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"A trégua", por Mario Benedetti

 




Montevidéu. Fim dos anos 50. Um viúvo faz anotações em seu diário. Está ansioso, às portas da aposentadoria. Tem 49 anos e três filhos adultos. Bate o ponto em um escritório. Acha o trabalho enfadonho e a vida pregressa enfadonha. A vida que lhe resta à frente também parece enfadonha.

Suas reflexões, as lembranças da esposa, seu relacionamento distante com os filhos - que ainda moram com ele - e a rotina modorrenta da repartição são a matéria-prima do texto.

"Nenhum dos meus filhos se parece comigo", resmunga. "Em primeiro lugar, todos têm mais energias do que eu, parecem sempre mais decididos, não estão acostumados a duvidar".

Se com os filhos seu olhar é indulgente, de ressentida inferioridade, com as subordinadas ele pesa mais a mão. Vai direto no osso. Sem dó, nem comiseração. É um texto publicado no início da década de 60. Ainda não existia o politicamente correto. Naquela época, cada um escrevia o que queria. 

"Agora sou totalmente chefe: tenho nada menos que seis funcionários sob as minhas ordens", enumera, para se queixar que "pela primeira vez, uma mulher". O personagem é crítico. "Sempre desconfiei delas em matérias de números. Além disso, outro inconveniente: durante os dias do período menstrual, e até mesmo nos que os antecedem, se normalmente forem espertas, elas ficam meio atarantadas; e, se normalmente atarantadas, tornam-se completamente imbecis".

Não sei se havia muitas mulheres leitoras no Uruguai daqueles tempos. Vai ver que não.

Li o livro quando fui passar alguns dias na capital uruguaia. Não viajei por mero turismo. Fui por paixão. Queria ver de perto o jogo de volta da semifinal da Copa Libertadores. A da "La Gloria Eterna". Se enfrentavam o Club Atletico Peñarol, El Capo del Continente, e o Botafogo de Futebol e Regatas, El Glorioso, o time carioca que ostenta por nome o bairro em que nasci.

Botafogo.

Eu tentava me ambientar com o texto de Benedetti - que é bom, mas introspectivo e arrastado. Já nas ruas o clima era mais quente, sanguíneo. Os dirigentes esportivos e até os políticos uruguaios promoviam uma caçada aos brasileiros. A recomendação oficial era que não se falasse português em público, porque a polícia não teria como proteger os brasileños de eventuais ataques trogloditas.

"Sexta, 26 de julho. Oito da manhã. Estou tomando o café-da-manhã no Tupí". Benedetti, ou melhor, seu personagem, comia media-lunas no centro da cidade. Em 30 de outubro, uma quarta, sessenta e cinco anos depois, eu tomava distraidamente o meu cappucinno numa ruela de Punta Carretas.

"Aprendi a gostar desse monstro folclórico que é o Palacio Salvo. Não é sem razão que ele figura em todos os cartões-postais para turistas", diz o autor. Lógico que figura. Não há absolutamente nada em Montevidéu que possa simbolizar a cidade, além desse palácio e de um letreiro na praia.

No letreiro está escrito, em letras coloridas: "Montevideo". Tirei uma foto lá. Tirei no Salvo também.

"É quase uma representação do caráter nacional", continua Benedetti. "Rude, deselegante, espalhafatoso, simpático". É, pode ser esse o "caráter nacional". "Simpático" também, desde que não lhe agridam na rua por conta do país em que você nasceu.

Benedetti, por meio do seu personagem viúvo, reclama dos diretores da empresa em que trabalha. Um deles teria dito que "o grande erro de alguns homens de comércio é tratar seus empregados como se estes fossem seres humanos". Simpáticos, os diretores uruguaios.

Paguei 500 pesos locais, o equivalente a R$ 80,00, pelo tour pelo Palacio Salvo, que consiste em pegar o elevador até o teto do prédio, onde ficam as antenas de tv a cabo. Sair do elevador é difícil, ele dá de cara para uma parede (?). Parece que não planejaram bem esta parte.

Na descida das antenas, após uma apreciação da vista, para-se em dois andares. Um para trocar de elevador - para um modelo mais antigo e pitoresco - e outro para circular por um salão vazio, de onde se desce ao térreo por uma escadaria encimada por um grande painel.

"É tão feio, mas tão feio, que deixa a gente de bom-humor". Talvez eu ficasse, se fosse mais barato.

De outra, o viúvo comenta a rebeldia do namorado da filha. "Sente com intensidade máxima um conformismo agressivo, no qual ainda falta um pouco de coerência", crê. "Parece-lhe funesta a apatia de nossa gente, a carência de impulso social, a democrática tolerância ante a fraude".

Inevitável comparar. Talvez não sejamos apáticos, mas "tolerantes à fraude" nos cabe. Hermanos.

No jogo que fui ver, os uruguaios tentaram nos engabelar, armando uma grande fraude. Haviam tomado um sacode no jogo de ida. Cinco a zero. Com a auto-estima na altura do saco, tentaram criar um clima, barrando a entrada da torcida brasileira (entramos) e acusando os cariocas de terem covardemente surrado los pibes, presos no Rio pela PM.

Milonguices. Os cisplatinos acabaram eliminados mesmo assim. Boludos.

Mas o assunto aqui é o livro, não o jogo. Mario Benedetti escreve bem. Talvez a capa pudesse ser melhor. A discreta sensualidade da imagem não retrata o espírito do texto. A contracapa poderia ser mais comedida também. O redator responsável, empolgado com a missão, deu uma exagerada:

"A trégua é uma das obras mais importantes da literatura latino-americana contemporânea".

Não é não.

Editora Alfaguara, 180 páginas  |  10a reimpressão  |  Tradução  Joana Angélica D'Avila Melo

"As coisas que perdemos no fogo", por Mariana Enriquez


São estórias macabras de uma Buenos Aires decrépita. Sem dúvida, Mariana escreve bem (embora eu não lhe gabe o gosto). Suas personagens são misândricas, credo, e moram em casarões caindo aos pedaços. Pior: vivem em pânico, por medo do sobrenatural. Um povo estranho, que some ou aparece de repente. Gente que morre ou que mata as pessoas, sem que ninguém saiba como.

Esquisitíssima, a portenha. Nada do que ela conta é normal ou indolor.

Um dos seus contos mais indigestos é o do Baixinho Orelhudo, o Pablito. Um moleque que, por puro prazer, matava recém-nascidos. Com o requinte de martelar um prego na cabeça molinha do neném.

"O menino, eu agarrei com os dentes aqui, perto da boca, e o sacudi como fazem os cachorros com os gatos", contou Pablito. A autora engalana a cena: "Pablito, depois de enforcar Josualdo, voltou à cena do crime. Levava um prego. Pregou-o na cabeça do menino, que já estava morto."
 
Pablito teria escapado, mas deu mole. "No dia seguinte, cometeu seu erro fatal. Sabe-se lá por que, compareceu ao velório do menino que havia matado. Queria ver se ainda tinha o prego na cabeça".

Curiosidade mata. Flagrado no velório, algemaram o Pablito e o mandaram pro fim do mundo.

O guri matador foi de Buenos Aires para Ushuaia. Também fui, por razões diferentes. Ler é viajar e vice-versa. Mas nem a cidade, nem o país, são protagonistas na ficção de Mariana. Seus contos poderiam se dar em qualquer lugar, de Bucareste a Curitiba. Não tenho dúvida de que em Enriquez os vampiros de Dalton Trevisan se sentiriam em casa.

Porque o que não falta nas estórias de Mariana é assombração.

Noves fora os relatos fantasmagóricos, me caíram melhor os banais e menos aterrorizantes - como o da mulher que vai com a prima e o marido-mala para comprar uns panos no Paraguai. O rolo da prima com o caminhoneiro sueco e o susto do carro enguiçado na estrada são bons e triviais.

A propósito, não só o marido-mala é insuportável - todos os parceiros das personagens, sejam namorados, ficantes ou maridos, são espezinhados da forma mais abjeta. Todos são odiados. Suas personagens revelam o desejo de que o companheiro morra, ou que elas mesmas os matem.

Mariana Enriquez não parece ter tido relacionamentos assim harmoniosos. Sobrou pra nós.

Mas todo mundo merece o pior nas novelas dessa escritora argentina. Suas personagens gostam de se auto-punir. "Marcela arrancou as unhas da mão esquerda. Com os dentes. Os dedos sangravam, mas ela não demonstrava nenhuma dor. Algumas garotas vomitavam".

Mariana tem obsessão por corpos femininos destroçados. "Tive o ímpeto de pedir a algum dos caminhoneiros que me atropelasse e me deixasse estripada na estrada, rasgada como as cadelas que eu via mortas no asfalto, algumas delas grávidas, com todos os filhotes agonizando ao redor."

Burilosa, mas o talento com que a escritora arruma as palavras não me farão leitor fiel. Nem infiel, aliás. O último dos contos, o que titula o livro, romantiza a formação de um clube feminino de auto-imolação. As mulheres portenhas, fartas de serem queimadas pelos próprios companheiros (olha eles aí), passariam a atear fogo nelas mesmas, por conta própria.

Os auto-atentados virariam um movimento clandestino, ao qual as mulheres adeririam, entusiasmadas. Prenhes de idealismo, organizariam encontros no deserto, na madrugada. Ali entrariam em piras, e depois, parcialmente carbonizadas, seriam levadas à ala de queimados do hospital mais próximo, para serem cobertas de pomada e enfaixadas.

A ídola que deu início à campanha nos é apresentada como a "menina do metrô". Era uma pedinte que beijava à força os passageiros, que reagiam com nojo. "Inesquecível", descreve a autora:

"Tinha o rosto e os braços completamente desfigurados por uma queimadura extensa, completa e profunda", se deleita. Conta que "ela explicava quanto tempo lhe custou para se recuperar, os meses de infecções, hospital e dor, com a boca sem lábios e um nariz pessimamente reconstruído; restava-lhe só um olho, o outro era um buraco de pele, e a cara toda, a cabeça, o pescoço, uma máscara marrom percorrida por teias de aranha".

A menina de vítima foi promovida a mártir. Ícone underground de uma bandeira identitária.

"Silvana participou de sua primeira fogueira num campo perto da estrada 3", celebra. O movimento era batizado com o sugestivo nome de "Mulheres Ardentes". Havia uma lógica, disse a mãe à filha:

"As queimas são feitas pelos homens, menina", explica. "Sempre nos queimaram. Agora nós mesmas nos queimamos. Mas não vamos morrer; vamos mostrar nossas cicatrizes".

É uma alegoria da auto-afirmação feminina. As mulheres, vítimas seculares, reclamam para si a primitiva atribuição masculina de submetê-las e machucá-las. Agora, emancipadas, enfim donas de seu destino, machucariam a si mesmas.

É. Pode ser. Vai de acordo com o paladar. Mas ninguém pode negar que Mariana tem estilo.

Editora Intrínseca, 190 páginas

P.S.: Na foto, o antigo presídio de Ushuaia. Nele, ao invés do Baixinho Orelhudo, o Careca Orelhudo. 

 

"Jogo duro", por Ernesto Rodrigues


Não estou aqui para enganar ninguém. Li o livro. Sem vomitar. É uma autobiografia disfarçada de biografia (mesmo que o biografado depois tenha-a desautorizado). Uma novela mexicana com um galã de peruca e uma virgem de dentadura.

Já aviso que é melhor encarar a bio como uma sátira. Uma versão Casseta & Planeta da história do futebol. Há todo o tipo de disparate. Até que a conquista da Copa de 1958 pelo Brasil não foi obra de Pelé, Garrincha, Didi e Nílton Santos. Foi ele, João Havelange, o grande responsável pela conquista.

Vai vendo, ops, lendo.

É possível enfileirar aqui uma centena de versões altamente romanceadas de fatos reais. Havelange existiu, mesmo, bem como os personagens que o escritor desfiou. Mas as cenas relatadas são todas farsas, sketches de programas humorísticos. Estrelando Doutor Havelange, o honesto.

Tal é a petulância, que a leitura é divertida. Um dique de vaidade, o autobiografado faz questão de relatar seus relacionamentos com as muitas celebridades mundiais com as quais conviveu. Sua narrativa, porém, é como um conto de fadas, tipo um Nicolás Maduro dizendo que foi carregado nos braços do povo, em meio a beijos e flores, para o vigésimo mandato. Ou a Suzana Vieira contando que foi aclamada Miss Universo aos 87 anos e recusou um convite, mês passado, para posar pelada.

É um Havelange pé na jaca, sem medo de ser feliz, mentindo adoidado.

Engraçado é que já começa tentando mudar a origem da família. O pai era um belga comerciante de armas, com um longo histórico de negócios com o governo brasileiro. É até caricato, porque a Bélgica é sempre a primeira a ser invadida em qualquer guerra. Já o Brasil não dá tiro em ninguém.

Mas o autor ainda tenta dar uma mistificada no patrimônio do pai do João: tenta vender a ideia de que o futuro megacartola do futebol mundial teve uma origem humilde e passou por dificuldades. Como se ele fosse um self-businessman. Nada disso cola. Você talvez não saiba, mas o João nem João era. Na verdade, seu nome de batismo era Jean-Marie Faustin Goedefroid de Havelange.

E Havelange é uma cidadezinha belga de sujeitos ricos, onde Jean-Marie costumava ir todo ano, para oferecer um jantar para sessenta parentes locais, tudo às custas dele. Bem, às custas do povo brasileiro, que era quem bancava a Confederação que ele presidia.

Mas adiantei o carro aos bois. Vamos devagar.

Nascido em berço de ouro e com as costas quentes, João teve um passado de atleta, mas sem muito brilho. Se destacava pela altura, pelo nome gringo e pela esperteza. Foi às Olimpíadas de 1936, quando, metido a ariano raiz, babou os nazistas em plena cerimônia de abertura.

(Onde o caozeiro comete a pachorra de dizer que financiou a viagem lutando a dinheiro pelos botequins europeus. O ringue do cara era a piscina e ele mete essa.) 

Com a precoce morte do pai, se envolveu em diversas frentes, sempre escorado pelo lastro da esfera de relacionamento da família. O autor dá umas cambalhotas para explicar como, do nada, João se tornou dono da Viação Cometa, mas não dá para entender patavina da argumentação esdrúxula.

Ele era dono, só que não era dono, mas também não era laranja. Quem souber que explique melhor.

(Segundo apurado posteriormente pelos milicos, Havelange teria comprado a Cometa com dinheiro desviado do futebol.)

Nos anos 50, se gabou de ter passado a perna no principal concorrente, o Expresso Rodoviário, que importou 23 ônibus novos. Havelange, o humilde, foi até JK e conseguiu o embargo dos ônibus, que ficaram mofando no porto de Santos até estragarem. A população continuou limitada aos calhambeques da Cometa, mas o João, esperto, se gaba que se deu bem.

Outra coisa que cai que nem um cágado da árvore é o início da carreira de cartola do João. Nada é explicado (era para ser uma biografia) e ele logo aparece viajando pelo Brasil inteiro tentando convencer os dirigentes de clubes do Nordeste a votarem nele. 

Deve ter sido um balão de ensaio para conquistar a presidência da FIFA, quase duas décadas depois. Como veremos mais à frente, João viajou a África toda e voltou do périplo com os dirigentes africanos no bolso. Ernesto não conta, mas o jornalista Andrew Jennings, em seu livro "Jogo sujo", revela em detalhes como o brasileiro subornou os nativos e passou a perna no inglês Stanley Rous.

Talvez o título "Jogo duro", que enaltece o João na sua autobiografia, seja uma paródia ao "Jogo sujo" que expôs o João mergulhado na lama. Não duvido nada. Nunca faltaram arrogância e cara-de-pau ao notório dirigente esportivo.

Para reforçar um simulacro de "ouvimos todas as fontes", o jornalista faz menção a algumas objeções à Sua Majestade. Constam, afinal, em documentos oficiais e publicações respeitáveis. Lógico que as poucas citadas a desabonar Havelange foram impressas ao lado do seu veemente desmentido. Ainda assim, por elas se entrevê muito da verdade.

Embora durante a ditadura tivesse mantido ótima relação com o presidente Emílio Garrastazu Médici, o dirigente foi defenestrado pelo governo de Ernesto Geisel, por suspeitas de desvios. Não escapou também aos militares o uso oportunista da CBD e de jogos-exibição de Pelé na África (subvencionados pela entidade, como moedas de troca com federações africanas). João estava em campanha para a presidência da FIFA e os votos africanos foram determinantes para sua eleição.

Outro escândalo dizia respeito à realização da Mini Copa do mundo de 1972, no Brasil, que teria deixado um rombo de 4,4 milhões de dólares junto aos bancos brasileiros. "Falavam de corrupção", admitiu o diretor de banco e colega de conselho Raphael de Almeida Magalhães, também tricolor e amigo de longa data de Havelange.

Paira sobre o dirigente ainda a pecha de ter servido de informante ao SNI - o temido Serviço Nacional de Informações. A acusação é apenas uma - entre muitas outras de corrupção deslavada - feitas no livro "How They Stole the Game", do inglês David Yallop, que se tornou um clássico sobre os desvios no futebol.

Ressabiados, estes mesmos militares acabaram por depor Havelange e qualquer influência que ele tivesse na CBD, em uma campanha de "moralização" da instituição. Tiraram a raposa e colocaram o lobo para cuidar das galinhas. Godefroid contesta:

"Isso é um absurdo que não tem tamanho. A CBD não precisava de moralização. Os que fizeram essas acusações são pessoas indignas, que acusam sem provas", se lamuriou João.

A verdade é que no livro o João se lamuria de muita coisa e se jacta de tantas outras. 

Pasme: mesmo sendo o presidente da CBD, não foi à Suécia na Copa de 1958. Ficou no Rio. Diz que ouvia os jogos pelo radinho. Nem por isso o João deixou de ser decisivo para a conquista do caneco, defende o Ernesto. Ele fez uma ligação telefônica para o comitê organizador, "pedindo garantias de que a arbitragem fosse imparcial e que não sofresse pressões da torcida sueca" (!).

- Monsieur Suecô, non laissez le juiz roubê, nem deixê la suecada torcer. S'il vous plaît.

Imagino que teria sido mais ou menos esse o teor. Além de histriônica, a declaração é patética. Desnuda a falta de senso de ridículo do biógrafo, ao dar crédito a uma sandice dessa. Imagine sei lá quem abordando cada um dos milhares de torcedores e pedindo para eles não "pressionarem", pois fôra um pedido (por telefone) do presidente da federação do país sul-americano, que, apesar da sua seleção ter chegado à final, não viera sequer ver o jogo, muito menos prestigiar seus atletas.

O juiz não roubou. Mesmo se tentasse, não ia dar em nada. Pelé, Garrincha e Didi acabaram com o jogo. Brasil 5x2 Suécia. Os suecos não invadiram o campo. Apenas sorriram e balançaram suas bandeirinhas de mão. O que alguém poderia esperar? Eram suecos, não latino-americanos. 

Outros descalabros presunçosos são o seu auto-atribuído poder conciliatório. Em uma queda-de-braço entre o presidente da República, João Goulart, e o governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, foi ele, Havelange, quem promoveu as pazes. Dessa vez ele não ligou. Pegou um avião e foi a Brasília pedir que Jango assinasse um aumento de capital para o banco estadual.

- Para aquele filho da puta eu não assino - disse o presidente, segundo o Ernesto.

- João, quando estou com o Carlos, nunca permito que ele se dirija assim à sua pessoa - teria dito Havelange ao outro João, o Goulart. E aí, segundo o Ernesto, "Jango se acalmou".

Não sei se é o autor ou se é o João que nos toma por idiotas.

Escuta essa outra. Nos preparativos para a Copa de 1962, diz Havelange que foi à Argentina e se reuniu com o presidente da Associação de Futebol Argentina (AFA). Não dá o nome do cartola. Conta que propôs um amistoso entre as duas seleções, com um raciocínio simplório:

"Se você ganhar, é porque você está bom e eu tenho que prestar atenção no meu time. Se eu ganhar, o mesmo acontece com você."

O argentino saiu da sala, dizendo que ia chamar o técnico argentino para discutirem o assunto. Indignado (?!), Havelange abandonou o local, bradando que "deve estar havendo um engano - para falar com seu técnico, meu técnico vem do Brasil".

Para sorte do Brasil, tanto João, o presidente da confederação, como o próprio treinador eram meros enfeites de parede. O time do Botafogo deu Nilton Santos, Didi, Zagalo, Amarildo e Garrincha ao escrete. Com isso, o Brasil foi bicampeão mundial, sem que Havelange precisasse prestar atenção.

Mas há sempre partes instrutivas em qualquer livro, mesmo no pior deles. Quando personagens se atacam, é como um acordo público de delação, com cada um contando os podres do outro. João conta como Roberto Marinho pretendia construir um condomínio na área do atual Parque Lage, em sociedade com o senador Arnon de Mello, pai de Fernando Collor. 

Carlos Lacerda, então governador, não autorizou, e Marinho passou a atacá-lo no jornal. Lacerda deu o troco: desapropriou o terreno, constituindo o Parque Lage, e denunciou as relações ilegais entre a TV Globo e o grupo Time-Life (estrangeiros não poderiam investir em comunicações no Brasil). O governador apelidou Marinho de "Al Capone da imprensa". Ah, os primórdios...

Havelange enumera histórias de Juscelino no exílio e de como ele era íntimo do ex-presidente brasileiro, a quem aconselhava. O belga adorava contar vantagem em cima de gente morta. Aí é fácil.

Para quem pensa que o Ednaldo inventou a roda - ao manipular já na escalação dos árbitros o resultado dos campeonatos -, Havelange reclama que, na Copa da Inglaterra, os ingleses puseram somente árbitros britânicos para apitar os jogos do Brasil. Quem assistiu sabe que Pelé foi caçado em campo à base de tacape, com a conivência da arbitragem.

(Sessenta anos depois, o Campeonato Brasileiro ainda é adepto desse sistema bananeiro.)

A manipulação da juizada rendeu frutos. Brasil, o bicampeão, foi eliminado na primeira fase. A Inglaterra chegou à final, a qual venceu, com mais uma arbitragem polêmica. Diz Havelange:

"Os ingleses pilharam o mundo inteiro, roubaram o mundo inteiro, inventaram a pirataria, e você acha que eles vão perder em casa a Copa do Mundo?"

Até o momento do fechamento desta edição, nem o STJD nem a Abrafut se pronunciaram.

Um dos ápices da biografia assinada por Ernesto Rodrigues é quando relata a reunião de João Havelange com os jogadores da seleção, após serem eliminados da Copa do Mundo. João reuniu a delegação inteira, fez um discurso e deu uma carteira de couro e um chaveiro dourado para cada um dos presentes. Emocionados, "todos foram às lágrimas", diz Rodrigues.

Se você alguma vez na vida já viu o Havelange falando, com aquela voz empostada de discurso fúnebre, sabe bem quanto você choraria se ele lhe desse um chaveiro. 

Uma outra passagem hilária - mas essa parece ser verdadeira - é trazida pelo filho do ex-presidente Médici, Roberto. Delata que, após a demissão de Saldanha, o ministro Jarbas Passarinho discutiu durante duas horas com João Havelange a possibilidade do novo treinador da Seleção ser o... próprio presidente do Brasil, o general Emílio Garrastazu Médici (!).

Ressalve-se que Havelange e Passarinho negam a denúncia do filho do presidente.

Outra primorosa é quando Havelange diz que o aeroporto "paralisou", quando ele e a esposa desembarcaram em Lagos, capital da Nigéria. O presidente da República, Shehu Shagari, foi recepcioná-lo, também com a mulher. A razão da paralisia coletiva foi que o casal Havelange se dignou a beijá-los na bochecha.

"Não podiam acreditar que duas pessoas brancas beijaram duas pessoas negras com tanto afeto", se orgulha Havelange, o ariano benevolente. "Eles não estavam acostumados com isso".

(Eles não estavam acostumados também a receber as malas com milhares de dólares.)

O livro menciona en passant como a eleição de João Havelange para a presidência da FIFA, substituindo o longevo e respeitado sir Stanley Rous, foi encarada na Europa. O Sunday Times disse que Rous "era um baluarte, protegendo o futebol de dois irmãos gêmeos do mal: o dinheiro e a política. E Havelange era a criatura dos dois".

A eleição de Havelange foi tão surpreendente (reitero, em seu livro "Jogo sujo", Andrew Jennings esmiuça como Havelange teria subornado os dirigentes africanos), que nem mesmo a mídia brasileira estava presente no congresso da FIFA que elegeu o novo presidente. 

"Não cobrimos especialmente o congresso porque a gente não esperava que o Havelange fosse eleito", reconheceu o jornalista Sergio Noronha. "Tomamos um susto".

Relata o biógrafo que "a Fifa que Havelange encontraria para administrar era uma entidade sem dinheiro, que acumulara déficits ao longo de décadas". Ou seja, não tinha o que roubar. 

A única fonte de receita da instituição naquela época eram meros 1% da bilheteria dos jogos internacionais. Já no comando da CBD o dinheiro era bem mais farto. A Mini Copa de 1972, boicotada pelos europeus, recebeu empréstimos estatais e rendera uma fortuna à Havelange. A grana fluiu por baixo dos panos. Mas a ditadura militar descobriu, e não gostou nem um pouco da coisa.

"Um dossiê que pousou na mesa do presidente Geisel em janeiro de 1975", diz Rodrigues, "continha um olhar detalhado e nada generoso sobre praticamente todos os atos e decisões da longa gestão de Havelange à frente da CBD".

Os redatores do dossiê, publicado pela Folha de São Paulo, chamaram de "desvio" e "desperdício de recursos" a ajuda que Havelange "teria obtido do governo para preparar a seleção para a Copa de 1966, para a Taça das Nações, em 1964, e para a campanha rumo à Fifa". 

Especificamente em relação à campanha, o dossiê apontava a subvenção da CBD às excursões do time do Santos aos países africanos, com a presença obrigatória de Pelé. Como já comentado acima, foi com o voto dos africanos que Havelange foi eleito como o novo presidente da FIFA.

Em suma: João Havelange foi não só destronado da CBD, como foi impedido de fazer seu sucessor.

Se no Brasil teve as asas cortadas, na Suiça Jean-Marie Havelange deu o grande vôo da sua vida. A reviravolta na FIFA teve um roteiro interessante, mas o depoimento de Havelange não é crível. E temos que por um limite nessa relação de disparates. Mas ele foi, sim, vitorioso contra a cartolagem local. Numa briga de foice no escuro, conseguiu preservar o cargo e o saco.

De dinheiro.

A corrupção ostensiva como estratégia eleitoral foi encarada como um golpe pela diretoria da FIFA. Mesmo investido do cargo de presidente, Havelange era hostilizado e ignorado nas próprias reuniões da entidade. Ele logo começou a construir seu próprio grupo e a isolar os que o queriam fora dali. E uma chave para conseguir isso foi sua aproximação com a Adidas e com Joseph Blatter.

O desenvolvimento tecnológico multiplicou as possibilidades e a qualidade das transmissões esportivas, atraindo os patrocinadores. Com a Adidas e a Coca-Cola, o novo presidente fez crescer exponencialmente as receitas da instituição. A FIFA ficou rica - e seus dirigentes também.

Pena que nada do que é real ou relevante é abordado de forma verossímil. Então o produto literário que temos em mãos é, em suma, a imitação de uma biografia. A carreira de João Havelange como dirigente esportivo foi tão sorrateira que até a biografia escrita para louvá-lo é nebulosa.

Todas as afirmações são suspeitas. É algo entre uma hagiologia e uma longa peça de defesa.

Uma biografia de faz-de-conta, um relato non-sense sobre a retidão de um pau absolutamente torto. O título encaixaria bem se fosse "Os divertidos causos do picareta João Pantaleão, dono da Cometa, presidente da CBD e Rei da Fifa".

No fim da vida, retirado e já nonagenário, foi oficialmente homenageado no Brasil. O novo Estádio Olímpico do Rio de Janeiro, construído para os Jogos Pan-Americanos, foi batizado com seu nome. Jean agradeceu, comovido, em carta datada de 14/6/2007: "Ao assistir a apresentação do estádio que leva o meu nome todo iluminado, aquela imagem levou-me às lágrimas".

Onde quer que esteja, no purgatório (na melhor das hipóteses, né), sei lá, pode enxugá-las. O nome foi apagado depois que uma investigação, conduzida pelos Estados Unidos, revelou o esquema de corrupção na FIFA, capitaneado por décadas pelo dirigente brasileiro.

Hoje o novo nome do equipamento é Estádio Olímpico Nílton Santos e pertence ao Botafogo. Homenageia o maior lateral-esquerdo do futebol mundial em todos os tempos, bicampeão mundial pela Seleção Brasileira. Nilton, nascido na Ilha do Governador, só jogou por um clube a vida inteira.

Foi pelo Botafogo - onde até hoje é o recordista de jogos de um jogador profissional. Foram 723 partidas. Pela Seleção, foram 86 jogos, incluindo a atuação como titular absoluto nas Copas do Mundo de 1954 (quartas-de-final), 1958 (campeão) e 1962 (bicampeão).

Na Copa de 1950, foi convocado, mas, como não era escalado pelo treinador Flávio Costa, técnico do Vasco e do selecionado, sequer entrou no estádio. Escutou o jogo pelo rádio, andando em círculos, nervoso, ao redor do Maracanã.

Impossível para ele imaginar que, no futuro, a meros sete quilômetros dali, o mais moderno estádio do Rio de Janeiro levaria seu nome.

Por paixão, Nílton Santos assinava seus contratos em branco e nunca se envolveu em uma falcatrua.

Já no que diz respeito ao biografado...

Editora Record, 419 páginas  |  1a e única edição, 2007 

Obs 1.: Fiquei na dúvida quanto às tags. "Futebol" era óbvio. Aí acrescentei "Biografia", mas fiquei me sentindo meio sacaneado. Para evitar ser chamado de caozeiro, meti também "Ficção" e "Humor".

Obs 2.:  Ilustro o post com a capa deste "Jogo duro", sobre recortes das páginas de "Cartão vermelho", de Ken Besinger, que postei semana passada. O primeiro esconde, o segundo revela. 






"Cinzas e diamantes", por Jerzy Andrzejewski


Nas páginas finais de "Cinzas e diamantes" há um embate moral entre dois personagens. Um deles, um ex-juiz que passara um longo tempo como prisioneiro em um campo de concentração alemão, se justifica para a nova autoridade do local. Acuado, argumenta em defesa do comportamento desprezível que tivera. Diz que em situações anormais as pessoas agem de forma anormal.

"Agora a guerra terminou", pontua Kossecki. "Não há mais guerra. Acho, portanto, que voltamos às relações humanas normais". Em seguida, explica seu entendimento de retomada da normalidade. "O fato é que os crimes foram cometidos", assente. "Mas significará isso que, em condições normais, muitas dessas pessoas não possam voltar a ser cidadãos úteis e honestos?"

O novo manda-chuva suspeita que o outrora respeitável ex-juiz tenha sido um chefe de barracão enquanto prisioneiro. Ou seja, alguém que, a serviço do invasor, vigiava seus próprios patrícios.

Para os não muito afeitos ao assunto, a nota de rodapé esclarece o que seria um "chefe de barracão": "Função desempenhada pelos prisioneiros servis que se sujeitavam aos alemães e que estes nomeavam para desempenhar o cargo. Geralmente se transformavam em carrascos de seus companheiros e, traidores, muitas vezes eram mais odiados que os próprios alemães".

Para salvar a própria pele, Kossecki teria traído seu próprio povo. O mal incomum cometido por pessoas absolutamente comuns. A circunstância nos lembra o muito falado, mas pouco lido, "A banalidade do mal", livro que tornou célebre a intelectual judia Hannah Arendt. Ele versa sobre a capacidade de homens medíocres, absolutamente banais, cometerem atrocidades inomináveis.

O romance de Jerzy Andrzejewsk tem nitidamente por objetivo propor esse balizamento.

A ação se passa em exíguos quatro dias, de 4 a 8 de maio de 1945, em uma pequena cidade do interior da Polônia. Estavam nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Na prática, faltava apenas um fiapo de guerra, o golpe de misericórdia para a derrota definitiva do Reich alemão. Para o dilacerado povo polonês, após seis anos de mortes e destruição, a guerra contra os nazistas já havia acabado. Os alemães que não conseguiram fugir foram mortos ou feitos prisioneiros.

O combate acabara, mas não o conflito. Restou uma profunda divisão entre os sobreviventes de um país em ruínas, e novamente invadidos (agora pelos russos). Ainda que todos odiassem os alemães, o povo estava fracionado - entre os que apoiavam e aqueles que eram contra os soviéticos.

Como você sabe, historicamente, o buraco ali é mais embaixo.

Vale a pena dar uma contextualizada. A Polônia foi rachada entre alemães e russos em setembro de 1939, logo após a invasão do país. Foi esta invasão que deu início à Segunda Guerra Mundial. O tratado Ribbentrop-Molotov, celebrado entre fascistas e comunistas, escriturava a partilha da Polônia e duraria até junho de 1941, quando a Alemanha invadiu seu ex-aliado, a União Soviética.

Durante a ocupação, mais de três milhões de poloneses morreram, seja em combate ou em campos de concentração. Foram mortos por russos e por alemães. Em agosto de 1944, houve um levante na capital do país, Varsóvia, contra a Werhmacht, o exército alemão. Os revoltosos aproveitaram que a Alemanha recuava e tentaram retomar a capital com um pelotão de guerrilheiros.

A revolta, que apostava na chegada do Exército Vermelho (que tinha também uma divisão polonesa, formada por poloneses que fugiram para a União Soviética após a invasão alemã), poderia ter sido vitoriosa, caso os russos não tivessem estacionado às margens do Dnieper e deixado a resistência - o Armja Krajowa - ser dizimada pelas forças nazistas. Ainda que esfacelada, a Wehrmacht era um exército regular, muito mais contundente que qualquer guerrilheiro apaixonado.

Somente quando a resistência polonesa foi destruída é que os russos cruzaram o rio e trucidaram os alemães (sobre o tema, sugiro o excepcional "O levante de 44", de Norman Davies, resenhado aqui no blog). A partir daí, os poloneses que vieram à reboque dos soviéticos se tornaram os candidatos aos novos cargos do poder. Os que não aderiram aos russos passaram a ser a oposição a eles - e à URSS.

Pronto. Lembrando que, no livro, esta contextualização também foi feita, ainda que de forma sucinta, na conversa entre o coronel Staniewicz e o jovem Andrzj.

"A Segunda Guerra Mundial está chegando ao fim", diz o coronel. "Mais dois ou três dias, talvez uma semana... e estará terminada. Mas não poderíamos prever um fim como este. Pensávamos que não só a a Alemanha sairia vencida, mas que a Rússia também fosse derrotada. As coisas sairiam um tanto diferentes. Na atual conjuntura, nós, poloneses, estamos divididos em duas categorias: aqueles que traíram a liberdade da Polônia e aqueles que não a traíram. Os primeiros querem submeter-se à Rússia. Nós, não. Eles querem destruir-nos. Nós temos que destruí-los. Estamos numa batalha, numa batalha que apenas começou".

O cenário do autor é Ostowiec, um lugarejo a meio caminho entre Varsóvia e Cracóvia, as duas maiores cidades do país. As autoridades locais, indicadas pelos russos, já controlavam a cidade. Um grupo de poloneses, entretanto, insatisfeito com o rumo político das coisas, executa um atentado. Este é o pano de fundo da estória.

Jerzy nos oferece um ácido panorama da sociedade polonesa da época, em meio ao desconsolo e à mesquinhez. São habitantes que partiram e depois retornaram. Muitos morreram e muitos fizeram coisas vergonhosas para não morrer. Seus diálogos são curtos e sarcásticos. 

O vazio, a ironia e o acaso costuram a narrativa, dinâmica. Mas nem tudo funciona. Com a enxurrada de personagens, o leitor se perde ante tanta gente entrando e saindo dos capítulos. E, pior, todos têm nomes sem apreço pelas vogais - como o do escritor, Andrzejewski -, o que não ajuda em nada.

Como a trama se desenrola em quatro dias, o desdobramento de cada núcleo acaba incompleto - idem a descrição do assassinato. Jerzy foi tão sutil e dissimulado que li e reli o trecho e não consegui descobrir, em meio às palavras, o momento em que o autor conta que o sujeito foi morto (sei que provavelmente você não vai ler, mas não vou dar spoiler mesmo assim, questão de princípio).

O livro foi lançado ainda nos anos 40 e em 1958 foi para as telas do cinema, pelas lentes de um cineasta que se tornaria mundialmente famoso (coisa rara para um polonês): Andrzej Wajda. A película, típica da década, tem o estilo dramático e sombrio do período.

Com o elenco compondo um mosaico da aturdida nação polonesa, não há propriamente um protagonista. Mas há um sujeito solitário que aparenta ser o alter-ego do autor. Um vingador errante na nova Polônia, ele, o sniper, conhece uma garota simples que o faz querer abandonar tudo.

Seguindo sua próxima vítima, mas ao mesmo tempo perdido nas próprias reflexões - contraposição que era o gran finale do texto -, Chelmicki, o alter-ego, anda pelas aléias de um cemitério. Súbito, depara com uma lápide, que serve de legenda à melancolia dos personagens.

"Passante, eu era o que és; tu serás o que sou. Vamos orar um pelo outro."

A obra não está mais à venda e provavelmente nunca será reeditada. Não há mercado aqui para este conteúdo. Esgarçado, meu exemplar se desmanchou enquanto eu lia. Encomendei de um sebo e já chegou em estado crítico. A contracapa rasgou e a encadernação diluiu com a leitura.

Veio morrer aqui em casa, como boa parte dos seus personagens. Vou cuidar bem do que restou.

Editora Saga S.A., 298 páginas  |  Impressão: 1968  |  Tradução  Maria de Lourdes Modiano

Título original: "Popiol I Diament"

"Confiança", por Hernan Diaz



O romance tem uma estrutura inventiva. Você não sabe o que leu até passar da metade do livro, quando o autor lhe dá a chave para você contextualizar o que já tinha lido. É quando você conclui, enfim, porque não tinha entendido nada.

Peguei pesado, né? Mas não quero que você se precipite. Não descarte o livro por conta deste meu preâmbulo sincero. Diaz escreve bem. Bem até demais. O sujeito é do ramo. Mas ele não achou suficiente ter apenas o dom da escrita, ser proprietário de um talento incomum. Quis ir além.

Então ele constrói um romance inusual. Todo fracionado. E com pegadinhas.

Conta a história de uma família rica, cujo filho rico possuía uma vocação de rei Midas para ficar cada vez mais rico. Então ele enriquece cada vez mais, e casa com um mulher inteligentíssima, que vivia para a música e para a filantropia. Não tiveram filhos e ela adoece ainda jovem. O bilionário faz tudo para salvá-la.

Meu resumo é simplista como os personagens. Já a estrutura do livro é complexa. Uma charada.

Como podemos constatar no índice, são muitos livros dentro de um só. Isso já seria uma pista. Mas quem dá atenção a índices antes de começar a ler um livro? Então a gente só descobre que o truque já estava pré-avisado quando passamos da metade do texto.

Vou tentar dar uma clareada.

O primeiro livro dentro de "Confiança" se chama "Ligações", escrito por um tal Harold Vanner, sobre um tal Benjamin Rask. O segundo se chama "Minha vida", escrito pela ghost-writer de um tal Andrew Bevel, sobre ele próprio. O terceiro se chama "Memórias, relembradas", escrito por uma tal Ida Partenza, a ghost-writer, sobre a biografia que escreveu em nome de Andrew Bevel.

Pausa para respirar.

Dentro do terceiro livro há duas narrativas que se intercalam: a da srta. Partenza, que conta como escreveu "Minha vida", aquele que viria a ser assinado por Andrew Bevel; e a outra da também sra. Partenza, a mesma Ida. Ela, cinquenta anos depois, visita a casa de Andrew Bevel, transformada agora em uma fundação, e comenta sobre o que ela mesma tinha escrito no passado. 

Há um quarto livro, "Futuro", assinado por Mildred Bevel, née Howland, esposa de Andrew, e que tinha sido Helen Rask, née Brevoort, em "Ligações". Ela, que escreve o quarto, é a razão de ser do segundo e do terceiro livro. E é a grande personagem misteriosa no primeiro; sendo que, no quarto, ela revela algo que ninguém jamais desconfiaria.

Entendeu?

Se não, sem problema. Nem era minha pretensão. Eu, que li o livro, ralei pra entender, imagine você, que (ainda) não leu. Mas paro por aqui. Iria me estender desnecessariamente. É provável que o entusiasmado testemunho de leitores mais inteligentes, e por isso mesmo com um lugar privilegiado na contracapa da edição, possam lhe prestar um serviço melhor que o meu. Vamos a eles.

"Complexo, misterioso e surpreendente do início ao fim. Diaz tem na ponta dos dedos o poder dos grandes nomes da literatura." - The New York Times

"Uma história fascinante sobre classe, capitalismo e ganância cujo resultado é uma alquimia hipnotizante de metaficção." - Esquire

"Um épico americano, Confiança é páreo duro para O grande Gatsby. Um romance glorioso sobre impérios e apagamentos, maridos e mulheres, impressionantes fortunas e indescritível miséria." - Oprah Daily

Epa lá. Aí não. Tudo bem, sou burro, não entendi patavinas do vai-e-vem da estória até metade do livro. Mas qualquer brasileiro sabe o que é miséria. E posso garantir que não há "miséria" no livro. Nem um pouquinho. A mais pobrinha era a ghost-writer, que morava com o pai em um apartamento de um bairro proletário. Mas nada de miséria.

Daonde surgiu isso? Fiquei encafifado com essa tal de miséria. A não ser que - ah, não, não é possível - que o gente boa do marketing, que pegou o material original da edição publicada em inglês, já com os testemunhais a reboque, tenha metido um miséria como tradução de misery.

Não pode ser, né? Aí seria tripudiar. Mas fiquei com a pulga atrás da orelha. Se não há absolutamente NADA de miséria nas quatrocentas e dezesseis páginas do romance, a presença da palavra na contracapa só poderia vir de uma tradução, vá lá, desatenta.

"Desatenta" é pegar bem leve. Mesmo eu, que estudei inglês por décadas e não consegui aprender, sei que "misery" não é "miséria" no sentido de pobreza. Não posso crer que o estagiário do marketing da editora tenha usado o Google Translator, numa tradução tabajara. Seria o fim da picada. Mas, pelo sim, pelo não, resolvi não deixar passar batido.

Saí pra fuçar. Qualquer um que me conheça sabe que sou tinhoso. E nem foi difícil achar a resenha. Está lá para quem quiser ler, no endereço eletrônico que reproduzo abaixo.

https://www.oprahdaily.com/entertainment/books/a39864513/trust-hernan-diaz-review/

Sim, a palavrinha tá lá na resenha gringa. A "misery" em questão. Segue a passagem, ipsis litteris.

"Trust is a glorious novel about empires and erasures, husbands and wives, staggering fortunes and unspeakable misery".

Putz. O cara fez isso. Duro de acreditar. Ok, vão culpar a faxineira. Filho feio não tem pai. Mas antes fosse só isso. Descobri que a lambança foi muito além. Não se restringiu a uma palavrinha ou duas na contracapa do livro (o "apagamentos" também foi f...). O inaceitável está na capa em si.

Na verdade, na única palavra estampada na capa da edição brasileira. "Confiança".

A palavra escolhida para título é um equívoco na tradução. Neguinho não pegou o espírito da coisa.

O título original, "Trust", se apoia na ambiguidade. Trust é uma referência, óbvia, aos trusts (conglomerados empresariais, de um dos quais o protagonista é o chairman) e remete, em segundo plano, ao significado primário da palavra, "confiança". O duplo sentido é quem inspira o título.

Eu já não tinha compreendido bem o porquê do título desde o início. Avancei na leitura e continuei sem conseguir juntar lé com cré. Mas depois do miséria da contracapa, vendo as trapalhadas desse lost in translation, foi a primeira coisa que me passou pela cabeça. Corri para checar as resenhas em inglês - e confirmei o que tinha pensado logo de cara. O duplo sentido é, aqui, a alma do negócio. Nas duas páginas na internet que abri, ao acaso, encontrei a mesma interpretação. 

O site "From first page to last" se detém em esclarecer o título da obra. "The title refers not just to trusts in the meaning of monetary assets but also the trust that the characters place in others".

O próprio artigo do Oprah Daily faz referência à ambiguidade do título, chamando-o de wordplay, um "trocadilho" e, coincidência ou não, se valendo de palavras semelhantes ao site:  "The title refers not only to financial trusts but also the trust we place in each other, the contract between reader and author".

Curiosamente, ambos fazem uso da mesma expressão ("not only... but also"), utilizada para enfatizar quando o fato referido tem dois pesos que se equivalem entre si.

O simples enunciado da expressão reforça esta percepção: "Not only... but also' is a complex conjunction that joins two clauses or phrases, emphasizing that the second element is equally important as the first one. It is often used to add an additional piece of information that complements the first element".

Para não dizer que desci o malho e depois tirei o meu da reta, só para não me comprometer, digo que bastava meter um "infortúnio", lá na contracapa: "(...) impressionantes fortunas e indescritível infortúnio". Com a vantagem adicional que o carinha ainda poderia se gabar que, trocadilho por trocadilho, o dele em português funcionava ainda melhor que o original.

Mesmo para a capa serviria, mas eu optaria por manter o título em inglês. "Trust". E pau no burro.

Já deu. Isso aqui não é aulinha de inglês, até porque sou semi-analfabeto no idioma. Mas o leitor comum espera que a editora tenha um mínimo de apreço no tratamento dado ao próprio produto.

Gastar nos direitos do livro e depois economizar na tradução dá nessa barbeiragem aí.

Intrínseca,  416 páginas  |  1a edição  |  Copyright 2022  |  Tradução (da obra) Marcello Lino

Título original: "Trust"

P.S.: Tudo que vi nos sites em inglês é uma ladainha sem fim de elogios à obra. O livro ganhou o prêmio Pullitzer na categoria ficção em 2023. De boa, não me incluí nesse time não. O texto em português revela estrutura confusa, desenlace frustrante e personagens monocromáticos. Envolvente? Sim. Mas artificial.

"Exodus", por Leon Uris


"Exodus" é um híbrido de livro de história e romance. Ora pende mais para um, ora para outro. O início, ficção pura, é bem característico dos best-sellers que dominaram o mercado editorial norte-americano dos anos 50 aos anos 70. Diálogos curtos e personagens cínicos.

Sob este aspecto, o livro é bom. Ainda que, à medida em que o enredo se desdobra, os componentes fictícios acabem sendo escanteados pela densa abordagem histórica.

E aí, quando o assunto é História, não espere isonomia salomônica. A abordagem do autor se dá sob o ponto-de-vista dos hebreus. Mas isso não condena a obra. Como repito sempre, não há autor imparcial. Todo mundo tem lado. Porém, se o conteúdo é honesto e valioso, tá valendo.

Aqui vale. "Exodus" se tornou um marco para o entendimento de um conflito até hoje em curso.

O título do livro remete ao nome de um dos navios que zanzavam abarrotados de sobreviventes judeus, pelo Mediterrâneo, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Os passageiros eram refugiados europeus. Sem terra ou pátria, cada indivíduo embarcado era o último componente de uma família chacinada. Eram remanescentes do Holocausto, à deriva e sem destino legal.

Em 1947, o fim de cada uma destas embarcações era incerto e se resumia a quatro opções:

Na tentativa de furar o bloqueio inglês, os navios zarpavam da França e eram 1) abordados nas proximidades do porto, e dali obrigados a retornar e despejar os judeus de volta em terra firme, donde eram reconduzidos para campos de refugiados na Alemanha; 2) abordados já em alto mar, daí escoltados até o Chipre, onde os passageiros eram trancafiados em campos de refugiados na ilha; 3) bem-sucedidos em desembarcar sua carga humana em algum porto da Palestina, e aí era um salve-se quem puder, com os judeus perseguidos pela polícia inglesa; 4) afundados à sangue-frio pela Marinha Real Britânica.

Os passageiros do Exodus eram fugitivos de um campo de refugiados cipriota. Seu capitão tinha por missão desová-los clandestinamente na cidade de Haifa, na Palestina. A viagem foi pra lá de romanceada e ajudou a catapultar as vendas da obra, que virou quase uma franquia: o longa-metragem "Exodus", estrelado por Paul Newman, arrastou multidões aos cinemas.

(Em 2007 foi publicado "Exodus 1947", por Ruth Graber, um sólido trabalho de reportagem investigativa, em que os passageiros do emblemático navio foram entrevistados e seus destinos - bem como sua origem - foram revelados.)

Já o roteiro de Leon Uris, após utilizar os capítulos iniciais para criar uma atmosfera de thriller de ação, logo revela seu principal objetivo, que é uma longa linha do tempo. Uris narra a vida das comunidades judias nas franjas do Império russo, vítimas frequentes de animados pogroms. Com o surgimento do sionismo, a perseguição estimula a imigração dos idealistas para a Palestina, no fim do século XIX.

O escritor faz deste recorte a gênese da trama. Se valendo da epopeia ficcional de dois irmãos, Barak e Akiva (nés Jossi e Yakov), que vão cinematograficamente a pé da Rússia ao Oriente Médio, o autor detalha as costuras e pressões políticas de um mundo com interesses excludentes, no início da Guerra Fria.

Abre uma janela interessante sobre as relações sociais árabes na Palestina da época, e de como a chegada dos judeus desestabilizou a exploração que os efêndis tradicionalmente faziam dos felás - o povo primitivo e ignorante que habitava os pântanos da região.

Se valendo das aldeias que proporcionavam interação comunitária, o autor pontua ao longo de todo o livro o contraste entre o que apresenta como ímpeto modernizador e criativo do colono europeu (os judeus) e a passividade característica do nativo local (os felás).

Também expõe o choque de culturas, contrapondo a igualdade de homens e mulheres entre os judeus (onde as mulheres protagonizavam até ações militares) à submissão das mulheres árabes - nas costas de quem caía o serviço pesado das aldeias, na função de semi-escravas dos maridos.

Após um período de relativa tolerância entre árabes e judeus, no início do século XX, onde havia uma rivalidade latente, amenizada pelos ganhos pecuniários que a presença judaica trazia para a terra e o povo local, o mandato inglês da Palestina se torna o catalisador do livro, incendiando a história.

Antagonistas cuja existência histórica acabou diluída na sequência interminável de conflitos que caracteriza a região, os ingleses - que ocupavam a Palestina com seu exército - são expostos como o maior inimigo do êxodo judaico. Após um curto período em que toleram e contribuem para o estabelecimento dos judeus, os britânicos, por uma mescla de interesses econômicos e políticos, passam a impedir a chegada dos judeus, ao mesmo tempo em que municiam e protegem os árabes. 

Este enfrentamento não só abre o livro, como citei - com os judeus sobreviventes da Solução Final confinados em um campo de refugiados no Chipre, sob vigilância inglesa -, como vai tomar boa parte da narrativa. São os judeus em guerra declarada contra os ingleses, em enorme desvantagem militar e numérica, e tendo que simultaneamente neutralizar as dezenas de grupelhos árabes que executavam ataques de emboscada.

Todo o universo geopolítico e diplomático que marcou o período é esmiuçado na obra. O avanço cronológico das tratativas internacionais em busca de uma solução que contemplasse todas as partes interessadas é descrito em detalhes.

A baixa perspectiva de sucesso e a reviravolta política que resultaram na imprevista aprovação da ONU à criação do Estado de Israel é apresentada voto a voto. Para quem desconhece as filigranas da História - eu e a imensa maioria da torcida botafoguense -, a reprodução da Assembleia é uma oportunidade ímpar para aprender como as coisas se deram, em um passado nem tão remoto assim.

Ao fim, Uris retoma os personagens que lhe ajudaram a contar sua história. Ainda que celebrando a vitória parcial por terem construído um lugar para os judeus, as mortes no confronto constante com os árabes, em um contexto onde por algum tempo pareceu possível a coexistência em harmonia, impedem um final feliz.

Compreensível. Publicado há 65 anos, boa parte do texto parece ter sido extraído do jornal de hoje.

Editora Record, 713 páginas  |  10a edição, 2023  |  Copyright 1958 | Tradução Vera Pedroso


"A informação", por Martin Amis


Eu de cara devo admitir que tenho um ponto em comum com Richard Tull, o protagonista. Escrevo resenhas de livros que ninguém lê. Mas talvez as semelhanças parem por aí. Tull escreve resenhas favoráveis e recebe por isso. Eu desço a lenha (quando o autor merece) e ninguém me paga.

Também...

Dito isto, eu, que já babei Amis por um romance que não me lembro o nome agora (era um cínico triângulo de amor em um campo de concentração nazista, onde um tenente comia a mulher do chefe do campo), não vou poder fazer o mesmo neste "A informação".

Tem coisa boa? tem. E é bom? Não. É chato, pedante, alongado, narcisista, presepeiro. O domínio que o autor tem da prosa se presta a um espetáculo monótono, digno de uma foca amestrada. 

Admito que precisa ser bom para equilibrar uma bola no focinho. Mas vá assistir isso dias a fio...

É um texto pretencioso que te cansa. Até a viagem de Tull e Barry para os Estados Unidos, a leitura do livro é tipo subir uma montanha íngreme levando pela cara uma tempestade de areia. Chegando ao topo, porém, parece que uma benção miraculosa subitamente contaminou a narrativa, e ela fica... boa!

Pena só que foram necessárias quase trezentas páginas para chegar nesse ambiente minimamente razoável para o leitor diletante. E - mais pena ainda - depois de umas três dúzias de páginas a dupla volta para o modorrento cenário londrino caricaturado pelo autor.

Por que Martin, ou seus editores, não perceberam que era um texto pernóstico, masturbatório, de uma auto-deploração soturna? Sei lá. Devia ter mercado cativo nos pubs. Amis morreu em maio deste ano, na véspera do aniversário do meu cunhado botafoguense. O que isso tem a ver com a história?

Nada! mas foi justamente com um monte de nada a ver que o célebre escritor preencheu quase quinhentas páginas. Com uma carrada de irrelevâncias para o leitor não-inglês contemporâneo (não que meu simpático cunhado seja irrelevante, mas sua presença nesta resenha certamente o é).

E olha que o argumento cerne da narrativa era excelente.

"Ele é o meu amigo mais antigo. Eu adoro aquele filho da puta", comentou Richard Tull no momento em que, pela última vez, tentava fuder inapelavelmente com a carreira do tal grande amigo.

E o escritor incumbido desse tema escroto aí de cima era ótimo. Martin Amis. Seus personagens idem. Dois velhos amigos. Ambos escritores. Um hermético. O outro inócuo. Um não vendia nada. O outro vendia horrores. Despeito versus desprezo. Salamaleques versus indiferença. Plot: um amigo-autor fracassado que passa a vida tentando cavar a cova do amigo-autor best-seller.

Alguém pensou (o próprio Amis?): essa sacada pode dar samba.

Então juntou-se uma baita ideia para um livro e um baita autor para escrevê-la. Mas deu chabu. Talvez ele estivesse de ovo virado. Ou sem saco. Ou de salto alto. Mas o que resta é que não deu liga. E olha que, escolhendo a dedo alguns trechos, até parece que o livro é bom.

Eu deveria ser suspeito, resenhando um livro sobre um resenhista. Mas Richard Tull era pior que eu. Eu gosto de resenhar. Tull queria ser romancista. Seu primeiro livro, "Premeditação", foi seu ápice. "O veredito sobre Premeditação foi o seguinte: ninguém entendeu o livro ou chegou a lê-lo até o fim, mas ninguém também tinha certeza de que fosse uma merda".

A partir daí, tudo só piorou. Já Gwyn Barry, o galês, escrevera o título mais vendido da década, "Amelior". Tull não era ninguém na fila do pão. Os jornalistas faziam fila para entrevistar Barry.

"Amelior é uma espécie de terra prometida? É por causa desse mito que faz tanto sucesso? Seus dois livros são utopias formais? O senhor acha que a reinvenção da sociedade é uma das responsabilidades do escritor?"

Enquanto isso, Tull "reservava-se o direito de deixar claro que as coisas que Gwyn escrevia eram uma merda, Amelior era uma merda imperdoável e que o sucesso de Gwyn era acidental. Transitório". Segundo o amigo, "o entusiasmo pela obra de Gwyn esfriaria mais depressa que seu corpo".

Ainda que sem dinheiro, sem leitores e sem editora, Richard Tull aspirava grandes coisas. "Ele não tentava escrever romances de talento", contava Amis do seu protagonista. "Tentava escrever romances de gênio, como Joyce. O próprio Joyce era um chato mais ou menos na metade do tempo. Richard era chato o tempo todo. Sua obra era ilegível".

Não é necessário dizer que um escritor que escreve sobre escritores e suas picuinhas está zombando dos seus próprios pares. Um ás do mundo literário que escarnece de editores, jornalistas, autores e da mediocridade coletiva. Talvez, mais que tudo, escrevesse para eles e o livro fosse uma grande piada interna. OK. Pode ser. 

Mas o leitor brasileiro comum é uma vítima inocente do livro de Amis. O livro é chato como o "Sem título" de Richard Tull e como é James Joyce em metade do tempo (segundo o autor, né, porque eu nunca li Joyce; como vou me propor a ler um cara que não usa ponto?)

Diz a contracapa que o romance é "um exemplo do virtuosismo e da irreverência linguística que se tornaram a marca de Martin Amis". É como eu disse antes. A tal foca amestrada. "Amis evolui com desenvoltura na fogueira de vaidades do mundo literário". Aham. Pois é.

Óbvio que sobra sarcasmo para as premiações do meio. Amis comenta que seu insípido co-protagonista, Gwyn, o galês, estava sendo preterido para o primeiro prêmio pela "poetisa bósnia que também dirigia um hospital infantil com mil leitos em Gorazde". Amis é bom. Este livro não.

São centenas de páginas absolutamente confusas, com frases deliberadamente pela metade, personagens bisonhamente semi-definidos, como se a descrição completa das cenas não nos fosse apresentada porque integram alguma espécie de charada - ou porque um escritor brilhante que escreve para outros escritores quase brilhantes deve deixar metade do texto subentendido.

Geralmente eu não subentendia. Eu só não entendia.

Há uma passagem em que Richard está concluindo o que Amis define como "um nobre exemplo do antigo gênero literário conhecido como libelo difamatório - que se situam no extremo oposto do panegírico, ou seja, consistem basicamente em injúrias e acusações pessoais".

Bem, eu não injuriei nem acusei ninguém. Estou a salvo da pecha. Só não aliviei.

Você pode me perguntar, como certa vez fez uma dona, por que o livro tem esse nome (no caso, era um outro livro). Não vou dizer, para não dar spoiler. Mas é uma razão babaca. A informação é essa.

Na foto, eu leio o livro nos jardins de Fontainebleau. Decerto você não está ligando o cu às calças, mas este era o jardim de Napoleão. Provavelmente eu nunca mais vou ler um livro no jardim de Napoleão. Ou seja: eu poderia ter escolhido um livro melhor para ler no jardim do cara.

Cia das Letras, 490 páginas  |  2a edição  |  2004  |  Copyright 1995  |  Tradução Sergio Flaksman

Título original: "The information"

Obs.: Entrando no site da editora, há seis livros de Amis, entre eles o "Zona de interesse", que citei lá em cima e cujo nome tinha esquecido. Há também "Lionel Asbo", "Casa de encontros", "Trem noturno" e "Água pesada e outros contos". O mais caro é justo "A informação", R$ 87,90. Que sacanagem.

"Tempo para viver, tempo para morrer", por Erich Maria Remarque


Escrita como um roteiro para um film noir, o segundo livro de Remarque é uma parábola sobre a inevitabilidade da morte em um planeta em guerra. Diferentemente do seu primeiro livro - talvez o maior best-seller da literatura alemã -, genuinamente autoral, este é um romance pacifista, narrado com as tintas fortes de quem esteve no front na guerra anterior.

Aliás, "Nada de novo no front", seu primeiro texto, fez tanto sucesso que seu título se tornou expressão corrente (a obra era a narrativa de um jovem soldado alemão, que, ao longo da Primeira Guerra Mundial, vê todos os seus companheiros morrerem em combate, um a um; a falta de "novidades" era a morte corriqueira).

Falei desse livro aqui, no ano passado. Dentro da cronologia que me propus para uma sequência de posts sobre a WWII, ele, que falava da WWI, fazia parte da abertura. Já este faz parte do fechamento.

Com a enorme repercussão do seu livro (não do meu post, quem me dera), que contava das agruras da Wehrmatch no teatro de operações, Remarque foi execrado depois da guerra. Para os nazistas - defensores da balela de que a Alemanha não fora derrotada no campo de batalha -, o texto era tudo o que não queriam ver divulgado: um soldado alemão denunciando as más condições da linha de frente, a falta de armamento, a fome, as tropas exauridas, as falhas no apoio logístico.

Para evitar a disseminação de um relato que não mitificava a natureza crua e nada heroica da guerra, os nazistas queimaram todas as edições. A simples posse do texto se tornou proibida. 

O autor foi caluniado, vetado e banido. Sua irmã foi presa e assassinada pelo regime. Com requintes de crueldade: ela, que antes de Hitler assumir o poder teria dito preferir perder a cabeça do que apoiar o austríaco, recebeu o troco literal. Foi decapitada pela SS.

Mas, seja como for, a Alemanha, depois da de 1914-18, perdeu mais esta guerra, a de 1939-45. Erich, agora na França, se tornou uma celebridade mundial. Era não só um alemão que havia sido inimigo do regime (agora definitivamente derrotado), como se tornara também um ícone da paz. 

Pois com esse "Tempo para viver...", escrito quase dez anos após o fim da Segunda Guerra, um quarto de século mais maduro do que quando escreveu seu primeiro livro, é nítido que o ex-soldado sofisticou seu texto. Sua dinâmica, antes reflexiva, agora é cinematográfica.

Buscando já de cara lançar o leitor no inferno da guerra, ele abre o primeiro capítulo com seu protagonista, Ernst Graeber, na linha de frente alemã, em solo russo. Este já era um momento em que a queda se aproximava. O exército alemão recuava.

Após alguns tiroteios e execuções sumárias de judeus, camponeses russos e partisans, Graeber obteve uma licença e foi à Alemanha por duas semanas. Foi para sua cidade natal, Essen, à procura dos pais, mas metade da cidade estava reduzida a escombros. Seu bairro, Werden, estava semi-destruído. Encontrou uma antiga colega de colégio, Elisabeth, cujo pai havia sido preso pela Gestapo. A relação do casal durante seu período na Alemanha irá tomar dois terços do livro.

O romance dos dois freia demasiadamente a ação. A narrativa se torna arrastada.

E não só. Uma das deficiências do texto é a constante impressão de estarmos lendo uma denúncia panfletária sobre os erros e atrocidades do governo nazista. Por mais que o contexto seja convincente, é nítida a intenção do autor em pontuar, através dos personagens e situações do enredo, o caos administrativo que grassava em meio à obsessão dos alemães pela ordem (sem contar a cegueira dos idólatras de Hitler e a quantidade de criminosos de farda).

Por sua inequívoca experiência no teatro de guerra, o livro encorpa quando o protagonista retorna para o front. Vou dar uma palhinha. A violência ostensiva, à guisa de recurso estilístico, provavelmente causava mais impacto do que causa hoje.

"Atrás de um tanque atingido, encontrou Sauer e dois recrutas. O nariz de Sauer sangrava. Uma granada tinha explodido muito próximo dele. Um dos recrutas estava com o ventre aberto. Os intestinos estavam expostos. Chovia para dentro dele. Não havia nada para medicá-lo. Também, seria inútil. Quanto mais rápido morresse, melhor. O segundo recruta tinha a perna fraturada. Caíra dentro de uma cratera. Não dava para entender como ele poderia ter fraturado a perna na lama macia. Dentro do tanque incendiado, que tinha se partido ao meio, viam-se os esqueletos negros de seus ocupantes. Um pendia para fora. Seu rosto só estava meio carbonizado; a outra metade estava inchada, vermelha e violeta, com a pele estourada. Os dentes eram muito brancos, como cal."

O fim do livro, ainda que contundente, era previsível. Mas difícil criticá-lo por essa previsibilidade: escrito há quase setenta anos, o que poderia ser original, à época, hoje é banal. Não obstante, a obra pacifista de Erich Maria Remarque cumpre seu papel. Nos faz refletir. E lamentar.

Editora Globo, 356 páginas (1a edição) 1990 | Tradução Marion Luiza Pfeffer | Copyright 1954

Título original: "Zeit zu leben und zeit zu sterben"

Obs.: Pena, mas a edição não está mais à venda. De toda maneira, hoje em dia o que não falta é sebo online. Recomendo o www.estantevirtual.com.br. Sou freguês.

"Onde estão as flores?", por Ilko Minev


A narrativa dos campos de concentração feita pelo judeu búlgaro Ilko Minev é bem mais amena do que aquelas às quais nos acostumamos a ler. Perto das atrocidades que caracterizam este capítulo da História mundial - o Holocausto -, o relato de Minev é fichinha.

Não que não fosse infernal. Foi. O autor disserta em primeira pessoa sobre a aliança entre a Bulgária e a Alemanha nazista. E conta, em minúcias, como superou as duras condições dos campos de trabalho escravo, às margens do Danúbio.

Com um porém: diferentemente da maioria dos relatos de prisioneiros judeus, Minev, por meio do seu personagem Licco Hazan, descreve um cenário onde não havia maus tratos ou barbárie - apenas frio, roupas inadequadas, dormitórios abarrotados e falta de comida.

Bem ruim. Naturalmente, passar dois anos nas circunstâncias acima descritas seria trágico para qualquer cidadão contemporâneo - mas para um judeu europeu na década de 40, preso em um campo de concentração nazista, eram condições surpreendentemente toleráveis.

Para você ver.

Segundo Minev/Hazan, a Bulgária não era hostil contra seus judeus, como outros países do Leste Europeu. O autor credita a convivência "harmoniosa" entre cristãos e judeus búlgaros ao pequeno percentual da população judaica no país - 1%. Já eu, particularmente, sou cético quanto a criação de teses com base neste percentual. Os judeus alemães também eram poucos (menos de 1% da população alemã) e foram quase todos criminosamente mortos.

Certamente o carinho do autor por sua terra natal influenciou numa eventual condescendência.

Mas a situação na Bulgária era tão mais palatável que na Polônia ou Ucrânia que dava até pra dar no pé. Por conta da ajuda influente de seu antigo patrão judeu, que havia escapado do país antes da chegada dos nazistas, Licco conseguiu fugir do campo, obter novos papéis e viajar para a Turquia.

Era janeiro de 1944 e faltava um ano e meio para a guerra acabar. Os boches, porém, já recuavam.

A Cruz Vermelha conseguiu para ele e Berta - a mulher que recém conhecera na fuga da Bulgária e com a qual no mês seguinte se casou - um visto de imigração para o Brasil. Seus documentos falsos atestavam que ele era cristão e "técnico em engenharia". Tal despiste era necessário: o Brasil do governo Vargas não aceitava a entrada de emigrantes judeus, nem de gringos sem qualificação.

O casal Hazan viajou com conforto de Istambul para Gibraltar, na segunda classe do MS Formosa (coincidentemente, no mesmo navio em que meu avô havia desembarcado no Brasil, catorze anos antes, em 1930). De lá o plano era seguir para Santos, a bordo do Jamaique, mas saltaram em Belém e dali rumaram para Manaus, onde se estabeleceram. Nunca mais deixaram a Amazônia.

Ao detalhar a vida do casal em solo brasileiro, o livro passa a ter o empreendedorismo do imigrante como pauta. E, de emprego em emprego, Licco se torna um bem-sucedido empresário regional.

Apesar da orelha reforçar que se trata de uma obra ficcional ("Licco Hazan, o narrador deste romance [...]"), o texto é uma coerente costura de fatos triviais. Ao contar a história de Licco, Minev entrega conteúdo pessoal e histórico, em sequência cronológica e com minuciosa ambientação geográfica.

Sua história é a de uma vida intensa, mas vida comezinha, como a de cada de nós. Exceto o período de prisioneiro e a (grande) aventura da fuga, não há maiores dramas, nuances ou subtextos na linha de vida de Licco. Em todos os momentos difíceis que vivenciou ele se saiu melhor que os demais, por mérito ou acaso, e foi poupado sem danos ou cicatrizes.

Suponho que a narrativa de Licco Hazan seja a descrição de fatos acontecidos. O livro traz muitas passagens banais, com especificidades difíceis e sem sentido de serem inventadas. O texto poderia até mesmo ser resultado da junção de duas ou mais narrativas reais, mesclando um refugiado judeu a um imigrante europeu qualquer. Mas, repito, não há nelas traço de ficção.

Talvez quem possa ter contribuído para um núcleo ficcional sejam os parágrafos relativos ao seu irmão David. Depois de também fugir do campo de concentração, permaneceu como guerrilheiro na Bulgária. Confiante no credo comunista, ficou no país no pós-guerra e se tornou dirigente do partido. O personagem dá margem a descrever o que se deu em seguida nos países sob a Cortina de Ferro.

As observações do narrador sobre os conflitos em Israel e no mundo comunista, o frágil desenvolvimentismo brasileiro, nossa burocracia excessiva e corrupta, nossas dificuldades sócio-econômicas, poderiam vir de Hazan ou de Minev, tanto faz.

Fato é que é uma estória bem contada. O texto é simples, sem firulas. Neste caso em particular, a vida do judeu búlgaro que fugiu de um campo de concentração nazista conta muito mais sobre o que é o Brasil (e suas idiossincrasias) do que sobre o conflito europeu que ele deixou para trás.

Me emocionei com a vida e a morte do singelo personagem. Uma bela vida. Seja real ou fictícia.

Editora Virgiliae, 247 páginas  | 1a edição, 2014

"A caixa-preta", por Amós Oz


O romance do aclamado escritor israelense Amós Oz, lançado em 1987, parte de uma estrutura narrativa original. É um livro sem narrador e sem diálogos. É composto apenas por uma sucessão de correspondências, trocadas entre os quatro protagonistas (Ilana, Alec, Sommo e Boaz) e mais meia-dúzia de personagens, que orbitam ao seu redor.

Eu já havia lido outros títulos de Oz - "Entre amigos" (que narra a convivência dos habitantes de um kibbutz) e "Como curar um fanático" (sobre o extremismo religioso), ambos resenhados aqui no blog. Não à toa me interessei por outros livros do israelense. Me agrada o seu ponto-de-vista ponderado, frente ao tenso compartilhamento do território palestino entre árabes e judeus.

Oz se vale dos seus personagens para humanizar e vocalizar o conflito (que, agora, vive novas ondas de violência e volta a sobressaltar o Oriente Médio, com a tenebrosa aliança entre o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e a extrema-direita). Esta vocalização era, confesso, a isca que me atraía para os seus livros. 

O que procedia, a propósito. Exemplifico. Em muitos momentos ele destaca o preconceito que divide os dois povos. Como na passagem em que um sionista extremado questiona um rapaz judeu, ignorante e violento: "O que é você? Diga-me. Um árabe? Um cavalo?" 

Mais à frente, tira proveito do mesmo personagem para evidenciar a postura da população judaica mais radical contra um dos nomes históricos da política israelense:

"Yitzhak Rabin, na opinião dele, não é um primeiro-ministro judeu, mas  um general americano que por acaso fala um pouco de hebraico truncado e está vendendo o país a Tio Sam", diz o sionista. "Novamente os gentios nos dominam e nós nos aviltamos diante deles".

Lembrando que Yitzhak Rabin - hoje considerado um dos principais condutores de uma política conciliatória judaico-palestina - viria a ser tragicamente assassinado por um extremista judeu, em uma aparição pública (crime que aconteceu oito anos após o lançamento do livro).

O autor, a seu modo, enaltece o ímpeto judaico, quando seu personagem critica, elogiando: "Os judeus construíram um país. Não é um país correto, mas construíram! É completamente torto, mas eles construíram! Sem Deus - mas construíram! Agora vamos esperar o que Deus diz disso".

Faz uma previsão furada, ao comentar "sobre o modo como os exércitos árabes derrotarão Israel na década de 90". Nós, trinta anos depois, sabemos que isso não aconteceu. Pelo contrário - política e militarmente Israel ganhou peso e musculatura no cenário global.

Oz, por várias vezes, mete árabes e judeus no mesmo balaio. Aqui ele se vale de Boaz, o adolescente tosco e idealista, que discorre sobre o pai, a mãe e seu segundo marido:

"Nenhum dos três sabe o que significa realmente viver, inclusive aquele santo Michael com a turma dele dos territórios", diz à mãe, se referindo ao atual marido. "Vivem da Torá, vivem de política, vivem dos discursos e dos debates em vez de viver da vida. É a mesma coisa com os árabes. Eles aprenderam com os judeus como comer a si próprios e a comer um ao outro e a comer gente em vez de comer comida normal. Não digo que os árabes não sejam filhos da puta. Eles são, são até piores. Mas e daí? Filhos da puta também são gente. Não lixo. É uma pena que morram. No fim os judeus vão acabar com eles ou eles vão acabar com os judeus ou então um vai acabar com o outro e de novo não vai ter mais nada neste país a não ser a Torá e o Corão e raposas e ruínas incendiadas".

Apesar do texto agressivo, a mensagem é cordial. Do tipo "se árabes e judeus não arrumarem um jeito de se acertar, vão todos se estrepar". Creio que a ideia dele era essa.

Falando do romance, seu início apresenta os protagonistas debatendo sobre o filho (até então não reconhecido pelo pai), Boaz. Crescido um adolescente problema, o filho rejeita os pais. Michael Sommo, um professor sionista e segundo marido de Ilana, é quem consegue domar o moleque.

Manfred Zacheim é o advogado de Alec Guideon e um leva-e-traz entre seu cliente e o núcleo familiar da ex-esposa. Já Alec Guideon é um escritor internacionalmente respeitado, e que herdou a fortuna do pai, interditado em um asilo.

Com base nesta espinha dorsal, o roteiro se desenrola, com a trama avançando lentamente, enquanto o perfil psicológico dos personagens nos é apresentado. As cartas são chumbo trocado. Acusatórias, reivindicatórias. Um barraco postal.

Passadas algumas dezenas de páginas, porém, a fórmula perde fôlego. As cartas são longas e prolixas. O formato acaba cedendo - diálogos, pretensamente memorizados pelos missivistas, são reproduzidos ipsis literis, o que frauda o propósito original

Quanto mais o livro avança, mais a originalidade rascunhada na primeira parte do livro é engolida pelo estilo sentimentalóide do autor, que gosta de uma sucessão de reminiscências piegas e frugais. Gasta páginas e páginas enumerando tolices da convivência banal à guisa de mostrar como, por trás da rispidez das cartas, os personagens são humanos e se amam. Me enjoa.

O romance mal resolvido entre Alec e Ilana é chato, verborrágico. O não reconhecimento do filho seguido do súbito amor desmedido do pai pelo filho é chato, demasiado. As picuinhas entre os personagens se repetem, de forma estereotipada.

Ou seja, é uma mistura de "O povo na TV" com comercial de margarina.

Pior ainda é que, quanto mais o texto avança, mais as cartas encorpam (houve uma que tomou vinte e três páginas!) e menos há diferenciação entre elas - à medida em que se estendem, parecem todas escritas pela mesma pessoa. Ok, Pedro Bó. São, né. O autor é um só. A ideia, porém, era serem personalidades diferentes, que se expressassem de forma distinta.

Você pode entender minhas opiniões como uma crítica pesada. Ou dizer que tenho pouca paciência para o lirismo. Pode ser. Mas minhas expectativas para este título eram maiores.

Certa vez, notando um livro que eu lia, uma mulher me abordou. Pelo título do livro, ela pressupôs um tema que não tinha nada a ver com o conteúdo em si. Expliquei, mas ela não gostou da resposta e me perguntou: "Então, por que o livro tem esse título?"

Pensei e respondi: "sei lá". Ela me olhou com desdém, como se eu fosse analfabeto. Confesso que eu nunca tinha achado importante saber porque este ou aquele livro tem o nome x ou y. Sempre achei que era que nem nome de cachorro. O dono dá o nome que quer e pronto.

Mas a dona me traumatizou. Então adianto logo: em uma das cartas trocadas, a personagem mulher Ilana diz que o personagem homem Alec falou certa vez: "Como depois de um desastre de avião, deciframos juntos, por correspondência, a caixa-preta de nossas vidas".

Em seguida, ela mesma comenta: "Não deciframos nada, Alec. Apenas trocamos dardos envenenados". Pois é. Era isso. Viu? Xôxo. Eu disse que o livro era meio assim-assim. Agora se a tal dona aparecer e me perguntar o porque do livro se chamar "A caixa preta", a explicação taí.

Ao menos dessa eu escapei.

Companhia das Letras, 301 páginas

P.S.: "De amor e trevas" e "O mesmo mar", também de Oz, já aguardam pela leitura na prateleira. Os adquiri há tempos. Hummmm... mas acho que vão ficar mais um pouquinho por lá. 

"As benevolentes", por Jonathan Littell


Fechei o livro, soltei um palavrão. Bestial. Um calhamaço antológico.

Vencedor do Prêmio Goncourt - a principal premiação literária da França -, a obra seguiu incensada mundo afora. O autor foi comparado a Tolstoi pelo Le Monde. Foi considerado pela crítica como um "novo Guerra e Paz". Videntes da crítica o profetizaram como "futuro clássico' da literatura". Sem contar os paralelos com Moby Dick e Psicopata americano. Por aí você vê.

Também me rendi. Um Apocalypse Now nazista. O texto é todo o tempo (e olhe que 900 páginas são um bocado de tempo) soberbo, visceral, inebriante. Mesmerizado, pasmei com as páginas finais. Terminei o livro e sentei para escrever minhas mariolas ainda sob o transe da leitura.

Sou fuçador. Fui catar matérias na mídia americana e francesa (as duas nacionalidades do escritor) quando da época de lançamento do livro, quinze anos atrás. Recortei dois deles e estampei aí em cima na ilustração, pra dar um molho. Mas quem vê o focinho, não vê o bicho inteiro.

Uma das matérias abre altaneira, pra logo em seguida descer o relho no lombo do autor e do livro. Esculhamba com os dois. Convoca gente de prestígio pra ajudar no linchamento. Sei não. A má vontade, escancarada, pode até ter sido isenta, mas achei over. Discordo dos bambambans.

Como já naquela época o autor havia vendido os direitos para publicação nos EUA por US$ 1 milhão de dólares, havia faturado os dois prêmios mais importantes da França e era o assunto do momento no circuito literário, alguém tinha que meter o pau. É muito dinheiro. Vá saber o que tem por trás.

Como eu não tenho nada a ver com isso, larguemos essa lenga-lenga e vamos direto ao conteúdo.

Ops, antes me deixe dizer o que ainda não disse. É uma uma ficção. Mas, às vezes, não parece. 

A estória é narrada em primeira pessoa pelo oficial nazista SS Maximilien Aue. Nascido na França, filho de mãe francesa e pai alemão, seguiu ainda rapazola para fazer os estudos em Berlim - onde se entusiasmou com a diarreia colossal do nazismo.

Uma vez lá, sob a influência viral da fanfarronice nacional-socialista, se achou. Daí para deixar para trás a casa e suas raízes francesas foi um pulo. E ainda houve alguns estímulos adicionais: antes da sua partida, seu pai alemão tinha sumido e a mãe deu o marido por morto. Pior: a mãe se casou novamente, e desta feita com um francês.

Maximilien passou a odiar o padrasto e, por tabela, a mãe. Sua ida, adolescente, para a Alemanha, era ajaezada com este pano de fundo.

Littell se esmera e compõe um personagem com distúrbios emocionais variados e um histórico familiar intrincado. Homossexual, carregou vida afora um grande trauma: o rompimento da relação incestuosa (que manteve ao longo de toda a infância) com sua irmã gêmea.

Nauseante, né? Não à toa, Maximilen Aue, um jovem tímido e pacato, era um sujeito perturbado.

Mas toda esta barafunda psicológica do narrador o leitor só descobre aos poucos. Esta e outras. Em não poucos casos, se assombrando - como na inquietante visita que ele fará à mãe, na costa mediterrânea. Mas não darei spoiler, muito invasivo. Injusto com o autor e com você que me lê.

Aceito pela SS, Aue ascende na hierarquia da corporação, derivando por alguns dos principais cenários da guerra nazista. Vadia e filosofa enquanto participa das ações em Kiev, na Crimeia, no front russo e na Marcha da Morte de Auschwitz. Eruditos, os personagens deitam cátedra sobre a ramificação ancestral dos idiomas eslavos.

Das atividades intelectuais e administrativas da retaguarda, Maxilimian acaba sendo lançado no olho do furacão, no Leste, onde dois milhões de soldados alemães estavam cercados pelo exército soviético. Uma certa falta de empatia com a panelinha do seu superior direto - com direito a um desafio para um duelo - o levara a ser indicado para morrer gloriosamente no cerco de Stalingrado.

Após ter levado um balaço na cabeça que lhe varejou o crânio, enquanto flanava nas margens do Volga, Aue é promovido a Sturmbahnführer - o equivalente ao nosso major - e, recuperado, e já em uma nova função, cabe a ele visitar in loco a complexa rede de extermínio da população judaica, visando prosaicamente a introdução de melhorias práticas no processo.

A maioria dos protagonistas do genocídio desfilam pela passarela, e alguns são assíduos interlocutores do convicto Aue. Entre eles, Himmler, Speer, Eichmann, Frank, Hoss e outros menos ilustres tricotam com o narrador, em reuniões de trabalho, caçadas e surubas.

Depois de zanzar pelas diversas instalações industriais de assassinato, quase como um ombudsman, Aue é encarregado da tarefa de auxiliar Speer, visando poupar do extermínio os prisioneiros ainda aptos. A intenção era que eles pudessem ser utilizados como força de trabalho no esforço de guerra - vã tentativa, como hoje sabemos; o nazismo era especializado em matar, não em salvar.

Em seguida, Aue parte com Adolf Eichmann para a Hungria. O personagem se tornou confidente de um dos mais execrados nazistas criminosos de guerra - uma fama conquistada por Eichmann a posteriori, graças à sua rocambolesca captura pelo Mossad em Buenos Aires, e pelo célebre livro de Hanna Arendt, "Eichmann e a banalidade do mal".

Durante muito tempo aclamada, hoje esta visão da "banalidade do mal" é controvertida e contestada. Mas a celeuma fez deste burocrata do transporte de judeus para o abatedouro uma figurinha carimbada no panteão das bestas-fera do nazismo.

Doravante, a narrativa testemunha o recuo das forças alemãs, em fuga diante do avanço russo. Cada trecho é uma epopeia - e são inúmeras, porque Littell vai acompanhando estrada a estrada cada etapa da derrocada alemã, cada gradativo apertar do torniquete.

Berlim é a referência de dissolução do aparato do Estado. O protagonista torna a ela diversas vezes durante a obra, e acompanhamos a deterioração da cidade, ainda que sob a ótica de um oficial da SS cercado de privilégios - e desfrutando do melhor possível em uma cidade sob bombardeio diário.

A fantasia está presente em inúmeras passagens e personagens, dando um quê de uma letárgica viagem psicodélica pelos intestinos da História. Vilões intangíveis e onipresentes como Mandelbrod e Lelland, servidos pelas suas amazonas Hilde, Helga e Hedwig, fazem uma miscelânea mezzo nórdica mezzo helênica, com uma parafernália protocolar que nos remete aos clássicos filmes de 007.

E o que dizer da dupla de inspetores, Clemens e Weser, que nos fazem lembrar de Dupond e Dupont, os tiras gêmeos das bandes desinées de Tintin? Aparecem do nada, como um relógio cuco, e retornam para sua casinhola, sempre a um triz de finalmente pegarem Aue.

Eles surgiram, de forma inesperada (como em todas as suas demais aparições), na mansão abandonada na fronteira suiça onde o protagonista se auto-exilou, numa bad trip despirocada (na verdade, não é o adjetivo mais adequado) e também numa estação de metrô semi-submersa e num zôo em chamas, com gorilas mortos a golpes de baioneta e rinocerontes estourados por obuses.

Em tempo: esta imersão na residência alpina do cunhado nobre e paralítico, o junker ascético Von Üxküll (que casou com a irmã gêmea de Aue, mas não tinha como comê-la), é o ponto de partida para uma travessia alucinada de três SS - dois oficiais e um motorista - pelas franjas do império nazista invadido pelos russos.

Aue, seu motorista Piontek e o sarcástico e hedonista anjo-da-guarda de Aue no livro, o então Standartenführer Thomas Hauser, seguem de carro e depois a pé por centenas de quilômetros, tentando voltar ao que restara da Alemanha ainda sob controle alemão.

Seu encontro com uma patrulha mirim sanguinária de volkssturm - uma versão mais infernal dos protagonistas infantis dos pickpockets londrinos de Charles Dickens ou dos capitães da areia de Jorge Amado - é mais uma das muitas licenças macabro-poéticas de Littell.

No retorno derradeiro à Berlim em ruínas, temos o primeiro encontro de Maximilian Aue com Adolf Hitler. O livro está acabando e eles estão, enfim, cara a cara - não fosse tão cara a cara, a intempestiva ação imaginada pelo autor não teria como acontecer. Mais não conto.

(Aue já havia estado no mesmo ambiente que o führer, uma palestra para centenas de oficiais, ainda com a guerra indefinida, mas o viu somente à distância.)

Como me comprometi em não dar spoilers, não posso avançar mais na descrição do encontro entre os dois. Pena. Mas a verdade é que a partir daí o livro entra em seu twist final, com os personagens sendo tragados pelos acontecimentos, onde a fantasia toma definitivamente o lugar da realidade. Meio que aquele sonho do capitão Rick Deckard em Blade Runner, só que sem a beleza kitsch do cavalo branco, substituída aqui por cadáveres, incêndios, vísceras e excrementos.

Parece que muita gente detonou. Valorizaram em excesso os cacoetes desta narrativa, filha da estética do terceiro milênio. É recheada de sexo grotesco e confissões execráveis. Se o personagem dava o rabo ou não (dava), se o pai do autor era judeu ou não (era), para mim é periférico. Importa que a substância caudalosa da obra de Jonathan Littell ocupa os espaços como um rio de lava.

Gente de peso concorda, o que me dá algum crédito. Ganhou os seis mais importantes prêmios literários da França - sendo que é apenas a segunda vez na história que uma mesma obra abocanhou os dois mais importantes, o Goncourt e o da Académie Française (que eu já mencionara acima).

A grita, contudo, tem sua razão de ser. "As benevolentes" não viaja bem com as velhas normas da escrita. Um jovem judeu que escreve se colocando no lugar do perpetrador nazista, um assassino cínico e gay, é um pouco demais para as gerações passadas, mesmo as boas.

Só convém não esquecer que a narrativa do ponto-de-vista das vítimas do Holocausto é o que temos aos borbotões. Sem sombra de dúvida, é fundamental que existam. São depoimentos que denunciam o genocídio e contribuem para que evitemos que ele se repita.

Mas o único lugar onde o olhar do assassino - mesmo o zé ruela pau-mandado - pode ter espaço é na literatura. É para isso que ela se presta. Na vida real, nenhum psicopata confessou a índole criminosa do regime, nem seu próprio interesse em se beneficiar do sistema. Os que foram presos negaram e se disseram apenas obedientes. Os fugitivos desapareceram. Hoje estão todos mortos.

Do nada surgiu um sujeito que chamou para si a narrativa de quem mata. Quem ajuda a girar a manivela da burocracia do Estado genocida. Que aperta o gatilho nas execuções raciais. Que bebe e se empanturra às custas dos chacinados. Que desfruta do seu status de oficial medalhado. Foram milhões deles e não havia um que se colocasse na pele do funcionário de carreira da SS nazista.

Jonathan Littell assumiu esse desafio. O establishment uivou contra a existência do autor. Mas o livro já estava escrito. Já tinha sido impresso, distribuído, lido e conquistado uma tonelada de prêmios.

Para mim, reitero, monumental. Fiquei tão embasbacado que fui fuçar na Wikipedia para conhecer mais o autor, de quem eu nunca ouvira falar ao longo desses anos todos, nem antes, nem depois do lançamento do livro. Tudo bem que aqui no Brasil a gente tem um contato muito superficial com a cena literária europeia/norte-americana (o tal Primeiro Mundo, vá lá), mas estranho um sujeito que escreve uma obra deste quilate nunca seja mencionado em nenhum caderno cultural tupiniquim.

Também não me pergunte como eu soube do livro. Certamente li alguma resenha há uns quinze anos atrás (não lembro se por conta da polêmica). Curioso, comprei a edição e larguei na estante.

Vocês hão de convir que não é todo dia que a gente acha um bom dia para iniciar uma ficção de quase 1.000 páginas sobre um assunto escabroso e narrado de forma repulsiva.

Bem, resolvi fazer isso dois meses atrás. Descobri que tinha perdido um tempão.

Editora Alfaguara, 907 páginas  |  1a edição, 2007 | Tradução André Telles |  Copyright 2006

Título original: "Les bienveillantes"