"As coisas que perdemos no fogo", por Mariana Enriquez
São estórias macabras de uma Buenos Aires decrépita. Sem dúvida, Mariana escreve bem (embora eu não lhe gabe o gosto). Suas personagens são misândricas, credo, e moram em casarões caindo aos pedaços. Pior: vivem em pânico, por medo do sobrenatural. Um povo estranho, que some ou aparece de repente. Gente que morre ou que mata as pessoas, sem que ninguém saiba como.
Esquisitíssima, a portenha. Nada do que ela conta é normal ou indolor.
Um dos seus contos mais indigestos é o do Baixinho Orelhudo, o Pablito. Um moleque que, por puro prazer, matava recém-nascidos. Com o requinte de martelar um prego na cabeça molinha do neném.
"O menino, eu agarrei com os dentes aqui, perto da boca, e o sacudi como fazem os cachorros com os gatos", contou Pablito. A autora engalana a cena: "Pablito, depois de enforcar Josualdo, voltou à cena do crime. Levava um prego. Pregou-o na cabeça do menino, que já estava morto."
Pablito teria escapado, mas deu mole. "No dia seguinte, cometeu seu erro fatal. Sabe-se lá por que, compareceu ao velório do menino que havia matado. Queria ver se ainda tinha o prego na cabeça".
Curiosidade mata. Flagrado no velório, algemaram o Pablito e o mandaram pro fim do mundo.
O guri matador foi de Buenos Aires para Ushuaia. Também fui, por razões diferentes. Ler é viajar e vice-versa. Mas nem a cidade, nem o país, são protagonistas na ficção de Mariana. Seus contos poderiam se dar em qualquer lugar, de Bucareste a Curitiba. Não tenho dúvida de que em Enriquez os vampiros de Dalton Trevisan se sentiriam em casa.
Porque o que não falta nas estórias de Mariana é assombração.
Noves fora os relatos fantasmagóricos, me caíram melhor os banais e menos aterrorizantes - como o da mulher que vai com a prima e o marido-mala para comprar uns panos no Paraguai. O rolo da prima com o caminhoneiro sueco e o susto do carro enguiçado na estrada são bons e triviais.
A propósito, não só o marido-mala é insuportável - todos os parceiros das personagens, sejam namorados, ficantes ou maridos, são espezinhados da forma mais abjeta. Todos são odiados. Suas personagens revelam o desejo de que o companheiro morra, ou que elas mesmas os matem.
Mariana Enriquez não parece ter tido relacionamentos assim harmoniosos. Sobrou pra nós.
Mas todo mundo merece o pior nas novelas dessa escritora argentina. Suas personagens gostam de se auto-punir. "Marcela arrancou as unhas da mão esquerda. Com os dentes. Os dedos sangravam, mas ela não demonstrava nenhuma dor. Algumas garotas vomitavam".
Mariana tem obsessão por corpos femininos destroçados. "Tive o ímpeto de pedir a algum dos caminhoneiros que me atropelasse e me deixasse estripada na estrada, rasgada como as cadelas que eu via mortas no asfalto, algumas delas grávidas, com todos os filhotes agonizando ao redor."
Burilosa, mas o talento com que a escritora arruma as palavras não me farão leitor fiel. Nem infiel, aliás. O último dos contos, o que titula o livro, romantiza a formação de um clube feminino de auto-imolação. As mulheres portenhas, fartas de serem queimadas pelos próprios companheiros (olha eles aí), passariam a atear fogo nelas mesmas, por conta própria.
Os auto-atentados virariam um movimento clandestino, ao qual as mulheres adeririam, entusiasmadas. Prenhes de idealismo, organizariam encontros no deserto, na madrugada. Ali entrariam em piras, e depois, parcialmente carbonizadas, seriam levadas à ala de queimados do hospital mais próximo, para serem cobertas de pomada e enfaixadas.
A ídola que deu início à campanha nos é apresentada como a "menina do metrô". Era uma pedinte que beijava à força os passageiros, que reagiam com nojo. "Inesquecível", descreve a autora:
"Tinha o rosto e os braços completamente desfigurados por uma queimadura extensa, completa e profunda", se deleita. Conta que "ela explicava quanto tempo lhe custou para se recuperar, os meses de infecções, hospital e dor, com a boca sem lábios e um nariz pessimamente reconstruído; restava-lhe só um olho, o outro era um buraco de pele, e a cara toda, a cabeça, o pescoço, uma máscara marrom percorrida por teias de aranha".
A menina de vítima foi promovida a mártir. Ícone underground de uma bandeira identitária.
"Silvana participou de sua primeira fogueira num campo perto da estrada 3", celebra. O movimento era batizado com o sugestivo nome de "Mulheres Ardentes". Havia uma lógica, disse a mãe à filha:
"As queimas são feitas pelos homens, menina", explica. "Sempre nos queimaram. Agora nós mesmas nos queimamos. Mas não vamos morrer; vamos mostrar nossas cicatrizes".
É uma alegoria da auto-afirmação feminina. As mulheres, vítimas seculares, reclamam para si a primitiva atribuição masculina de submetê-las e machucá-las. Agora, emancipadas, enfim donas de seu destino, machucariam a si mesmas.
É. Pode ser. Vai de acordo com o paladar. Mas ninguém pode negar que Mariana tem estilo.
Editora Intrínseca, 190 páginas
P.S.: Na foto, o antigo presídio de Ushuaia. Nele, ao invés do Baixinho Orelhudo, o Careca Orelhudo.
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