"As coisas que perdemos no fogo", por Mariana Enriquez

sábado, dezembro 07, 2024 Sidney Puterman


São estórias macabras de uma Buenos Aires decrépita. Sem dúvida, Mariana escreve bem (embora eu não lhe gabe o gosto). Suas personagens são misândricas, credo, e moram em casarões caindo aos pedaços. Pior: vivem em pânico, por medo do sobrenatural. Um povo estranho, que some ou aparece de repente. Gente que morre ou que mata as pessoas, sem que ninguém saiba como.

Esquisitíssima, a portenha. Nada do que ela conta é normal ou indolor.

Um dos seus contos mais indigestos é o do Baixinho Orelhudo, o Pablito. Um moleque que, por puro prazer, matava recém-nascidos. Com o requinte de martelar um prego na cabeça molinha do neném.

"O menino, eu agarrei com os dentes aqui, perto da boca, e o sacudi como fazem os cachorros com os gatos", contou Pablito. A autora engalana a cena: "Pablito, depois de enforcar Josualdo, voltou à cena do crime. Levava um prego. Pregou-o na cabeça do menino, que já estava morto."
 
Pablito teria escapado, mas deu mole. "No dia seguinte, cometeu seu erro fatal. Sabe-se lá por que, compareceu ao velório do menino que havia matado. Queria ver se ainda tinha o prego na cabeça".

Curiosidade mata. Flagrado no velório, algemaram o Pablito e o mandaram pro fim do mundo.

O guri matador foi de Buenos Aires para Ushuaia. Também fui, por razões diferentes. Ler é viajar e vice-versa. Mas nem a cidade, nem o país, são protagonistas na ficção de Mariana. Seus contos poderiam se dar em qualquer lugar, de Bucareste a Curitiba. Não tenho dúvida de que em Enriquez os vampiros de Dalton Trevisan se sentiriam em casa.

Porque o que não falta nas estórias de Mariana é assombração.

Noves fora os relatos fantasmagóricos, me caíram melhor os banais e menos aterrorizantes - como o da mulher que vai com a prima e o marido-mala para comprar uns panos no Paraguai. O rolo da prima com o caminhoneiro sueco e o susto do carro enguiçado na estrada são bons e triviais.

A propósito, não só o marido-mala é insuportável - todos os parceiros das personagens, sejam namorados, ficantes ou maridos, são espezinhados da forma mais abjeta. Todos são odiados. Suas personagens revelam o desejo de que o companheiro morra, ou que elas mesmas os matem.

Mariana Enriquez não parece ter tido relacionamentos assim harmoniosos. Sobrou pra nós.

Mas todo mundo merece o pior nas novelas dessa escritora argentina. Suas personagens gostam de se auto-punir. "Marcela arrancou as unhas da mão esquerda. Com os dentes. Os dedos sangravam, mas ela não demonstrava nenhuma dor. Algumas garotas vomitavam".

Mariana tem obsessão por corpos femininos destroçados. "Tive o ímpeto de pedir a algum dos caminhoneiros que me atropelasse e me deixasse estripada na estrada, rasgada como as cadelas que eu via mortas no asfalto, algumas delas grávidas, com todos os filhotes agonizando ao redor."

Burilosa, mas o talento com que a escritora arruma as palavras não me farão leitor fiel. Nem infiel, aliás. O último dos contos, o que titula o livro, romantiza a formação de um clube feminino de auto-imolação. As mulheres portenhas, fartas de serem queimadas pelos próprios companheiros (olha eles aí), passariam a atear fogo nelas mesmas, por conta própria.

Os auto-atentados virariam um movimento clandestino, ao qual as mulheres adeririam, entusiasmadas. Prenhes de idealismo, organizariam encontros no deserto, na madrugada. Ali entrariam em piras, e depois, parcialmente carbonizadas, seriam levadas à ala de queimados do hospital mais próximo, para serem cobertas de pomada e enfaixadas.

A ídola que deu início à campanha nos é apresentada como a "menina do metrô". Era uma pedinte que beijava à força os passageiros, que reagiam com nojo. "Inesquecível", descreve a autora:

"Tinha o rosto e os braços completamente desfigurados por uma queimadura extensa, completa e profunda", se deleita. Conta que "ela explicava quanto tempo lhe custou para se recuperar, os meses de infecções, hospital e dor, com a boca sem lábios e um nariz pessimamente reconstruído; restava-lhe só um olho, o outro era um buraco de pele, e a cara toda, a cabeça, o pescoço, uma máscara marrom percorrida por teias de aranha".

A menina de vítima foi promovida a mártir. Ícone underground de uma bandeira identitária.

"Silvana participou de sua primeira fogueira num campo perto da estrada 3", celebra. O movimento era batizado com o sugestivo nome de "Mulheres Ardentes". Havia uma lógica, disse a mãe à filha:

"As queimas são feitas pelos homens, menina", explica. "Sempre nos queimaram. Agora nós mesmas nos queimamos. Mas não vamos morrer; vamos mostrar nossas cicatrizes".

É uma alegoria da auto-afirmação feminina. As mulheres, vítimas seculares, reclamam para si a primitiva atribuição masculina de submetê-las e machucá-las. Agora, emancipadas, enfim donas de seu destino, machucariam a si mesmas.

É. Pode ser. Vai de acordo com o paladar. Mas ninguém pode negar que Mariana tem estilo.

Editora Intrínseca, 190 páginas

P.S.: Na foto, o antigo presídio de Ushuaia. Nele, ao invés do Baixinho Orelhudo, o Careca Orelhudo. 

 

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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