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"Cozinha confidencial", por Anthony Bourdain


Nunca tive um relacionamento com um livro mais tumultuado do que tive com este - e olha que já li às pampas. Este "Cozinha confidencial" eu comecei a ler há um par de anos. Já tinha passado da metade do livro (lá pela página duzentos e tal) e descobri que havia algumas folhas não impressas, totalmente em branco. OK. Continuei lendo. Mas, logo depois, encontrei mais uma dezena de páginas sem um pingo de tinta. Aí não dava. No way. Mandei um e-mail para a editora, que, solícita, se comprometeu a me enviar um outro exemplar, por intermédio da Nobel. Dito e feito. Quando chegou um volume checadamente íntegro, dois meses depois, fizemos a troca dos livros (me doeu ter que abrir mão do exemplar original, que estava cheio de anotações). Retomei a leitura do ponto que havia parado. Acredita que na semana seguinte o livro caiu dentro dágua? Ê, inhaca. Ficou aparentemente imprestável. Desconsolado, botei o dito cujo pra secar no sol e esqueci ele lá. Secou, mas ficou empenado. Manchado. Torto. Por sorte, ainda legível. Ressabiado, larguei de mão. Tempos depois, quando me dispus a recomeçar a lê-lo, quéde o livro? sumiu. Catei em tudo quanto é canto. Não achei, deixei pra lá. Passado ano e meio, descobri o tal embaixo de umas caixas. Me senti devedor do espécime acidentado. Dei uma folheada e reiniciei a leitura do zero. Até porque àquela altura eu já sabia o que havia acontecido com o autor e queria ver se conseguia antever a razão do seu gesto tresloucado, lendo o livro. Mas não consegui não, só tornou sua atitude mais inverossímil. Vejo aqui nas folhas de rosto que o livro foi lançado em 2000 e relançado em 2006. A minha reedição é a nona reimpressão e saiu da gráfica em 2016. O texto é de bem antes, se passa dos anos 70 aos anos 90. Fala de cozinha, de juventude e de amizades, algumas mais genuínas do que outras. O autor tem um temperamento peculiar e descreve a si mesmo como um workaholic bêbado e drogado fulltime. Me sacaneia muito. Não a mim, diretamente, mas aos vegetarianos em geral ("as únicas pessoas que aparentemente me odeiam por causa desse livro são aquelas que escrevem textos sobre maionese e 'diversão com fritas' para viver - além, é claro, dos vegetarianos, mas esses não consomem proteína animal suficiente para ficar irritados de verdade"). O eterno desprezo dos cozinheiros pelos comedores de hortaliças. Sem problema. Mesmo tendo que encarar o bullying, o tema do autor - a cozinha vista de dentro -, é sempre interessante. Dá pra superar de boa. A visão que ele tem do seu próprio habitat faz da cozinha um navio pirata, cheia de caras aleijados, tarados e durões. Ele tempera sua peregrinação por dezenas de restaurantes com muita mentira, roubo, traição, espionagem, cooptação, desonestidade e um pouco de sexo, mas a essência é a mesma de qualquer filosofia corporativa vitoriosa: trabalho duro. Sua receita da boa cozinha não difere muito do meu roteiro de uma boa agência de propaganda. "O que a maioria das pessoas não percebe a respeito de uma cozinha profissional", diz ele, "é que nem tudo gira em torno da melhor receita, da apresentação mais inovadora, do casamento mais criativo de ingredientes, sabores e texturas; isso, presumivelmente, já foi acertado muito antes de você se sentar para jantar. A linha de montagem - onde se faz de fato a comida que você come - tem mais a ver com consistência, com repetição brutal e invariável, com uma mesma série de tarefas executadas mil e uma vezes exatamente do mesmo jeito." Pois é. Sintetizando, confiabilidade. Tanto, que ele tira do avental a fórmula do Exército americano dos 5 "p": Prior Preparation Prevents Poor Performance. Ou seja, o enfant terrible, o Bukoswki da chapa quente, sabe que o que ganha a batalha é a organização. O dono de restaurante que ele mais venerou, o Bigfoot, "compreendia", segundo ele, "que o caráter é muito mais importante que as habilidades ou o histórico do empregado (...). Um cara que aparece para trabalhar todos os dias, que nunca liga para dizer que está com gripe, e que faz o que disse que ia fazer" é o cara. Não posso discordar. Ele reforça isso em diversas passagens do livro: "quando ouço a palavra 'artista', logo penso em alguém que não acha necessário aparecer no trabalho na hora marcada"; "nunca invente desculpas nem culpe os outros"; "nunca ligue dizendo que não vai trabalhar porque está doente, exceto em casos de desmembramento". Mas, se concordo com a visão rigorosa de Bourdain no quesito trabalho, na parte que realmente importa do livro, a cozinha, estamos bem distantes - não fosse eu uma mala vegetariana. Passagens como "em geral, os mexilhões ficam boiando em seu próprio mijo fedorento" não me animam a rever meus conceitos. Ele não pega leve conosco ("os Vegetarianos, e sua facção Hezbollah de vegans, são fonte de irritação constante para qualquer chef que se preze. Para mim, uma vida sem caldo de vitela, gordura de porco, linguiça, miúdos, demi-glace e até queijo fedido não vale a pena ser vivida. Os vegetarianos são inimigos de tudo que existe de bom e decente no espírito humano, uma afronta a tudo aquilo que eu defendo, ao puro gozo da comida. O corpo, no entender dessa turma de cabeça oca, é um templo que não deve ser poluído por proteína animal. Eles dizem que só sem ela a vida pode ser saudável, mas todo garçom vegetariano com quem já trabalhei fica de cama com um simples boato de gripe. Claro, eu dou um jeito neles, eu arrumo alguma coisa para alimentá-los, para criar um "prato vegetariano". Catorze dólares por umas poucas fatias de berinjela e abobrinha grelhadas vêm bem a calhar para o meu orçamento." A partir daí Bourdain desclassifica de alto a baixo um ex-garçon vegetariano seu, chamado de incompetente e de frágil diante das amebas do restaurante. No entendimento dele, nós, vegetarianos, somos todos parecidos. Então tá. Segue o livro. Salteado em meio aos capítulos, o chef Bourdain tem algumas dicas práticas para os clientes. Entre elas, recomenda que comamos fora preferencialmente de terça a quinta-feira (peixe segunda-feira, nem pensar), a não pedirmos carne bem-passada e, em casa, a cozinharmos a massa al dente e sem passá-la na água fria. Bem, isso o vegetariano aqui faz duas vezes por semana, ou melhor, a esposa vegetariana do sujeito vegetariano aqui já prepara a massa assim - e, de preferência, as de grano duro da De Cecco, que eu sou um vegetariano bem metido a besta. O pomodoro aqui em casa é também de primeiríssima linha, graças ao talento da cozinheira supracitada. Entre os pratos exóticos que Bourdain já serviu, menciona "peixe-espada com feijão-preto e arroz branco", ou seja, peixe com feijão com arroz. Desestimula os amantes da cozinha quanto a abrir um restaurante. Segundo ele, as taxas de sucesso são inferiores a 20%. Diz que se o seu interesse for comer as garçonetes, as chances são ótimas, mas se a ideia é ganhar dinheiro, pode ir desistindo: "Óbvio que o dentista aposentado que abrir um restaurante para fazer sexo ou ouvir loas estará totalmente despreparado para as realidades do negócio. (...) Descapitalizado, ignorante das obscuras exigências de novas caixas de gordura, desinformado sobre a necessidade de consertos frequentes nos refrigeradores e substituições imprevisíveis de equipamento, assim que o movimento cair, ou não melhorar, entrará em pânico." Mas oferece também a receita do sucesso: "Claro que existem muitos e muitos donos de restaurante que se dão bem no negócio (...). Sabem quanto exatamente isso vai lhes custar, (...) têm uma ideia preestabelecida de quanto estão dispostos a perder (...). Um dono de restaurante versado no assunto jamais muda seu estilo de apostar. Ele não se importa com fórmulas mágicas, com mudanças no preço ou o conceito dos cardápios. Com uma determinação de aço, um profissional respira fundo diante das adversidades e redobra os esforços para fazer do restaurante aquilo que ele quis e planejou o tempo todo." Não à toa o livro fez sucesso. Uma auto-ajuda culinária. Bourdain, em miúdos, diz que, se você já é experiente no ramo, você sabe o que fazer. Se não é, não tente. Sua opinião sobre os consultores não é boa - segundo ele, se trata de "chefs desempregados e donos fracassados de bistrôs que ainda gostam de comer de graça". Ou seja, ele pega bem mais leve com os consultores do que comigo, o Vegetariano. Um comentário dele sobre mão-de-obra ("a empresa toda estava apoiada firmemente nos costados de uma ralé de equatorianos mal pagos, assoberbados e subalimentados - dez minutos para uma coxa de frango, penne e salada todo santo dia, no almoço e jantar -, com documentação mais que dúbia"), faz refletir sobre a importância dos imigrantes na economia norte-americana - na verdade, em qualquer economia. Bourdain debocha de Ferran Adriá na primeira edição do livro - "Você viu a porcaria que esse cara está fazendo? (...) Esse cara das espumas é uma empulhação" -, para se corrigir na edição seguinte. Os dois tinham se tornado amigos. Bem bacana o capítulo sobre Tóquio, que o autor revela ter sido com ele que ganhou o contrato que gerou a publicação do livro. Gostei também dele ter dito que "todo homem, aos cinquenta anos, fica com a cara que merece" e da sua apologia à imprescindibilidade do Down and Out in Paris and London do Orwell. Quem curte George Orwell não pode ser um mau sujeito. Definitivamente, apesar dos surtos, Anthony Bourdain não era. Assisti um vídeo em que o entrevistador Joe Rogan conversa com o artista plástico David Choe sobre Bourdain e, lembrando do amigo, Choe começa a chorar compulsivamente. Não é o único depoimento apaixonado que encontrei sobre Anthony. Ele parece ter sido um cara legal, mesmo não gostando de (mim) vegetarianos. Ao retomar o livro, sabia que ele tinha se matado, mas não sabia nada sobre a circunstância, nem sequer sobre ele mesmo. Neste mesmo livro, lançado 18 anos antes, ele já antecipava seu desequilíbrio: "Estava totalmente deprimido. Passava o dia inteiro na cama, paralisado de culpa, medo e remorso. (...) À noite, não conseguia dormir, sentia palpitações, ondas de terror, acessos de auto-repulsa tão fortes que apenas a ideia de mergulhar da janela do sexto andar direto na Riverside Drive me dava algum alívio e me permitia cair num sono resignado." Na pesquisa que fiz somente agora, após ter lido o livro e escrito minhas impressões rápidas sobre o que li, tomei ciência da dimensão que ele havia tomado como celebridade internacional, vencedor diversas vezes do Emmy, namorando atrizes e lutadoras de MMA, sempre rodando o mundo, incluindo tomar umas cervas e comer noodles em pratos de plástico com Barack Obama, em Hanói. Nas matérias que achei, as razões da sua decisão para tirar a própria vida não são sabidas, ou suficientemente claras. Sinto por ele e por qualquer um que atente contra a própria existência (como disse o inglês John Donne há quatrocentos anos, "não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por ti"), pelo sofrimento incontrolável que leva a esta atitude extrema. Mas eu ainda estou com o Anthony de antes da partida e também antes desse sucesso todo, quando era apenas um cozinheiro judeu mal-humorado que não tinha papas na língua. Sua proposta original era a de escrever um livro para quem fosse do métier, algo para a galera do ramo. Pelo que ele diz no posfácio, conseguiu. A partir daí chefs renomados mundo afora se tornaram seus amigos e Anthony passou a circular pelos quatro costados do planeta, fazendo explorações gastronômicas e novas amizades, o que significava comer, beber e curtir, além de namorar. Nada mau. 

Companhia da Mesa, 405 páginas

"O vinho mais caro da História", por Benjamin Wallace

O livro trata de um assunto de menor importância, circunscrito à futilidade sem fim dos hedonistas e dos muito endinheirados - mas que, acondicionado em ritmo de thriller, por um autor inspirado, se configura presente saboroso. Não obstante o bom texto, porém, o tal "vinho mais caro" é uma balela - tanto do pretensioso vendedor, quanto do título instigante. De fato, o verdadeiro tema do livro é o mercado de vinhos antigos e o seu apogeu nos anos 80, estimulado por apreciadores com fortuna demais e bom-senso de menos. O personagem-chave, um alemão enigmático de nome falso, Hardy Rodenstock, é catapultado ao Olimpo dos descobridores de vinhos raros por um leiloeiro em ascensão. A súbita e bem-vinda aterrissagem dos novos ricos americanos faz dele e da sua misteriosa adega de incontáveis vinhos históricos de 200 anos de idade um sucesso no enomundo - ainda que a origem das garrafas se tornasse, ano a ano, cada vez mais questionável. Para quem gosta de uvas, milionários e boas histórias, um livro interessante; e o título em inglês, "The Billionaire's Vinegar", é sumamente divertido e revelador. O único senão - e que tem considerável peso, à hora chegada - é o fim diluído da obra, menos conclusivo do que gostaria o leitor que destrinchou suas quase 300 páginas. Parece até mesmo que, inesperadamente, depois de uma degustação vertical de 40 safras de Yquém do século XIX, nos foi servido um chileno avinagrado. Ainda assim, não é um livro para se cuspir.

Jorge Zahar Editora, 278 páginas.

"Comer animais", por Jonathan Safran Foer


Eu não como animais. Por que eu iria ler um livro sobre um sujeito que quer me convencer a não comer animais? Ora, se eu leio até bula de remédio e itinerário de lotação, razões não me faltam para lê-lo. Eu leio de um tudo. Então, sem problema ler apologia da alimentacão vegetariana. Até porque Foer tem um bom texto. Tem também uma boa história para contar, que ele transforma numa longa arengação contra o hábito de se comer os bichos. Ele faz um bom trabalho (podia tirar fora umas 50 páginas, que seu livro ficaria melhor). Da página 87 até umas cem páginas seguintes, temos o melhor da obra, com as invasões das granjas industriais e a repugnante descrição dos processos de matança. E é esse, na verdade, o ponto central do livro de Jonathan: a inevitável crueldade dos matadouros para atingir sua meta de produção de milhões de toneladas de carne barata. Perversidade existente não por sadismo (ainda que esse sadismo exista, com o autor afirmando existirem centenas de provas documentais disponíveis no YouTube), mas sim por conta do percentual de animais que sobrevive às etapas iniciais da linha de montagem da matança e segue vivo para a área de esfolamento e esquartejamento (nas duas últimas semanas, o Fantástico e a Veja denunciaram que 30% do gado abatido no Brasil não passa por inspeção sanitária, mortos com crueldade e armazenados sem higiene). Foer deixa claro que, para baratear a carne (cujo custo proporcional não pára de cair ao longo dos ultimos 100 anos), a sociedade fecha os olhos para a forma como esse “produto alimentício” é preparado. Li nos jornais que, somente para essa última edição do Superbowl, a estimativa é que os americanos tenham comido 6,5 milhões de asas de frango, equivalendo a 3,5 milhões de galinhas mortas (10% estimados de perdas é um número baixo) somente para suprir o ímpeto  gastronômico ao longo de 3 horas de transmissão. Tente imaginar como criar, acomodar, alimentar, cuidar, checar, matar, limpar, destrinchar, ferver, embalar e distribuir 1 milhão de galinhas por hora. Não dá pra fazer boa idéia de um processo desse porte - e é justamente esse o objetivo de Jonathan Foer: promover a conscientização coletiva de que esse negócio, no fundo, não funciona. A indústria da morte animal é criminosa. Hoje, Sexta-feira da Paixão, milhões de bichinhos ganharam um dia a mais de vida. É pouco. Foer quer muito mais, e seu instrumento para conseguir isso é seu livro, que deve proporcionar um bom nível de baixas carnívoras entre os que se predispõem a lê-lo – já eu modestamente me restringi a tentar induzir meu filho mais velho a fazê-lo, mas sem arrumar nada. Pobres galinhas.

Editora Rocco, 273 páginas

P.S.: Minha esposa me enviou o vídeo de um menininho que está bombando na web. A mãe tenta empurrar pra ele um nhoque de polvo. Ele argumenta como só alguém com 3 anos pode argumentar. E não come o bichinho. Segue o link: http://bit.ly/1555k6Z. Divirta-se. Comendo ou não os bichinhos.

"A Dieta Gracie", por Rorion Gracie


O que mais pode querer um livro sobre dietas do que modificar os hábitos alimentares dos seus leitores? Pois foi o que o “A Dieta Gracie” acabou de fazer comigo. Não pretendo abordar as prescrições, combinações e ingredientes sugeridos – uma divulgação e orientação que cabe ao livro, e não ao leitor. Mas o ponto crucial  do livro de bolso de Rorion Gracie é revelar que o ato de comer é muito mais importante do que poderíamos imaginar – e olha que dou enorme valor à alimentação criteriosa. O autor leva essa necessidade ao status de culto à saúde e ergue seu templo ao processo digestivo, por meio do controle da acidez. Precedendo à ingestão, ele nos faz ver que selecionar, comprar e preparar alimentos merecem ocupar um espaço muito mais importante na nossa rotina do que preconizam a cultura do fast-food, ilusória com sua atraente praticidade, preço e sabor. Diligente, já estou iniciando minha experimentação e minha adaptação à dieta sugerida - não cogito me subordinar integralmente a ela, mas não estigmatizo tal possibilidade. Viso adicionar partes que me pareceram inquestionavelmente boas e avaliar a adoção de algumas outras (metódo, aliás, sugerido pelo autor). Mas o início me pareceu promissor. Vamos ver até onde vou. Minha mulher também gostou; crucial para um eventual sucesso no seguimento da dieta. Minha sogra aprovou e encomendou o livro. O estilo de vida saudável proposto por Rorion e pelos Gracie é legitimado pelo inegável sucesso da família, em breve completando 100 anos de protagonismo atlético e esportivo. Através do seu livro, o que eles nos sugerem comer é o que todos eles comem todos os dias, durante a vida inteira – como o fizeram seus pais e hoje também fazem seus filhos e netos. Mesmo que as combinações exijam muito de nós, simples mortais, para não fugirmos ao estipulado nas tabelas, é irresistível tentar. E, cá pra nós, pelo que estou provando, parece bom (hoje mandei ver no sanduíche Renergia, nutritivo e delicioso). Não é à toa que deu certo.

Editora Benvirá, 174 páginas

"Banquete", por Roy Strong

Um texto elegante - e uma abordagem elitista do que o autor denomina “jantar festivo” - nos conduz pela mesa dos nababescamente ricos nos últimos 2.500 anos. No cardápio de Roy, Grécia e Roma antigas nos são oferecidas como antipasto, onde o prazer de comer e conversar norteia os hábitos. Em seguida ele nos mostra que, da queda do Império Romano até o século XVI, tivemos uma retração compatível com o estereótipo sombrio da Idade Média. O Renascimento assinalou o retorno à ostentação e ao espetáculo social, em uma mise-en-scéne rebuscada que me pareceu enfadonha - mas que fazia um baita sucesso. A Revolução Francesa traz uma reviravolta nos costumes e, a partir daí, ingressamos no estágio onde o cerimonial chega à burguesia, deixando de ser privilégio da nobreza e refletindo mais a cultura à qual nos habituamos como referência de requinte à mesa. E ponto. Tudo isso teve fim com a Primeira Guerra Mundial, pois, doravante, “(...) os rituais seculares das refeições foram desconstruídos e substituídos pelo espetáculo de uma figura solitária mastigando diante de uma tela de TV”. O livro tem seu interesse, nem que seja para dar mais consistência à nossa cultura inútil, como, por exemplo, sabermos o impacto tecnológico causado pela chegada do garfo e, posteriormente, do prato de cerâmica (substituindo o pão). Mais? O termo “etiquette/etiqueta” provém de um bilhetinho que a anfitriã encaminhava aos convidados para orientá-los sobre as regras que estariam valendo no jantar. O livro revela, enfim, iguarias de lamber os beiços: um banquete oferecido pelo Papa Clemente VII, no século XVI, trazia um pintinho para cada conviva - acompanhado por um pastel de crista de galo, testículos e groselha; tortas com recheio de olhos e testículos; cabeças de bezerro desossadas e recheadas; finalizando com suculenta salada de pés de cabra. Vai uma aí? 


Jorge Zahar Editora, 265 pgs

"O Dilema do Onívoro", por Michael Pollan


Com uma narrativa persuasiva, o autor disseca o sistema alimentar americano - apoiado na premissa de que o povo de Tio Sam tem no milho seu ingrediente dominante (menos nas formas óbvias e mais por sua presença oculta em refrigerantes, alimentos industrializados e na carne). Fatiando o seu ponto de vista, Pollan dá ao milho o domínio da primeira das três partes em que se divide o livro, fazendo de qualquer leitor atento um neo-especialista na “erva tropical gigante”. Seu texto é bem-humorado e bem fundamentado - e, com isso, plantações e laboratórios para processamento do onipresente milho se nos tornam íntimos. Mesmo quando vamos para o repugnante cenário dos matadouros (não se espante, permanecemos no âmbito do milho: o gado americano hoje não mais pasta, e sim come o milho número 2, um produto de linha inferior), acompanhamos téte-a-téte o novilho que Michael Pollan comprou no nascimento e que é seguido até o suspiro final. O segundo pedaço do livro é dedicado àquilo que falta ao primeiro: pasto natural. Nesse trecho os holofotes estão sobre a Fazenda Polyface, cujo proprietário se auto-intitula um “plantador de capim” e onde, fascinado, o autor busca demonstrar como a indústria inverteu  a lógica natural do processo alimentar, sacrificando a harmonia do ciclo biológico pela produtividade – pois é aí que o milho “atropela” o pasto e, como consequência aos olhos de Michael, a saúde da população. O último prato da obra, dedicado a uma utópica regressão ao primitivismo (onde o autor coleta e caça a sua própria refeição), cansa, sobra e acaba por desandar um tanto um livro bem costurado e defendido. Concorde você ou não com as incisivas idéias de Pollan.

Editora Intrínseca,  479 pgs

"Os Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci", pelo próprio

Não me espantaria se o exigente crítico de gastronomia do JB nos anos 80, Apicius, tivesse se inspirado no texto dissimulado e mordaz do Da Vinci que assina o livro. Seus parágrafos são semelhantes na forma e saborosos no conteúdo. O livro - bem-humorado - permanece agradável mesmo ao descrever pratos e hábitos que vão do absurdo ao repugnante (que tal uma cabecinha de cabra partida ao meio, cozida por três horas, e servida em uma cama de polenta, guarnecida por um talharim de miolos e língua? de rezar, ehm?). Não obstante, para curiosos do cotidiano social através dos séculos, esses cadernos são um achado, ao expor, além da praxe culinária, relações entre senhores, seus iguais, apaniguados e inimigos, numa sutil malha sócio-política. As notas de etiqueta, sensatas, orientam a colocar os que têm a sífilis ou a peste longe do anfitrião – desde que não sejam sobrinhos de cardeais ou filhos de papas. Sobre o autor, o gênio que foi pintor, escultor, inventor e, sabemos agora, cozinheiro, não há comprovação histórica de que tenha sido o próprio Da Vinci.  Mas, terminado o suculento e divertido banquete, se importar quem há de?

Editora Record, 210 páginas