.

Talvez eu não estivesse pronto para o texto, ou o texto não fosse feito para mim. Seja como for, nós dois não nos demos lá muito bem.

Segue um trecho do livro, para você mesmo avaliar se minha mão pesou demais.

"Como toda ruptura, este desenlace provoca a nostalgia. Se é verdade, como disse Michelet, que cada época sonha com a seguinte, é ainda mais evidente que cada época vive na nostalgia da precedente, principalmente num período em que este sentimento, promovido como um detergente, se integra perfeitamente num andaime ideológico, aquele da estratégia dos fins - da história, do livro, da arte, das utopias. A Paris das turbulências faz parte da lista desses fins programados, o que não impede de se tomar as medidas necessárias para conjurar os espectros que, receiam eles com certa razão, possam voltar a assombrar as ruas."

A coisa segue firme e forte neste diapasão. Definitivamente, eu não estava preparado.

Reitero que tem muito mais texto do que foto, e muito menos fotos do que eu gostaria - mas ainda assim, a edição traz belas imagens. Gostaria de destacar algumas delas para a ilustração do post, mas, por assaz reduzidas, optei por apenas uma, em página dupla, sobreposta à capa da edição.

É uma foto belíssima de um momento de triste memória, a Paris ocupada pelos nazistas. Um souvenir da França de Vichy e de Pétain. Não obstante, é uma das preciosidades da edição. Uma foto rara. Conta só um tantinho de Paris. Mas conta muito do século.

Verdade que nenhum parisiense escolheria esta foto. Mas acontece que eu sou carioca.

Estação Liberdade, 447 páginas | 1a edição, 2017 | Tradução Mauro Pinheiro | Copyright 2002

Título original: "L'invention de Paris"

P.S.: Consultando os créditos da edição, vi que o copyright da primeira edição, a original, data dez anos antes da primeira edição ilustrada, de 2012. Isso explica o descompasso entre textos e imagens. Era um livro de palavras, que somente depois foi aquinhoado com as fotos. Entendido.


"Churchill, Hitler e a guerra desnecessária", por Patrick Buchanan


Atenção: não se deixe enganar pelo próximo parágrafo.

"Numa análise que reforça a declaração de Winston Churchill - a Segunda Guerra Mundial teria sido 'desnecessária' -, Patrick J. Buchanan nos traz detalhes inéditos de um contexto histórico nebuloso mesmo para os mais gabaritados estudiosos."

Se você digitar o título do livro no Google, você verá incontáveis entradas com a reprodução exata do texto acima. É a resenha oficial, republicada pelas plataformas especializadas na venda de livros - da Travessa ao sebo eletrônico Estante Virtual -, pela mídia tradicional e até, pasme, por... resenhistas.

E não pense que esse vício se restringe aos textos em português. Mesmo em inglês, a colinha é repetida. Amazon, Goodreads, Penguin, Books on tape e centenas de outros oferecem o mesmo antipasti, mais fornido do que o servido na nossa língua, mas sempre igual:

"Were World Wars I and II—which can now be seen as a thirty-year paroxysm of slaughter and destruction—inevitable? Were they necessary wars? Were the bloodiest and most devastating conflicts ever suffered by mankind fated by forces beyond men’s control? Or were they products of calamitous failures of judgment?"

Após os auto-questionamentos, vêm os auto-elogios. Os mesmos, com as mesmas vírgulas.

"In this monumental and provocative history, Patrick Buchanan makes the case that, if not for the blunders of British statesmen—Winston Churchill first among them—the horrors of two world wars and the Holocaust might have been avoided and the British Empire might never have collapsed into ruins. Half a century of murderous oppression of scores of millions under the iron boot of Communist tyranny might never have happened, and Europe’s central role in world affairs might have been sustained for many generations."

Perceberam? De cara, essa análise padronizada, seja em qual idioma for, frustra quem procura visões diversas sobre uma mesma obra. Quem pesquisa quer pluralidade. O leitor busca referências, e sua missão solitária é definir se vale a pena investir sua graninha suada na publicação "x" ou "y".

Ora, será que nenhum desses vendedores leu o livro, ou tem um redator que o faça? Era o mínimo a fazer por quem se propõe a vendê-lo - ainda que oferecesse uma síntese chocha, mas legítima.

Se fosse só este desserviço, seria ruim, mas paciência. Não à toa cada vez menos pessoas têm sido alcançadas por endereços não-comerciais (que não turbinam a visualização). Quem gera receita tem prioridade. Quem não faz tilintar a caixa registradora da ferramenta não tem lugar na fila do pão.

É o jogo jogado. O Google está aí para ganhar dinheiro. Faz parte. Voltemos ao tal parágrafo.

O verdadeiro problema no textinho padrão da abertura (afora o livro) é o seu conteúdo - pra lá de tendencioso. Ele conta uma estorinha fake. Aquela que chamamos hoje de "narrativa".

Vamos por partes. Primeiro, ele parafraseia Winston Churchill, um nome célebre, que, ao ser citado, transfere credibilidade automática à síntese. O que é uma trairagem: o resumo se vale do próprio Churchill para legitimar um livro cujo objetivo é... detonar Winston Churchill.

Segundo, descontextualiza a fala - o "desnecessária" a que se refere o inglês não tem o mesmo significado insinuado pelo título. Churchill a julgou desnecessária porque ela não poderia ser vencida por quem a provocou; já o título dá a entender que a guerra foi um capricho do Império Britânico (pois, para o autor, o poder global era um monopólio compartilhado por ingleses e americanos).

Terceiro, o livro não traz nenhum detalhe "inédito". Ele simplesmente requenta dezenas de citações, enfileiradas e embaralhadas às suas próprias opiniões. Uma lista sem eira nem beira.

Quarto, a Segunda Guerra Mundial não está em um "contexto histórico nebuloso". É um evento relativamente recente, extremamente bem pesquisado e registrado, com fontes múltiplas e com análises bem fundamentadas. Não há nada de nebuloso sobre as particularidades da WWII e seus personagens; absolutamente tudo sobre ela já foi alvo de escrutínio.

Isto posto e organizado, vamos à palavra-chave, a tal guerra "desnecessária"... Ora, amigos, qual guerra é necessária? Guerras são catástrofes assassinas deliberadamente provocadas. Mais difícil seria afirmar que alguma guerra é ou foi algum dia "necessária".

Em última análise, todas as guerras, presentes, passadas e futuras são desnecessárias. Ou alguém acha necessária a Guerra da Ucrânia, que completou um ano agora? Ou a Guerra da Síria, que já está há doze anos em curso? Ou a Guerra do Paraguai, que chacinou um país? Ou a... não, nenhuma guerra é necessária. Todas elas são tragédias, provocadas por um agressor, e se tornam guerras quando o agressor encontra resistência.

Circunstanciando, na Segunda Guerra Mundial, tema do livro (voltarei a ele), a Áustria aceitou a ocupação do país pelos alemães; não houve guerra. A Tchecoslováquia capitulou frente aos alemães sem disparar um tiro; não houve guerra. Já a Polônia reagiu e tentou, em vão, enfrentar os alemães invasores; houve guerra. O país dos polacos foi destroçado e ocupado.

Então, guerra é como briga; se um não quer, dois não brigam. Nem guerreiam.

Ou seja, fácil para a gente concluir que o título do livro é um golpe retórico. Uma pegadinha. Antes fosse apenas isso, um título maroto, capicioso; mas o pior de tudo é que o livro, em si, é um golpe.

Um golpe que certamente tem muito mais a ver com o autor do que com o tema propriamente dito. Patrick Buchanan é um político norte-americano, que concorreu à presidência dos Estados Unidos por três vezes - em 1992, em 1996 e no ano 2000. Teve três milhões de votos na primeira eleição e "meros" (para quem já teve seis vezes mais) meio milhão de votos na última.

Em oito anos, o valor do candidato para o eleitorado americano se reduziu a um sexto do que era.

Apresentador de TV, editor, polemista e escritor ligado à direita profunda - é rotulado como paleoconservador no verbete da Wikipedia -, Buchanan é contra os imigrantes, o multiculturalismo, a globalização e o envolvimento militar dos Estados Unidos em conflitos mundo afora.

Pronto. Chegamos à razão da existência do livro. Na sua plataforma eleitoral, Buchanan defende que os EUA não devem participar em guerras alheias. Para fundamentar seu ponto-de-vista, ele revisita as duas guerras mundiais, ambas definidas pela presença americana. Fantasia ele que o Ocidente "perdeu" o mundo ali - e que Churchill foi o maior culpado.

O cavalo de batalha do autor são as garantias dadas pela Inglaterra à Polônia, comprometendo-se a declarar guerra à Alemanha, caso a Alemanha invadisse a Polônia. As longas quatrocentas e tantas páginas do livro argumentam que foi a garantia inglesa que incitou Hitler a iniciar a guerra. Que isso resultou na vitória da União Soviética e que tudo começara pelos erros de Churchill.

Entende-se a escolha de Churchill para o linchamento - quanto maior fosse o seu alvo, maior seria a repercussão da sua propaganda marqueteira. Não estava de todo errado. Talvez nem eu mesmo fosse ler este livro se ele não tivesse feito o seu marketing polemista como fez. 

Googlando, vemos que os títulos de Buchanan sempre tendem para o sensacionalismo. Compreensível. Como político, ele vive da visibilidade. Antes, em 2006, ele lançou um "A invasão do Terceiro Mundo e a conquista da América". Devia estar reclamando dos colombianos manobrando carros, mexicanos fazendo hamburguers e brasileiros cortando grama.

Outro era chamado "A grande traição: como a soberania americana e a justiça social estão sendo sacrificados aos deuses da globalização". Auto-explicativo. Sem comentários.

Diante disso, já tendo sido bem caracterizado o autor, os próximos parágrafos são dispensáveis. Ninguém tem interesse em perder tempo com um texto maliciosamente tendencioso - uma pseudohistória. Mas, como ele me irritou, eu vou escrever assim mesmo. Leia se for curioso.

Buchanan não tem nada de amador. A organização do seu livro é profissional e, creio, deve ter demandado um grande time de pesquisadores, que investiram em uma extensa garimpagem de citações que, tiradas ou não de contexto, se prestassem a criar a narrativa que lhe convinha. 

O livro forja uma peça de acusação a Churchill. Os capítulos se dedicam à composição de um cenário onde as pretensões territoriais da Alemanha não deveriam ter sido combatidas, pois, segundo a tese do autor, foi o combate à Alemanha que permitiu o avanço comunista.

Mostra como os alemães foram injustiçados com o Tratado de Versalhes e como uma série de tratados nos anos 20 e 30 poderiam ter sido respeitados (ou evitados, dependendo de como sua existência favorecesse a tese do autor), contribuindo para que a Segunda Guerra não acontecesse.

Hitler faria um favor ao mundo sufocando o stalinismo na nascente e se contentaria em reinar sobre as terras do Leste, matando russos, eslavos e judeus, enquanto o Ocidente, incólume, seguiria feliz.

Este é o grotesco storytelling do ex-candidato. Eu poderia deixar por isso mesmo. Mas sou implicante.

Quem quiser que siga comigo ao texto do livro. Advirto que é desnecessário. Nada do que vou dizer daqui para a frente contradirá o que eu já disse. Vou apenas dar vazão à minha indignação com a colossal cara de pau de Patrick Buchanan, dando exemplos em série das suas patuscadas.

"Por favor/ pare agora", cantou Wanderléa, em seu hit nos anos 60. Acontece que sou teimoso.

O político-historiador se queixou assim da postura "passiva" dos demais países, ao dissertar sobre a anexação da Áustria, em 1938: "A Áustria capitulou porque enfrentou uma Alemanha dez vezes mais poderosa do que ela e foi abandonada por todos que poderiam tê-la ajudado a se manter livre - Polônia, Tchecoslováquia, Itália, França e Inglaterra".

Reflitamos. O que ele quer dizer aqui? Que, como a Áustria não fez a guerra - ao aceitar passivamente a invasão -, caberia aos países que deveriam protegê-la terem ido até lá e lutado contra a Alemanha. E o fariam de que forma? Resistindo ao agressor pelas armas, ou seja, fazendo a guerra. Mas, como diz o título do livro, esta guerra não seria desnecessária? Porque foram estes mesmos países citados, França e Inglaterra, que declararam guerra à Alemanha, no ano seguinte, quando esta invadiu a Polônia. Onde está a "guerra desnecessária" que ele tanto sataniza, então?

Ele, tolo, nega de cara a própria "sacada" em que o livro se baseia. Ôco, desdenha do seu leitor.

Fato é que Buchanan criou um livro baseado em floreios de retórica. Se vale do jogo de palavras para negar o fluxo dos fatos históricos. Ora, sem muita enrolação, isso enquadra o autor no grupo dos "negacionistas". Simples assim. Chamamos negacionistas os que negam eventos de domínio público e incontroverso, tipo a Terra ser redonda, a ida do homem à lua, a política nazista de extermínio, a segurança da vacina no combate ao vírus, etc.

Negacionistas, por definição, negam o inegável.

O carro-chefe de Patrick J. Buchanan é negar que a Alemanha tenha provocado as duas guerras mundiais. Na sua narrativa paralela, estas guerras foram culpa dos ingleses e dos norte-americanos. Acima de tudo, de uma pessoa em particular, sintomaticamente filha de pai inglês e mãe americana: Winston Churchill.

Para provar sua tese, Buchanan investe em uma cronologia. Defende que muitos anos antes os ingleses já se preparavam para levar a guerra à Alemanha. Na sua visão maniqueísta e bizarramente distorcida, os britânicos quereriam o mundo só para si.

O autor arrola toneladas de citações (muitas delas de outros negacionistas, mas também de autores sérios, mas descontextualizadas) para dar estofo à sua tese. Volta e meia ele tempera seus disparates com fundamentações corretas, como quando recorre ao historiador inglês John Keegan, que teria chamado de desnecessária a Primeira Guerra Mundial.

"A Primeira Guerra Mundial foi um conflito desnecessário. Desnecessário porque o curso dos acontecimentos que levou a sua eclosão poderia ter sido desviado em qualquer ponto, durante as cinco semanas que precederam o primeiro embate de armas, caso a prudência ou a boa vontade comum tivessem encontrado eco".

Perfeito. Mas aqui falamos da Primeira Guerra Mundial, evento que teve uma deflagração atípica, sem paralelo com a Segunda Guerra Mundial, vinte e cinco anos depois. Antes de mais nada, o início da WWI é difícil de explicar, e, mesmo bem explicado, mais difícil ainda de entender.

Tentemos, grosso modo. No popular, um zé ninguém porra louca deu um tiro num figurão idoso lá nos confins da Europa e semanas depois o mundo estava em guerra porque um cuspiu no outro que cuspiu no outro que foi tomar satisfação e aí tomou uma porrada. Foi isso.

Só pararam quando vinte milhões de pessoas tinham morrido. Aí acharam melhor parar mesmo.

Já a Segunda Guerra Mundial (WWII) é facinha de entender. Hitler foi invadindo os países ao redor da Alemanha, anexou a Áustria, foi avisado pra parar com isso, continuou invadindo e pegou um naco da Tchecoslováquia, o pessoal continuou avisando, ele pegou o resto da Tchecoslováquia e o pessoal disse "chega", mas Hitler c (*) e andou pro mimimi e invadiu a Polônia - aí a França e a Inglaterra, muito a contragosto, não tiveram jeito senão declarar guerra ao invasor.

Este é o ponto do autor. A anunciada reação anglo-francesa que, a seu ver, provocou a WWII.

Dito isto, voltemos para a Primeira Guerra. Tenho que voltar, para acompanhar a rota estroboscópica do autor. Em resumo, ali Buchanan já escolhe Churchill para principal personagem maléfico da parada. Mesmo que Churchill não passasse de um jovem, recém guindado ao posto de responsável pela Marinha inglesa, e ainda que não tivesse prestígio ou idade para ir além das próprias pernas (mesmo voluntarioso), o autor carrega nas tintas, enfatizando o quanto Churchill era belicoso e se revelara entusiasmado com a perspectiva da guerra (qualquer uma).

Ele pinta Churchill como o pérfido das decisões erradas e a Alemanha como inofensiva às potências do Ocidente. Tudo o que ela queria era vender sua produção de chucrute em paz. Já Churchill, o preposto do diabo, queria sangue.

Mais uma vez, é uma cortina de fumaça para o leitor mais bobinho. Porque ao descrever os fatos da WWI, é impossível não mencionar, ainda que contra a vontade e entre parágrafos que minimizam a ação alemã, que a Alemanha exigiu que a Áustria declarasse guerra à Croácia.

E fez isso mesmo com os croatas de joelhos aceitando todos os pontos do ultimatum austríaco redigido pelos alemães, um ultimatum escrito para não ser mesmo aceito, tão insultuoso era - mas os croatas aceitaram, para evitar a guerra pretendida pelos germânicos, o que não adiantou nada.

O autor segue mesclando meias-verdades e mentiras deslavadas para compor seu teatro, numa salada maluca de citações, temperada com descarada má-fé. Vez por outra, ele se trai, esquece a fundamentação histórica que tenta manipular e assume o histerismo:

"Como afirmou Emerson, se for bater num rei, é melhor matá-lo", afirma. "Em Paris, os Aliados açoitaram a Alemanha e privaram-na de seus territórios, indústrias, população, colônias, dinheiro - e honra, ao forçá-la a assinar a 'Mentira da Culpa pela Guerra'. Todavia, não a mataram. Ela continuou viva, unida, mais populosa e potencialmente mais poderosa do que a França, e seu povo agora estava dominado por um sentimento ardente de traição".

A Alemanha de Buchanan oscila de inocente a ultrajada. Pobre Alemanha, pobre Hitler.

Sua retórica investe em certas constantes. São elas a simplificação, a personificação e a vilanização. Interpretar a história como um combate entre mocinho e bandido - onde o autor escolhe quem é quem - é o óleo da engrenagem da montanha-russa buchaniana.

Fiel a este roteiro, ele impregna a estratégia diplomática dos países de um voluntarismo humano. Assim, a França pode ser rancorosa, a Alemanha ressentida e a Inglaterra insensível.

Resta ao leitor inteligente ficar p...

Uma atitude recorrente de Buchanan é dar aos tratados (quando lhe interessa, que fique bem claro) um peso absoluto, e não o que eles na verdade constituem, lances de xadrez no tabuleiro da geopolítica internacional. O avanço ou recuo das peças se dá de acordo com as conveniências do momento e as projeções do futuro.

Ao criticar os ingleses por não fazerem este ou aquele tratado, o que teria "evitado a guerra", ele cria uma imagem monolítica sobre acordos que via de regra existem para ser quebrados. 

A certa altura, ele chama a União Soviética de "inimiga mortal" da Alemanha - isso, em 1936. Como se fosse uma HQ. Só que, apenas três anos depois, os dois países assinam o tratado Ribbentrop-Molotov, que promove a paz entre as duas potências e esquarteja a Polônia, que acaba dividida entre as signatárias do tratado de paz.

Ops, quem é mesmo inimigo mortal de quem?

O bufão do autor tenta sê-lo de Churchill, o personagem com o qual astutamente antagoniza e a quem utilizou para vender seu peixe. Para dar estofo à sua tese, da veleidade de Churchill quanto a Hitler, à Alemanha e ao nazismo, Buchanan reproduz uma série de passagens elogiosas ou contemporizadoras escritas na década de 30 pelo inglês.

Ora, o artifício é extremamente desleal. Desde a ascensão de Hitler ao poder, Churchill o combateu, interna e externamente. Não obstante, pelo seu peso e simbolismo político, o que escrevia se subordinava a um viés diplomático. Mas o autor, de forma desonesta, deliberadamente ignora o contexto em que Churchill se referiu ao Estado nazista e procura inverter a situação.

Para não sermos ofensivos, poderíamos chamar o estratagema de deslealdade intelectual.

Divido com você que me lê a estratégia peculiar de Buchanan. Ele critica pesadamente o acordo de Munique e a apoteótica reação à paz obtida por Neville Chamberlain, assinada por Adolf Hitler. A Tchecoslováquia foi servida em sacrifício em nome de uma paz ambígua. Enquanto o mundo inteiro comemorava o feito de Chamberlain, Winston Churchill discursava na Câmara dos Comuns britânica.

"Tudo acabou. Arruinada, abandonada, a Tchecoslováquia mergulha na escuridão. Todo o equilíbrio da Europa se desfez. Esse é apenas o começo do ajuste de contas. É o primeiro gole, o primeiro sorvo de uma bebida amarga que nos será servida por anos a fio, a não ser que, com a suprema recuperação da saúde moral e do vigor marcial, nos ergamos de novo."

Na interpretação do autor, porém, Churchill não conseguia "controlar sua reverência e sua inveja pela audácia e a bravura de Hitler", porque no dia anterior Churchill falara que "Devemos aprender a extrair da desgraça os meios da força futura. Não pode faltar em nossas lideranças alguma coisa do espirito daquele cabo austríaco que, quando tudo se achava e ruínas à sua volta e a Alemanha parecia mergulhada no caos eterno, não hesitou em marchar firme contra todas as nações vitoriosas e acabou virando a mesa, de modo decisivo a seu favor".

Venhamos e convenhamos - o que Winston fez foi se valer do exemplo do inimigo para espicaçar seus próprios compatriotas, exortando a que não tivessem um desempenho inferior ao demonstrado pelo cabo austríaco. O desprezo da nominação - não pelo nome, não pelo título de chanceler alemão ou de führer -, chamando Hitler pejorativamente de "cabo austríaco", já deixa patente que, se havia alguma coisa que Churchill não sentia em relação ao cabo era inveja e reverência.

Mas, convicto da sua capacidade de manipular o leitor e a História, o autor não se vexa.

Sua análise da invasão da Tchecoslováquia pelos nazistas é risível, de tão tendenciosa. Diz Buchanan  que, após o Anschluss, o presidente tcheco, Eduard Benes, disseminou um boato de que a Alemanha invadiria a Tchecoslováquia, para justificar seus próprios preparativos de defesa. E que, diante da disseminação mundial do "boato", Hitler se sentiu humilhado e, ultrajado, resolveu invadir o país.

Como se estivéssemos assistindo uma peça de vaudeville.

Chamei a argumentação de Buchanan de "risível", porque o próprio autor cita, na página 184, que, diante do boato, Hitler "convocou seus generais e vociferou: 'É minha vontade inabalável varrer a Tchecoslováquia do mapa". Em seguida, prossegue Buchanan, "Hitler pediu a Pasta Verde, o plano para a invasão da Tchecoslováquia". 

É uma piada pronta, né? A ideia da Alemanha invadir a Tchecoslováquia era um boato plantado pelos tchecos, aí Hitler, irritado com o boato, pede a pasta já preparada com os planos da invasão... E o mais bizarro é que o próprio Buchanan é quem nos relata a circunstância. 

O apogeu da grande tese do autor é o seu capítulo nove, intitulado "Erro crasso fatal". Por trinta páginas ele disserta sobre o que considera o grande equívoco do governo inglês.

Aqui vemos como é difícil traçar uma crítica assertiva ao raciocínio de Buchanan, devido à sua reiterada incoerência. Entre citações e alegações, ele ziguezagueia. Vai cada hora em uma direção. Mas lá pela metade do livro, como eu disse, no tal capítulo nove, chegamos no ponto fulcral da tese do autor (que eu já mencionei trocentos parágrafos atrás).

Foi a garantia dada à Polônia por Neville Chamberlain, no Parlamento inglês, em 31/3/1939. 

"Devo informar a esta casa, agora, que diante de qualquer ação que ameace, claramente, a independência da Polônia, e se for considerado vital, pelo governo polonês, resistir com suas forças nacionais, o governo de Sua Majestade se sentiria obrigado, de imediato, a oferecer todo o apoio que pode ao governo polonês."

Para Buchanan, o estopim da guerra foi aceso aí. Depois de Hitler ter retomado o Sahr, anexado a Áustria, ocupado os Sudetos e invadido a Tchecoslováquia - ações que se sucederam às negativas veementes do próprio Hitler de que não as cometeria -, o autor norte-americano considera que foi o "próximo limite" que desencadeou a guerra.

Buchanan se vale da sua extensa equipe de pesquisadores para listar citações, como esta, de Ernest May, desconhecido autor de "Strange Victory", publicado em 2000:

"Um governo que seis meses antes tinha resistido a guerrear por um país distante, possuidor de instituições democráticas, forças militares bem armadas e fortificações resistentes, agora prometia, aparentemente sem nenhuma reserva, ir à guerra por uma ditadura cujas forças armadas eram precárias e cujas fronteiras estavam desprotegidas."

Comento: sim, justamente por não tê-lo feito seis meses, foi necessário fazê-lo então.

"A reviravolta de Chamberlain foi tão brusca e inesperada que tornou a guerra inevitável", teria dito Liddel Hart, historiador e estrategista militar. Buchanan maliciosamente pesca essa frase, mas omite que Hart era um defensor de uma atitude ofensiva da Inglaterra. Ainda assim, a reviravolta foi provocada pelo agressor, não por quem reagiu à agressão.

Entre muitos outros que teriam depreciado a importância da Polônia, o autor pinça uma frase dita cinquenta anos depois pelo diplomata inglês Roy Denman: "A garantia de guerra dada à Polônia foi a incumbência mais irresponsável jamais aceita por um governo britânico. Pôs a decisão sobre a paz na Europa nas mãos de uma ditadura militar inconsequente, intransigente e gabola".

Que inversão estapafúrdia. Denman decreta que a Segunda Guerra Mundial foi provocada pela Polônia. Mas o cansativamente longo texto do autor (que provoca esta cansativamente longa contra-argumentação) tem outras pérolas de igual formosura.

"Atônito e ferido pela garantia britânica de guerra dada à Polônia, Hitler tomou-a como um desafio direto a si próprio e à Alemanha, e deu uma virada completa".

"A declaração anglo-polonesa não apenas forçou a mão de Hitler, como também o levou a perder a cabeça".

"A garantia de guerra dada à Polônia pela Inglaterra foi o ato mais cínico de toda a história inglesa".

"Em poucas horas ele ordenou planos para a operação Case White, a Pasta Branca, invasão à Polônia".

(Olha as pastinhas coloridas de novo aí).

"Chamberlain receberia a guerra que jamais desejou, e Churchill acolheria a guerra que tentara provocar".

Buchanan destaca e critica uma declaração de Chamberlain, que afirmava que "a verdadeira questão era que, se a Alemanha mostrasse sinais de que pretendia prosseguir com sua marcha de dominação do mundo, devemos tomar providências para detê-la".

O autor enumera: "Chamberlain fez aqui três suposições. A primeira foi que qualquer tentativa futura da Alemanha de reclamar populações e províncias perdidas seria uma 'marcha pela dominação mundial'. A segunda foi que era obrigação da Inglaterra deter Hitler na Europa central e oriental, onde nenhum exército britânico jamais lutara antes. A terceira foi que a Inglaterra tinha capacidade de derrubar o valentão".

Bem, a posteridade mostrou que 1) era; 2) foi; 3) tinha.

Querendo mostrar o quão equivocados estavam aqueles que viam em Hitler uma ameaça aos EUA, Buchanan diz que "historiadores procuram em vão nos arquivos nazis pelos planos de envio de exércitos ao Canadá ou América Latina, a fim de atacar os Estados Unidos".

Para comentar esta afirmação, basta considerarmos que Adolf Hitler iniciou as atividades bélicas do seu Reich de mil anos em setembro de 1939 - e em novembro de 1941 já estava se estrepando nos arredores de Moscou. Se começou a ver os seus planos ruírem tão cedo e tão perto de casa, não faz sentido para um estudioso sério tratar a ausência de planos para lutar do outro lado do Atlântico como um indicativo de desinteresse militar.

Acho que chegamos ao limite da paciência, né? Toda esta baboseira já basta para super ilustrar o ponto de Buchanan. Sua ladainha de que a Inglaterra não deveria ter se comprometido a declarar guerra à Alemanha, caso a Polônia fosse invadida pelos alemães, só faria algum sentido, ao menos retórico, caso não soubéssemos que Hitler não cessaria sua escalada de anexações e ocupações. Mas estamos todos carecas de saber - eu, pelo menos, estou - que nada o deteria. Estava não só tudo previamente alardeado em Mein Kampf, como vinha sendo o norte da sua performance agressiva desde que subira ao poder.

Então é uma falácia acreditar que algo teria provocado Hitler a fazer a guerra. Hitler era obstinado por ela e acreditava que somente por meio da guerra, da subjugação dos povos inferiores (os não-alemães) e da expropriação do território de outros países a Alemanha ocuparia seu lugar de direito no planeta.

De preferência, desalojando o Império Britânico de lá.

Então, chamar a guerra de "desnecessária" é uma firula homérica, haja visto que não fazer a guerra simplesmente não era uma opção. A guerra foi trazida pelo regime nazista de Adolf Hitler. Aos países fracos restou sucumbir. Às potências cabia resistir.

Foi o que fez Churchill. Ele ecoou no Parlamento a garantia dada por Chamberlain: "A preservação e a integridade da Polônia devem ser vistas como uma causa concernente ao mundo inteiro".

Winston Spencer Churchill, que passara os últimos anos fora do governo, e que fora sempre uma voz incômoda e dissonante contra Hitler, via - enfim - o Império Britânico se manifestar de forma coerente com o que ele cria fosse a única postura possível. 

Enquanto Chamberlain e outros pacifistas seguiam tolerantes com os avanços sistemáticos do cabo austríaco, Churchill alertava que Hitler não se satisfaria antes de ter a Europa no bolso do colete; em vão. Embora os sinais dados pelo regime nazista fossem claros, o Estado inglês contemporizava, temeroso de envolver o país em uma nova guerra.

Já o odiado Churchill percebia que a guerra era inevitável, pois nada deteria a máquina alemã, cada vez mais potente e ameaçadora. Sorte do planeta que, quando tudo parecia perdido, os ingleses puderam recorrer ao carismático e obstinado frasista, que, de posse da língua inglesa e da sua coragem inabalável, foi durante mais de um ano o único obstáculo ao avanço dos boches.

Mas há sempre quem queira reescrever a história e disseminá-la entre os rasos. Era o objetivo (frustrado) de Patrick Buchanan. Ele abre o capítulo 14, "O homem do século", para fazer aquilo que ele acreditava daria a máxima repercussão ao livro: o ataque insolente à Winston Churchill.

E o mais hilário é a demonização de Churchill em paralelo à uma quase beatificação de Hitler.

"Na fatídica última semana de agosto de 1939, enquanto Hitler buscava, desesperadamente, uma forma de manter a Inglaterra fora de sua guerra contra a Polônia..."

Deploro a quantidade de papel gasto com a repetição obsessiva de uma sandice que não resiste a um olhar minucioso sobre a personalidade de Adolf Hitler, o que ele escreveu em Mein Kampf e as decisões tomadas em seus doze anos à frente do governo alemão.

O comportamento belicoso e traiçoeiro de Hitler não era uma hipótese, fôra comprovado por suas atitudes. Suas convicções teóricas sobre a supremacia ariana (leia-se alemã) vinham sendo postas em prática na forma de lei e de ações de governo. Seu apetite insaciável pelo território de outras nações e seu desrespeito pela soberania alheia já estava flagrante pelo que fizera nos dezoito meses anteriores à invasão da Polônia.

Dizer que a Inglaterra traçou uma linha na areia ao se comprometer com a Polônia está correto. Dizer que esta linha não deveria ter sido traçada, porque as pretensões de Hitler se esgotariam ali ou que jamais ameaçariam as demais nações europeias - subtentendendo-se aí França e Inglaterra - é ingênuo ou desonesto.

Não fosse a Polônia, em setembro de 1939, teria sido a Bélgica, em maio de 1940. O hiato em que a guerra mundial pudesse ser considerada "desnecessária" repousa em um espaço de oito meses.

É em cima desta tolice que o calhamaço de Buchanan se desenrola, certamente ao custo de muitos funcionários contratados para arregimentar obras e depoimentos que dessem sustentação ao seu raciocínio - que lhe convinha politicamente, na defesa do distanciamento dos Estados Unidos das circunstâncias globais.

Nada diferente do que defendeu Donald Trump, no seu único mandato. Isolacionismo. Não-participação do maior país do mundo no contexto geopolítico global - o que por si só já é uma contradição. O mais forte dos países se omitir em um cenário já é uma participação em favor daqueles que julgam inconveniente ou indesejada a sua participação.

O isolacionismo de Trump, ou de Buchanan, ou de Roosevelt, caso ele tivesse se omitido (e ninguém pode afirmar o que aconteceria sem Pearl Harbour), é uma adesão a uma determinada corrente. 

Nessa toada, o político americano alinhavou sua narrativa. Vista em detalhes, é inconsistente e incongruente, tendenciosa e contraditória. Mas nem todo mundo repara nos detalhes.

Assim, entre sofismas, contradições e interpretações criativas, Buchanan, o autor, segue na mídia dando entrevistas e se pavoneando. Ele aparenta convicção absoluta da ignorância do telespectador e do leitor. São tantas as sandices, que é difícil (além de dispensável) selecioná-las e organizá-las.

Joguei boas horas de relógio fora, lendo as besteiras do former advisor de Ronald Reagan e muito tempo mais transcrevendo-as e refutando-as. Mas alguém tem que catar o lixo e jogá-lo fora. Se você me leu até aqui, parabéns. Você é teimoso como eu e não engole uma estorinha qualquer.

É, no mínimo, alguém mais difícil de enganar.

Editora Nova Fronteira, 423 páginas | 1 edição, 2009 | Tradução Vania Cury | Copyright 2008

Título original: "Churchill, Hitler and 'the Unnecessary War. How Britain lost its Empire and the West lost the World"

"O Hitler da história", por John Lukacs


Lukacs não se propõe a analisar a trajetória histórica de Adolf Hitler - e sim a dissecar como dezenas de historiadores o analisaram, em cada das suas etapas. Debate sobre onde e quando (em Munique, ou ainda antes, em Viena) se localizou o cerne da sua formação política. As múltiplas interpretações da sua personalidade, das suas crenças e do seu conhecimento; sua obsessão pelos judeus. 

Encerra na busca pelo verdadeiro lugar na história reservado a Hitler.

A proposta, ambiciosa, se fundamenta no raciocínio ágil do autor, que recorre à contribuição dos estudiosos de sua preferência; mas, seja na forma ou no conteúdo, não raro sua narrativa se revela fragmentada e descontínua.

E não só: a expansiva erudição de Lukacs é aqui e acolá contaminada pela forma superestimada com que o autor vislumbra a persona histórica de Hitler - às vezes, para meu desgosto pessoal, com incontida admiração ("o tipo de homem extraordinário que ele foi", comenta ele, à página 64).

Nem tudo são pedras. O autor, não obstante e mal-estar à parte, é um pensador a se respeitar, ainda que não seja de fácil digestão. Tem peixe fresco na barraca do Lukacs, como, já para dar uma palhinha, uma interessante definição do século XX.

"O século XX - historicamente falando - foi curto. Enquanto o século XVIII histórico durou 126 anos (de 1688 a 1815), caracterizado por guerras mundiais, principalmente entre a Inglaterra e a França, e o século XIX durou noventa e nove anos (de 1815 a 1914), distinguindo-se pela ausência de guerras mundiais, o século XX durou setenta e cinco anos (de 1914 a 1989), marcado pelas duas guerras mundiais e suas consequências - a denominada Guerra Fria entre a América e Rússia. E terminou em 1989, com a retirada russa da Europa Oriental e a reunificação da Alemanha."

O contexto entre as duas guerras mundiais, de 1920 a 1945, prevalece, aos seus olhos, sobre todos os demais momentos do século.

"Durante este período - mais uma vez contrário à impressão popular e equivocada sobre a importância da Revolução Russa em 1917 - a história do mundo foi marcada pela existência e a competição de um triângulo de forças. Houve democracia parlamentar", circunscreve Lukacs, "representada principalmente por nações de língua inglesa, pelos países da Europa ocidental e a Escandinávia. Houve comunismo, representado exclusivamente pela Rússia soviética, incapaz de assumir o poder em qualquer outro país. E houve o nacional-socialismo na Alemanha após 1933, personificados por Hitler e o Terceiro Reich, que se revelou tão poderoso que foi preciso a aliança antinatural e temporária da democracia liberal com o comunismo russo, dos impérios de língua inglesa e russa para derrotá-lo. Nenhum dos dois lados poderia fazer isto sozinho."

Tiro o chapéu para a habilidade e concisão do autor. Mas antecipo também que deixo o meu chapéu na cabeça em muitas outras páginas do livro.

Em seu jogo de temas, subtemas, citações e referências, não é fácil acompanhar as elocubrações empoladas de Lukacs, que conduz seus leitores de forma enviesada. Se ele escreve sobre o que os historiadores escreveram, boa parte do tempo a impressão que se tem é que ele escreve também para se exibir para os historiadores. Sua linguagem, aqui e acolá hermética, nem sempre deixa clara sua ideia do seu principal personagem. 

"Não havia nobreza na constituição física, mental e espiritual de Hitler - nem em seus atos. Mas a rejeição fácil de Hitler, ridicularizando-o, é um completo absurdo. É comprida a lista de pessoas - pensadores, escritores, artistas - que o consideraram um gênio."

Ponderação válida. Talvez seja o propósito central da obra. Mas não só seu livro não a responde, como temo que não seja sequer respondível (como dissociar o sujeito do genocida?). E, além desta hipotética impossibilidade, a forma como seu conteúdo é oferecido não favorece o fluxo das ideias.

O primeiro grande problema do ensaio de John Lukacs é estrutural. Seu texto, dividido em nove capítulos, se vale em excesso de notas complementares ao corpo original da obra. Para cada duas páginas dissertativas, temos o equivalente a uma página em notas adicionais, contendo transcrições, análises, remissões - em corpo 7.

Isso faz da leitura não só um cansativo e aborrecido vai-e-volta, como desnuda a incapacidade do autor de construir um bloco coeso que fundamente suas teses. A absorção das suas ideias se torna tão episódica e pulverizada, com cada parágrafo interrompido por um sem-fim de referências, que seu discurso mais nos enfastia que enriquece.

Não que as questões que aborda não sejam pertinentes; em sua maioria, elas o são. Mas aí, paripassu com a fragmentação do seu texto, temos que lidar frequentemente com sua visão maximizada da estatura de Hitler como estadista e como personagem da História.

O autor, a propósito, publicando seu texto justo meio século após o suicídio do seu personagem, cria ter decorrido tempo suficiente para que toda informação pertinente e verificável sobre Hitler já tivesse sido obtida e divulgada. Ledo engano. Os anos seguintes trariam material novo e também novas perspectivas.

E aqui abro um parênteses importante. Escrita no final do século passado, em 1995, a obra de Lukacs não pôde incluir, entre outros, o ótimo trabalho de pesquisa e investigação empreendido por Thomas Weber, publicado quase vinte anos depois (refiro-me a "Tornando-se Hitler", que você encontra aqui no blog).

A apuração de Weber sobre os anos menos conhecidos da vida de Hitler, que vão de 1918 a 1920, é determinante para uma compreensão mais aprofundada de como aquele que viria a se tornar o líder alemão se formou - conceitual e politicamente.

Sem acesso ao novo panorama aberto por Weber, Lukacs patina em uma versão obsoleta da construção da personalidade do futuro führer alemão, e atribui a ele virtudes, visões e motivações que o bilioso Adolf, na verdade, nunca chegou perto de possuir.


Causa espécie também - e corrobora o viés distorcido do estudioso - o espaço concedido ao caricatural negacionista David Irving, autor inglês apologista de Adolf Hitler. Ainda que ressalte que as teses de Irving careciam de provas, que suas afirmações eram consideradas levianas por muitos historiadores sérios, Irving foi uma citação recorrente ao longo das páginas do livro de Lukacs.

"Alguns dos achados de Irving não podem ser ignorados", diz ele, à página 101; "diferentes foram as interpretações de David Irving em seu maciço Hitler's War", adjetiva Lukacs, à página 129;  "como acontecia frequentemente com Irving, nenhuma fonte foi dada, mas talvez estas palavras não sejam implausíveis", contemporiza, à página 217. Ainda mais afirmativa, e conclusiva, é a observação à página 130: "Irving não deve ser ignorado. Ele tem defeitos, mas é um dos melhores conhecedores de fontes... e contribuiu muito para as pesquisas".

Será mesmo? Jogando um pouco de luz em David Irving, para quem não está ligando o focinho ao cachorro, ele causou polêmica nos anos 70, ao tentar reabilitar Adolf Hitler e defender que Hitler não sabia do extermínio de judeus - argumentando que o Holocausto "havia sido planejado por Himmler,  Heydrich e outros, sem conhecimento de Hitler e contra seus propósitos". 

O estardalhaço disseminado na Europa pelas declarações de Irving trouxeram à tona falsificações grosseiras que ele havia feito de pretensos documentos de Hitler e uma infinidade de afirmações sem qualquer respaldo histórico. David Irving e seu maciço Hitler's War foram para a lata de lixo da história.

Assim, ainda que frequentemente ressalte a impropriedade dos argumentos de Irving, previamente minimizando o poder de suas teses, somente o fato de citá-lo amiúde nos leva a questionar os critérios de Lukacs sobre quais historiadores poderiam contribuir para o debate sobre Hitler.

Ou uma outra, de Karl Dietrich Erdmann, que me leva a crer seja uma das melhores definições que a obra traz sobre o funcionamento mental do objeto do ensaio. "As paixões que governavam a mente de Hitler eram ignóbeis: ódio, ressentimento, o desejo ardente de dominar e, nos casos em que não podia dominar, destruir".

Erudito, habilidoso, aborrecido, tendencioso, embolado. Muito pode ser dito sobre este texto de Lukacs. Mas se há algo que ele realmente não faz é jogar luz sobre o estudo da presença de Hitler na história. Só se a luz em questão for a estroboscópica.

Para encerrar, escolho duas frases do escritor e pensador católico Reinhold Schneider, em 1946 (ainda sob a poeira do caos), apud Lukacs: "Nossa acareação com Adolf Hitler não terminou ainda e não pode ser concluída. De certa maneira, estaremos ligados a ele para sempre", avalia.

Pior é que Schneider vai além: "O povo alemão, pouco importa como esta lista possa parecer grotesca, é o povo de Martin Lutero, de Karl Marx, de Friedrich Engels e também de Adolf Hitler". 

Quem quiser que discorde.

Jorge Zahar Editor | 1a edição (1998) | Tradução de Ruy Jungmann | Copyright 1997

Título original: "The Hitler of History"

"O lugar", por Annie Ernaux


Prêmio Nobel de Literatura em 2022, a octagenária escritora francesa segue badalada mundo afora, desde sua premiação pela academia sueca. Já seu ápice tupiniquim se deu na edição da Flip de novembro do ano passado, em Paraty, onde Mme Ernaux foi a principal homenageada.

Segundo li nos jornais, ao longo de prolífico meio século de carreira literária, a autora havia vendido dez mil exemplares no Brasil. Mas só nos últimos dois meses foram quinze mil - observou um site literário. Ou 35 mil, comemorou uma colunista. Um baita aumento exponencial.

Bem, talvez não seja muito. A escritora mineira Carla Madeira vendeu 50 mil exemplares de seu livro "Tudo é Rio", que eu, por sinal, não li e nunca tinha ouvido falar. Nem do livro, nem da autora. Pois é.

Voltemos à francesa. Como convém a um tempo identitário, em Paraty seu sucesso global foi celebrado como uma vitória particular das mulheres. Ok. Ernaux, née Duchesne, tornou, assim, o nome do marido famoso. Já o pai, em seu livro "O lugar" - que também poderia ser intitulado "O pai", "A origem", "O café", mantendo seu estilo nominativo - é chamado só pelas iniciais: A... D...

A própria Annie, ao longo de toda a sua carreira, investiu fortemente no discurso feminista. Tinha suas razões - que são difíceis de serem avaliadas aqui e agora, nestes conflagrados trópicos mezzo lulistas, mezzo bolsonaristas (50,5% - 49,5%), no ano da graça de 2023. É inadequado traçar um paralelo entre o feminismo raiz da intelectual francesa e a retórica feminista atual.

Fato é que vivemos tempos estranhos, onde a simbologia superficial sequestrou o espaço antes tradicionalmente dominado pelo conteúdo. Já ela, Annie, vem de um outro tempo, cultura e lugar. Por isso, o feminismo que ela defende tem outro peso, que não julgo. Se quiser, julgue você.

"O lugar" foi seu segundo livro. É um depoimento pessoal sobre as origens camponesas e operárias da sua família. É um compilado de anotações sobre o seu pai. Compõe uma narrativa de gerações, cerzida com propriedade e um agudo senso de observação.

O lugar que sua família ocupava no universo social francês; o lugar que era a residência dual (meio casa, meio loja) em que Annie cresceu; o lugar que era a pequenina cidade de Yvetot, onde moravam, que a escritora denominava apenas por Y...

O título original da obra é "La place" e a tradução escolhida pelo editor brasileiro foi  "O lugar". Correta. Nada a opor. Mas, ao falarmos do livro, gera certa confusão, porque o vocábulo "lugar" em português é bem mais recorrente do que "place" em francês, que é mais particular.

Este "O lugar" no nosso idioma é um conflito permanente entre condição e localização. Não sei se você no meu lugar pensaria de forma diferente.

Ernaux escreveu este seu livro em 1983, dezesseis anos após a morte do pai. No ano seguinte a obra recebeu o prêmio Renaudot. Não sei se já disse, seu livro é autobiográfico, mas seu significado e suas referências vão muito além. Ela fala sobre a França, sobre divisão de classes, sobre sexismo, sobre exclusão e sobre a inevitável distância entre gerações.

"Uma professora minha disse certa vez que a nossa casa era bonita, 'uma verdadeira casa normanda", conta Annie. "Meu pai achou que ela só estava querendo ser educada. Aqueles que admiravam as nossas coisas velhas, a bomba d'água no pátio, as casas normandas com viga de madeira aparente, certamente queriam nos impedir de ter o que eles já tinham, eles que eram tão modernos, com água na torneira e uma casa branca".

No futuro seria diferente. O lento e pequeno sucesso do pai como comerciante permitiu que ele modernizasse a aparência do imóvel. Mas era uma modernidade que vinha na contramão.

"Agora que o café do meu pai tinha, enfim, a fachada toda pintada de branco e o letreiro em neon", lamenta ela, "os proprietários dos cafés com certo faro comercial estavam voltando para as fachadas normandas, com vigas falsas e lâmpadas antigas."

O que era raiz era pobre, e depois virou cult, para quem não era pobre. Dilema constante.

"O patoá foi a única língua dos meus avós", ressalta, dizendo que "há quem aprecie o aspecto pitoresco do patoá e do francês popular". Mas destaca que para o pai "o patoá era uma coisa antiquada e feia, um traço de inferioridade. Ele se orgulhava por ter, em parte, conseguido se livrar dele. Ainda que seu francês não fosse bom, pelo menos era francês".

Ela fala também do ceticismo político do pai, que havia votado em Pierre-Marie Poujade "sem convicção, achando que ele era uma farsa, 'muito blá-blá-blá". O dito cujo era um populista que liderou protestos de direita na França dos anos 50. Segundo diz em nota de rodapé o editor do livro, "seu discurso anti-intelectual, xénofobo e colonialista deu origem ao Poujadisme".

O partido do poujadisme era o UDCA, que elegeu 56 membro para a Assembleia em 1956, cujo parlamentar mais jovem entre os eleitos era Jean-Marie Le Pen - hoje símbolo da direita xenófoba europeia e pai de Marine Le Pen, que carrega, em pleno 2022, a bandeira do pai.

Saindo da política e indo para o picaresco, a autora alimenta a versão do pouco apreço dos franceses pelo banho, ao dizer que "domingo era dia de tomar um bom banho, ir à missa (...)". Não fica claro se bom banho significa um banho melhor do que o tomado nos outros dias ou se, porque era o único da semana, era bom, ou, ainda, bom que este único banho fosse enfim tomado. Fica a seu critério.

Sempre com distanciamento, Annie revela o quão emocionalmente longe ela viveu de um pai fisicamente próximo. Faz isso com substância, ritmo, concisão. E a riqueza com a qual ela descreve esta relação e tudo que a delimitava não tem a ver com gênero. Tem a ver com talento. 

Annie Ernaux, née Duchesne, escreve sobre sua circunstância e escreve excepcionalmente bem.

Editora Fósforo, 69 páginas 1a edição 2021 (4a reimpressão, 2022)  |  Tradução Marília Garcia

Título original: "La place"   |  Copyright 1983

"Mein kampf", por Adolf Hitler


Proibido em muitos países, "Mein kampf" é um livro desagradável. Além do simbolismo nefasto, é um enfileiramento de incongruências factuais, vomitadas em um estilo prolixo e afetado. Mas é uma peça histórica. Nela, a retórica histérica - sua marca pessoal, desde seus primeiros discursos nas cervejarias de Munique até o bueiro coletivo em que se matou - dita o ritmo professoral do suicida.

Você certamente conhece essa história. O aclamado filme "A queda" mostrou como a cúpula nazista terminou seus dias enfiada em um buraco de tatu, com os maiorais chupando balinhas de cianureto e atirando na própria cabeça.

Adolf Hitler, o führer, o líder ao redor do qual até o último instante gravitava esta turma, tinha antecipado parte desse fim catastrófico em um livro que escrevera vinte anos antes: o icônico Mein kampf. É sobre ele que vamos falar. Mas cada parte a seu tempo.

Mistificações idólatras a parte, seu conteúdo era basicamente uma peça de propaganda política. Sob este prisma, cumpriu exemplarmente seu papel, ainda que seu texto inchado e enfadonho tenha sido menos lido que vendido. Após seu autor chegar ao poder, se tornou um mimo do Estado aos noivos, nas cerimônias de casamento, e presença obrigatória na sala dos lares alemães patriotas.

Eu não ganhei, mas herdei. Um grande amigo que partiu para Berlim - justo para lá - teve que se desfazer de boa parte da biblioteca, e assim me tornei proprietário (provisório) do exemplar. E, por mais que me viesse à garganta a repulsa natural pelo significado da brochura para a História, isto não era justificativa para ignorar a publicação. Sem contar que ela ficou ali, me perturbando.

Gostando ou não, eu sabia que ia lê-la. E, reconheço, não gostei, porque - fundamental esclarecer - o livro é chato pacas.

Não somente seus contemporâneos, mas decerto o leitor atual, mesmo um que por uma disfunção qualquer seja simpático às diatribes racistas e belicosas distribuídas na obra, terá dificuldade em ler a dita cuja. Vou além: se neguinho disser que leu, não vou acreditar. Digerir o texto redundante e autorreferente do autor enjoa e dá úlcera. Duvida? Tenta só.

Pois eu já nas primeiras páginas percebi que a tarefa seria leve como subir a Igreja da Penha com um tirolês nas costas. Que dureza, ehm? Mas resolvi encarar. Ossos do ofício (de leitor).

Precisava conferir por mim mesmo, porque, a despeito de sua pretensão criminosa - o objetivo anunciado, e dezenas de vezes repetido, de matar centenas de milhares de pessoas inocentes e roubá-las -, é, como já disse, um texto histórico.

Havia da minha parte - acho que ainda há, da parte de quase todo mundo - um certo mal-estar em manusear o livro. É um texto associado ao momento em que a civilização desceu ao seu nível mais baixo, desde que passamos a chamá-la de "civilização".

Ou seja, o título é quase um vodu. Mas vamos desestigmatizá-lo.

Antes de mais nada, Mein kampf é um novelo político, desenrolado por um candidato a político. E, como sói acontecer com os políticos, mentiroso. E mais: oportunista. A Alemanha estava cem vezes mais conturbada do que é o Brasil hoje, para você ter uma ideia. Então era um prato feito para os políticos se criarem. Havia o inconformismo da população pela derrota na guerra recente; pela inflação; pelas greves; pela constante turbulência política etc. Hitler soube capitalizar o momento. 

Para os objetivos do austríaco, sua prisão, seu julgamento e seu livro foram o trampolim ideal.

O livro se apoia em uma base falsa para legitimar seu discurso xenófobo: o argumento da "facada nas costas". Uma versão cômoda e simplória, amplamente disseminada na Alemanha do pós-guerra, a título de justificativa para a derrota.

Bem, nesse meio todo mundo tem uma justificativa externa para o fracasso.

Mas, aqui, ser ou não uma desculpa é irrelevante; pois o que importa é o apelo à vingança e à reação que seu autor habilidosamente construiu ao redor da lenda.

Vale abrir um parêntese: a tal facada nas costas teria sido uma hipotética traição da Wehrmacht pelo governo alemão, que negociou a rendição sem que o exército alemão tivesse sido derrotado; balela. Como se diz hoje, uma versão que não para em pé. Nos quatro meses finais da guerra, a Alemanha vinha tendo mais baixas que ingleses, americanos e franceses; perdia divisões e também território: a cada dia recuava mais. Inteligentemente, propôs depor as armas antes que o inimigo estivesse em solo alemão, poupando o país de ser invadido e de sofrer o que ela havia feito franceses, belgas e holandeses sofrerem.

Fecha parênteses.

Com a rendição militar, os que tinham passado os últimos quatro anos ganhando a vida no front ficaram desempregados. 

Não vou me estender em detalhes da WWI aqui, mas, aos que têm interesse nos seus desdobramentos, sugiro a leitura dos excepcionais "Os sonâmbulos", de Christopher Clark; a "Primeira Guerra Mundial", de Martin Gilbert; e "O horror da guerra", de Niall Ferguson  - você encontra a resenha de todos eles aqui mesmo no blog, basta digitar na busca.

O primeiro destrincha as intrincadas razões que levaram a Europa a se lançar em uma carnificina sem proporções; o segundo descreve a movimentação de todas as forças envolvidas, em cada um dos seus treze teatros de guerra, ao longo de quatro anos; e o terceiro faz o balanço contábil dos esforços econômicos que sustentaram a guerra até o seu esgotamento final.

Nas próximas semanas posto aqui também a resenha de "Nada de novo no front", que conta justamente a rotina de um soldado alemão ao longo dos quatro anos de guerra, de 1914 a 1918. Erich Maria Remarque produziu um clássico que em breve completa um século do seu lançamento.

Já o livro sobre o qual vamos nos deter agora foi escrito sete anos após o fim da Primeira Guerra Mundial, por um personagem inexpressivo (então). Mas, no pós-guerra, sua atuação como orador ensandecido e a engenhosa estrutura que montou ao redor de si mesmo - o partido nazista -, fizeram dele o personagem determinante dos rumos do século XX.

Daí a relevância da leitura.

Não só. A despeito dos justificados senões que alinhavei, Mein kampf antecipa tim-tim por tim-tim todas as ações que viriam a ser implementadas por Adolf Hitler durante seus doze anos de poder. As atrocidades já estão todas lá incubadas nos quinze capítulos do seu livro de propaganda.

A edição que tenho em mãos, brasileira, traz os dois volumes: o primeiro, lançado em 1925, com sua visão de mundo e da Alemanha; o segundo, publicado em 1926, é mais um instrumento partidário. Ao longo de suas 427 páginas (paginação da edição em português, impressa em corpo 8, espaçamento 1 e absurdas 54 linhas por página - as quais, numa composição gráfica mais palatável, equivaleriam no mínimo a 700 páginas), Adolf Hitler afirma e repete incontáveis vezes o que pretendia fazer para concretizar o futuro glorioso que previa para a Alemanha.

O país tinha então, em 1925, sessenta e sete milhões de habitantes e era uma das principais forças europeias (sete anos após o fim da Primeira Guerra, a economia alemã já havia parcialmente se recuperado). No cenário desenhado por Hitler, porém, a Alemanha era uma ex-potência, um país humilhado e sob o risco de ter sua existência eliminada da face da terra.

Como veremos em trechos que vou reproduzir - para que você tenha uma noção mais precisa do texto genuíno escrito por Hitler, traduzido diretamente da versão original em alemão -, o meganha defendia que era preciso transformar a Alemanha na maior potência do globo, multiplicando sua população e seu território, a ser tomado dos países vizinhos. Pretendia exterminar os russos, os poloneses, os franceses e os judeus. "Precisava" fazer isso, porque o objetivo destes inimigos - segundo Hitler - era exterminar os alemães e riscar para sempre a Alemanha do mapa.

Ele foi mal-sucedido em tudo que tentou e estava errado em tudo que pensou. O que ele dizia ser a verdade, acreditando ele ou não no próprio discurso, era um grande equívoco. O seu erro colossal diminuiu a Alemanha, submeteu todo o leste da Europa ao domínio comunista e conduziu os Estados Unidos ao posto de maior nação do mundo.

Uma pequena parte dos judeus aos quais ele se dedicou a assassinar fugiu para o deserto e num fiapo de terra que teria sido a origem dos seus ancestrais ergueu um dos países mais poderosos (e criativos) do planeta. O esquálido e feioso povo sem terra ganhou uma pátria (ainda controversa) e se tornou um dos maiorais.

Para que tudo isso acontecesse, com uma singular ajuda do livro do qual falamos agora, Hitler chegou ao poder, criou uma máquina de guerra e sua operação resultou na morte sanguinária de sessenta milhões de pessoas, sendo um quinto delas de origem alemã.

Em Mein Kampf, Hitler destacava, em itálico, a importância de estabelecer as prioridades em política externa de um Estado nacionalista:

"O dever da política externa de um Estado nacionalista é assegurar a existência da raça incluída no Estado, estabelecendo uma proporção natural entre o número e o crescimento da população, de um lado, e, do outro, a extensão e a qualidade do solo."

Para quem visava multiplicar o povo (a tal raça), os resultados foram tímidos, mesmo que vistos quase um século depois, já com os efeitos da matança na guerra mitigados. A Alemanha tem hoje 83 milhões de habitantes, 20% a mais que a sua população de imediatamente antes da guerra. Um índice de crescimento demográfico muito menor, porém, daquele ostentado pelos países que a derrotaram. Os ingleses têm atualmente 42% habitantes a mais do que em 1939, os franceses cresceram 54% e os americanos têm uma população 154% maior em igual período. Uma derrota acachapante para a nação alemã em termos de volume populacional (com repercussão na produtividade, na economia e no eventual tamanho das forças armadas).

Vale destacar uma afirmação numérica de Hitler, baseada não na população da Alemanha, mas sim no total de alemães étnicos vivendo no continente:

"Existem hoje oitenta milhões de alemães na Europa. E só se haverá de de considerar que nossa política foi bem conduzida quando, depois de aproximadamente cem anos, houver duzentos e cinquenta milhões de alemães vivendo nesse continente."

Passaram-se noventa e sete anos e o número de alemães, como vimos há pouco, são oitenta e três milhões. A cifra esperada para uma expansão demográfica de 170 milhões de alemães limitou-se a ralos 3 milhões, em um reich de 1000 anos que durou 12. A matemática foi madrasta para seus planos megalomaníacos.

E, pior, seu território encolheu. Mesmo depois da reunificação das Alemanhas. uma enorme fração do leste germânico (incluindo praticamente toda a Prússia) foi reincorporada à Polônia em 1945. E o sujeito que prometeu uma Germany Great Again, como todos sabemos - e eu já comentei lá em cima -, passou os últimos meses de vida enfiado num buraco e covardemente preferiu dar um tiro na cabeça a se dispor a trocar tiros com o inimigo.

Dito isto, não esqueça: para ler "Mein Kampf" e todo o criminoso futuro de glórias arianas que ele prometia, com o aniquilamento e escravização de todas as demais raças inferiores, convém lembrar que suas ideias eram asneiras requentadas e a consequência prática de sua implementação foi a (auto) destruição da Alemanha.

Repare que uma coisa que jamais entrou no cérebro contaminado deste austríaco é que quem tem raça é cachorro. E ele não escreve meio parágrafo sem que o mimimi de raça venha à tona. Na verdade, este é apenas um dos temas que ele repete compulsivamente. Mas não o único.

Sua obsessão no que tange aos judeus permeia todo o texto. Difícil que haja duas ou três páginas sem que ele recomece seu estoque de imprecações contra o poder do judaísmo internacional - uma força que estaria por trás dos ingleses, dos franceses, dos russos e dos norte-americanos; e também de todos os alemães que não pensassem como ele, Hitler. 

Os jornais alemães, a indústria alemã, o ensino alemão, a política alemã, a arte alemã - na sua visão primária e distorcida, tudo estaria impregnado pela presença judaica, corrompendo o puro sangue ariano. Que Hitler, aliás, já não imaginava tão puro assim, apavorado com a raça negra: "O sangue alemão está sendo contaminado por hordas de negros africanos."

E, afora a ladainha virulenta contra os judeus, o fio condutor do livro é a sua não aceitação da derrota alemã na Primeira Guerra Mundial e a convicção de que o mundo estava contra a Alemanha. Na cabecinha de Hitler, como já dissemos, os demais povos queriam exterminar a nação alemã. Portanto, restava a ele, em nome dos alemães, exterminar o resto do mundo primeiro.

Por incrível que pareça, o parágrafo acima resume toda a monocórdia peroração que se estende pelas centenas de páginas com que seu autor nos aborrece.

Afinal de contas, o que é que o Adolf fala nesse livro?

Primeiro, ele detona o seu país de origem (a Áustria) e toda a história da sua formação. Chama o império austro-Húngaro de "Estado babilônico", diz odiar os Habsburgo e revela ter simpatizado com os socialistas, porque eles lutavam pelo voto secreto e universal - o que redundaria na deposição do Imperador, acreditava.

Segue num morde-assopra, ora espinafrando, ora empavonando. Depois de esculachar todas as instituições austríacas, deu um aceno à uma futura comunhão: "O destino desse Estado é tão intimamente ligado à vida e ao crescimento do povo alemão, que uma separação entre a história alemã e a austríaca parece impossível."

(Em tempo: o Anschluss, a anexação da Àustria, foi a primeira invasão promovida pela Alemanha nazista, em março de 1938.)

Mas revela ignorância sobre as razões que levaram o país a dar o pontapé inicial na Primeira Guerra Mundial: "Para a Alemanha foi uma felicidade que a guerra de 1914, embora indiretamente, irrompesse por intermédio da Áustria, obrigando os Habsburgo a nela terem tomado parte."

A Áustria, na ocasião, serviu como boi de piranha para as pretensões bélicas da Alemanha, que desejava o conflito e insuflou os Habsburgo a declarar guerra à Croácia, por conta de um atentado... sérvio. Nem austro-húngaros, nem croatas, queriam a guerra que os alemães ansiavam. 

Afirma se considerar um grande leitor e "ensina" como ler um livro. Perceba que, com seu fino entendimento das intenções ocultas por trás das palavras, Hitler já antecipava os políticos atuais, xingando a mídia da época. Dá para aproveitar a análise que faz, de um tema simples, para termos uma noção do seu linguajar empolado:

"Que diferença entre as cintilantes frases de liberdade, beleza e dignidade da literatura teórica, entre o fogo-fátuo do palavrório que laboriosamente, aparenta a mais profunda e irresistível sabedoria, pregada com uma segurança profética, e a brutal virtuosidade da mentira da imprensa diária que trabalhava pela salvação da nova humanidade sem recuar ante nenhuma objeção, usando de todos os recursos da calúnia!"

Sentiu o fraseado? Em seguida o autor sobe um degrau na sua inflamação e conclui: "Uma é destinada aos estúpidos das camadas intelectuais médias e superiores, a outra às massas."

Antes de se aventurar na leitura, considere que os dois livros são formados por algo em torno de 4.600 parágrafos desse quilate. Daí dá para entender porque um neonazista brasileiro vai precisar de uma disposição incomum para ir além da segunda página. Vai dar uma folheada, tirar uma selfie mostrando a capa e postar orgulhoso na deep web. Mas, ler, não vai não. Para essa rapaziada, é bem mais simples colocar fogo num mendigo ou juntar uma turma pra emboscar um inocente qualquer da tribo LGBT. 

No seu Mein Kampf, Hitler falava de um tudo. Na economia, enxergava um exótico conluio entre a Bolsa de Valores e o marxismo:

"Um sintoma da ruína econômica foi a lenta eliminação do direito de propriedade individual e a passagem gradual da economia do povo para a propriedade das sociedades por ações. Por esse sistema, o trabalho desceu a objeto de especulação dos traficantes sem consciência. A alienação da propriedade aos capitalistas progrediu. A Bolsa começou a triunfar e preparou-se a por, lenta, mas firmemente, a vida da nação sob sua proteção e controle. Antes da guerra, a internacionalização dos negócios alemães já estava em andamento, sob o disfarce das sociedades por ações. (...) Houve uma investida combinada do capitalismo ambicioso, auxiliado pelos seus aliados do movimento marxista."

Você entendeu? Ele acreditava que a Bolsa de Valores iria dominar o mundo, ou seja, ela não seria um instrumento do capitalismo, e sim uma espécie de agente demoníaco. E, pior, o marxismo estava por trás da Bolsa, numa inimaginável joint-venture entre capitalistas e comunistas contra o ingênuo povo alemão.

Difícil de juntar lé com cré. Passagens como estas provam, sobejamente, como este texto tem seu poder superestimado. É decerto um catalisador, mas virou praxe tomá-lo como símbolo da força do discurso nazista. O livro foi, em si, um apetrecho muito mais inofensivo do que a mística posteriormente criada ao redor dele. 

A este propósito, em seguida vou postar aqui o excepcional "A história de Mein Kampf", um livro contemporâneo, escrito pelo jovem francês Antoine Viktine. Ainda que discordemos em muita coisa, sua obra é admirável. Veremos isso em breve.

Por falar em concordâncias e discordâncias, uma coisa da qual não posso discordar é a visão de Adolf sobre a performance de qualquer sujeito investido de um cargo político. Ele possuía uma visão acre destes personagens, que via como corruptos fundamentais:

"Um tipo de homem cujo único sentimento verdadeiro é a falta de sentimento, ao lado de uma arrogante impertinência e uma descarada arte de mentir. Se por infelicidade dos homens decentes, um sujeito desses chega ao parlamento, deve saber-se desde logo que para ele a essência da política consiste apenas numa luta heroica pela posse duradoura de uma mamadeira para si e para a sua família."

Atual, não? Em resumo, o polêmico ex-cabo do exército alemão via o político como alguém que queria apenas f... com o povo. 

Por falar nisso, de acordo com os seus biógrafos, Adolf não era muito chegado em sexo. Curioso é que no seu livro ele relacionava o interesse sexual à atividade intelectual. Na sua misoginia, acreditava que a prática da atividade física saciava o corpo: "O valor excessivo dado à cultura intelectual dá origem, antes do tempo, às solicitações sexuais. O jovem que se fortalece nos desportos e nos exercícios de ginástica está menos sujeito a capitular ante a satisfação dos seus instintos do que aquele que vive, sedentariamente, no gabinete de estudo."

Eu, ehm.

Mas não era somente sobre sexo que ele dava seus pontos-de-vista. O futuro führer do Reich de Mil Anos tinha opinião sobre tudo, inclusive sobre fecundação.

No capítulo XI, "Povo e raça", Hitler se arvora a dar palpites sobre reprodução biológica. Ele envereda por uma argumentação rastaquera ("Cada animal só se associa a um companheiro da mesma espécie, a cegonha com a cegonha, o rato com o rato, o lobo com a loba"), para concluir que "todo cruzamento entre dois seres de situação um pouco desigual na escala biológica dá, como produto, um intermediário entre os dois pontos ocupados pelos pais. Significa isto que o filho chegará provavelmente a uma situação mais alta do que a de um dos seus pais, o inferior, mas não atingirá a altura do superior em raça. Mais tarde será, por conseguinte, derrotado na luta com os superiores".

Que lambança, ehm? a única coisa curiosa é o comentário do autor sobre o cruzamento entre "raças" diferentes: "A Natureza defende-se por todos os meios e seu protesto mais evidente consiste ou em privar futuramente os bastardos da capacidade de procriação ou em limitar a fecundidade dos descendentes futuros."

O texto, maluco, dá subsídio à hipótese que é a base de "O castelo na floresta", de Norman Mailer, que argumenta que a ascendência de Adolf Hitler é uma sucessão de incestos e bastardos. Como o próprio Adolf aqui crê que bastardos não deixam prole substanciosa, ele é uma prova viva (morta, vai, com um tiro na própria cabeça) da teoria, pois não deixou descendentes.

Talvez sequer tenha cumprido as etapas protocolares ente homem e mulher necessárias para fazê-los. 

Mas qual é então a propalada ideia de Adolf Hitler sobre raça, mesmo? vamos deixar que ele próprio se explique. Argumenta que o desenvolvimento da civilização ariana se deu por conta da subordinação dos inferiores: "Sem a possibilidade de empregar gente inferior, o ariano nunca teria podido dar os primeiros passos para sua civilização, do mesmo modo que sem a ajuda dos animais nunca teria alcançado uma técnica."

Hitler não só considerava os seres humanos não-arianos como equivalentes a animais, como se acreditava um benfeitor destes povos inferiores:

"O ariano, com sua autoridade de conquistador, submeteu os homens inferiores, regulando a atividade prática dessas criaturas, conforme a sua vontade e visando seus próprios fins. Enquanto assim conduzia os vencidos para um trabalho útil, embora duro, o ariano poupava, não só as suas vidas, como lhes proporcionava talvez uma sorte melhor do que dantes, quando gozavam a chamada liberdade."

Para entender melhor a teoria, podemos trocar isso em miúdos, para o que seria a nossa realidade: nós, sul-americanos, brasileiros, mestiços, somos úteis como são os animais, e servir como escravos aos arianos seria melhor do que desfrutarmos da liberdade. Para você que não sabia como funcionava a sofisticada teoria racial do Adolf, taí um exemplo. Você teria por ápice na vida se tornar um burro de carga e, penhorado, agradecer de joelhos que um ariano gordo te montasse.

E não é viagem minha. Hitler fala especificamente de nós, sul-americanos, em seu livro de 1925.

"A América do Norte, cuja população, decididamente, na sua maior parte, se compõe de elementos germânicos, que só muito pouco se misturaram com povos inferiores e de cor, apresenta outra humanidade e cultura do que a América Central e do Sul, onde os imigrantes, quase todos latinos, se fundiram, em grande número, com os habitantes indígenas."

Baba o ovo dos americanos, que não seriam adeptos da miscigenação, e condena os miscigenados (nós) a eternos esparros do branquelo 100%:

"O germano do continente americano elevou-se até a dominação deste, por se ter conservado mais puro e sem mistura; ali continuará a imperar."

O conceito de raça, no discurso estrambólico de Hitler, era a suma prioridade do Estado. E a lei poderia ser posta de lado se a "raça" estivesse em "perigo":

"De um modo geral, não se deve esquecer nunca que a conservação de um Estado ou de um governo não é o mais elevado fim da existência humana, mas o de conservar o seu caráter racial. Caso este se ache em perigo de ser dominado ou eliminado, a questão da legalidade terá apenas importância secundária."

Se toda essa diferença entre os seres humanos se baseava na distinção racial, como Hitler via esta questão sob o prisma, digamos, da genética?

"Se, por exemplo, em uma determinada raça, um indivíduo cruza com outro de raça inferior, o resultado imediato é a baixa do nível racial e, depois, o enfraquecimento dos descendentes, em comparação com os representantes da raça pura. Proibindo-se absolutamente novos cruzamentos com a raça superior, os bastardos, cruzando-se entre si, ou desapareceriam, dada a sua pouca resistência, ou, com o correr dos tempos, através de misturas constantes, criariam um tipo em que não mais se reconheceria nenhuma das qualidades da raça pura. Assim se formaria uma nova raça com uma certa capacidade de resistência passiva, mas muito diminuída na importância da sua cultura em relação à raça superior do primeiro cruzamento. Nesse último caso, na luta pela existência, o bastardo será sempre vencido, enquanto existir, como adversário, o representante de uma raça pura."

Aqui no Brasil a gente fez essa mistureba toda e vimos no que deu. O futebol dá uma mostra. Pelé, Garrincha, Didi, Jairzinho, Romário, Ronaldinho, Neymar etc um monte de bastardos sempre vencidos... ops, não funcionou assim, não. Tem alguma falha nessa teoria aí. 

Mas Hitler acreditava que os animais foram úteis nos tempos primitivos e que agora, face ao progresso, são desnecessários. O mesmo papel de irrelevância caberia ao ser humano inferior. Para exemplificar, se vale daquilo que, segundo ele, constitui uma expressão popular: "O negro já fez a sua obrigação, pode se retirar". Que ditado esquisito. Deve ter sido popular lá na Bavária.

Ainda sobre o negro, ele aproveita para traçar um paralelo entre animais e homens inferiores: "Aqui ou ali, pela primeira vez um negro tornou-se advogado. Enquanto a burguesia fica admirada de um tão maravilhoso adestramento, o judeu esperto tenta inculcar no público que todos os homens são iguais."

Ou seja, o negro "adestrado" causa admiração e o judeu "se aproveita" da existência do tal negro, em prol daquela estranha tese judaica de que todos os homens são iguais. Adolf, não satisfeito, se torna mais e mais veemente:

"É um ultraje à nossa razão , uma criminosa idiotice, adestrar, durante muito tempo, um meio-macaco, até que ele acredite que se fez advogado".

Afonso Arinos neste débil mental. Encarcerado enquanto escrevia o livro, Adolf reputava aos judeus a existência dos negros na Europa: "Foram e continuam sendo os judeus os que trouxeram os negros até o Reno, sempre com os mesmos intuitos secretos e fins evidentes, a saber: bastardizar à força a raça branca, por eles detestada."

É o tiozão do elevador falando merda. Tô dizendo. E não era só sobre sexo e genética que o antigo mensageiro austríaco tinha esse olhar. Sua interpretação da democracia era sui-generis:

"A Democracia se tornou o instrumento de uma raça que, para a consecução de seus objetivos, tem de evitar a luz do sol, agora e sempre. Ninguém, a não ser um judeu, pode estimar uma instituição que é tão suja e falsa quanto ele próprio."

Que isso. Espezinhou a democracia e ainda disse que democracia é coisa de judeu, ou seja, a pior coisa do mundo. Culpou o judeu também pelo fluxo migratório das etnias de origem africana. Este é um bom gancho para, enfim, vermos algumas coisas que Adolf dizia sobre os judeus.

Entre as incontáveis pérolas do texto, uma é aquela em que Adolf Hitler relata como "se tornou" antissemita, depois de muitos esforços para resgatar os judeus da sua ignorância.

"Na minha ingenuidade de jovem, acreditei poder evidenciar os erros da sua doutrina, (...) esforçava-me por convencê-los da perniciosidade dos erros do marxismo e pensava atingir esse objetivo, mas o contrário é que acontecia sempre. Parecia que o exame cada vez mais profundo da atuação deletéria das teorias sociais democráticas nas suas aplicações servia apenas para tornar ainda mais firmes as decisões dos judeus."

Embora ele não contextualize, esta era a época em que ele morava em um abrigo em Viena, depois de torrar a grana deixada pelo pai, alto funcionário público. Enquanto um parceiro (conquistado no abrigo) ia para a rua vender suas aquarelas turísticas por uns caraminguás, o jovem Adolf se dedicava à correção dos judeus: "Quanto mais eu contendia com eles, melhor aprendia a sua dialética. Partiam eles da crença na estupidez dos seus adversários e quando isso não dava resultado fingiam-se eles mesmos de estúpidos. Se falhavam esses recursos, eles se recusavam a entender o que se lhes dizia e, de repente, pulavam para outro assunto."

Sempre confundindo numa panela só marxismo e judaísmo, Adolf confessa sua dificuldade em convencer seus interlocutores e que resolveu se empenhar a fundo em estudar o marxismo, pois "a solução que se impunha, como última tábua de salvação, era a luta com todas as armas que pudessem abraçar a razão e a vontade dos homens, mesmo se a sorte do combate fosse duvidosa. Assim comecei a entrar em contato com os fundadores da doutrina a fim de poder estudar os princípios em que se fundava o movimento marxista. Consegui esse objetivo mais depressa do que me seria lícito supor, devido aos conhecimentos que possuía sobre sobre a questão semítica, embora ainda não muito profundos. Essa circunstância tornou possível uma comparação prática entre as realidades do mesmo e as reivindicações teóricas da social-democracia, que tanto me tinha auxiliado a entender os métodos verbais do povo judeu, cuja principal preocupação é ocultar ou pelo menos disfarçar os seus pensamentos."

A compreensão dele do que seria o marxismo é para lá de rasa. Aliás, dele e de toda a torcida do Flamengo. Quem tiver interesse genuíno no pai do marxismo - Karl Marx, o próprio -, sugiro a leitura da ótima biografia escrita por Gareth-Jones, cuja resenha você também encontra aqui no blog. Mas, saindo de Karl e voltando pro Adolf, o mais impactante do seu envolvimento com os judeus de Viena é o gran finale.

"Foi por esse tempo que se operou em mim a maior modificação de ideias que devia experimentar. De inoperante cidadão do mundo passei a ser um fanático antissemita."

Pegou essa? de um generoso colaborador filosófico dos teimosos hebreus, ele resolveu se transformar no exterminador da raça toda. 

Já ciente do enorme perigo que rondava a vida no planeta, Hitler esboçava severas consequências para o globo terrestre em se permitindo a continuidade da existência de judeus:

"A doutrina judaica do marxismo repele o princípio aristocrático na natureza. Contra o privilégio eterno do poder e da força do individuo levanta o poder das massas e o peso-morto do número. Nega o valor do individuo, combate a importância das nacionalidade e das raças, anulando assim na humanidade a razão da sua existência e de sua cultura. Por essa maneira de encarar o universo, conduziria a humanidade a abandonar qualquer noção de ordem. E como nesse grande organismo, só o caos poderia resultar da aplicação desses princípios, a ruína seria o desfecho final para todos os habitantes da Terra."

Tente visualizar a terra vagando desolada pelo espaço, como uma garrafa pet no oceano.

"Se o judeu, com o auxílio do seu credo marxista, conquistar as nações do mundo, a sua coroa de vitórias será a coroa mortuária da raça humana e, então, o planeta vazio de homens, mais uma vez, como há milhões de anos, errará pelo éter."

Era a imagem que ele fazia do perigo do componente judeu na sociedade - representando, estatisticamente, 0,8% do povo alemão. Arredondando, eram 99 arianos para cada judeu em solo germânico. E Adolf se sentia profundamente ameaçado, tomado de um pânico bíblico.

"Por isso, acredito agora que ajo de acordo com as prescrições do Criador Onipotente. Lutando contra o judaísmo, estou realizando a obra de Deus."

Temos aqui um austríaco cristão de bigodinho, que defende uma supremacia ancestral ariana (lembrando que as crenças atavicamente arianas eram baseadas no politeísmo, com destaque para Odin, Thor, Loki, Frey, Hel etc), dizendo que o Criador Onipotente (não por acaso, o deus dos judeus) desejaria a extinção dos... judeus (!), os mesmos que nele acreditavam desde os tempos de Moisés e a quem sempre seguiram. E Deus os preteriria em prol dos nórdicos politeístas adoradores de runas. O autêntico samba do ariano doido.

Ele inclusive botava fé numa cloroquina da época, talvez a maior fake news de todos os tempos (que rendeu inspiração para o ótimo "O cemitério de Praga", de Umberto Eco, que você também encontra resenhado aqui no blog), "Os Protocolos dos sábios de Sião". 

O livreto bombou no início do século, uma farsa financiada pelo governo russo que atribuía aos judeus um plano de dominação do mundo. O enredo era ingênuo como se por aqui surgisse um livro,  escrito a quatro mãos pelo Moro e pelo Dallagnol, com o título auto-incriminador de "Como caluniar o Lula, trair o Bolsonaro e tomar o controle do Brasil".

Hitler tece comentários reverentes sobre a bobajada russa e aposta na eficácia da cloroquina: "Os Protocolos mostram a que ponto a existência deste povo é baseada em uma mentira ininterrupta. 'Tudo isto é falsificado', geme de novo o Frankfurter Zeitung, o que constitui mais uma prova de que tudo é verdade." 

Além de defender a farsa dos protocolos como se fosse legítima, Adolf cria sua própria História - crendo, com certa dose de razão, que a ignorância coletiva engoliria de bom grado qualquer versão estapafúrdia que soltasse. Líderes carismáticos são venerados. Na Alemanha de 1925 e no Brasil de 2022.

"O judeu popular e democrático se transforma no judeu sanguinário e tiranizador dos povos", diz ele, para, em seguida, proclamar que o "exemplo mais terrível nesse gênero é apresentado pela Rússia, onde o judeu, com uma ferocidade verdadeiramente fanática, trucidou cerca de trinta milhões, alguns por meio de torturas desumanas, outros pela fome". 

Negacionismo lelé e inversão histórica. Ao contrário do afirmado, nos pogroms executados por russos, lituanos e ucranianos, os judeus continuavam sendo perseguidos e queimados. O russo que matou milhões foi o georgiano Josef Stalin, que rivalizaria com Hitler como o maior criminoso do século.

Adolf Hitler reputa também aos judeus a belicosidade que havia entre prussianos e bávaros (ambos povos alemães, geograficamente opostos, algo como se fosse uma rixa entre paulistas e cearenses). Chega a dizer, em 1925: "Eu não podia tolerar essa maldita luta entre filhos do mesmo povo". A preocupação dele com os "filhos do mesmo povo" é pura retórica - a se basear na sua conduta à frente do governo alemão. Porque nove anos depois, em 1934, um despreocupado Hitler orquestrou e ordenou o assassinato de centenas de alemães que considerava politicamente inconvenientes. A chacina passou para a história com o nome de "A noite dos longos punhais".

Em suma, o raciocínio do mensageiro austríaco era que o judeu sabotava a pureza racial alemã para poder dominá-la - já que o judeu jamais dominaria um ariano 100% puro, ou seja, um belo espécime racial do tope do seu ministro da propaganda Joseph Goebbels (um magrelinho moreno, com 1,64m de altura, um nariz avantajado, com uma queda por amantes caras e soldados grandes).

Acho que já deu de judeu. 

Porque nem só de judeus e chororô derrotista é feito o livro. Há partes com conceitos interessantes e há também uma peculiar visão da época, de uma Alemanha em crise e de uma Europa em convulsão.

Dezenas de páginas são gastas com reflexões sobre política externa, e muitas mais sobre como influenciar na política interna. Como o partido nazista foi idealizado e formado. Como a Alemanha deveria agir para recuperar o espaço perdido. Em meio a devaneios e sonhos totalitários, há certamente uma meia-dúzia de detalhes interessantes a observar aí.

Mas, antes de mencioná-los, convém desfazer uma lenda. Entre os muitos estereótipos que se acumulam sobre o simplório cabo austríaco - que chegou a ter mais da metade da Europa a seus pés - está o de "gênio militar". Mas nem de longe. Ele apostou em uma tática inovadora - a blitzkrieg, um ataque relâmpago, que seria uma ofensiva militar possante e coordenada, executada em curto espaço de tempo (o equivalente ao arrastão nas praias cariocas, só que com tanques e bombardeio aéreo) -, mas que funcionou, inovação que era, por um tempo limitado, quase que restrita aos dois anos iniciais da guerra.

A partir do último trimestre de 1941, início do inverno europeu, os alemães morreram muito e mataram muita gente, mas praticamente só cederam terreno. Durante mais de dois terços da guerra, os alemães recuaram. Decisões estúpidas, questionadas pela maioria dos seus generais, levaram a Alemanha a entregar o que conquistara e a perder o que havia sido sempre dela.

O cronograma da derrocada é minuciosamente exposto em dezenas de obras e estudos, notadamente nos de seus principais biógrafos, o alemão Joachin Fest e o inglês Ian Kershaw. São ambos leitura obrigatória para quem quer entender o que se passou, resenhados também aqui no blog (o do Kershaw, espetacular, estou deixando para o fim desta série).

Mas a guerra seria o porvir, ainda não acontecida quando da redação do livro que é o nosso tema aqui. E, se trocentas vezes tivemos que antecipar aqui resultados que iriam acontecer lá na frente, é porque não dá para abstrair as afirmações que ele fez quando publicou seu livro daquilo que nós sabemos que aconteceu alguns anos depois, evidenciando um descompasso crasso entre previsão e concretização.

Porque o texto de "Mein kampf" exibe um outro tipo de gênio: o da propaganda, com uma compreensão sofisticada da oratória. Seus trechos quanto ao impacto da retórica sobre as massas parecem ter sido escritos hoje, em tempos de redes sociais, tão acurados que são.

Se as ideias professadas por Adolf Hitler em seu livro mítico são tão desconectadas do conhecimento e do bom senso, sua percepção sobre a propaganda é, não raro, brilhante. Hitler seria hoje certamente um gênio da comunicação, tão visionários são seus conceitos sobre abordagem do eleitorado e estratégia de convencimento das massas.

(Isto não esconde, porém, o primitivismo das suas concepções toscas sobre a História e as civilizações. No âmago das suas convicções, Hitler foi sempre um louco de hospício.)

Para utilidade pública, vale darmos uma olhada no seu aguçado tirocínio sobre tudo o que envolvia a propaganda, o marketing e a comunicação de massa (lembrando sempre que propaganda, em termos de discurso político, é a divulgação de conteúdo ideológico e não um sinônimo de publicidade, como utilizamos em português).

"O ano de 1921 teve para o movimento uma importância capital. Depois da minha entrada no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, tomei imediatamente conta da direção da propaganda. Eu tinha este setor, naquele momento, como o mais importante de todos."

O Hitler analista da comunicação de massa está longe de ser um tolo. Sua percepção do entendimento popular, e como galvanizá-lo, é digna dos melhores marqueteiros políticos, um século depois.

"Um grande teórico é raramente um grande organizador, pois o valor do teórico consiste, em primeiro lugar, na noção de definição de leis abstratamente exatas, enquanto o organizador deve ser em primeiro lugar um conhecedor da psicologia popular. Deve ver os homens como eles são na realidade, tanto sua fraqueza como seu aspecto instintivo."

Quando fala na "fraqueza" dos homens, isso fica melhor compreendido em uma outra passagem, quando ele se refere ao "estúpido rebanho de nosso povo". A estupidez, aqui, talvez não seja mera ofensa, ou desprezo, e sim parte de um processo de compreensão e indutor de uma estratégia.

"A faculdade de assimilação das massas é extremamente restrita, sua compreensão, curta, mas em compensação sua falta de memória é grande. Assim, toda propaganda eficaz deve limitar-se a pontos muito pouco numerosos, exaltando-os à base de fórmulas estereotipadas pelo tempo que for necessário, até que o último dos ouvintes seja capaz de compreender a ideia."

Acredito que qualquer marqueteiro top 5 atual assinaria embaixo desta afirmação. Este grau medíocre de assimilação do mundo ao seu redor, bem como a facilidade com que são conduzidas e manipuladas, faz das massas antigas e atuais a matéria prima perfeita para o político mal-intencionado. A esmagadora maioria, há quem diga.

Crítico da democracia, como todos os populistas carismáticos, ele se vale dela para chegar ao topo. As massas se deixam seduzir por discursos. Hitler não só era bom no discurso, como era tão bom quanto na análise que fazia das táticas de persuasão.

"Cheguei à conclusão de que todos os acontecimentos importantes, todas as revoluções mundiais, não são jamais fruto da palavra escrita, mas, ao contrário, são sempre produzidas pela palavra falada."

Este é o ponto. E o ponto não está no livro, que é a palavra escrita. O próprio Hitler sabia que seu livro tinha um alcance limitado. A oratória era o segredo. A capacidade de energizar, seduzir e mesmerizar. Ele próprio confessa, em seu texto:

"O povo, na sua grande maioria, é de  índole feminina tão acentuada, que se deixa guiar, no seu modo de pensar e agir, menos pela reflexão do que pelo sentimento."

Bem, há que se colocar um ponto final. Se passamos a última meia hora falando de Mein Kampf, do seu poder e do seu significado, acho que já está bom. Espero ter contribuído para saciar o conhecimento daqueles que têm curiosidade, mas que não têm o livro à mão e, por aversão ao seu conteúdo, nem gostariam de tê-lo; e, em o tendo, não lhes agradaria lê-lo; ainda que, no íntimo, quisessem sabê-lo.

Por isso eu me propus aqui a uma análise informal da narrativa desse que é, com certeza, um dos textos mais polêmicos da História. 

O livro tem o status que tem porque seu autor chegou ao poder na Alemanha, armou o exército, executou os inimigos, invadiu os países vizinhos, destruiu cidades, dizimou populações, assassinou os civis, abriu sucessivas frentes de guerra, bombardeou capitais, afundou navios, recuou em todos os terrenos, perdeu as batalhas, instigou a invasão do próprio país, provocou a transformação do território alemão em um monte de ruínas, conduziu à morte milhões de pessoas da sua própria população, para, enfim, acuado e em pânico, resolver se matar.

Esta é, resumidamente, a trajetória do autor do livro e o seu rastro de sessenta milhões de mortos.

O perigo permanente que seria a leitura do livro pela população contemporânea advém de passagens que professam disparidade racial, hoje inofensivas diante do poder de um simples meme. Outras partes de enorme importância são as que antecipam as intenções de Hitler, como as dezenas de parágrafos destinados à invasão de outros países e do aniquilamento de outros povos.

Para firmar posição e engabelar o populacho, ele se valia do sentimento de germanidade, a tal comunidade racial que estava em vias de ser exterminada.

"Nas fronteiras do país, mais de sete milhões estão gemendo sob domínio estrangeiro."

Para tanto, não escondia seus planos, e n o livro há dezenas de passagens explícitas: "Hoje estou convencido de que não se pode readquirir territórios perdidos por meio de discursos, mas pelo emprego de força."

Mas tudo isto é passado e não importa mais. A terra que Hitler tanto queria já não é mais valiosa. A tecnologia mudou o mundo e o excesso de terra serve para plantar batatas. Um mero iPhone compra três toneladas delas, e não precisa sequer ser feito no próprio país que tem a patente.

Visionários são aqueles que têm o dom de olhar o presente e enxergar o futuro. Já Hitler olhava o futuro e via o passado. Seus planos rasos levaram o país na direção errada; e sequer na direção errada ele conseguiu resultados. Na sua tentativa equivocada de ocupar as terras russas, ele dizimou milhões de russos e sacrificou milhões de alemães - e a consequência da carnificina foi a invasão das terras alemãs pelos russos, o estupro das mulheres alemãs pelos russos e a perda de quase metade do território alemão para constituir um novo país-satélite soviético - a hoje esquecida Alemanha Oriental.

E o pior é que as terras pretendidas não iam fazer a menor diferença.

Hitler conclamava o povo para ir à guerra e defendia o direito dos alemães de tomar dos outros as terras que queria para si.

"Os direitos humanos estão acima dos direitos do Estado. Se, porém, na luta pelos direitos humanos, uma raça é subjugada, significa isso que ela pesou muito pouco na balança do destino para ter a felicidade de continuar a existir neste mundo terrestre, pois quem não é capaz de lutar pela vida tem o seu fim decretado pela providência. O mundo não foi feito para os povos covardes."

Aceitando "raça" por "etnia", e entendendo por raça "subjugada" aquela que é dominada militarmente por um outro país em uma dada época, tem-se uma boa medida do universo de acertos de Hitler em seu livro: zero. Foram subjugados pelos alemães os poloneses, os austríacos, os tchecos, os dinamarqueses, os noruegueses, os franceses, os sérvios, os croatas, os húngaros, os gregos, os ucranianos, os estonianos, os lituanos e os russos; e pouco depois os alemães subjugadores foram ferozmente subjugados pelos russos, sofrendo uma invasão um pouquinho mais compassiva por parte dos ingleses e norte-americanos.

Mas, dito isto, o fato é que todos eles - inclusive os alemães - tiveram a felicidade de continuar a existir neste mundo terrestre, com boa parte destes países performando hoje bem melhor do que eram capazes de fazer antes da guerra.

Quanto à expressão o mundo não foi feito para covardes, sintomático que ela tenha sido escrita por alguém que não deu um único tiro durante a guerra, a não ser contra si próprio, em pânico com a chegada dos russos a Berlim.

A verdade é que não há nada a temer em "Mein Kampf". Os energúmenos que tiram do livro algum estímulo para cometer atrocidades podem chegar ao mesmo resultado com um reles supositório.

Ou dois, por garantia, no caso do primeiro não provocar o efeito desejado.

Editora Moraes, 427 páginas  | 1983 | Tradução integral e direta do alemão