"História da riqueza no Brasil", por Jorge Caldeira
Que petardo. Dou passagem para a ala das baianas dos clichês: "Uma obra de fôlego". A historiadora Mary del Priore prevê na contracapa: "Um
clássico". Acima dela, um sociólogo que já pediu para ter a própria obra esquecida assevera: "Ele muda o eixo de apreciação da história do Brasil". O laureado Celso Lafer chama a obra de "uma revolução copernicana na análise e interpretação da história". Volto a Del Priore, que explica sua profecia: "O adjetivo
clássico foi criado no século XVI, significando 'o que faz autoridade', 'o que deve ser imitado', 'o que serve como modelo'. Pois o livro que o leitor tem nas mãos é um clássico." Este pessoal que citei acima tem peso e não se excede à toa. Ao contrário do sensacionalismo corriqueiro dos testemunhais de venda (que não têm senso de medida: há meses comentei de uma jovem escritora brasileira ser saudada na orelha como uma nova Franz Kafka), tenho que confessar que nesta contracapa aqui não há o que corrigir. O livro de Jorge Caldeira é uma obra seminal, monumental (Gabeira, semana passada, chamou-a de uma "inteligente pesquisa"; caramba, que econômico). Garanto que até a última das 602 páginas desta bem elaborada tese o leitor estará reaprendendo a interpretar o passado do Brasil - embora esteja tudo em permanente mudança, como o autor não deixa de frisar. No posfácio, datado de 20 de abril de 2017, ele menciona - se valendo de um exemplo doloroso, que generosamente compartilha com o leitor - a importância da passagem do tempo para a reflexão sobre o já acontecido; e frisa não desconhecer que a sucessão de dias traz resultados inesperados. "Que fique a certeza de que esta narrativa sobre os séculos se desdobrará em eventos que a modificarão", diz ele, "alguns certamente terão acontecido entre o momento em que estas linhas são digitadas e o momento em que serão percorridas por seus olhos, leitor. Nesse intervalo muito terá acontecido". Muito, mas talvez nem ele imaginasse tanto. Que dizer? circunstanciando, de abril de 2017 a setembro de 2020 parece que um meteoro do tamanho do Maracanã caiu no coração do Brasil e os abalos sísmicos decorrentes do impacto ainda não deixaram ninguém parar de tremer. Enquanto o nosso maior tesouro - floresta e biodiversidade - queima sob o ataque de milhares de focos de incêndio, mais de 150.000 brasileiros morreram até agora da nova peste, que fez do país epicentro planetário de um vírus genocida -
status conquistado por conta da catastrófica (falta de) gestão governamental. E olhe que o Brasil é pródigo em sobreviver a cataclismas duradouros provocados por seus desgovernos, como bem discorre o livro de Jorge Caldeira. Uma sobrevivência aos trancos e barrancos, filha bastarda das decisões erradas que mutilaram o pais. E é aqui que, enfim, mergulhamos no livro (eu e meus narizes de cera...) - os governos e a sua relação carnal com o crescimento do Brasil. Ué, não é sobre os Matarazzo, os Guinle, os Safra, os Lemann?
Nananinanão... A obra não é um almanaque dos bilionários, ainda que seja compreensível esta enviezada suposição. Porque, numa rápida passada d'olhos, o título é meio dúbio - "História da riqueza no Brasil" remete também (ao menos pro burrinho aqui) a um processo cumulativo individual, como se implícita uma "História dos ricos no Brasil". Será que só eu? ok, nunca fui muito esperto, mesmo. De todo modo, não é dessa riqueza que trata o livro. O subtítulo, este indispensável explicador, conta muito mais sobre seu verdadeiro teor: "Cinco séculos de pessoas, costumes e governos". Eu, da minha parte, ainda cogitaria por título um pomposo "História da acumulação de excedentes, do comércio possível e da política financeira oficial do Brasil através de 500 anos". Um pouco longo, né? foi mal. Seja um, seja outro, esta é a essência da obra-prima do professor Caldeira: como os governos, na cobertura, se relacionaram economicamente com o país, no porão. Como a Economia oficial se conduziu, sob a influência das leis vigentes, e como, à revelia destas mesmas leis, a economia informal espraiou sua própria dinâmica - desta emana a abordagem pioneira do autor, a economia paralela e suas consequentes ondas de desenvolvimento (até hoje não captadas pelo radar da econometria oficial). Em suma, uma obra sobre o vulto histórico do pequeno empreendedor brasileiro. Seu estudo reflete sobre o empreendedorismo não registrado pelos cânones oficiais, e como desde as mais priscas eras este irrigou e modelou a sociedade - uma iniciativa individual que atravessou a maior parte do século XX sufocada pela ação castradora do Estado, que ainda hoje teima em asfixiar no nascedouro as iniciativas mais autorais Ufa! haja fôlego (como o clichê confesso lá de cima já anunciava). De Mem de Sá a Geisel, de Caramuru a Dilma. Se já não bastasse a substância densa da obra, ela vai ainda além, porque aos fatos se somam as paixões do historiador por momentos pontuais da nossa história - e que nos explicam, a nós brasileiros, pela forma particular com que ele as vê. Ainda que sob o impacto das linhas abertas pelo estudo, sou cônscio da minha ignorância e reputo que o viés proposto por Caldeira, por sua originalidade, permanece passível de questionamento. Mas asseguro que não há como ver a trajetória pátria da mesma forma após a leitura acachapante de "História da riqueza no Brasil". Seu olhar sobre as iniciativas empresariais autônomas das capitanias hereditárias (ações claras e orgânicas) e as tentativas frustradas de intermediação governamental, enredadas na logística hostil da terra conquistada, é cooptador. O magnetismo da sua argumentação nos arrasta para um norte subestimado. Desde seu ponto de partida, o historiador desmonta,
a priori, um dos mais antigos dogmas da nossa abordagem histórica: a prevalência de uma "economia de subsistência". Com números e evidências, Caldeira demonstra o trato econômico que pulsou fortemente nas veias do país durante os três primeiros séculos. Como, desde a chegada dos portugueses, o formato indígena das alianças - todas elas baseadas no compadrio -, se tornaram o padrão por excelência e sustentaram uma rede secular de trocas comerciais (os tupi-guaranis casavam-se para firmar acordos, evitar guerras entre si e mancomunarem-se para guerrear a outros - não à toa temos tantos relatos de portugueses casando-se com indígenas; era por dinheiro, não por sexo ou paixão incontida pelas índias peladas). As alianças economizavam guerras, poupavam mão de obra e geravam excedentes agrícolas. Os excedentes compravam armas, que ampliavam poderes e proporcionavam melhores e maiores alianças. Um grande
coronelato luso-silvícola (essa aqui o
copyright é meu) firmou alicerces por regiões crescentes do país. A abordagem peculiar de Jorge Caldeira descortina a atípica formação do arranjo brasileiro. Chamo de arranjo porque é bem o que nos caracteriza: um acerto sócio-econômico à margem e ao redor das regras. Rígidas na cultura europeia, foi justamente a flexibilização das normas sociais que deu, muito antes, vantagem competitiva à coroa portuguesa na sua disputa pelo mercado local. Apesar da "descoberta" pertencer oficialmente aos portugueses, por mais de meio século (ou mesmo o dobro disso) o Brasil foi terra de ninguém. Os franceses fizeram um maior e melhor investimento do que aquele feito pelo reino de Portugal. Idem os holandeses, com a criação da Companhia das Índias. E, se os francos e os neerlandeses iam nos bicando o litoral, os espanhóis, por dentro - com os jesuítas e suas missões -, abocanhavam uma gorda parte do que hoje são o sul e o centro-oeste do país (devemos à diluição da Companhia das Índias na Europa e à ambição do amálgama da gente local, na região que hoje é São Paulo, a ocupação e a posse do sul e do centro-oeste brasileiro). Perceba que o cenário estava longe de ser promissor, então. As Ordenações lusitanas que normatizavam a colônia eram anacrônicas. Uma lei assentada na desigualdade entre indivíduos, como
regra. Deformados por um código legal inadequado para um país tocado por bugres e caboclos, assistimos a reviravolta nas relações sócio-políticas entre reino e colônia, com a descoberta do ouro e um enriquecimento imprevisto (para mais detalhes do período vale recorrer ao interessante "1789", de Pedro Doria, e ao elucidativo "Boa ventura!", de Lucas Figueiredo, ambos disponíveis aqui no blog). Termos virado parte do reino e em seguida nação independente não nos resolveu - como Caldeira manifesta na sua abordagem dos malefícios provocados pelas decisões econômicas temerárias de D. Pedro I, e o quanto isto nos custou, em uma sequência de eventos que, digo eu, repercutem ainda hoje. Se o pai nos aleijou com açodamento, de 1822 a 31, o filho nos sangrou com lentidão, de 1841 a 89. Como enfatiza o autor, a excrescência que era o Poder Moderador agiu nefastamente sobre o desenvolvimento do Brasil. Na opinião de Caldeira, o D. Pedro II tão comumente louvado pela sua ponderação e pelo seu visionarismo foi freio deformador, de forte ação nociva sobre nossas perspectivas de crescimento. Prosseguimos por todo um século - de mudanças no mundo - acorrentados ao regime escravagista, do qual seríamos os últimos a sair, ultrapassados pela vertiginosa ascensão econômica e científica norte-americana e europeia. Ainda assim, o golpe militar que destronou o Imperador é desaprovado por Caldeira, avesso a qualquer influência positivista, que abomina. O autor deplora a teoria de Augusto Comte e a vê infiltrada na maioria dos governos, até ser definitivamente abolida pelo novo golpe dado por Getúlio Vargas. Antes, porém, no início do século 20, começou a ganhar concretitude o Plano de Valorização do Café, que é claramente a menina dos olhos do historiador (que dedica 81 páginas à política comercial elaborada por Augusto Ramos). E tome-lhe café. Disse lá no início que não poderíamos dissociar a leitura desta obra analítica das paixões do seu formulador. Bem, o que é o ser humano sem suas paixões? eu cá prefiro quem as tem, porque dá de si sem por elas cobrar. Mas, isto posto, Caldeira dedica um desproporcional espaço da obra às circunvoluções econômicas causadas pelo referido plano, que vou abreviar aqui para PVC. Em resumo, crê ele que o plano foi o indutor do crescimento econômico paulista, ordenado de forma oposta - e com forte ação contrária - à condução do governo federal. Por meio de estudos, acompanhamento e uma inédita ponderação estatística, os formuladores do PVC conceberam uma intervenção deliberada na produção cafeeira do estado, contrapondo safras, produção, estoque e preço, de um lado, com agentes produtores nacionais, governos estaduais e federal e investidores internacionais, do outro. De quebra, os acordos negociais com outras nações ainda tiveram por bônus retirar o comando da economia brasileira da mão dos banqueiros ingleses,
herança maldita (como classificaria o vernáculo político atual)
deixada por Pedro I. A maneira cerebral como pela primeira vez expoentes da economia brasileira manipularam as variáveis disponíveis no mercado, de forma que atuassem a seu favor em um contexto global, é um ponto fora da curva em um retrospecto de passividade - cujos efeitos proporcionam até hoje um renovado protagonismo econômico a São Paulo. Caldeira também reverencia a presidência de Prudente de Morais, uma ilha de orientação capitalista cercada por um cardume de políticos retrógrados (saudosos dos antolhos com que o regime imperial conduzia a economia). Na queda de braço entre oligarquias, nossa democracia ainda jovem foi castrada pela ditadura de Vargas - que, apesar dos pesares, trouxe avanços econômicos, mas nos legou uma geringonça trabalhista e estatizante que desde então atravanca o país: "A Constituição de 1946 tinha nove títulos, contra cinco da Carta de 1891. Quase todo o acréscimo estava em novas atribuições do Estado em relação com a sociedade. Pela organização e minudência do tratamento, a descrição dessas atribuições, feita caso a caso, lembrava mais as antigas Ordenações do Reino com suas ordens desiguais (tão a gosto de conservadores e positivistas) do que as cartas iluministas fundadas no princípio da igualdade." Caldeira ressalta o caráter intervencionista da nova Constituição: "A União poderá, mediante lei especial, intervir no domínio econômico e monopolizar determinada indústria ou atividade", e, complementa, "a Carta também consagrava o papel do governo como intermediário obrigatório nas relações entre trabalhadores e patrões, por meio da Justiça do Trabalho, instância que tornava quase sem valor os acordos diretos entre os agentes privados que produziam". A iniciativa individual que sempre caracterizara nossa mobilidade quedou engessada, tendo por pano de fundo a gradativa ascensão dos
barnabés a marajás: "Por isso havia uma lista minuciosa de direitos constitucionais a serem tutelados pelo governo, desde a duração da jornada de trabalho até a participação nos lucros das empresas." Assim, como já antecipei em um post recente, citando a obra de Jorge Caldeira, mais e mais
investíamos (onde caberiam aquelas pernósticas "aspas" visuais feitas com os indicadores) na figura dos privilégios adquiridos. Uma lufada de ar puro teria sido a gestão de Juscelino Kubistchek, que inseriu o país na corrida industrial moderna, da qual até então não participávamos. Com a saída de JK e o golpe militar de 64 (com Jânio e Jango de recheio entre os dois eventos), tinha fim um longo (e raro) período de desenvolvimento brasileiro. E aqui, por recente e mais superficialmente estudado, vou me deter um pouco mais. Há uma cortina de fumaça que ganhou foros de realidade e que demanda uma atenção acurada, para melhor decodificação. Noves fora as bruxas do
macartismo tupiniquim, houve que o pesado governo autoritário que se seguiu inverteu um diapasão de crescimento contínuo, por tomar decisões opostas às adequadas. Rumou na contramão das economias mundiais. Enquanto todos enfunavam as velas, para avançar no impulso da ventania que soprava, o Brasil dos militares optou por encalhar em um banco de areia e se abraçar à âncora, impedindo até a maré de nos ajudar. Em um cenário global em que as empresas multinacionais reordenaram o curso da riqueza, o Brasil ergueu um muro - expressão empregada por Caldeira - e não deixou ninguém entrar. Pegou emprestado o dinheiro barato que a nova economia do pós-guerra estava louca para emprestar e investiu na criação de centenas de empresas estatais que não produziam dinheiro novo e se alimentavam do aporte de novos empréstimos. Os dólares advindos do nosso baixo volume de exportação ficavam retidos na boca do caixa e nem entravam no país: o governo pagava com dinheiro estrangeiro a importação de petróleo e entregava dinheiro nacional, recém-impresso, para os nossos exportadores. Por um pequeno hiato, o "milagre brasileiro" parecia progresso - mas era o ponto de partida de um gigantesco atraso, ao qual até hoje permanecemos acorrentados (para se ter uma ideia do impacto na população das equivocadas políticas governamentais, entre 1964 e 1974 a perda de poder aquisitivo do salário mínimo, base de todos os reajustes, foi de 42%). O nosso mercado fechado - "protegido", no jargão equivocado do governo - e a estratosférica alta do petróleo deram início a uma sucessão de tombos, que foram nos levando a um ponto cada vez mais fundo no poço da História. Traduzindo o desastre em números, em 1973 havíamos pago 606 milhões de dólares pelo petróleo importado, enquanto em 1979 já eram 6,2 bilhões (em 1983, quatro anos depois, a importação de petróleo nos custou 9,5 bilhões de dólares, 50% a mais que em 79 e 15 vezes mais que em 73). Por outro lado, se no referido 1973 a compra de petróleo nos custava 10% da exportação brasileira, em 1979 saltara para 40% e em 1983 chegou a 43% do que exportamos no ano, 21,9 bilhões de dólares. Ou seja, numa economia obsoleta voltada para o mercado interno, vendíamos pouco e quase metade do que o país vendia era empregado para o custeio do petróleo importado. Para financiar um parque industrial pouco produtivo e quase meio milhar de empresas estatais improdutivas e sequiosas de dinheiro, o governo
apostou no endividamento - nossa dívida externa, que era de 12,5 bilhões de dólares em 1973 (o dobro do que exportávamos), dez anos depois era de 81,3 bilhões de dólares, quatro vezes o volume total das nossas exportações anuais. Em um cálculo raso, em uma década dobramos a nossa pobreza. Este é o propalado "milagre econômico", que ainda viria a resultar em um dano maior: a espiral inflacionária. Se em 1973 ela era de 15,6% e chegaria a 77,3% em 1979, em 1983 a inflação
oficial foi de inaceitáveis 211%. Na prática, isto significa que, se no mercado mundial estávamos duas vezes mais pobres do que dez anos antes, em um prazo de apenas um ano - 1983 - o salário de um trabalhador brasileiro apresentava em dezembro apenas um terço do poder de compra que possuía em janeiro. Como bem define o autor, "o desastre estava feito. Assim se tornou crônica a queda de desempenho da economia brasileira em relação ao mundo que crescia com a globalização" (destituída de seu real significado, a
globalização é hoje um termo politizado de sustentação a discursos xenófobos na mídia e na internet, reverberados por uma pseudo direita mitômana). Caldeira prossegue, acentuando que a inflação e a recessão alimentaram o monstro governamental, às custas de um setor privado debilitado pelo próprio governo: "Os instrumentos para manter o setor privado pagando a conta do desequilíbrio financeiro do governo federal foram se tornando cada vez mais violentos: congelamentos de preços, confiscos, moratórias." Fundamental destacar que, do lado de fora, "as apostas no posicionamento dos governos como incentivadores das empresas privadas (as únicas capazes de atuar em âmbito global) para que buscassem oportunidades nas trocas internacionais foram se mostrando vencedoras", criando conglomerados que ignoravam fronteiras e produziam divisas. O comércio internacional crescia anualmente duas vezes mais que as economias nacionais. Não no Brasil. O país, que fôra a economia de maior crescimento no mundo no período 1890-1970, deixara de liderar a fila da pujança econômica (relativa, com base em percentuais) e se aboletara no fim da fila. A derrocada, sentida na pele pela classe média, foi um prato cheio para a insatisfação popular, fazendo com que o governo militar recuasse e aceitasse devolver a batata quente da administração do Estado aos políticos profissionais. Não se deu sem que houvesse pressão externa - as greves do ABC são o maior exemplo - e interna, como o atentado do Rio Centro (dissecado aqui no blog, principalmente nos livros de Chico Otávio e Aloy Jupiara, "Os porões da contravenção", e Cláudio Guerra, "Memórias de uma guerra suja"). Mas em 1979 o governo anistiou os "terroristas" e, três anos depois,
aceitou devolver aos cidadãos o direito de eleger seus governadores (o povo não teve dúvida e votou em massa nos candidatos da oposição, em São Paulo, Rio, Minas Gerais e Rio Grande do Sul). Em pouco restava aos militares a entrega da presidência e do controle do país, agora depauperado. Caldeira é agudo na sua análise, característica do seu estilo: "A ditadura entregou o Governo Federal de porteira fechada, nas condições lastimáveis em que estava: um futuro que era cada vez mais passado, um passado que tinha cada vez menos futuro. Mais do que os erros estratégicos em relação às circunstâncias mundiais, o crescimento econômico baixo, a dívida externa e a inflação, a reinstauração de um governo minimamente democrático exigia a superação de desafios que iam bastante além de recuperar o desempenho produtivo." Faço questão de destacar: "A extrema concentração de instrumentos econômicos permitira que os governos militares (...) atuassem não apenas em seus campos tradicionais, mas também na esfera do mercado, através das empresas estatais. Esse tipo de atuação econômica se caracteriza pelo emprego de capital e trabalho em empreendimentos que visam o lucro. Mas faz isso de forma muito diversa dos empresários comuns. No setor privado, o capitalista precisa acumular previamente o necessário para entrar na atividade: gasta sua poupança ou convence alguém com dinheiro a se associar. Contrata trabalho, produz, vende. Remunera-se pelo lucro, quando este existe. Se perde, o prejuízo é dele e/ou de quem empatou capital. Já os governos entram nessa atividade de outra forma. Captam a poupança de empresários e trabalhadores via impostos, além de contraírem dívidas. Ou seja, retiram da poupança geral da sociedade os recursos que investem, transferindo-os para funções diferentes daquelas típicas de governo. Remuneram-se tanto pelo lucro como pela arrecadação geral de impostos. Quando perdem, o prejuízo é socializado: a conta não fica para quem investiu, mas vai para todos. Se há dinheiro, pelo pagamento dos prejuízos com recursos públicos; se não há, por meio da emissão de dinheiro, algo fora do alcance dos empresários privados. Para obter os recursos que lhe permitiram atuar no mercado, a ditadura brasileira duplicou a retirada de poupança da sociedade por meio de impostos, desviando muito dinheiro para funções outras que não as tradicionais." Um dos valiosos
serviços da obra é desmistificar a política econômica nacionalista engendrada pelo governo militar, que, após o hiato da década de 90, foi replicada pelos governos Lula, Dilma e Bolsonaro, ressalvados os cacoetes de cada um. Como Caldeira bem aponta, a questão independe de orientação ideológica. "A lista de países que apresentam a mesma tendência de acumulação de riqueza no setor privado abrange variantes políticas expressivas: regimes dominados por um partido único, como a China; governos predominantemente social-democratas, como a Suécia; países com o Estado grande, como a França ou a Itália, que alternaram políticas conservadoras e de esquerda, sem que isso afetasse a tendência de concentração; a Alemanha, onde se alternam os social-democratas e os conservadores; o Japão, majoritariamente dirigido por forças centristas; o Reino Unido e os Estados Unidos, onde os conservadores neoliberais se alternaram no poder com os trabalhistas e os democratas (...). Ter um setor privado forte, atuante no mundo inteiro, capaz de competir em escala mundial passou a ser a regra do jogo. Manter o isolamento, os apanágios nacionais, o mercado fechado, as regras idiossincráticas tornou-se a marca dos perdedores - o caso do Brasil neste período." A condenação do modelo privatista, que o político demagogo habilmente sataniza goela abaixo de um público iletrado, mantém a riqueza do país atrofiada e mal gerida. Convém aos que vivem da política e do dinheiro público, mas não convém à população, que precisa de um país economicamente competitivo, que gere dinheiro e invista no crescimento. O autor ressalta o curto período em que a economia brasileira se movimentou para abandonar o fosso: "A obra de desencalhe desse isolamento prejudicial, inaugurada em 1990 e continuada no mandato popular seguinte, tinha um ponto fulcral: remover as barreiras que reservavam ao governo federal (seja por administração direta ou por meio de empresas estatais) o domínio monopolista de uma série de atividades econômicas. Cada quebra de monopólio exigiu a privatização de empresas estatais ou uma ou mais reformas constitucionais, pelas quais afinal o setor privado ganhava autorização para investir capital de risco." Um dos atributos fundamentais do livro é o seu alcance, partindo do sistema indígena de trocas e desaguando no esgoto do lago Paranoá. As derradeiras páginas do livro cobrem a ascensão do PT e de Luís Inácio da Silva à presidência do país. "Um líder partidário incontestável - e de um partido que fazia duras críticas ao programa de Fernando Henrique Cardoso. As críticas do PT fundavam-se na análise do processo de globalização feita a partir da disjuntiva direita/esquerda de uma Guerra Fria já encerrada: na repartição entre capitalismo e socialismo, o governo seria 'neoliberal', enquanto a alternativa petista era apresentada como sendo de 'esquerda' e priorizando os pobres e o Brasil." Caldeira ressalta que, no governo, o PT "manteve a política econômica do governo anterior - o que lhe garantiu o apoio de empresários -, mas interrompeu as reformas no Estado, o que lhe assegurou o apoio dos funcionários públicos e dos interesses corporativistas. Como logo vieram anos muito bons para as exportações brasileiras, o crescimento econômico, embora modesto para os padrões anteriores aos da década de 1980, chegou a ser alentador, aumentando tanto o nível de emprego como a renda dos trabalhadores." O autor menciona o impacto das denúncias de corrupção e da descoberta das gigantescas reservas do pré-sal, esta última fruto da "intensificação das pesquisas petrolíferas implantadas com o fim do monopólio estatal do petróleo". Todo este horizonte promissor teria desabado com a crise mundial de 2008 (aquela, lembro eu, que o então presidente chamou de "marolinha", e em relação à qual se gabou - erro fatal de juízo -, precipitadamente escarnecendo do barata-voa dos
louros de olho azul). Jorge enfatiza que "a resposta do governo foi atualizar os pressupostos nacionalistas do governo Geisel: valia a pena cercar essas reservas por um muro protetor". O que veio a partir daí nós já conhecemos - mais empresas estatais deficitárias (como não nos deixa esquecer, por exemplo, o rombo bilionário herdado pelo país com a criação da Sete Brasil) e uma aposta crescente no endividamento, que viabilizou mais uma eleição do partido governista (mas que também embasou o impeachment da presidenta, que continuou acelerando os gastos públicos e escondendo suas consequências, por meio da tal "contabilidade criativa"). Deu no que deu. Como ressalta o autor, a derrocada não foi consequência do acaso, e sim de decisões erradas. A crença no pré-sal como financiador de sonhos megalomaníacos de crescimento econômico e permanência no poder foi pelo ralo, com o derretimento no valor do barril de petróleo. Em pouco tempo, os 120 dólares por barril se reduziram a um quarto, meros 30 dólares por barril, o que não financiava sequer a extração do óleo, que dirá o Brasil grande, "fazendo ruir o castelo de sonhos do crescimento, como nos tempos de Geisel. Ficou para o país, como antes, a obrigação de pagar o preço da aposta perdida contra a globalização". O saldo disso tudo todos sabemos: recessão, inchaço e corrupção. Esta é a dieta que nos (des)nutre. Como eu disse no início, nem de longe o autor imaginaria que viveríamos o que vivemos hoje, com um governo que reúne em um único comandante-em-chefe as filosofias de Geisel e Lula, uma compactação híbrida do pensamento de militares e petistas (semelhantes que se imaginam díspares). Um governo ostensivamente fechado para o mundo, clientelista e demagógico. Sabe-se lá o que teremos nos próximos anos. Contextualizando, pelos favoritos para as eleições municipais, o país parece solidamente condenado a mais do mesmo, com resultados cada vez mais funestos. Pelo andar da carruagem, não há risco de melhorar. Para fechar, alerto que não cometi aqui a audácia de analisar uma a uma as caudalosas linhas de reflexão propostas por Jorge Caldeira. Rascunhei, por alto, algumas das principais vertentes do seu estudo assombroso. Transcrevi alguns trechos, que resumem de maneira afiada as encruzilhadas pelas quais se dividiu o desenvolvimento político e econômico do Brasil - percursos entrelaçados, amalgamados, estrangulados. E, se política e economia se misturaram todo o tempo, o mesmo não se deu entre povo e governo. Viveram sempre em patamares distintos. Como permanecem hoje, Olimpo e várzea, com os eventuais ocupantes do governo tutelando o restante da sociedade, numa subordinação de continuada atrofia. Em um post recente - "O espetáculo da corrupção", que você encontra aqui no blog -, fiz referências a passagens desta "História..." e desenvolvi alguns raciocínios que espelho aqui, ou vice-versa. Em ambos não escondo a minha baixa expectativa em uma reversão de cenário - pelo menos, não a curto prazo, a menos que algo imprevisto aconteça e dê sentido a um país sem direção (para quem não sabe para onde vai, qualquer direção é errada). Por enquanto, permaneço cético. Nos sobra desfrutar estes oásis de conhecimento e ponderação proporcionados pelos livros. Este livro de Jorge Caldeira é isto mesmo, um lugar. Durante semanas, todos os dias entrei nele como quem senta numa casa grande avarandada. Do alpendre, protegido do sol e da chuva, pude admirar a paisagem e escrutinar o horizonte. Uma edição que me faz lembrar porque sou avesso aos tablets. Um livro tem alma, tem peso, tem tato. Neste aqui,
pari passu com o conteúdo, até a tipologia da obra é elegante - o tamanho das fontes, a estruturação dos capítulos, as gravuras na divisão dos quatro períodos temporais. Não nego que a arte da capa não conquistou o ranzinza aqui. Achei-a insípida e aquém do restante. Ficou devendo. Mas gosto é gosto, como já digo na testeira do meu blog, "eu li e achei isso". E o que achei mesmo é que esta é uma obra que ficaria bem em um coreto, um púlpito, um caixote. Gente reunida em praça pública, comentando trechos e exibindo seus próprios exemplares. Debatendo hipóteses, comparando nações. Este debate amplo e popular (que logicamente não haverá) seria uma ferramenta para discutirmos o nosso passado e propormos medidas estratégicas para o nosso futuro.
Seria. Pode ter certeza que isso não vai rolar.
Estação Brasil, 621 páginas
P.S.: Acima, na foto da estante, à direita, flagrante da manhã em que terminei a leitura. Cimento, perna lanhada, máscara PFF-2 e o livro aboletado sobre a camisa. Fechar um livro é bom, mas dói. Ainda bem que tenho o blog pra encompridar a relação.
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