"Cozinha confidencial", por Anthony Bourdain

quarta-feira, outubro 14, 2020 Sidney Puterman


Nunca tive um relacionamento com um livro mais tumultuado do que tive com este - e olha que já li às pampas. Este "Cozinha confidencial" eu comecei a ler há um par de anos. Já tinha passado da metade do livro (lá pela página duzentos e tal) e descobri que havia algumas folhas não impressas, totalmente em branco. OK. Continuei lendo. Mas, logo depois, encontrei mais uma dezena de páginas sem um pingo de tinta. Aí não dava. No way. Mandei um e-mail para a editora, que, solícita, se comprometeu a me enviar um outro exemplar, por intermédio da Nobel. Dito e feito. Quando chegou um volume checadamente íntegro, dois meses depois, fizemos a troca dos livros (me doeu ter que abrir mão do exemplar original, que estava cheio de anotações). Retomei a leitura do ponto que havia parado. Acredita que na semana seguinte o livro caiu dentro dágua? Ê, inhaca. Ficou aparentemente imprestável. Desconsolado, botei o dito cujo pra secar no sol e esqueci ele lá. Secou, mas ficou empenado. Manchado. Torto. Por sorte, ainda legível. Ressabiado, larguei de mão. Tempos depois, quando me dispus a recomeçar a lê-lo, quéde o livro? sumiu. Catei em tudo quanto é canto. Não achei, deixei pra lá. Passado ano e meio, descobri o tal embaixo de umas caixas. Me senti devedor do espécime acidentado. Dei uma folheada e reiniciei a leitura do zero. Até porque àquela altura eu já sabia o que havia acontecido com o autor e queria ver se conseguia antever a razão do seu gesto tresloucado, lendo o livro. Mas não consegui não, só tornou sua atitude mais inverossímil. Vejo aqui nas folhas de rosto que o livro foi lançado em 2000 e relançado em 2006. A minha reedição é a nona reimpressão e saiu da gráfica em 2016. O texto é de bem antes, se passa dos anos 70 aos anos 90. Fala de cozinha, de juventude e de amizades, algumas mais genuínas do que outras. O autor tem um temperamento peculiar e descreve a si mesmo como um workaholic bêbado e drogado fulltime. Me sacaneia muito. Não a mim, diretamente, mas aos vegetarianos em geral ("as únicas pessoas que aparentemente me odeiam por causa desse livro são aquelas que escrevem textos sobre maionese e 'diversão com fritas' para viver - além, é claro, dos vegetarianos, mas esses não consomem proteína animal suficiente para ficar irritados de verdade"). O eterno desprezo dos cozinheiros pelos comedores de hortaliças. Sem problema. Mesmo tendo que encarar o bullying, o tema do autor - a cozinha vista de dentro -, é sempre interessante. Dá pra superar de boa. A visão que ele tem do seu próprio habitat faz da cozinha um navio pirata, cheia de caras aleijados, tarados e durões. Ele tempera sua peregrinação por dezenas de restaurantes com muita mentira, roubo, traição, espionagem, cooptação, desonestidade e um pouco de sexo, mas a essência é a mesma de qualquer filosofia corporativa vitoriosa: trabalho duro. Sua receita da boa cozinha não difere muito do meu roteiro de uma boa agência de propaganda. "O que a maioria das pessoas não percebe a respeito de uma cozinha profissional", diz ele, "é que nem tudo gira em torno da melhor receita, da apresentação mais inovadora, do casamento mais criativo de ingredientes, sabores e texturas; isso, presumivelmente, já foi acertado muito antes de você se sentar para jantar. A linha de montagem - onde se faz de fato a comida que você come - tem mais a ver com consistência, com repetição brutal e invariável, com uma mesma série de tarefas executadas mil e uma vezes exatamente do mesmo jeito." Pois é. Sintetizando, confiabilidade. Tanto, que ele tira do avental a fórmula do Exército americano dos 5 "p": Prior Preparation Prevents Poor Performance. Ou seja, o enfant terrible, o Bukoswki da chapa quente, sabe que o que ganha a batalha é a organização. O dono de restaurante que ele mais venerou, o Bigfoot, "compreendia", segundo ele, "que o caráter é muito mais importante que as habilidades ou o histórico do empregado (...). Um cara que aparece para trabalhar todos os dias, que nunca liga para dizer que está com gripe, e que faz o que disse que ia fazer" é o cara. Não posso discordar. Ele reforça isso em diversas passagens do livro: "quando ouço a palavra 'artista', logo penso em alguém que não acha necessário aparecer no trabalho na hora marcada"; "nunca invente desculpas nem culpe os outros"; "nunca ligue dizendo que não vai trabalhar porque está doente, exceto em casos de desmembramento". Mas, se concordo com a visão rigorosa de Bourdain no quesito trabalho, na parte que realmente importa do livro, a cozinha, estamos bem distantes - não fosse eu uma mala vegetariana. Passagens como "em geral, os mexilhões ficam boiando em seu próprio mijo fedorento" não me animam a rever meus conceitos. Ele não pega leve conosco ("os Vegetarianos, e sua facção Hezbollah de vegans, são fonte de irritação constante para qualquer chef que se preze. Para mim, uma vida sem caldo de vitela, gordura de porco, linguiça, miúdos, demi-glace e até queijo fedido não vale a pena ser vivida. Os vegetarianos são inimigos de tudo que existe de bom e decente no espírito humano, uma afronta a tudo aquilo que eu defendo, ao puro gozo da comida. O corpo, no entender dessa turma de cabeça oca, é um templo que não deve ser poluído por proteína animal. Eles dizem que só sem ela a vida pode ser saudável, mas todo garçom vegetariano com quem já trabalhei fica de cama com um simples boato de gripe. Claro, eu dou um jeito neles, eu arrumo alguma coisa para alimentá-los, para criar um "prato vegetariano". Catorze dólares por umas poucas fatias de berinjela e abobrinha grelhadas vêm bem a calhar para o meu orçamento." A partir daí Bourdain desclassifica de alto a baixo um ex-garçon vegetariano seu, chamado de incompetente e de frágil diante das amebas do restaurante. No entendimento dele, nós, vegetarianos, somos todos parecidos. Então tá. Segue o livro. Salteado em meio aos capítulos, o chef Bourdain tem algumas dicas práticas para os clientes. Entre elas, recomenda que comamos fora preferencialmente de terça a quinta-feira (peixe segunda-feira, nem pensar), a não pedirmos carne bem-passada e, em casa, a cozinharmos a massa al dente e sem passá-la na água fria. Bem, isso o vegetariano aqui faz duas vezes por semana, ou melhor, a esposa vegetariana do sujeito vegetariano aqui já prepara a massa assim - e, de preferência, as de grano duro da De Cecco, que eu sou um vegetariano bem metido a besta. O pomodoro aqui em casa é também de primeiríssima linha, graças ao talento da cozinheira supracitada. Entre os pratos exóticos que Bourdain já serviu, menciona "peixe-espada com feijão-preto e arroz branco", ou seja, peixe com feijão com arroz. Desestimula os amantes da cozinha quanto a abrir um restaurante. Segundo ele, as taxas de sucesso são inferiores a 20%. Diz que se o seu interesse for comer as garçonetes, as chances são ótimas, mas se a ideia é ganhar dinheiro, pode ir desistindo: "Óbvio que o dentista aposentado que abrir um restaurante para fazer sexo ou ouvir loas estará totalmente despreparado para as realidades do negócio. (...) Descapitalizado, ignorante das obscuras exigências de novas caixas de gordura, desinformado sobre a necessidade de consertos frequentes nos refrigeradores e substituições imprevisíveis de equipamento, assim que o movimento cair, ou não melhorar, entrará em pânico." Mas oferece também a receita do sucesso: "Claro que existem muitos e muitos donos de restaurante que se dão bem no negócio (...). Sabem quanto exatamente isso vai lhes custar, (...) têm uma ideia preestabelecida de quanto estão dispostos a perder (...). Um dono de restaurante versado no assunto jamais muda seu estilo de apostar. Ele não se importa com fórmulas mágicas, com mudanças no preço ou o conceito dos cardápios. Com uma determinação de aço, um profissional respira fundo diante das adversidades e redobra os esforços para fazer do restaurante aquilo que ele quis e planejou o tempo todo." Não à toa o livro fez sucesso. Uma auto-ajuda culinária. Bourdain, em miúdos, diz que, se você já é experiente no ramo, você sabe o que fazer. Se não é, não tente. Sua opinião sobre os consultores não é boa - segundo ele, se trata de "chefs desempregados e donos fracassados de bistrôs que ainda gostam de comer de graça". Ou seja, ele pega bem mais leve com os consultores do que comigo, o Vegetariano. Um comentário dele sobre mão-de-obra ("a empresa toda estava apoiada firmemente nos costados de uma ralé de equatorianos mal pagos, assoberbados e subalimentados - dez minutos para uma coxa de frango, penne e salada todo santo dia, no almoço e jantar -, com documentação mais que dúbia"), faz refletir sobre a importância dos imigrantes na economia norte-americana - na verdade, em qualquer economia. Bourdain debocha de Ferran Adriá na primeira edição do livro - "Você viu a porcaria que esse cara está fazendo? (...) Esse cara das espumas é uma empulhação" -, para se corrigir na edição seguinte. Os dois tinham se tornado amigos. Bem bacana o capítulo sobre Tóquio, que o autor revela ter sido com ele que ganhou o contrato que gerou a publicação do livro. Gostei também dele ter dito que "todo homem, aos cinquenta anos, fica com a cara que merece" e da sua apologia à imprescindibilidade do Down and Out in Paris and London do Orwell. Quem curte George Orwell não pode ser um mau sujeito. Definitivamente, apesar dos surtos, Anthony Bourdain não era. Assisti um vídeo em que o entrevistador Joe Rogan conversa com o artista plástico David Choe sobre Bourdain e, lembrando do amigo, Choe começa a chorar compulsivamente. Não é o único depoimento apaixonado que encontrei sobre Anthony. Ele parece ter sido um cara legal, mesmo não gostando de (mim) vegetarianos. Ao retomar o livro, sabia que ele tinha se matado, mas não sabia nada sobre a circunstância, nem sequer sobre ele mesmo. Neste mesmo livro, lançado 18 anos antes, ele já antecipava seu desequilíbrio: "Estava totalmente deprimido. Passava o dia inteiro na cama, paralisado de culpa, medo e remorso. (...) À noite, não conseguia dormir, sentia palpitações, ondas de terror, acessos de auto-repulsa tão fortes que apenas a ideia de mergulhar da janela do sexto andar direto na Riverside Drive me dava algum alívio e me permitia cair num sono resignado." Na pesquisa que fiz somente agora, após ter lido o livro e escrito minhas impressões rápidas sobre o que li, tomei ciência da dimensão que ele havia tomado como celebridade internacional, vencedor diversas vezes do Emmy, namorando atrizes e lutadoras de MMA, sempre rodando o mundo, incluindo tomar umas cervas e comer noodles em pratos de plástico com Barack Obama, em Hanói. Nas matérias que achei, as razões da sua decisão para tirar a própria vida não são sabidas, ou suficientemente claras. Sinto por ele e por qualquer um que atente contra a própria existência (como disse o inglês John Donne há quatrocentos anos, "não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por ti"), pelo sofrimento incontrolável que leva a esta atitude extrema. Mas eu ainda estou com o Anthony de antes da partida e também antes desse sucesso todo, quando era apenas um cozinheiro judeu mal-humorado que não tinha papas na língua. Sua proposta original era a de escrever um livro para quem fosse do métier, algo para a galera do ramo. Pelo que ele diz no posfácio, conseguiu. A partir daí chefs renomados mundo afora se tornaram seus amigos e Anthony passou a circular pelos quatro costados do planeta, fazendo explorações gastronômicas e novas amizades, o que significava comer, beber e curtir, além de namorar. Nada mau. 

Companhia da Mesa, 405 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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