"Uma terra prometida", por Barack Obama
"Apesar de todo o poder e toda a pompa, a presidência não passa de uma função administrativa", filosofa o ex-presidente (2008-2016) dos Estados Unidos, Barack Obama, no prefácio. Se refere à dedicação dos jardineiros da Casa Branca e complementa: "Eu dizia a mim mesmo que eu precisava cumprir minha função com o mesmo zelo com que eles faziam seus serviços".
Barack escreve bem. É autor de boa parte dos próprios discursos. Não por acaso, esta sua autobiografia parece ditada do púlpito. É política. É um comício de mais de setecentas páginas, onde estão sempre presentes seu bom-mocismo, seu enfoque social, sua América para todos, sua visão ampla e generosa do contexto político-econômico.
A edição foi lançada há exatos quatro anos, em agosto de 2020, em plena pandemia.
"Neste exato instante, o país permanece mergulhado numa pandemia global e numa crise econômica decorrente, com mais de 178 mil americanos mortos, empresas fechadas, milhões de pessoas sem emprego", escreve. "E, talvez o fato mais preocupante, nossa democracia parece estar à beira do precipício".
Donald Trump era o presidente, que rumava em busca da reeleição, numa corrida contra Joe Biden, ex-vice presidente do próprio Barack Obama. Trump havia sucedido Obama, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton. O sentimento pela sucessão impensada é descrito na primeira página da biografia, quando menciona os "resultados inesperados de uma eleição em que alguém diametralmente oposto a tudo que nós representávamos fora escolhido para me suceder".
Bem, estamos hoje diante de um outro momento-chave. Kamala resgata parte da aura da eleição de Barack Obama. Trump, que tudo indicava que nocautearia o incumbente senil com facilidade, trovejou alto demais na encarada. O Partido Democrata substituiu o bom e velho Joe por uma candidata mais enérgica. Aparentemente, um mau negócio para o alaranjado Donald. A ver.
Eu já tinha este livro na estante desde o lançamento. Nunca me senti impelido a ele, entretanto. Porém, quando vi o Trump remitificado por uma bala de raspão na orelha, o tijolo se jogou no meu colo. Era agora ou nunca. Foi acertado. Conhecer o Obama ajuda a entender melhor a política norte-americana.
Antes de mais nada, a história pessoal do ex-presidente, embora eu já tivesse uma ideia, é diferente da que eu pensava. Ok, ele é filho de um casamento misto, uma branca americana e um negro africano. Até aí eu sabia. O que eu não sabia é que, exceto pela cor, pela mulher e pelas filhas, Obama é "branco". E não vaí aí nem uma gota de racismo, crítica, identitarismo ou ideologia.
(Se eu tivesse alguma relevância midiática, seria fulminado agora por um cancelamento instantâneo.)
Explico: o que a autobiografia revela é que ele é culturalmente branco, criado sem pai por uma mãe branca, e foi paparicado por seus avós tão brancos como podem ser brancos os norte-americanos anglo-saxões descendentes dos pioneiros.
Não desvirtue o que eu disse. Ele não é, como dizem de um negro quando querem desprezá-lo por ser submisso aos brancos, um negro "de alma branca". Ele é um branco com design preto. Um motor branco em um protótipo negro. E não me pergunte o que isso significa. Esqueça a burrice ideológica. Sua origem é um lar branco, de avós conservadores, e uma mãe branca, feminista e de personalidade forte. A maçã nunca cai longe da árvore.
A única imagem negra que Barack encontrava em seu clã familiar era o espelho.
Seja lá qual for a importância disso, não vou teorizá-la. Não tenho interesse, nem background para isso. É apenas uma constatação, lendo sua autobiografia. Registre, cancele ou lacre.
E, para acabar com qualquer viés racial aqui nesse comentário, vale deixar claro que, em seu texto, Obama se mostra totalmente engajado com a causa negra. E que não só se vê como negro - até porque seria contraproducente se assim não fosse -, como faz troça constante da surpresa coletiva com sua origem esquisita.
"Tudo isso me deixava dividido", conta. "Por causa da própria estranheza da minha posição, com um pé em cada mundo, era como se eu pertencesse a todos os lugares e, ao mesmo tempo, a lugar nenhum, uma junção de partes que não se encaixavam direito, como um ornitorrinco".
Uma combinação que geralmente desemboca em conflitos emocionais. Mas Obama resolveu bem.
"Tendo sofrido minha própria cota de afrontas raciais, eu podia ver muito claramente a herança persistente da escravidão e da segregação racial a qualquer hora andando pelo Harlem ou por algumas áreas do Bronx. Mas, por razões biográficas, aprendi a não invocar a cada instante a minha posição de vítima e resistia à ideia de que os brancos eram irremediavelmente racistas".
O trabalho social que realizou em Chicago, enquanto ainda era estudante, com uma grande comunidade negra vivendo em condições difíceis, o ajudou a lidar melhor consigo mesmo. Através das pessoas que conheceu, reflete, "resolvi as questões pendentes de minha identidade racial. Pois ficou claro que não havia só uma forma de ser negro; tentar ser uma boa pessoa já bastava".
Nos seus primeiros passos na política, teve que enfrentar oposição da própria comunidade negra, do tipo "Obama é de fora; tem o apoio de gente branca; é um elitista de Harvard. E esse nome? Será que é mesmo negro?"
E não só a cor. Tinha também o nome. Conta que seu marqueteiro disse duvidar que alguém com um sobrenome que rimava com "Osama" conseguisse votos no sul do estado.
Não só conseguiu, como acabou eleito presidente dos Estados Unidos. A cara e o nome não foram os únicos obstáculos. Já no fim do seu primeiro mandato, às vésperas da reeleição, ganhou força a fake news de que Obama não tinha nascido no país. Um balão todo dia soprado por um apresentador de televisão - Donald Trump. Só parou de aporrinhar quando o presidente apresentou a certidão de nascimento original em uma coletiva de imprensa.
Barack trata de cada um destes detalhes neste primeiro volume da sua auto-biografia (entrevistado mês passado por Malcolm Gladwell, o ex-presidente disse que está quase terminando o segundo volume). É um livro metódico, pausado, e, como já disse, elegante como um discurso de Obama.
Embora ele exponha muito, fica a impressão que ele esconde bastante. É um autor com absoluto controle da narrativa. Ainda que procure apresentar a si mesmo de forma despojada, como o vizinho ou o cara da esquina, ele de comum não tem nada. Mas é como se vende. Bem vendido, aliás.
Obama é verossímil, convincente. De carne e osso, mas um tanto intangível, etéreo, idealizado, como um protagonista dos filmes de Frank Capra. Uma mistura do Morgan Freeman com o Tom Hawks.
Já a obra que nos oferece é pura disciplina. Inicia com uma pequena biografia pessoal. Seus pais, seu nascimento, sua infância, seus avós, sua formação no Havaí, onde nasceu, e na Indonésia, onde sua mãe a certa altura foi trabalhar. O retorno aos EUA, a faculdade, seus sonhos, seu primeiro emprego, seu engajamento nas ações sociais (como a mãe) e sua iniciação na política.
Aí vem Michelle, o casamento, o financiamento da casa própria, a eleição para senador, o nascimento das filhas, a chegada no Senado, a campanha para presidente. Barack joga foco na equipe, nas alianças, nos comícios, nos adversários. Tudo muito leve, muito fluido, com doses calibradas de ponderação, irreverência e ceticismo.
Eleito presidente, ele nos entrega os tópicos de forma organizada e com um conteúdo estanque. Cada assunto é apresentado como um capítulo à parte, independentemente do seu tamanho. Não é um avanço essencialmente cronológico, onde os fatos invadem uns aos outros. Há, sim, o respeito à cronologia, mas cada assunto é como uma ala dedicada de museu.
Assim, dispostos dessa forma, nós vamos acompanhando os principais temas do seu primeiro mandato. De cara, muitas páginas são dedicadas àquele que foi apelidado de Obamacare, a reformulação na saúde americana que foi uma obsessão de Obama logo na sua chegada ao poder.
Diferentemente do que se afirma a esmo por aqui, com o livro sabemos que há sim um serviço de proteção à saúde financiado pelo governo nos Estados Unidos. Por meio de diversas alíneas, ele cobre quase que 90% da população. Ele não cobre os 100% que dizemos aqui ser coberto pelo SUS brasileiro.
(Em tempo: o SUS brasileiro é uma falácia. Embora todos os brasileiros, em tese, tenham direito ao atendimento, a sua baixa qualidade empurra a classe média para os planos de saúde particulares. Eu pago o meu e o da minha família desde o início dos anos 90, há mais de trinta anos, e é disparado o meu mais profundo gasto anual. Representa a maior fatia do meu orçamento familiar.)
Voltando à saúde norte-americana, Barack conseguiu aprovar parte do seu plano, mas não na íntegra. Ele amenizou a situação dos 10% de americanos sem nenhuma cobertura hospitalar, mas teve que fazer concessões. Normal. Onde não? Faz parte do jogo político.
Mas a grande crise do sistema financeiro americano, que teve início pouco antes das eleições presidenciais de 2008, e se estendeu por grande parte do seu primeiro mandato, é o assunto que mais ocupa espaço na biografia - o que revela como o livro é tático. Obama atribui a crise do subprime aos republicanos e que coube a ele e aos democratas desfazer a lambança.
Alega ainda que a maior dificuldade foi superar a objeção dos republicanos no Congresso ao pacote de estímulo à economia que seu time de governo desenvolveu. As negociações foram extensas e tomam alguns dos 27 capítulos.
Embora o assunto tivesse tido impacto mundial (lembra? no Brasil o nosso líder máximo a chamou de "marolinha", antes da crise aportar aqui e afundar o governo da sua inesquecível sucessora), os políticos norte-americanos de segundo escalão, citados à farta, não significam nada para nós e deixam toda a racionália bastante modorrenta.
Já outro tema de porte na biografia são as relações externas dos EUA. Ele analisa pormenorizadamente os contenciosos e faz comentários curtos - com propriedade e, às vezes, com alguma dose de ironia - sobre cada governante com quem teceu relações, superficiais ou não.
Sobre sua maior parceira europeia, a alemã-oriental Angela Merkel, criada no comunismo, disse que "sua aparência fleumática refletia uma sensibilidade pragmática e analítica. Era conhecida por sua aversão a arroubos emocionais e grandiloquência retórica". Obama comenta que "mais tarde sua equipe me confessaria que ela de início duvidou de mim justamente por causa de minhas aptidões para a oratória".
Já a respeito do presidente francês Nicolas Sarkozy, Obama usou as mesmas palavras, mas com sentido oposto. O chamou de grandiloquente e passional. Comparou ambos, dizendo que Sarkozy, "como Merkel, ganhara fama como político de centro-direita, chegando à presidência com uma plataforma de economia de laissez-faire, relaxamento das regulações trabalhistas, menos impostos e um Estado de bem-estar social menos abrangente".
Mas Obama dá uma debochada do colega. Qualificando o francês como metade húngaro e um quarto judeu grego, caiu de pau em sua baixa estatura, dizendo que ele "tinha 1,67 metro, mas usava palmilhas especiais para ficar mais alto" e que "parecia saído de um quadro de Toulouse-Lautrec". Chamou-o ainda de "errático". C... no baixinho. Que feio.
Com o primeiro-ministro britânico Gordon Brown ele foi bem mais afável e contido. Considera que ele "não tinha as brilhantes aptidões políticas do antecessor", Tony Blair, mas que era "um homem atencioso, responsável e que entendia de de finanças internacionais".
Sobre Lula, então presidente do Brasil, como agora, Obama foi simpático. Mas disse também que o brasileiro tinha "os escrúpulos de um chefão do Tammany Hall, e circulavam boatos de clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões".
Observação: o Tammany Hall, recorrente no livro "As gangues de Nova York", resenhado também aqui, era uma sociedade política que dominou Nova York por mais de meio século. Foi sobretudo um antro de corrupção, formação de quadrilha etc. Pra saber mais, dê uma olhada na Wikipedia.
(Lula, ao saber da menção no livro, estressou e ficou decepcionado com as palavras do parceiro.)
O que Barack, com benevolência, chamou de "boatos" se confirmou e redundou na prisão de Luís Inácio Lula da Silva, em 2018, por corrupção e lavagem de dinheiro. Lula acabou solto um ano e meio depois, em meio a filigranas políticas e jurídicas, em uma decisão do STF. As provas e a razão da condenação não foram questionadas, e sim o foro em que foram julgadas.
Mas a observação da conduta corrupta do presidente brasileiro incide em um ponto recorrente no texto de Obama: a corrupção. Fora as questões pontuais relativas ao seu próprio governo, a referência crítica à corrupção, nos mais diversos países, é uma constante na obra.
Barack conta que essa foi uma ideia inculcada na mente dele pela mãe. "Quando nos mudamos para a Indonésia, para morar com meu padrasto, ela fez questão de explicar os males da corrupção governamental ('é pura roubalheira, Barry'), ainda que todos parecessem agir da mesma forma".
Fala da corrupção no Afeganistão ("relatos de corrupção desenfreada"), no Quênia ("me sentei com parentes que me falaram do tribalismo e corrupção que afligiam seu país"), na África do Sul ("grande parte da credibilidade conquistada durante a luta heroica de Mandela havia sido desperdiçada pela corrupção"), na Índia ("Singh me pareceu escrupulosamente honesto, mas refém dos caprichos de corruptos funcionários locais"), nos autocratas tchecos ("defendem o livre mercado ao mesmo tempo que se envolvem na mesma corrupção que havia no passado [comunista]"), no Irã pré-aiatolás ("a antiga indiferença dos Estados Unidos em relação à corrupção"), na Rússia dos anos 90 ("colapso econômico, corrupção desenfreada, populismo de direita"), etc.
Se é que isso nos serve de consolo, o caso brasileiro foi a referência top no quesito valores amealhados por meio da corrupção - Obama se refere explicitamente a "propinas na casa dos bilhões" no governo Lula. Acho que não dá para a gente se orgulhar, mas é um tipo de reconhecimento.
O ex-presidente norte-americano também toca no tema quanto aos políticos do Oriente Médio ("Hafez al-Assad, da Síria, Saddam Hussein, do Iraque, e Muammar Gaddafi, da Líbia, mantinham seu poder em boa parte por meio da corrupção, da repressão brutal e de uma incessante, ainda que ineficaz, campanha contra Israel"), mas a região mereceu um espaço maior nos dez por cento finais do livro, devido aos seus constantes conflitos.
Principalmente a questão israelense-palestina.
Barack Obama, um político democrata que é ícone da esquerda, negro, com nome árabe e filho de um professor universitário muçulmano, traz alguns insights relevantes no que diz respeito ao litígio. Inclusive faz um resumo sucinto e acurado da questão histórica.
"O conflito entre árabes e judeus era uma ferida aberta na região havia quase um século", contextualiza, "remontando à Declaração Balfour de 1917, com a qual os britânicos, então ocupando a Palestina, se comprometiam a criar um 'lar nacional para o povo judeu' num território ocupado por uma maioria esmagadora de árabes".
"Nos vinte anos seguintes", continua, "líderes sionistas mobilizaram uma onda de migração judaica para a Palestina e organizaram Forças Armadas altamente treinadas para defender seus assentamentos. Em 1947, na esteira da Segunda Guerra Mundial e à sombra dos inomináveis crimes do Holocausto, a ONU aprovou um plano de partição para estabelecer dois Estados soberanos, um judeu e o outro árabe, com Jerusalém - cidade sagrada para muçulmanos, cristãos e judeus - a ser governada por um órgão internacional".
Como a gente sabe, não deu certo. Mas Obama explica o porquê: "Os líderes sionistas acataram o plano, mas os árabes palestinos, bem como os países árabes vizinhos, que também emergiam do domínio colonial, se opuseram vigorosamente. Com a retirada da Grã-Bretanha, os dois lados não demoraram a mergulhar na guerra".
Não demoraram mesmo. Sequer vinte e quatro horas.
"E, com a vitória das milícias judaicas em 1948, o Estado de Israel foi oficialmente criado", recorda. "Para o povo judeu, era um sonho realizado, um Estado na pátria histórica de seu povo depois de séculos de exílio, de perseguição religiosa e dos horrores mais recentes do Holocausto; mas para os 700 mil palestinos árabes que se viram sem um Estado próprio e expulsos de suas terras, os mesmos acontecimentos viriam a ser conhecidos como a Nakba, ou 'Catástrofe", conclui.
Obama disserta ainda longamente sobre a questão israelo-palestina, pois, como destaca, "praticamente todos os presidentes americanos desde então tentaram resolver o conflito árabe-israelense, com variados graus de sucesso". Eu colocaria um in antes: "variados graus de insucesso".
Fora de dúvida que o havaiano Barack Obama tem o melhor texto de um líder mundial desde Winston Churchill. As mais de setecentas páginas de seu primeiro volume são bem palatáveis.
Gostaria muito de ler algumas páginas escritas pelos nossos líderes locais, para lhes saborear o estilo. Um texto da própria lavra de Lula ou Jair Bolsonaro seria interessante, né não?
Mas só daria crédito à autoria se eles fossem trancados em uma sala, ambos de short (e sem celular), sem acesso à internet ou qualquer coisa da qual pudessem copiar - e, lógico, trancafiados em salas separadas, senão os dois iriam se unir e dar um jeito de trapacear.
Mas seria uma vã ilusão. No Brasil, um país com mais de duzentos milhões de habitantes, oito milhões e meio de quilômetros quadrados (o quinto maior do mundo) e um PIB acima de quatro trilhões de dólares, presidentes não precisam saber escrever.
Faz sentido. Aqui os eleitores podem ser analfabetos. Temos que admitir que é coerente.
Companhia das Letras, 751 páginas | 1a edição, 2a reimpressão | Copyright 2020
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