"Mein kampf", por Adolf Hitler

domingo, janeiro 30, 2022 Sidney Puterman


Proibido em muitos países, "Mein kampf" é um livro desagradável. Além do simbolismo nefasto, é um enfileiramento de incongruências factuais, vomitadas em um estilo prolixo e afetado. Mas é uma peça histórica. Nela, a retórica histérica - sua marca pessoal, desde seus primeiros discursos nas cervejarias de Munique até o bueiro coletivo em que se matou - dita o ritmo professoral do suicida.

Você certamente conhece essa história. O aclamado filme "A queda" mostrou como a cúpula nazista terminou seus dias enfiada em um buraco de tatu, com os maiorais chupando balinhas de cianureto e atirando na própria cabeça.

Adolf Hitler, o führer, o líder ao redor do qual até o último instante gravitava esta turma, tinha antecipado parte desse fim catastrófico em um livro que escrevera vinte anos antes: o icônico Mein kampf. É sobre ele que vamos falar. Mas cada parte a seu tempo.

Mistificações idólatras a parte, seu conteúdo era basicamente uma peça de propaganda política. Sob este prisma, cumpriu exemplarmente seu papel, ainda que seu texto inchado e enfadonho tenha sido menos lido que vendido. Após seu autor chegar ao poder, se tornou um mimo do Estado aos noivos, nas cerimônias de casamento, e presença obrigatória na sala dos lares alemães patriotas.

Eu não ganhei, mas herdei. Um grande amigo que partiu para Berlim - justo para lá - teve que se desfazer de boa parte da biblioteca, e assim me tornei proprietário (provisório) do exemplar. E, por mais que me viesse à garganta a repulsa natural pelo significado da brochura para a História, isto não era justificativa para ignorar a publicação. Sem contar que ela ficou ali, me perturbando.

Gostando ou não, eu sabia que ia lê-la. E, reconheço, não gostei, porque - fundamental esclarecer - o livro é chato pacas.

Não somente seus contemporâneos, mas decerto o leitor atual, mesmo um que por uma disfunção qualquer seja simpático às diatribes racistas e belicosas distribuídas na obra, terá dificuldade em ler a dita cuja. Vou além: se neguinho disser que leu, não vou acreditar. Digerir o texto redundante e autorreferente do autor enjoa e dá úlcera. Duvida? Tenta só.

Pois eu já nas primeiras páginas percebi que a tarefa seria leve como subir a Igreja da Penha com um tirolês nas costas. Que dureza, ehm? Mas resolvi encarar. Ossos do ofício (de leitor).

Precisava conferir por mim mesmo, porque, a despeito de sua pretensão criminosa - o objetivo anunciado, e dezenas de vezes repetido, de matar centenas de milhares de pessoas inocentes e roubá-las -, é, como já disse, um texto histórico.

Havia da minha parte - acho que ainda há, da parte de quase todo mundo - um certo mal-estar em manusear o livro. É um texto associado ao momento em que a civilização desceu ao seu nível mais baixo, desde que passamos a chamá-la de "civilização".

Ou seja, o título é quase um vodu. Mas vamos desestigmatizá-lo.

Antes de mais nada, Mein kampf é um novelo político, desenrolado por um candidato a político. E, como sói acontecer com os políticos, mentiroso. E mais: oportunista. A Alemanha estava cem vezes mais conturbada do que é o Brasil hoje, para você ter uma ideia. Então era um prato feito para os políticos se criarem. Havia o inconformismo da população pela derrota na guerra recente; pela inflação; pelas greves; pela constante turbulência política etc. Hitler soube capitalizar o momento. 

Para os objetivos do austríaco, sua prisão, seu julgamento e seu livro foram o trampolim ideal.

O livro se apoia em uma base falsa para legitimar seu discurso xenófobo: o argumento da "facada nas costas". Uma versão cômoda e simplória, amplamente disseminada na Alemanha do pós-guerra, a título de justificativa para a derrota.

Bem, nesse meio todo mundo tem uma justificativa externa para o fracasso.

Mas, aqui, ser ou não uma desculpa é irrelevante; pois o que importa é o apelo à vingança e à reação que seu autor habilidosamente construiu ao redor da lenda.

Vale abrir um parêntese: a tal facada nas costas teria sido uma hipotética traição da Wehrmacht pelo governo alemão, que negociou a rendição sem que o exército alemão tivesse sido derrotado; balela. Como se diz hoje, uma versão que não para em pé. Nos quatro meses finais da guerra, a Alemanha vinha tendo mais baixas que ingleses, americanos e franceses; perdia divisões e também território: a cada dia recuava mais. Inteligentemente, propôs depor as armas antes que o inimigo estivesse em solo alemão, poupando o país de ser invadido e de sofrer o que ela havia feito franceses, belgas e holandeses sofrerem.

Fecha parênteses.

Com a rendição militar, os que tinham passado os últimos quatro anos ganhando a vida no front ficaram desempregados. 

Não vou me estender em detalhes da WWI aqui, mas, aos que têm interesse nos seus desdobramentos, sugiro a leitura dos excepcionais "Os sonâmbulos", de Christopher Clark; a "Primeira Guerra Mundial", de Martin Gilbert; e "O horror da guerra", de Niall Ferguson  - você encontra a resenha de todos eles aqui mesmo no blog, basta digitar na busca.

O primeiro destrincha as intrincadas razões que levaram a Europa a se lançar em uma carnificina sem proporções; o segundo descreve a movimentação de todas as forças envolvidas, em cada um dos seus treze teatros de guerra, ao longo de quatro anos; e o terceiro faz o balanço contábil dos esforços econômicos que sustentaram a guerra até o seu esgotamento final.

Nas próximas semanas posto aqui também a resenha de "Nada de novo no front", que conta justamente a rotina de um soldado alemão ao longo dos quatro anos de guerra, de 1914 a 1918. Erich Maria Remarque produziu um clássico que em breve completa um século do seu lançamento.

Já o livro sobre o qual vamos nos deter agora foi escrito sete anos após o fim da Primeira Guerra Mundial, por um personagem inexpressivo (então). Mas, no pós-guerra, sua atuação como orador ensandecido e a engenhosa estrutura que montou ao redor de si mesmo - o partido nazista -, fizeram dele o personagem determinante dos rumos do século XX.

Daí a relevância da leitura.

Não só. A despeito dos justificados senões que alinhavei, Mein kampf antecipa tim-tim por tim-tim todas as ações que viriam a ser implementadas por Adolf Hitler durante seus doze anos de poder. As atrocidades já estão todas lá incubadas nos quinze capítulos do seu livro de propaganda.

A edição que tenho em mãos, brasileira, traz os dois volumes: o primeiro, lançado em 1925, com sua visão de mundo e da Alemanha; o segundo, publicado em 1926, é mais um instrumento partidário. Ao longo de suas 427 páginas (paginação da edição em português, impressa em corpo 8, espaçamento 1 e absurdas 54 linhas por página - as quais, numa composição gráfica mais palatável, equivaleriam no mínimo a 700 páginas), Adolf Hitler afirma e repete incontáveis vezes o que pretendia fazer para concretizar o futuro glorioso que previa para a Alemanha.

O país tinha então, em 1925, sessenta e sete milhões de habitantes e era uma das principais forças europeias (sete anos após o fim da Primeira Guerra, a economia alemã já havia parcialmente se recuperado). No cenário desenhado por Hitler, porém, a Alemanha era uma ex-potência, um país humilhado e sob o risco de ter sua existência eliminada da face da terra.

Como veremos em trechos que vou reproduzir - para que você tenha uma noção mais precisa do texto genuíno escrito por Hitler, traduzido diretamente da versão original em alemão -, o meganha defendia que era preciso transformar a Alemanha na maior potência do globo, multiplicando sua população e seu território, a ser tomado dos países vizinhos. Pretendia exterminar os russos, os poloneses, os franceses e os judeus. "Precisava" fazer isso, porque o objetivo destes inimigos - segundo Hitler - era exterminar os alemães e riscar para sempre a Alemanha do mapa.

Ele foi mal-sucedido em tudo que tentou e estava errado em tudo que pensou. O que ele dizia ser a verdade, acreditando ele ou não no próprio discurso, era um grande equívoco. O seu erro colossal diminuiu a Alemanha, submeteu todo o leste da Europa ao domínio comunista e conduziu os Estados Unidos ao posto de maior nação do mundo.

Uma pequena parte dos judeus aos quais ele se dedicou a assassinar fugiu para o deserto e num fiapo de terra que teria sido a origem dos seus ancestrais ergueu um dos países mais poderosos (e criativos) do planeta. O esquálido e feioso povo sem terra ganhou uma pátria (ainda controversa) e se tornou um dos maiorais.

Para que tudo isso acontecesse, com uma singular ajuda do livro do qual falamos agora, Hitler chegou ao poder, criou uma máquina de guerra e sua operação resultou na morte sanguinária de sessenta milhões de pessoas, sendo um quinto delas de origem alemã.

Em Mein Kampf, Hitler destacava, em itálico, a importância de estabelecer as prioridades em política externa de um Estado nacionalista:

"O dever da política externa de um Estado nacionalista é assegurar a existência da raça incluída no Estado, estabelecendo uma proporção natural entre o número e o crescimento da população, de um lado, e, do outro, a extensão e a qualidade do solo."

Para quem visava multiplicar o povo (a tal raça), os resultados foram tímidos, mesmo que vistos quase um século depois, já com os efeitos da matança na guerra mitigados. A Alemanha tem hoje 83 milhões de habitantes, 20% a mais que a sua população de imediatamente antes da guerra. Um índice de crescimento demográfico muito menor, porém, daquele ostentado pelos países que a derrotaram. Os ingleses têm atualmente 42% habitantes a mais do que em 1939, os franceses cresceram 54% e os americanos têm uma população 154% maior em igual período. Uma derrota acachapante para a nação alemã em termos de volume populacional (com repercussão na produtividade, na economia e no eventual tamanho das forças armadas).

Vale destacar uma afirmação numérica de Hitler, baseada não na população da Alemanha, mas sim no total de alemães étnicos vivendo no continente:

"Existem hoje oitenta milhões de alemães na Europa. E só se haverá de de considerar que nossa política foi bem conduzida quando, depois de aproximadamente cem anos, houver duzentos e cinquenta milhões de alemães vivendo nesse continente."

Passaram-se noventa e sete anos e o número de alemães, como vimos há pouco, são oitenta e três milhões. A cifra esperada para uma expansão demográfica de 170 milhões de alemães limitou-se a ralos 3 milhões, em um reich de 1000 anos que durou 12. A matemática foi madrasta para seus planos megalomaníacos.

E, pior, seu território encolheu. Mesmo depois da reunificação das Alemanhas. uma enorme fração do leste germânico (incluindo praticamente toda a Prússia) foi reincorporada à Polônia em 1945. E o sujeito que prometeu uma Germany Great Again, como todos sabemos - e eu já comentei lá em cima -, passou os últimos meses de vida enfiado num buraco e covardemente preferiu dar um tiro na cabeça a se dispor a trocar tiros com o inimigo.

Dito isto, não esqueça: para ler "Mein Kampf" e todo o criminoso futuro de glórias arianas que ele prometia, com o aniquilamento e escravização de todas as demais raças inferiores, convém lembrar que suas ideias eram asneiras requentadas e a consequência prática de sua implementação foi a (auto) destruição da Alemanha.

Repare que uma coisa que jamais entrou no cérebro contaminado deste austríaco é que quem tem raça é cachorro. E ele não escreve meio parágrafo sem que o mimimi de raça venha à tona. Na verdade, este é apenas um dos temas que ele repete compulsivamente. Mas não o único.

Sua obsessão no que tange aos judeus permeia todo o texto. Difícil que haja duas ou três páginas sem que ele recomece seu estoque de imprecações contra o poder do judaísmo internacional - uma força que estaria por trás dos ingleses, dos franceses, dos russos e dos norte-americanos; e também de todos os alemães que não pensassem como ele, Hitler. 

Os jornais alemães, a indústria alemã, o ensino alemão, a política alemã, a arte alemã - na sua visão primária e distorcida, tudo estaria impregnado pela presença judaica, corrompendo o puro sangue ariano. Que Hitler, aliás, já não imaginava tão puro assim, apavorado com a raça negra: "O sangue alemão está sendo contaminado por hordas de negros africanos."

E, afora a ladainha virulenta contra os judeus, o fio condutor do livro é a sua não aceitação da derrota alemã na Primeira Guerra Mundial e a convicção de que o mundo estava contra a Alemanha. Na cabecinha de Hitler, como já dissemos, os demais povos queriam exterminar a nação alemã. Portanto, restava a ele, em nome dos alemães, exterminar o resto do mundo primeiro.

Por incrível que pareça, o parágrafo acima resume toda a monocórdia peroração que se estende pelas centenas de páginas com que seu autor nos aborrece.

Afinal de contas, o que é que o Adolf fala nesse livro?

Primeiro, ele detona o seu país de origem (a Áustria) e toda a história da sua formação. Chama o império austro-Húngaro de "Estado babilônico", diz odiar os Habsburgo e revela ter simpatizado com os socialistas, porque eles lutavam pelo voto secreto e universal - o que redundaria na deposição do Imperador, acreditava.

Segue num morde-assopra, ora espinafrando, ora empavonando. Depois de esculachar todas as instituições austríacas, deu um aceno à uma futura comunhão: "O destino desse Estado é tão intimamente ligado à vida e ao crescimento do povo alemão, que uma separação entre a história alemã e a austríaca parece impossível."

(Em tempo: o Anschluss, a anexação da Àustria, foi a primeira invasão promovida pela Alemanha nazista, em março de 1938.)

Mas revela ignorância sobre as razões que levaram o país a dar o pontapé inicial na Primeira Guerra Mundial: "Para a Alemanha foi uma felicidade que a guerra de 1914, embora indiretamente, irrompesse por intermédio da Áustria, obrigando os Habsburgo a nela terem tomado parte."

A Áustria, na ocasião, serviu como boi de piranha para as pretensões bélicas da Alemanha, que desejava o conflito e insuflou os Habsburgo a declarar guerra à Croácia, por conta de um atentado... sérvio. Nem austro-húngaros, nem croatas, queriam a guerra que os alemães ansiavam. 

Afirma se considerar um grande leitor e "ensina" como ler um livro. Perceba que, com seu fino entendimento das intenções ocultas por trás das palavras, Hitler já antecipava os políticos atuais, xingando a mídia da época. Dá para aproveitar a análise que faz, de um tema simples, para termos uma noção do seu linguajar empolado:

"Que diferença entre as cintilantes frases de liberdade, beleza e dignidade da literatura teórica, entre o fogo-fátuo do palavrório que laboriosamente, aparenta a mais profunda e irresistível sabedoria, pregada com uma segurança profética, e a brutal virtuosidade da mentira da imprensa diária que trabalhava pela salvação da nova humanidade sem recuar ante nenhuma objeção, usando de todos os recursos da calúnia!"

Sentiu o fraseado? Em seguida o autor sobe um degrau na sua inflamação e conclui: "Uma é destinada aos estúpidos das camadas intelectuais médias e superiores, a outra às massas."

Antes de se aventurar na leitura, considere que os dois livros são formados por algo em torno de 4.600 parágrafos desse quilate. Daí dá para entender porque um neonazista brasileiro vai precisar de uma disposição incomum para ir além da segunda página. Vai dar uma folheada, tirar uma selfie mostrando a capa e postar orgulhoso na deep web. Mas, ler, não vai não. Para essa rapaziada, é bem mais simples colocar fogo num mendigo ou juntar uma turma pra emboscar um inocente qualquer da tribo LGBT. 

No seu Mein Kampf, Hitler falava de um tudo. Na economia, enxergava um exótico conluio entre a Bolsa de Valores e o marxismo:

"Um sintoma da ruína econômica foi a lenta eliminação do direito de propriedade individual e a passagem gradual da economia do povo para a propriedade das sociedades por ações. Por esse sistema, o trabalho desceu a objeto de especulação dos traficantes sem consciência. A alienação da propriedade aos capitalistas progrediu. A Bolsa começou a triunfar e preparou-se a por, lenta, mas firmemente, a vida da nação sob sua proteção e controle. Antes da guerra, a internacionalização dos negócios alemães já estava em andamento, sob o disfarce das sociedades por ações. (...) Houve uma investida combinada do capitalismo ambicioso, auxiliado pelos seus aliados do movimento marxista."

Você entendeu? Ele acreditava que a Bolsa de Valores iria dominar o mundo, ou seja, ela não seria um instrumento do capitalismo, e sim uma espécie de agente demoníaco. E, pior, o marxismo estava por trás da Bolsa, numa inimaginável joint-venture entre capitalistas e comunistas contra o ingênuo povo alemão.

Difícil de juntar lé com cré. Passagens como estas provam, sobejamente, como este texto tem seu poder superestimado. É decerto um catalisador, mas virou praxe tomá-lo como símbolo da força do discurso nazista. O livro foi, em si, um apetrecho muito mais inofensivo do que a mística posteriormente criada ao redor dele. 

A este propósito, em seguida vou postar aqui o excepcional "A história de Mein Kampf", um livro contemporâneo, escrito pelo jovem francês Antoine Viktine. Ainda que discordemos em muita coisa, sua obra é admirável. Veremos isso em breve.

Por falar em concordâncias e discordâncias, uma coisa da qual não posso discordar é a visão de Adolf sobre a performance de qualquer sujeito investido de um cargo político. Ele possuía uma visão acre destes personagens, que via como corruptos fundamentais:

"Um tipo de homem cujo único sentimento verdadeiro é a falta de sentimento, ao lado de uma arrogante impertinência e uma descarada arte de mentir. Se por infelicidade dos homens decentes, um sujeito desses chega ao parlamento, deve saber-se desde logo que para ele a essência da política consiste apenas numa luta heroica pela posse duradoura de uma mamadeira para si e para a sua família."

Atual, não? Em resumo, o polêmico ex-cabo do exército alemão via o político como alguém que queria apenas f... com o povo. 

Por falar nisso, de acordo com os seus biógrafos, Adolf não era muito chegado em sexo. Curioso é que no seu livro ele relacionava o interesse sexual à atividade intelectual. Na sua misoginia, acreditava que a prática da atividade física saciava o corpo: "O valor excessivo dado à cultura intelectual dá origem, antes do tempo, às solicitações sexuais. O jovem que se fortalece nos desportos e nos exercícios de ginástica está menos sujeito a capitular ante a satisfação dos seus instintos do que aquele que vive, sedentariamente, no gabinete de estudo."

Eu, ehm.

Mas não era somente sobre sexo que ele dava seus pontos-de-vista. O futuro führer do Reich de Mil Anos tinha opinião sobre tudo, inclusive sobre fecundação.

No capítulo XI, "Povo e raça", Hitler se arvora a dar palpites sobre reprodução biológica. Ele envereda por uma argumentação rastaquera ("Cada animal só se associa a um companheiro da mesma espécie, a cegonha com a cegonha, o rato com o rato, o lobo com a loba"), para concluir que "todo cruzamento entre dois seres de situação um pouco desigual na escala biológica dá, como produto, um intermediário entre os dois pontos ocupados pelos pais. Significa isto que o filho chegará provavelmente a uma situação mais alta do que a de um dos seus pais, o inferior, mas não atingirá a altura do superior em raça. Mais tarde será, por conseguinte, derrotado na luta com os superiores".

Que lambança, ehm? a única coisa curiosa é o comentário do autor sobre o cruzamento entre "raças" diferentes: "A Natureza defende-se por todos os meios e seu protesto mais evidente consiste ou em privar futuramente os bastardos da capacidade de procriação ou em limitar a fecundidade dos descendentes futuros."

O texto, maluco, dá subsídio à hipótese que é a base de "O castelo na floresta", de Norman Mailer, que argumenta que a ascendência de Adolf Hitler é uma sucessão de incestos e bastardos. Como o próprio Adolf aqui crê que bastardos não deixam prole substanciosa, ele é uma prova viva (morta, vai, com um tiro na própria cabeça) da teoria, pois não deixou descendentes.

Talvez sequer tenha cumprido as etapas protocolares ente homem e mulher necessárias para fazê-los. 

Mas qual é então a propalada ideia de Adolf Hitler sobre raça, mesmo? vamos deixar que ele próprio se explique. Argumenta que o desenvolvimento da civilização ariana se deu por conta da subordinação dos inferiores: "Sem a possibilidade de empregar gente inferior, o ariano nunca teria podido dar os primeiros passos para sua civilização, do mesmo modo que sem a ajuda dos animais nunca teria alcançado uma técnica."

Hitler não só considerava os seres humanos não-arianos como equivalentes a animais, como se acreditava um benfeitor destes povos inferiores:

"O ariano, com sua autoridade de conquistador, submeteu os homens inferiores, regulando a atividade prática dessas criaturas, conforme a sua vontade e visando seus próprios fins. Enquanto assim conduzia os vencidos para um trabalho útil, embora duro, o ariano poupava, não só as suas vidas, como lhes proporcionava talvez uma sorte melhor do que dantes, quando gozavam a chamada liberdade."

Para entender melhor a teoria, podemos trocar isso em miúdos, para o que seria a nossa realidade: nós, sul-americanos, brasileiros, mestiços, somos úteis como são os animais, e servir como escravos aos arianos seria melhor do que desfrutarmos da liberdade. Para você que não sabia como funcionava a sofisticada teoria racial do Adolf, taí um exemplo. Você teria por ápice na vida se tornar um burro de carga e, penhorado, agradecer de joelhos que um ariano gordo te montasse.

E não é viagem minha. Hitler fala especificamente de nós, sul-americanos, em seu livro de 1925.

"A América do Norte, cuja população, decididamente, na sua maior parte, se compõe de elementos germânicos, que só muito pouco se misturaram com povos inferiores e de cor, apresenta outra humanidade e cultura do que a América Central e do Sul, onde os imigrantes, quase todos latinos, se fundiram, em grande número, com os habitantes indígenas."

Baba o ovo dos americanos, que não seriam adeptos da miscigenação, e condena os miscigenados (nós) a eternos esparros do branquelo 100%:

"O germano do continente americano elevou-se até a dominação deste, por se ter conservado mais puro e sem mistura; ali continuará a imperar."

O conceito de raça, no discurso estrambólico de Hitler, era a suma prioridade do Estado. E a lei poderia ser posta de lado se a "raça" estivesse em "perigo":

"De um modo geral, não se deve esquecer nunca que a conservação de um Estado ou de um governo não é o mais elevado fim da existência humana, mas o de conservar o seu caráter racial. Caso este se ache em perigo de ser dominado ou eliminado, a questão da legalidade terá apenas importância secundária."

Se toda essa diferença entre os seres humanos se baseava na distinção racial, como Hitler via esta questão sob o prisma, digamos, da genética?

"Se, por exemplo, em uma determinada raça, um indivíduo cruza com outro de raça inferior, o resultado imediato é a baixa do nível racial e, depois, o enfraquecimento dos descendentes, em comparação com os representantes da raça pura. Proibindo-se absolutamente novos cruzamentos com a raça superior, os bastardos, cruzando-se entre si, ou desapareceriam, dada a sua pouca resistência, ou, com o correr dos tempos, através de misturas constantes, criariam um tipo em que não mais se reconheceria nenhuma das qualidades da raça pura. Assim se formaria uma nova raça com uma certa capacidade de resistência passiva, mas muito diminuída na importância da sua cultura em relação à raça superior do primeiro cruzamento. Nesse último caso, na luta pela existência, o bastardo será sempre vencido, enquanto existir, como adversário, o representante de uma raça pura."

Aqui no Brasil a gente fez essa mistureba toda e vimos no que deu. O futebol dá uma mostra. Pelé, Garrincha, Didi, Jairzinho, Romário, Ronaldinho, Neymar etc um monte de bastardos sempre vencidos... ops, não funcionou assim, não. Tem alguma falha nessa teoria aí. 

Mas Hitler acreditava que os animais foram úteis nos tempos primitivos e que agora, face ao progresso, são desnecessários. O mesmo papel de irrelevância caberia ao ser humano inferior. Para exemplificar, se vale daquilo que, segundo ele, constitui uma expressão popular: "O negro já fez a sua obrigação, pode se retirar". Que ditado esquisito. Deve ter sido popular lá na Bavária.

Ainda sobre o negro, ele aproveita para traçar um paralelo entre animais e homens inferiores: "Aqui ou ali, pela primeira vez um negro tornou-se advogado. Enquanto a burguesia fica admirada de um tão maravilhoso adestramento, o judeu esperto tenta inculcar no público que todos os homens são iguais."

Ou seja, o negro "adestrado" causa admiração e o judeu "se aproveita" da existência do tal negro, em prol daquela estranha tese judaica de que todos os homens são iguais. Adolf, não satisfeito, se torna mais e mais veemente:

"É um ultraje à nossa razão , uma criminosa idiotice, adestrar, durante muito tempo, um meio-macaco, até que ele acredite que se fez advogado".

Afonso Arinos neste débil mental. Encarcerado enquanto escrevia o livro, Adolf reputava aos judeus a existência dos negros na Europa: "Foram e continuam sendo os judeus os que trouxeram os negros até o Reno, sempre com os mesmos intuitos secretos e fins evidentes, a saber: bastardizar à força a raça branca, por eles detestada."

É o tiozão do elevador falando merda. Tô dizendo. E não era só sobre sexo e genética que o antigo mensageiro austríaco tinha esse olhar. Sua interpretação da democracia era sui-generis:

"A Democracia se tornou o instrumento de uma raça que, para a consecução de seus objetivos, tem de evitar a luz do sol, agora e sempre. Ninguém, a não ser um judeu, pode estimar uma instituição que é tão suja e falsa quanto ele próprio."

Que isso. Espezinhou a democracia e ainda disse que democracia é coisa de judeu, ou seja, a pior coisa do mundo. Culpou o judeu também pelo fluxo migratório das etnias de origem africana. Este é um bom gancho para, enfim, vermos algumas coisas que Adolf dizia sobre os judeus.

Entre as incontáveis pérolas do texto, uma é aquela em que Adolf Hitler relata como "se tornou" antissemita, depois de muitos esforços para resgatar os judeus da sua ignorância.

"Na minha ingenuidade de jovem, acreditei poder evidenciar os erros da sua doutrina, (...) esforçava-me por convencê-los da perniciosidade dos erros do marxismo e pensava atingir esse objetivo, mas o contrário é que acontecia sempre. Parecia que o exame cada vez mais profundo da atuação deletéria das teorias sociais democráticas nas suas aplicações servia apenas para tornar ainda mais firmes as decisões dos judeus."

Embora ele não contextualize, esta era a época em que ele morava em um abrigo em Viena, depois de torrar a grana deixada pelo pai, alto funcionário público. Enquanto um parceiro (conquistado no abrigo) ia para a rua vender suas aquarelas turísticas por uns caraminguás, o jovem Adolf se dedicava à correção dos judeus: "Quanto mais eu contendia com eles, melhor aprendia a sua dialética. Partiam eles da crença na estupidez dos seus adversários e quando isso não dava resultado fingiam-se eles mesmos de estúpidos. Se falhavam esses recursos, eles se recusavam a entender o que se lhes dizia e, de repente, pulavam para outro assunto."

Sempre confundindo numa panela só marxismo e judaísmo, Adolf confessa sua dificuldade em convencer seus interlocutores e que resolveu se empenhar a fundo em estudar o marxismo, pois "a solução que se impunha, como última tábua de salvação, era a luta com todas as armas que pudessem abraçar a razão e a vontade dos homens, mesmo se a sorte do combate fosse duvidosa. Assim comecei a entrar em contato com os fundadores da doutrina a fim de poder estudar os princípios em que se fundava o movimento marxista. Consegui esse objetivo mais depressa do que me seria lícito supor, devido aos conhecimentos que possuía sobre sobre a questão semítica, embora ainda não muito profundos. Essa circunstância tornou possível uma comparação prática entre as realidades do mesmo e as reivindicações teóricas da social-democracia, que tanto me tinha auxiliado a entender os métodos verbais do povo judeu, cuja principal preocupação é ocultar ou pelo menos disfarçar os seus pensamentos."

A compreensão dele do que seria o marxismo é para lá de rasa. Aliás, dele e de toda a torcida do Flamengo. Quem tiver interesse genuíno no pai do marxismo - Karl Marx, o próprio -, sugiro a leitura da ótima biografia escrita por Gareth-Jones, cuja resenha você também encontra aqui no blog. Mas, saindo de Karl e voltando pro Adolf, o mais impactante do seu envolvimento com os judeus de Viena é o gran finale.

"Foi por esse tempo que se operou em mim a maior modificação de ideias que devia experimentar. De inoperante cidadão do mundo passei a ser um fanático antissemita."

Pegou essa? de um generoso colaborador filosófico dos teimosos hebreus, ele resolveu se transformar no exterminador da raça toda. 

Já ciente do enorme perigo que rondava a vida no planeta, Hitler esboçava severas consequências para o globo terrestre em se permitindo a continuidade da existência de judeus:

"A doutrina judaica do marxismo repele o princípio aristocrático na natureza. Contra o privilégio eterno do poder e da força do individuo levanta o poder das massas e o peso-morto do número. Nega o valor do individuo, combate a importância das nacionalidade e das raças, anulando assim na humanidade a razão da sua existência e de sua cultura. Por essa maneira de encarar o universo, conduziria a humanidade a abandonar qualquer noção de ordem. E como nesse grande organismo, só o caos poderia resultar da aplicação desses princípios, a ruína seria o desfecho final para todos os habitantes da Terra."

Tente visualizar a terra vagando desolada pelo espaço, como uma garrafa pet no oceano.

"Se o judeu, com o auxílio do seu credo marxista, conquistar as nações do mundo, a sua coroa de vitórias será a coroa mortuária da raça humana e, então, o planeta vazio de homens, mais uma vez, como há milhões de anos, errará pelo éter."

Era a imagem que ele fazia do perigo do componente judeu na sociedade - representando, estatisticamente, 0,8% do povo alemão. Arredondando, eram 99 arianos para cada judeu em solo germânico. E Adolf se sentia profundamente ameaçado, tomado de um pânico bíblico.

"Por isso, acredito agora que ajo de acordo com as prescrições do Criador Onipotente. Lutando contra o judaísmo, estou realizando a obra de Deus."

Temos aqui um austríaco cristão de bigodinho, que defende uma supremacia ancestral ariana (lembrando que as crenças atavicamente arianas eram baseadas no politeísmo, com destaque para Odin, Thor, Loki, Frey, Hel etc), dizendo que o Criador Onipotente (não por acaso, o deus dos judeus) desejaria a extinção dos... judeus (!), os mesmos que nele acreditavam desde os tempos de Moisés e a quem sempre seguiram. E Deus os preteriria em prol dos nórdicos politeístas adoradores de runas. O autêntico samba do ariano doido.

Ele inclusive botava fé numa cloroquina da época, talvez a maior fake news de todos os tempos (que rendeu inspiração para o ótimo "O cemitério de Praga", de Umberto Eco, que você também encontra resenhado aqui no blog), "Os Protocolos dos sábios de Sião". 

O livreto bombou no início do século, uma farsa financiada pelo governo russo que atribuía aos judeus um plano de dominação do mundo. O enredo era ingênuo como se por aqui surgisse um livro,  escrito a quatro mãos pelo Moro e pelo Dallagnol, com o título auto-incriminador de "Como caluniar o Lula, trair o Bolsonaro e tomar o controle do Brasil".

Hitler tece comentários reverentes sobre a bobajada russa e aposta na eficácia da cloroquina: "Os Protocolos mostram a que ponto a existência deste povo é baseada em uma mentira ininterrupta. 'Tudo isto é falsificado', geme de novo o Frankfurter Zeitung, o que constitui mais uma prova de que tudo é verdade." 

Além de defender a farsa dos protocolos como se fosse legítima, Adolf cria sua própria História - crendo, com certa dose de razão, que a ignorância coletiva engoliria de bom grado qualquer versão estapafúrdia que soltasse. Líderes carismáticos são venerados. Na Alemanha de 1925 e no Brasil de 2022.

"O judeu popular e democrático se transforma no judeu sanguinário e tiranizador dos povos", diz ele, para, em seguida, proclamar que o "exemplo mais terrível nesse gênero é apresentado pela Rússia, onde o judeu, com uma ferocidade verdadeiramente fanática, trucidou cerca de trinta milhões, alguns por meio de torturas desumanas, outros pela fome". 

Negacionismo lelé e inversão histórica. Ao contrário do afirmado, nos pogroms executados por russos, lituanos e ucranianos, os judeus continuavam sendo perseguidos e queimados. O russo que matou milhões foi o georgiano Josef Stalin, que rivalizaria com Hitler como o maior criminoso do século.

Adolf Hitler reputa também aos judeus a belicosidade que havia entre prussianos e bávaros (ambos povos alemães, geograficamente opostos, algo como se fosse uma rixa entre paulistas e cearenses). Chega a dizer, em 1925: "Eu não podia tolerar essa maldita luta entre filhos do mesmo povo". A preocupação dele com os "filhos do mesmo povo" é pura retórica - a se basear na sua conduta à frente do governo alemão. Porque nove anos depois, em 1934, um despreocupado Hitler orquestrou e ordenou o assassinato de centenas de alemães que considerava politicamente inconvenientes. A chacina passou para a história com o nome de "A noite dos longos punhais".

Em suma, o raciocínio do mensageiro austríaco era que o judeu sabotava a pureza racial alemã para poder dominá-la - já que o judeu jamais dominaria um ariano 100% puro, ou seja, um belo espécime racial do tope do seu ministro da propaganda Joseph Goebbels (um magrelinho moreno, com 1,64m de altura, um nariz avantajado, com uma queda por amantes caras e soldados grandes).

Acho que já deu de judeu. 

Porque nem só de judeus e chororô derrotista é feito o livro. Há partes com conceitos interessantes e há também uma peculiar visão da época, de uma Alemanha em crise e de uma Europa em convulsão.

Dezenas de páginas são gastas com reflexões sobre política externa, e muitas mais sobre como influenciar na política interna. Como o partido nazista foi idealizado e formado. Como a Alemanha deveria agir para recuperar o espaço perdido. Em meio a devaneios e sonhos totalitários, há certamente uma meia-dúzia de detalhes interessantes a observar aí.

Mas, antes de mencioná-los, convém desfazer uma lenda. Entre os muitos estereótipos que se acumulam sobre o simplório cabo austríaco - que chegou a ter mais da metade da Europa a seus pés - está o de "gênio militar". Mas nem de longe. Ele apostou em uma tática inovadora - a blitzkrieg, um ataque relâmpago, que seria uma ofensiva militar possante e coordenada, executada em curto espaço de tempo (o equivalente ao arrastão nas praias cariocas, só que com tanques e bombardeio aéreo) -, mas que funcionou, inovação que era, por um tempo limitado, quase que restrita aos dois anos iniciais da guerra.

A partir do último trimestre de 1941, início do inverno europeu, os alemães morreram muito e mataram muita gente, mas praticamente só cederam terreno. Durante mais de dois terços da guerra, os alemães recuaram. Decisões estúpidas, questionadas pela maioria dos seus generais, levaram a Alemanha a entregar o que conquistara e a perder o que havia sido sempre dela.

O cronograma da derrocada é minuciosamente exposto em dezenas de obras e estudos, notadamente nos de seus principais biógrafos, o alemão Joachin Fest e o inglês Ian Kershaw. São ambos leitura obrigatória para quem quer entender o que se passou, resenhados também aqui no blog (o do Kershaw, espetacular, estou deixando para o fim desta série).

Mas a guerra seria o porvir, ainda não acontecida quando da redação do livro que é o nosso tema aqui. E, se trocentas vezes tivemos que antecipar aqui resultados que iriam acontecer lá na frente, é porque não dá para abstrair as afirmações que ele fez quando publicou seu livro daquilo que nós sabemos que aconteceu alguns anos depois, evidenciando um descompasso crasso entre previsão e concretização.

Porque o texto de "Mein kampf" exibe um outro tipo de gênio: o da propaganda, com uma compreensão sofisticada da oratória. Seus trechos quanto ao impacto da retórica sobre as massas parecem ter sido escritos hoje, em tempos de redes sociais, tão acurados que são.

Se as ideias professadas por Adolf Hitler em seu livro mítico são tão desconectadas do conhecimento e do bom senso, sua percepção sobre a propaganda é, não raro, brilhante. Hitler seria hoje certamente um gênio da comunicação, tão visionários são seus conceitos sobre abordagem do eleitorado e estratégia de convencimento das massas.

(Isto não esconde, porém, o primitivismo das suas concepções toscas sobre a História e as civilizações. No âmago das suas convicções, Hitler foi sempre um louco de hospício.)

Para utilidade pública, vale darmos uma olhada no seu aguçado tirocínio sobre tudo o que envolvia a propaganda, o marketing e a comunicação de massa (lembrando sempre que propaganda, em termos de discurso político, é a divulgação de conteúdo ideológico e não um sinônimo de publicidade, como utilizamos em português).

"O ano de 1921 teve para o movimento uma importância capital. Depois da minha entrada no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, tomei imediatamente conta da direção da propaganda. Eu tinha este setor, naquele momento, como o mais importante de todos."

O Hitler analista da comunicação de massa está longe de ser um tolo. Sua percepção do entendimento popular, e como galvanizá-lo, é digna dos melhores marqueteiros políticos, um século depois.

"Um grande teórico é raramente um grande organizador, pois o valor do teórico consiste, em primeiro lugar, na noção de definição de leis abstratamente exatas, enquanto o organizador deve ser em primeiro lugar um conhecedor da psicologia popular. Deve ver os homens como eles são na realidade, tanto sua fraqueza como seu aspecto instintivo."

Quando fala na "fraqueza" dos homens, isso fica melhor compreendido em uma outra passagem, quando ele se refere ao "estúpido rebanho de nosso povo". A estupidez, aqui, talvez não seja mera ofensa, ou desprezo, e sim parte de um processo de compreensão e indutor de uma estratégia.

"A faculdade de assimilação das massas é extremamente restrita, sua compreensão, curta, mas em compensação sua falta de memória é grande. Assim, toda propaganda eficaz deve limitar-se a pontos muito pouco numerosos, exaltando-os à base de fórmulas estereotipadas pelo tempo que for necessário, até que o último dos ouvintes seja capaz de compreender a ideia."

Acredito que qualquer marqueteiro top 5 atual assinaria embaixo desta afirmação. Este grau medíocre de assimilação do mundo ao seu redor, bem como a facilidade com que são conduzidas e manipuladas, faz das massas antigas e atuais a matéria prima perfeita para o político mal-intencionado. A esmagadora maioria, há quem diga.

Crítico da democracia, como todos os populistas carismáticos, ele se vale dela para chegar ao topo. As massas se deixam seduzir por discursos. Hitler não só era bom no discurso, como era tão bom quanto na análise que fazia das táticas de persuasão.

"Cheguei à conclusão de que todos os acontecimentos importantes, todas as revoluções mundiais, não são jamais fruto da palavra escrita, mas, ao contrário, são sempre produzidas pela palavra falada."

Este é o ponto. E o ponto não está no livro, que é a palavra escrita. O próprio Hitler sabia que seu livro tinha um alcance limitado. A oratória era o segredo. A capacidade de energizar, seduzir e mesmerizar. Ele próprio confessa, em seu texto:

"O povo, na sua grande maioria, é de  índole feminina tão acentuada, que se deixa guiar, no seu modo de pensar e agir, menos pela reflexão do que pelo sentimento."

Bem, há que se colocar um ponto final. Se passamos a última meia hora falando de Mein Kampf, do seu poder e do seu significado, acho que já está bom. Espero ter contribuído para saciar o conhecimento daqueles que têm curiosidade, mas que não têm o livro à mão e, por aversão ao seu conteúdo, nem gostariam de tê-lo; e, em o tendo, não lhes agradaria lê-lo; ainda que, no íntimo, quisessem sabê-lo.

Por isso eu me propus aqui a uma análise informal da narrativa desse que é, com certeza, um dos textos mais polêmicos da História. 

O livro tem o status que tem porque seu autor chegou ao poder na Alemanha, armou o exército, executou os inimigos, invadiu os países vizinhos, destruiu cidades, dizimou populações, assassinou os civis, abriu sucessivas frentes de guerra, bombardeou capitais, afundou navios, recuou em todos os terrenos, perdeu as batalhas, instigou a invasão do próprio país, provocou a transformação do território alemão em um monte de ruínas, conduziu à morte milhões de pessoas da sua própria população, para, enfim, acuado e em pânico, resolver se matar.

Esta é, resumidamente, a trajetória do autor do livro e o seu rastro de sessenta milhões de mortos.

O perigo permanente que seria a leitura do livro pela população contemporânea advém de passagens que professam disparidade racial, hoje inofensivas diante do poder de um simples meme. Outras partes de enorme importância são as que antecipam as intenções de Hitler, como as dezenas de parágrafos destinados à invasão de outros países e do aniquilamento de outros povos.

Para firmar posição e engabelar o populacho, ele se valia do sentimento de germanidade, a tal comunidade racial que estava em vias de ser exterminada.

"Nas fronteiras do país, mais de sete milhões estão gemendo sob domínio estrangeiro."

Para tanto, não escondia seus planos, e n o livro há dezenas de passagens explícitas: "Hoje estou convencido de que não se pode readquirir territórios perdidos por meio de discursos, mas pelo emprego de força."

Mas tudo isto é passado e não importa mais. A terra que Hitler tanto queria já não é mais valiosa. A tecnologia mudou o mundo e o excesso de terra serve para plantar batatas. Um mero iPhone compra três toneladas delas, e não precisa sequer ser feito no próprio país que tem a patente.

Visionários são aqueles que têm o dom de olhar o presente e enxergar o futuro. Já Hitler olhava o futuro e via o passado. Seus planos rasos levaram o país na direção errada; e sequer na direção errada ele conseguiu resultados. Na sua tentativa equivocada de ocupar as terras russas, ele dizimou milhões de russos e sacrificou milhões de alemães - e a consequência da carnificina foi a invasão das terras alemãs pelos russos, o estupro das mulheres alemãs pelos russos e a perda de quase metade do território alemão para constituir um novo país-satélite soviético - a hoje esquecida Alemanha Oriental.

E o pior é que as terras pretendidas não iam fazer a menor diferença.

Hitler conclamava o povo para ir à guerra e defendia o direito dos alemães de tomar dos outros as terras que queria para si.

"Os direitos humanos estão acima dos direitos do Estado. Se, porém, na luta pelos direitos humanos, uma raça é subjugada, significa isso que ela pesou muito pouco na balança do destino para ter a felicidade de continuar a existir neste mundo terrestre, pois quem não é capaz de lutar pela vida tem o seu fim decretado pela providência. O mundo não foi feito para os povos covardes."

Aceitando "raça" por "etnia", e entendendo por raça "subjugada" aquela que é dominada militarmente por um outro país em uma dada época, tem-se uma boa medida do universo de acertos de Hitler em seu livro: zero. Foram subjugados pelos alemães os poloneses, os austríacos, os tchecos, os dinamarqueses, os noruegueses, os franceses, os sérvios, os croatas, os húngaros, os gregos, os ucranianos, os estonianos, os lituanos e os russos; e pouco depois os alemães subjugadores foram ferozmente subjugados pelos russos, sofrendo uma invasão um pouquinho mais compassiva por parte dos ingleses e norte-americanos.

Mas, dito isto, o fato é que todos eles - inclusive os alemães - tiveram a felicidade de continuar a existir neste mundo terrestre, com boa parte destes países performando hoje bem melhor do que eram capazes de fazer antes da guerra.

Quanto à expressão o mundo não foi feito para covardes, sintomático que ela tenha sido escrita por alguém que não deu um único tiro durante a guerra, a não ser contra si próprio, em pânico com a chegada dos russos a Berlim.

A verdade é que não há nada a temer em "Mein Kampf". Os energúmenos que tiram do livro algum estímulo para cometer atrocidades podem chegar ao mesmo resultado com um reles supositório.

Ou dois, por garantia, no caso do primeiro não provocar o efeito desejado.

Editora Moraes, 427 páginas  | 1983 | Tradução integral e direta do alemão 

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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