Seu autor é um gigante da literatura mundial. Mesmo quem não leu um único dos seus livros, foi, em algum instante, impactado pela obra de Monsieur Victor Hugo - um gênio assombrado pela paixão. Seus romances, plenos de revelações e passionalidade, poderiam facilmente situá-lo entre os personagens, atribulada que era a sua vida pessoal. Filho de um casamento conturbado e ele próprio protagonista de outro, o escritor foi também um parlamentar combativo e teve agressiva atuação política. Belicosa a tal ponto que, com a chegada de seu desafeto Napoleão III ao poder, Hugo abandonou o país rumo a um exílio de quase duas décadas. Seu endereço de exilado foi inicialmente a pequena ilha de Jersey, onde residiu de 1853 a 1855. Na Cidade-Luz, ao mesmo tempo em que a esfera política estava em ebulição, a alta sociedade francesa experimentava a coqueluche das misteriosas "mesas girantes". Nem de longe se sabia, mas testemunhávamos o início do Espiritismo. Nesta época em que as mesas falavam e que o autor de "Notre-Dame de Paris" deixava a França, seu conterrâneo, o lionês Hippolyte Leon Denizard Rivail, reunia metodicamente milhares de informações do além para a confecção do Livro dos Espíritos. A obra teve a primeira das suas incontáveis edições em 1857 - e assinada por Allan Kardec, nome de Monsieur Rivail em uma antiga encarnação como druida. Estranhamente, apesar desta contemporaneidade, Patrice Boivin, o canadense de língua francesa que reuniu os textos que compõem O Livro das Mesas, não faz nas mais de 600 páginas da obra uma única menção à Allan Kardec. Deveria. Provável que não o tenha feito por uma (des) crença pessoal e não por desconhecimento de causa - ou talvez nós, brasileiros, pela dimensão do Espiritismo em nosso país, não consigamos digerir a falta de repercussão da Doutrina Espírita em seu próprio idioma de formulação. Surpreso com a omissão, não me restringi ao livro. Fui pesquisar na internet, onde também não encontrei referência de Boivin a Kardec, nem mesmo uma citação en passant em entrevistas sobre a obra (há uma de 10 minutos, hipoteticamente extensa o suficiente para comportar uma menção gentil, disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=ZbmaVJ2LheI). Parece que este reconhecimento também não ocorreu da parte de Victor Hugo em relação ao codificador do Espiritismo. É fato que não tenho como afirmar meramente guglando. O tema é vasto e seu cerne remonta no tempo a mais de século e meio. Mas, se Hugo não cita Kardec, o oposto, parece, se deu. No site do CEFE (Centro de Estudos Filosóficos Espíritas), há uma página sobre o autor de "Os Miseráveis" que afirma que Kardec reconhecia Hugo como um "expoente do movimento espírita", tendo incluído uma carta do escritor na Revista Espírita de 1863, onde Hugo se refere à reencarnação. Bem, ainda que a codificação espírita não seja sequer citada em O Livro das Mesas, achei indispensável referenciá-la. O fato é que a comunicação com os Espíritos, na ótica de Victor Hugo, se dá sob uma perspectiva que sempre me interessou: a da personalidade individual anterior e a da erudição. Os espíritos com quem Hugo e os demais participantes das sessões (familiares e amigos próximos) conviviam foram grandes nomes da literatura, do teatro, da cultura e da política de todas as épocas. Mais que isso, estes nomes foram convocados a criar novas obras durante reuniões sobrenaturais que varavam a madrugada. O espírito de William Shakespeare chegou a ditar uma nova peça, durante as sessões na ilha. O rol de sumidades vai de Alexandre, o Grande, passando por Moliére e ousadamente chegando a Jesus e Maomé. Apesar do meu interesse nesta abordagem, o fato é que a mim, espírita, os textos não pareceram legítimos. Não são coerentes com o que sabemos ou supomos da personalidade histórica de cada um. Só para um exemplo mais contundente, as mensagens recebidas como sendo de Jesus Cristo que constam do livro não coadunam em nada com a herança espiritual que Ele nos deixou. Em muitos outros casos, a obsessão pela forma, como nas inusitadas parcerias literárias entre encarnados e desencarnados, soa inadequada demais. E o que falar dos melindres quando um Espírito debochava de uma sugestão de texto de um dos encarnados à mesa? Desconfortável. Boa parte da leitura eu fiz com um pé atrás. A propósito, nisto eu e o compilador da obra, Boivin, concordamos. Ele crê piamente que os textos são do próprio Victor Hugo; a mim também parecem, no mínimo, excessivamente influenciados pelo escritor. Talvez até mesmo por isso ele se sinta bem à vontade para ignorar a existência de Allan Kardec e do Pentateuco, os cinco tomos que trazem o Espiritismo codificado. A doutrina não lhe diz respeito, porque ele supõe, em seu íntimo, que Hugo estivesse enganado quanto à sobrevivência do espírito e, em decorrência, sobre a possibilidade dos mortos se comunicarem com os vivos. Não desconheço que Victor relutou muito antes de aceitar a vida após a morte, sequer como hipótese de trabalho (expressão recorrentemente utilizada por um dos maiores estudiosos da ciência espírita, Hermínio Miranda). O que o fez mudar de ideia foi um texto recebido pela mesa, onde ele reconheceu como verídica uma mensagem da sua querida filha Léopoldine (que havia partido jovem, em um trágico acidente de barco). A partir daí, o autor se tornou fervoroso adepto do Espiritismo e, mais que isso, o principal condutor dos trabalhos espíritas em Jersey. Todas as sessões foram diligentemente registradas em atas, por sua vez reunidas em cadernos, os quais, com a passagem do tempo e seu retorno à França, 18 anos após sua partida, acabaram extraviados. Pela relevância histórica do escritor, entretanto, estes cadernos perdidos ganharam também sua feição lendária, e, com o avanço das décadas, eram vez por outra mencionados e parcialmente transcritos, ainda que não em sua integralidade ou mesmo sendo possível seu cotejamento. Foi a esta tarefa que Patrice inicialmente se dedicou, e que lhe permitiu publicar a obra com seu conteúdo completo. Mais que meritório, pelo destamanho de Hugo na história francesa, e peculiar, pela sua contribuição indireta à história do Espiritismo. De uma certa forma, como se pode acompanhar, por exemplo, na sessão de 3 de julho de 1854, Victor Hugo indagou dos espíritos questões determinantes para uma nova compreensão da imortalidade, ainda que não tenha se dedicado a organizá-las, como fez le professeur Hippolyte Leon em seu hercúleo e incomparável trabalho sob o nome de Allan Kardec. Para Hugo, o espírito que se apresentava como A Ideia assentiu com o resumo espiritual que o próprio escritor havia proposto, como uma condensação do que havia sido dito ao longo de um ano de sessões. Concordou enigmaticamente o Espírito dizendo: "Tu acabas de bater à poterna do castelo sombrio (...). Todas as nossas explicações são chaves de masmorras. Somos os invisíveis porteiros dos astros. Quando abrimos um sol, abrimos uma sombra, quando abrimos o infinito, abrimos uma cela, quando abrimos Deus, abrimos o calabouço. Somos luzes infinitas, iluminamos com as trevas. Afirmamos sem provas e espalhamos a dúvida derramando a verdade. (...) A ignorância, sentinela negra, está sempre pronta para encarcerar o espírito." O recurso semântico das afirmativas antagônicas está presente na maioria dos textos, como neste. Ao mesmo tempo que transborda de beleza gótica, irradia contornos dúbios, sombrios, imprecisos - o oposto da Codificação. Seja lá quanto provenha de Victor Hugo e quanto provenha dos espíritos que assinam os textos psicografados, é inconteste a sedução do seu conteúdo, por um lado, e certa fragilidade das suas afirmações, expostas à luz da Doutrina, por outro. E, ainda que me curve a um inegável primor estético, ele não tem a sutil multiplicidade obrigatoriamente oriunda da pena de tantos e tão diversos autores (nada que nem de longe se ombreie ao seminal Parnaso do Além Túmulo, de Chico Xavier, lançado em 1932) , mesmo que nos restrinjamos somente a uma hipótese secular e mundana. Os textos de Victor Hugo assinados pelos espíritos me deram a impressão de trazerem pouco dos espíritos e muito de Victor Hugo (o que é a razão da obra: o objetivo de Boivin é a recuperação de textos até então parcialmente desconhecidos e não atribuídos ao escritor). Para mim, porém, esta experiência mediúnica de um dos maiores nomes da literatura francesa, resgatada diligentemente por Patrice Boivin, reforça no espírita (como eu) a convicção de que a comunicação entre vivos e mortos não deve buscar o brilho que estes espíritos eventualmente demonstraram em sua passagem sobre a terra - e sim seu emprego atual de mensageiros de um mundo invisível, voluntários em uma causa de resgate dos seus irmãos ignorantes, enfermeiros que, com curativos e padiolas, aplacam nossas dores e nos conduzem por um caminho em que não temos como enxergar. Seja como for, embora não endosse a opção do autor de ignorar o trabalho literalmente enciclopédico de Allan Kardec, há que se aplaudir a relevância do seu esforço de pesquisa e a lanterna com que ilumina uma jóia esquecida de um autor venerado. Mas vou além: enxergo na própria exclusão da Doutrina Espírita nesta obra um testemunho da sua importância histórica. Abriram-se temporariamente as portas que separam os mundos. Os espíritos vieram testemunhar o que havia por trás dos planetas no firmamento. Sua presença foi alvo das mais diversas manifestações, da diversão pueril à ambição intelectual. Apenas uma única pessoa foi capaz de discernir sua relevância, coletar seu conteúdo e estruturar sua disseminação. Nem mesmo um gênio exilado e ocioso, como Victor Hugo, foi capaz de transformar este prêmio em legado. A missão coube a um professor e guarda-livros de Lyon. O mestre Hippolyte Leon tornou à sua encarnação druida para dedicar os 14 anos finais da sua vida material a filtrar, organizar e reescrever as mensagens recebidas, criando os cinco livros que são ciência, filosofia e religião e que são também até hoje o alicerce da Doutrina. Curiosamente, a França não deu grande valor à preciosidade. Foi no Novo Mundo que ela deitou raiz. Fico feliz que a semeadura das verdades espíritas tenha florescido na pátria brasileira. A milenar cultura francesa foi nossa generosa (e imprescindível) barriga de aluguel.
O livro se debruça sobre os sonhos do psicanalista holandês Erlo van Waveren, discípulo e amigo de Carl Jung. Van Waveren, muito a contragosto, revelou na etapa final da sua vida ter tido sonhos, de origem pretensamente mediúnica, que narravam algumas de suas vidas anteriores - entre elas o arcebispo Fenelon, preceptor do delfim francês. A partir daí, o respeitado e sempre sóbrio autor Hermínio Miranda envereda pelo relato de cada uma destas existências, começando por Judas Barsabás, discípulo de Jesus, e que teria participado do primeiro grupo a disseminar as palavras do Mestre. Em seguida, uma série de nomes proeminentes da Igreja foram etapas da trajetória terrena do holandês: Asterius, bispo de Amásia; Wilfrid, bispo de York; Walter de Gray, bispo de Worcester; e Fenelon, arcepispo de Cambrai. Pesquisador minucioso, Hermínio reuniu (em um período pré-internet, destaque-se) um enorme volume de informações sobre cada uma destas personagens históricas. Eu, ao tomar conhecimento da grandeza e complexidade de cada uma destas passagens pela matéria, fiquei encafifado com a pobreza intelectual e circunstancial (se me permitem) de Erlo van Waveren na atualidade, após ter personificado tantos nomes de peso. E, mais, não fica bem demonstrado o vínculo mediúnico de van Waveren com suas vidas anteriores, pois os devaneios que originaram o livro mal são citados. Isso faz do livro uma sequência de biografias de nomes da antiguidade, com fartura de lacunas e baixo grau de interesse - não desconsiderando, em absoluto, a erudição dos comentários e das transcrições trazidas por Hermínio Miranda. Ao fim, o autor se arrisca a propor o nome do suiço Johann Kaspar Lavater como uma encarnação posterior do psicólogo, com base em um conjunto de afinidades. Não duvido da coerência da comparação (as pinturas mostrando a fisionomia de um e de outro impressionam), mas também não me entusiasmo. Minha apatia se deve mais a uma incompreensão de como um Espírito, que teve encarnações de grande exigência espiritual, poderia retornar, após séculos de estrada terrena, como um burguês incrédulo. E, no que tange a este mesmo Lavater indicado por Hermínio, me espantou a contracapa informar "Miranda chegou a uma descoberta sensacional: a de uma outra encarnação de van Waveren, como uma das figuras mais polêmicas da história humana." Um surto do contracapista, que talvez não tenha lido o livro. Porque não foi uma "descoberta", e sim uma hipótese; não foi "sensacional", e creio que "convincente" já seria muito; e Lavater não foi uma das figuras "mais polêmicas da história humana". Ainda que o redator tenha deixado os dinossauros de fora, acho que o emérito Lavater não pegava o Z4 da série D. Digamos que pode ter sido uma das figuras mais polêmicas da hístória da sua cidade, Zurich - e passa a régua. Assim, sem saber até onde procede o relato das encarnações anteriores de van Waveren, me contentei, à guisa de ilustrar o post, em conseguir a certidão da última. Já é alguma coisa.
Eu comprei esta "biografia" para conhecer um pouco mais da trajetória do famoso médico cearense, uma das principais referências do primeiro meio século do Espiritismo brasileiro. É um livro pequeno. A apresentação do "biógrafo" toma as primeiras nove páginas. As onze seguintes são dedicadas ao "biografado". E, a partir daí até o fim do livro, o que temos é a descrição dos confrontos burocráticos entre os diversos grupos que visavam liderar a administração da fé espírita no país. O autor elege os seus preferidos e encerra dizendo que o comando, afinal, foi entregue à Bezerra de Menezes. Dito isto, reproduz uma palestra de Allan Kardec, recebida psicograficamente pelo médium Frederico Junior, nos estertores do período de D. Pedro II como Imperador do Brasil. O projeto gráfico é absolutamente horroroso - para ilustrar o post, recorri a uma foto que achei belíssima e inspiradora, mas sem vínculo com a publicação. A capa do meu exemplar traz duas pequenas fotos do "biografado", no alto, e uma pequena gravura da população da capital defronte ao jornal "O Paiz", imagem aparentemente ligada à Proclamação da República (evento que sequer é citado no livro). Como comentar? Não sei. Melhor não.
É uma obra com um design e uma composição gráfica extremamente interessantes. Um cuidado desusado no nosso histórico editorial (nos últimos dez anos, uma larga fatia das publicações espíritas têm investido em capas de maior apelo visual, ainda que abusando dos clichês e do mundanismo). O livro em questão reproduz, fala a fala, duas edições do "Pinga Fogo", célebre atração da TV Tupi de São Paulo, no início da década de 70. Destaca a comoção nacional e a grande audiência obtidas com a presença de Chico Xavier no auditório da emissora. O maior nome do Espiritismo brasileiro foi reverenciado no decorrer das longas horas do espetáculo. A transcrição integral, entretanto, evidencia o superficialismo dos dois programas. Na leitura, percebe-se a indigência do conteúdo. Os diálogos são em sua imensa maioria vazios, destituídos de graça ou informação. E o título do programa ficaria melhor como "Rasga Seda". Atente que isso em nada diminui a grandeza de Chico Xavier e da Doutrina Espírita, dos quais sou, respectivamente, admirador e seguidor. Também não desmerece a importância do evento para a propagação e aceitação de uma fé que tornou mais tolerante e generosa uma pátria de milhões de fiéis. Não obstante, da mesma forma que o mais atraente livro lido ao vivo na TV se transformaria em um programa maçante, um show televisivo, transcrito em texto, não passa de um amontoado fútil de vaselina verbal e frases pobres. Ao fim, foi um projeto editorial que se prestou mais à apologia dos presentes do que ao registro relevante. As irritantes caixas de texto, em negrito vermelho, presentes nas margens laterais das páginas, com explicações redundantes, fazem do texto um pingue-pongue, induzindo os olhos do extenuado leitor para lá e para cá, sem nenhum proveito. O cuidado da impressão empolga o leitor com a promessa de um grande livro. Página a página, porém, o impacto inicial se esvanece. Um número menor de firulas gráficas e uma edição mais concisa teria feito mais por esta inegavelmente bonita publicação.
O subtítulo da edição em português, "uma pesquisa científica das lembranças que as crianças têm de vidas passadas", conta porque comprei o livro. Eu o li e posso assegurar: livrinho chato. Segue a mesma toada compulsiva de outros autores americanos que investem em temas que tangenciam a espiritualidade: escrevem para quem não acredita. Com isso, passam o livro todo tentando provar que checaram todas as fontes e todas as possibilidades de fraude. Tucker não faz isso uma vez. Nem duas ou três. Faz cinquenta vezes, cem vezes. É como se ele não acreditasse no que vê e no que diz. Suas centenas de estudos são insípidas. Os casos - a maior parte asiáticos - são muito mais uma descrição ginecológica do que um relato sensual. Não há nenhuma entrevista que desperte a mínima curiosidade - ele se esmera em retirar toda a emoção, à guisa da objetividade científica. Mas esta ele também não atinge, pois os depoimentos são, por si mesmos, subjetivos (mais ainda quando tomados de crianças, o que é exatamente o caso). A primeira parte do seu livro é um esquisito prontuário sobre mortes violentas que produzem marcas de nascença semelhantes às provocadas pelo acidente fatal, no novo corpo de um espírito reencarnante, relato que toma mais de um terço do livro. A linguagem é maçante e a abordagem idem. A sua suprema ignorância sobre a teoria dos Espíritos, formulada pelo professor francês Leon Hippolyte Denizard Rivail (mais conhecido como Allan Kardec), há mais de um século e meio, não tem justificativa. Pretender analisar o mundo espiritual sem considerar os pressupostos da Doutrina Espírita - nem que fosse para negá-la - é um equívoco. Na ausência dela, não há nada. E, ao estudá-la, você pode reunir os elementos para refutá-la - ou não. Mas desconhecê-la é um erro crasso, como fica patente à sua afirmação na página 161: "Não há uma teoria para a reencarnação." Ahm? Como assim, doutor? O senhor se autodenomina estudioso e ignora 150 anos de estudo doutrinário, prático e teórico, exposto e discutido por centenas de autores respeitáveis? Difícil levar a sério essa falta de estofo. Por conta dessa lacuna no seu cabedal teórico, dispara bizarrices do quilate de "a reencarnação não é para todos", afirmando que somente uma (não estimada) minoria da população mundial reencarna, apenas os que cometeram erros. Com isso nos leva a concluir que a maior parte da humanidade não reencarnará, porque... não cometeu erros! Exdrúxula abordagem, em um mundo sabidamente imperfeito como o nosso. Bem, voltando ao livro, o dr. Tucker acredita que as pessoas fazem marcas com argila branca na nuca dos parentes e eles vão renascer com um círculo na nuca, e serão reconhecidos porque renascerão na vizinhança. A obsessão por catalogar os casos (que ele chama de "resolvidos" e "não resolvidos", observando um critério de quantas citações comprováveis de uma vida anterior a criança pode afirmar e que são checadas), faz com que ele ignore as pessoas por trás de cada caso. Importa a Tucker confirmar se o vizinho do morto que a criança diz ter sido tinha, ou não tinha, um carro vermelho. Se tinha, ponto pra criança. Se não acham um vizinho que tinha um carro vermelho, zero ponto. E por aí vai. Contaram os pontos (cor do carro, tia gorda, primo com joelho machucado, casa com sacada no fim da rua), criança fichada, vamos pra próxima. Me poupe. É muito mais um Faustão com um show tipo "Essa era a sua vida?" do que uma obra reflexiva sobre uma porta oculta da trajetória espiritual. Um relato monótono, que li com o entusiasmo de quem espera na fila do banco para pagar a conta de luz.
A pergunta "Há vida depois da morte?" é uma obsessão do ser humano, diante do vazio opressivo. Mesmo os mais céticos hesitam. Todos querem crer que a vida não se encerra aqui. Alguns poucos conseguem. Felizardos. As religiões vêm cultuando o monopólio da resposta. Discordam entre si e apostam seus óbulos em uma explicação exclusivista. O céu passa por elas. Mas por uma delas, apenas. Como se fosse um Silvio Santos místico, possuído pelo Mr. Natural de Robert Crumb, há um deus no Olimpo perguntando: "É eessaaa? É eessaaa?". Vá saber. Talvez sejam todas. Se o misticismo é pródigo em explicações, já a ciência não tem tido essa generosidade. Madrasta, para ela a morte é o fim de tudo. C´est fini en le Maracanã. Para ela, o corpo e a personalidade que animava o corpo eram indissociáveis. Com a morte de um, o outro também pede a conta. Ou não. Porque, mesmo que dominante, este é o entendimento de apenas parte da ciência. Assim como nas religiões, há correntes. O saber humano comporta várias "ciências". Há, por exemplo, estudos sobre a fisiologia humana que são aceitos por um determinado círculo acadêmico, mas questionados em outros. Ou mesmo simplesmente rejeitados alhures. Podemos classificá-las como áreas controversas, onde o processo empírico que norteia o saber científico não foi esgotado. Nesta categoria temos, entre outras, a homeopatia, a acupuntura e a fisioterapia. Cada uma delas, a seu tempo e a seu grau, foi negada, tolerada, aceita (ou quase) e absorvida. Então, mesmo a ciência, tão rígida, volta e meia abre seu flanco. Uma destas raias, porém, permanece na vala acadêmica, sem acesso ao salão nobre da medicina: o Magnetismo e sua frequente companheira, a Hipnose. É uma faculdade mais bem aceita nos shows de auditório, com assistentes de maiô, do que nos consultórios. A discriminação é justa? Há algo de procedente no hipnotismo ou ele é mero charlatanismo? Ó dúvida. Um dos mais abrangentes livros sobre o tema foi escrito há um século atrás - e permanece sendo uma das obras mais citadas pelos estudiosos do assunto. Seu autor, Eugéne-Auguste Albert de Rochas d'Aiglun, foi um francês que, na primeira década dos 1900, se dedicou à hipnose e aos resultados dela advindos. Sem convicções prévias ou teses a provar. De Rochas era um pesquisador. Um curioso. E se viu exposto a um mundo que antes não imaginava - e para o qual não tinha rótulos. Dos seus pacientes (denominados sujets, no jargão dos entendidos) ele colheu um largo espectro de reações. E, mais do que tudo, uma surpresa: à medida em que o processo hipnótico avançava, em estágios que ele ia classificando de acordo com a profundidade do transe, relatos de outras vidas começaram a surgir - e de Rochas se viu diante do que ele não imaginara: a regressão da memória às vidas passadas do hiptonizado. Cético, não partidário da doutrina espírita ou qualquer outra tese reencarnacionista, ele incentivou o mergulho em épocas cada vez mais distantes. Para uma melhor aferição e idoneidade dos procedimentos, zelava para que houvesse sempre observadores externos em suas sessões - e, muitas vezes, ele saía da condição de hiptnotizador e passava à de observador, responsável pela transcrição dos relatos. Sem ideias pré-concebidas e sem defesa de teses, o pesquisador francês investigou os diferentes níveis de reação do cérebro humano à hipnose. O leitor, além da farta, convincente e criteriosa produção, se vê cativado e desconcertado pela honestidade intelectual do autor. De Rochas, em seus viés puramente científico, descarta qualquer doutrina mística ou religiosa. Frente ao que lhe parece inconclusivo, deixa diversas questões em aberto e questiona os casos em que atuou, os que assistiu e aqueles de outrém, cujo relato lhe parecia confiável. Parte das transcrições nos é fornecida, com a reprodução dos diálogos mantidos com dezenas de sujets hipnotizados. Assim, se a narrativa sobre as supostas vidas anteriores merece crédito, ou não, cabe, em parte, ao leitor decidir. O fato é que surpreende que hoje, cem anos depois, tão pouco se saiba sobre os meandros da mente. Que janelas para um universo desconhecido e enigmático permaneçam fechadas, por um rigor que, no futuro, podem ser rotuladas de obscurantismo. Fato é que ferramentas inusuais, como a hipnose, foram relegadas ao descaso, talvez mais por falta de conhecimento sobre o que acontece com os suscetíveis ao processo hipnótico do que por real falta de convicção sobre o método. É uma pena que assim seja. O livro, além destes relatos, traz ainda o resumo de crenças e religiões, e também uma síntese do pensamento de nomes como Platão, Apolônio de Tiana e Voltaire. Para quem se interessa sobre a mente humana e o universo de alternativas presentes em um mundo que não vemos, uma obra relevante.
Não, o título não tem nada a ver com o dia de hoje, quando o Congresso se reúne para votar o impeachment da presidente Dilma Rousseff e o gramado foi dividido por um muro de aço, para impedir que manifestantes pró e contra o governo se engalfinhem. O "Guerrilheiros da intolerância" em questão é um comparativo entre as biografias produzidas sobre três vultos históricos: Hipácia - a filósofa de Alexandria -, Giordano Bruno - monge e filósofo italiano do século XVI -, e Annie Besant, ativista inglesa e presidente da Sociedade Teosófica. São personagens interessantes, principalmente o segundo, e a intenção de Hermínio com o comparativo é defender que foram os três vultos analisados manifestações diferentes de um mesmo espírito. O autor hoje também pertence ao mundo espiritual: o incansável Hermínio Miranda nos deixou há poucos anos, e, na sua longeva temporada entre nós, trabalhou com generosidade, delicadeza e humildade intelectual. Sua produção literária é exemplo de pesquisa científica e histórica fundamentada. Admirador confesso que sou, foi uma grata surpresa redescobrir no meu exemplar uma gentil dedicatória - que imagino me tenha sido presenteada em uma palestra no Palácio de Cristal, que exatamente daqui a uma semana completará 17 anos. Obrigado, Professor. Outrossim, não obstante meu carinho, gratidão e reverência pelo autor, procuro não permitir que influencie na minha análise do conteúdo do livro abordado. A verdade é que não me convenci que há elementos evidentes para identificarmos serem os três personagens a mesma pessoa. Mais: também considerei o livro um gigantesco verbete enciclopédico, engessado, onde a vida dos biografados não palpita e, como consequência, nos deixando perceber somente uma imprecisa silhueta de quem realmente foram. A impressão que fica é que os biografados são coadjuvantes de uma biografia alheia. Mesmo o maior volume de informações sobre Besant (cuja vida foi quase contemporânea da do autor), ainda que muito maior do que os demais, padeceu do mesmo mal. Soube mais de Madame Blavastky, Leadbeater e Krishnamurti do que sobre ela mesma; uma Annie muito adjetivada, mas pouco aprofundada. Hipácia praticamente não teve fundamentação histórica sobre a qual nos debruçarmos. A parte de Bruno foi picaresca, mais pelo seu caráter dúbio do que por sua pretensa relevância. O aparente mau-caratismo de Bruno, a propósito, em nada parece com a têmpera de Besant - seriam a mesma pessoa? Sinto o impulso de negar: ainda que amenizada, creio que a canalhice de outrora traria um pouco mais de molejo para a obstinada e volúvel biografada. Em suma, meu querido guia e professor Hermínio Miranda não conseguiu sair da armadilha da subordinação literária, meramente ecoando o andamento das biografias nas quais se baseou. Sua narrativa, assim, é marcada pelas lacunas e pelos saltos. Nela não se fixa a substância dos biografados, marcadamente a das duas mulheres. Pena. Diante da sua gigantesca produção, um momento aquém do seu brilho. Mas, convenhamos, até o Pelé perdeu pênalti.
Camille Desmoulins morreu aos 33 anos, guilhotinado. Se formou advogado, mas brilhou na política, como jornalista. Desempenhou importante papel na Revolução Francesa - inicialmente, deflagrando-a; ao fim (literalmente), combatendo-a. Foi amigo de infância de Maximilien Robespierre, que o condenou à morte. Foi também amigo e aliado político de Georges Danton, ao lado de quem foi despachado. Camille Desmolins é co-autor do livro, mas o escreveu quase dois séculos após a própria morte: reencarnado no Brasil dos anos 60, quem o ditou foi o jornalista brasileiro Luciano dos Anjos. É a poeira cósmica dos tempos. Ainda que trate de mortos que falam pela boca dos vivos, o livro não é de ficção ou psicografado. É obra de cunho histórico-científico, lastreado em pesquisas bibliográficas e sessões de hipnose e regressão de memória às quais se submeteu Luciano dos Anjos. Já o autor "principal", Hermínio Miranda, é nome proeminente no Espiritismo científico. Um estudioso erudito e ponderado. Os temas que aborda são, via de regra, históricos ou teológicos - com inúmeras concessões à Psicologia, quando Hermínio envereda pelas entranhas da mente (memória, autismo e múltipla personalidade foram, cada um a sua vez, pauta principal de livros seus). Miranda geralmente age como observador e compilador, intervindo de maneira cuidadosa e se mantendo pessoalmente à prudente distância. Neste "Eu sou Camille Desmoulins", sua presença difere um pouco da sua praxe, ao se colocar no centro da ação, com o livro trazendo sessões mediúnicas em que o próprio Hermínio esteve presente. O ponto de partida foi uma sessão no longíquo ano de 1967, em que o jornalista espírita Luciano dos Anos, reticente quanto à própria sugestionabilidade, se submete ao desafio de um transe hipnótico. Nele, para sua surpresa posterior, Luciano se assumiu um personagem secundário da História francesa, disse coisas inusitadas e despertou a curiosidade de Hermínio. Mas a excursão pelo subconsciente de Luciano não foi à frente; a fita da sessão foi esquecida em uma gaveta; e não mais tocaram no assunto nos 13 anos seguintes. O hiato teve sua razão. Ao pesquisar a vida de Desmoulins, Hermínio identificou no relato de dos Anjos uma série de incongruências, tornando-o suscetível a questionamentos. Houve divergência de nomes e informações conflitantes. Melhor deixar de lado, se o tema já é naturalmente controverso. Em 1980, entretanto, tendo inusitadamente deparado com fontes que respaldavam as afirmações de Luciano na década anterior, Hermínio e o médium combinaram novas sessões - e o material coletado foi o alicerce do livro, que resolveram escrever a quatro mãos. É impactante a descrição dos pequenos detalhes, como a lembrança de Camille do trajeto em que seguia com os demais condenados do dia, rumo à execução. Em prantos, o autor reencarnado admite sua covardia perante a guilhotina e reverencia a postura corajosa de Danton. Antes, contou mais, e nos agrada ouvir da própria boca de um contemporâneo minudências rotineiras, como a relação de valores de trabalho e produtos existente à época. Não só: é prazeiroso caminhar pelos palácios, tavernas e calabouços de um momento decisivo da política européia e mundial. Fato é que viajar no tempo é o sonho máximo dos devotos da História, e o testemunho de um personagem "redivivo" constitui um presente ímpar. Isto posto, não obstante o brilhante esforço de Hermínio, meticuloso e honesto, seu monumental estudo não rendeu um bom livro. As falas de Desmoulins/dos Anjos são dispersas e picotadas; e as notas históricas após cada capítulo são demasiadas. Extensas e maçantes. O livro não flui. É uma rodovia de calçamento irregular, com quebra-molas de variada altura, dispostos a cada 100m. Ademais, se a primeira parte, escrita por Hermínio, contribui para a comprovação da reencarnação como verdade histórica, a segunda revela a baixa qualidade do texto do médium, que responde pela parte final do livro. Nela, dos Anjos se jacta verborragicamente em cada uma das páginas e descreve em minúcias sua atual história de vida, que é desinteressante. Outrossim, se sua passagem anterior pelo planeta, como Camille Desmoulins, teve mais importância, esta, de forma consoante, revela um personagem fútil e desagradável, a despeito de seu eventual (e relativo) protagonismo. Se a obra fundamenta a convicção das vidas sucessivas, deixa claro também que os chatos e presunçosos têm enorme probabilidade de reencarnarem chatos e presunçosos. Como bem o sabem os leitores do Pentateuco, o aprendizado é lento.
Lachâtre Publicações, 375 páginas
Obs.: Pesquisando sobre Luciano dos Anjos na internet, fui cair em blogs sensacionalistas, mal diagramados e com uma agressividade descabida, denunciando os 160 anos da doutrina como uma trajetória de farsas e imposturas. Retrógrado. Não é difícil imaginar o grupo religioso-capitalista por trás dessa sandice. Técnica digna do século 19. Diante do acinte e do despropósito, só me resta repetir: o aprendizado é lento.
É um livro sobre psicometria. Que trata da absurda perspectiva - seja realidade ou maluquice - de um objeto registrar em suas células tudo o que se passa no ambiente à sua volta, por milênios a fio. E mais: que a chave para se obter essas informações de dentro dos objetos seria por intermédio de pessoas com uma capacidade sensorial específica (em miúdos, como se qualquer pedaço de qualquer coisa fosse um multi-iPhone pré-histórico, que gravasse tudo ao redor, em 360 graus e em alta resolução, e o sensitivo fosse um cabo USB). Muito doido. Hoje em dia a galera inventa de um tudo. O único pormenor é que isso não foi escrito "hoje em dia". Tem tempo. Para ser exato, 152 anos. Quem avaliza a obra e a reporta é Hermínio Miranda, um estudioso das imensuráveis possibilidades do cérebro humano sob a ótica da espiritualidade. Autor de dezenas de livros com ampla fundamentação em pesquisas de campo e em experiências mediúnicas - e sempre calçado em uma bibliografia extensa e atemporal -, Hermínio ainda não recebe um reconhecimento à altura da sua doação à causa do entendimento da personalidade humana. O futuro determinará seu tamanho - se um dedicado, mas equivocado, pesquisador, enganado pela sua absoluta convicção na tese reencarnatória, ou se um visionário que enxergou sólidos alicerces onde seus contemporâneos só viam miragens estapafúrdias. Em sua longeva trajetória, o autor avançou por um caminho trilhado por poucos nomes: o da análise científica daquilo que a ciência e o senso-comum denominaram (defensiva ou jocosamente) de místico-religioso. Outros bons autores trabalharam nessa seara que funde o conhecimento científico e sociológico do material e do imaterial, como Lamartine Palhano, Zalmino Zimmerman, Dora Incontri, Herculano Pires, Albert de Rochas e muitos outros. Como era de se esperar, têm sua divulgação restrita ao ambiente espírita e, mesmo nele, circunscritos à ínfima parcela que tem estômago para digerir os seus complexos enunciados. Em resumo, a minoria da minoria. Nenhuma novidade: assim tem avançado o conhecimento humano nos recentes 3.000 anos. Hermínio Miranda por muitas décadas se dedicou aos artigos, às suas coletâneas e aos próprios livros. Nos seus últimos anos no plano material, abriu o leque e passou a publicar sua releitura pessoal de outros autores e textos. Esse seu pequeno livro, "Memória Cósmica", lançado pela Editora Lachâtre em 2008, se insere entre esses últimos, trazendo à tona um registro relegado ao esquecimento - que Hermínio considerava imperativo resgatar. "The soul of things" ( "A alma das coisas") , do professor de geologia William Denton, publicado a primeira vez em 1863, trata da psicometria, essa faculdade da psique até hoje inexplorada. Embora o próprio Miranda refute a adequação do termo - que remete à uma medição de ondas mentais, o que não é apropriado -, o fenômeno em si é, em pleno século XXI, ignorado e incogitado. Os 111 casos descritos no livro (cujo autor, paradoxalmente, não crê na realidade espiritual e credita tudo à uma desconhecida origem física) relatam as impressões obtidas de um fragmento de quartzo, ao longo das convulsões geológicas de um terreno por milhões de anos, e de um retalho de bandeira que, no Salão Oval da Casa Branca, assistiu a sessões plenárias de duzentos anos atrás. Fosse esse imprevisto cenário factível, e se, nessa hipótese, tivéssemos o domínio do fenômeno, a história da civilização seria reescrita: os museus, que acumulam tantos objetos do passado, se tornariam milionárias jazidas de pré-sal, tal seria o valor do conhecimento acumulado detido. É certo, porém, que a nossa limitada humanidade não está preparada para lidar com esse volume de conteúdo - nem com a amperagem das verdades que brotariam dessa infinita fonte de dados. Leiamos o livro (os interessados), mas, por ora, nos contentemos com a face utópica dessa regressão. É o que nos resta aspirar, em sã consciência. Mas, na parte mais recôndita dos nossos pensamentos, não esqueçamos que, um dia, já zombamos dos desmiolados que defendiam que a Terra era redonda.