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"As coisas que perdemos no fogo", por Mariana Enriquez


São estórias macabras de uma Buenos Aires decrépita. Sem dúvida, Mariana escreve bem (embora eu não lhe gabe o gosto). Suas personagens são misândricas, credo, e moram em casarões caindo aos pedaços. Pior: vivem em pânico, por medo do sobrenatural. Um povo estranho, que some ou aparece de repente. Gente que morre ou que mata as pessoas, sem que ninguém saiba como.

Esquisitíssima, a portenha. Nada do que ela conta é normal ou indolor.

Um dos seus contos mais indigestos é o do Baixinho Orelhudo, o Pablito. Um moleque que, por puro prazer, matava recém-nascidos. Com o requinte de martelar um prego na cabeça molinha do neném.

"O menino, eu agarrei com os dentes aqui, perto da boca, e o sacudi como fazem os cachorros com os gatos", contou Pablito. A autora engalana a cena: "Pablito, depois de enforcar Josualdo, voltou à cena do crime. Levava um prego. Pregou-o na cabeça do menino, que já estava morto."
 
Pablito teria escapado, mas deu mole. "No dia seguinte, cometeu seu erro fatal. Sabe-se lá por que, compareceu ao velório do menino que havia matado. Queria ver se ainda tinha o prego na cabeça".

Curiosidade mata. Flagrado no velório, algemaram o Pablito e o mandaram pro fim do mundo.

O guri matador foi de Buenos Aires para Ushuaia. Também fui, por razões diferentes. Ler é viajar e vice-versa. Mas nem a cidade, nem o país, são protagonistas na ficção de Mariana. Seus contos poderiam se dar em qualquer lugar, de Bucareste a Curitiba. Não tenho dúvida de que em Enriquez os vampiros de Dalton Trevisan se sentiriam em casa.

Porque o que não falta nas estórias de Mariana é assombração.

Noves fora os relatos fantasmagóricos, me caíram melhor os banais e menos aterrorizantes - como o da mulher que vai com a prima e o marido-mala para comprar uns panos no Paraguai. O rolo da prima com o caminhoneiro sueco e o susto do carro enguiçado na estrada são bons e triviais.

A propósito, não só o marido-mala é insuportável - todos os parceiros das personagens, sejam namorados, ficantes ou maridos, são espezinhados da forma mais abjeta. Todos são odiados. Suas personagens revelam o desejo de que o companheiro morra, ou que elas mesmas os matem.

Mariana Enriquez não parece ter tido relacionamentos assim harmoniosos. Sobrou pra nós.

Mas todo mundo merece o pior nas novelas dessa escritora argentina. Suas personagens gostam de se auto-punir. "Marcela arrancou as unhas da mão esquerda. Com os dentes. Os dedos sangravam, mas ela não demonstrava nenhuma dor. Algumas garotas vomitavam".

Mariana tem obsessão por corpos femininos destroçados. "Tive o ímpeto de pedir a algum dos caminhoneiros que me atropelasse e me deixasse estripada na estrada, rasgada como as cadelas que eu via mortas no asfalto, algumas delas grávidas, com todos os filhotes agonizando ao redor."

Burilosa, mas o talento com que a escritora arruma as palavras não me farão leitor fiel. Nem infiel, aliás. O último dos contos, o que titula o livro, romantiza a formação de um clube feminino de auto-imolação. As mulheres portenhas, fartas de serem queimadas pelos próprios companheiros (olha eles aí), passariam a atear fogo nelas mesmas, por conta própria.

Os auto-atentados virariam um movimento clandestino, ao qual as mulheres adeririam, entusiasmadas. Prenhes de idealismo, organizariam encontros no deserto, na madrugada. Ali entrariam em piras, e depois, parcialmente carbonizadas, seriam levadas à ala de queimados do hospital mais próximo, para serem cobertas de pomada e enfaixadas.

A ídola que deu início à campanha nos é apresentada como a "menina do metrô". Era uma pedinte que beijava à força os passageiros, que reagiam com nojo. "Inesquecível", descreve a autora:

"Tinha o rosto e os braços completamente desfigurados por uma queimadura extensa, completa e profunda", se deleita. Conta que "ela explicava quanto tempo lhe custou para se recuperar, os meses de infecções, hospital e dor, com a boca sem lábios e um nariz pessimamente reconstruído; restava-lhe só um olho, o outro era um buraco de pele, e a cara toda, a cabeça, o pescoço, uma máscara marrom percorrida por teias de aranha".

A menina de vítima foi promovida a mártir. Ícone underground de uma bandeira identitária.

"Silvana participou de sua primeira fogueira num campo perto da estrada 3", celebra. O movimento era batizado com o sugestivo nome de "Mulheres Ardentes". Havia uma lógica, disse a mãe à filha:

"As queimas são feitas pelos homens, menina", explica. "Sempre nos queimaram. Agora nós mesmas nos queimamos. Mas não vamos morrer; vamos mostrar nossas cicatrizes".

É uma alegoria da auto-afirmação feminina. As mulheres, vítimas seculares, reclamam para si a primitiva atribuição masculina de submetê-las e machucá-las. Agora, emancipadas, enfim donas de seu destino, machucariam a si mesmas.

É. Pode ser. Vai de acordo com o paladar. Mas ninguém pode negar que Mariana tem estilo.

Editora Intrínseca, 190 páginas

P.S.: Na foto, o antigo presídio de Ushuaia. Nele, ao invés do Baixinho Orelhudo, o Careca Orelhudo. 

 

"Decaído", por Sérgio Ramalho


O jornalista tem o propalado "lugar de fala" para escrever a biografia de Adriano da Nóbrega. Por anos ele cobriu o bicho e a milícia para os principais jornais do Rio. Foi descoberto um plano dos criminosos para matá-lo. Ramalho passou a receber proteção da polícia.

O conhecimento acumulado e a qualidade das suas fontes lhe conferiu uma visão privilegiada da trajetória dos principais personagens do crime no Rio de Janeiro. Faz um relato preciso das circunstâncias que levaram à execução de Maninho, o eleito do clã Paes Garcia. Esclarece todo o contencioso existente entre os Nóbrega e os Garcia, com a intermediação de Rogério Mesquita.

Apresenta a formação do Escritório do Crime e todas as suas ramificações. Disseca como a relação entre as polícias do Rio e os ex-policiais que se bandearam para o crime contaminou toda a estrutura.

Pena que a forma como Ramalho costura as informações nem sempre é a melhor. Há um certo embaralhamento na composição da narrativa. O ziguezague cronológico não contribui para o entendimento do leitor. A inegável capacidade do autor em investigar e escrever reportagens contundentes não foi transposta, com os pré-requisitos necessários, para o produto livro.

Talvez seja preciosismo meu. É inegável que o conteúdo é legítimo e substancioso. Ainda assim, me pareceu não ter havido o necessário zelo. Personagens que morreram estão vivos nas páginas seguintes, problemas que na página anterior geraram execuções ainda estão por surgir no próximo parágrafo, ex-amigos que se juraram de morte estão ainda fortalecendo a amizade à medida em que avançamos no texto, os traidores da página anterior ainda são aliados fiéis no novo capítulo.

Ramalho entrega ao leitor a responsabilidade da organização mental do conteúdo. Você, que lê, deve entender à medida em que avança no texto que os diálogos reproduzidos, agora, foram ditos antes dos diálogos que você já leu. Os que já foram condenados e presos estão soltos no novo trecho porque está se falando de um momento anterior.

O leitor tem que ficar ligado o tempo todo, dando cambalhotas para não perder o fio da meada.

Com a legitimidade que possui e o material valioso que reuniu, fica a impressão que o melhor para o autor teria sido reescrever o texto. Isso dito, é essencial enfatizar que mais vale um bom conteúdo - ainda que mal distribuído - do que uma encheção de linguiça sumamente bem organizada.

As informações estão no livro. A trajetória de Adriano da Nóbrega está esmiuçada, do início ao fim. Seus comparsas e concorrentes - muitas vezes ambos são o mesmo sujeito, que apenas mudou de status no seu relacionamento com o matador - são apresentados em detalhes.

Acima de tudo, o convívio espúrio entre Estado e crime é escancarado pelo jornalista. Os matadores que compuseram o Escritório do Crime foram quase todos formados dentro da estrutura do Estado, financiados pelo dinheiro público - como vimos semana passada, em "Milicianos". A movimentação criminosa dos matadores inclui o acesso às dependências do Estado.

"Adriano tinha trânsito livre em vários batalhões e delegacias policiais", deixa claro Ramalho. "Sua influência chegava a setores estratégicos dentro da Delegacia de Homicídios. Não era raro encontrar o ex-capitão circulando pelos corredores da unidade especializada em investigar assassinatos". 

Ou seja, o CEO (como o jornalista se refere a ele) da maior estrutura de mortes por encomenda do país batia perna, colhia informações e assediava funcionários dentro do setor de inteligência governamental responsável por investigar as mortes. O acordo funcionava bem.

"Em troca, os policiais envolvidos no esquema retardavam o andamento de inquéritos, vazavam informações contraditórias à imprensa, criando narrativas falsas para desviar o rumo das investigações", esclarece o autor. O investimento não era baixo. Ramalho menciona "um pagamento de R$ 2 milhões a policiais da delegacia especializada".

O assunto permanece momentoso. Ronnie Lessa, um dos personagens do livro, sócio e parceiro do biografado em alguns empreendimentos (mortes por encomenda, proteção de bicheiros e exploração de comunidades), vem ocupando a primeira página de grandes jornais. Sua delação reitera o que Ramalho expôs em detalhes: magistrados vendem habeas corpus para criminosos e policiais compartilham informações com bandidos.

E você nem precisa gastar seu tempo se escandalizando, adianto eu, porque  em breve tudo vai cair no esquecimento.

A mecânica do Brasil é essa, goste você ou não. Pense bem: nossa amnésia, ou indiferença, é tal, que as dezenas de evidências ligando o presidente da República ao chefe de um grupo de extermínio desceram pelo ralo na memória coletiva. São solenemente ignoradas pelos torcedores do ídolo e, se muito, vez por outra resgatadas pelos torcedores do ídolo adversário. Você sabe quem.

Foram parças por um longo tempo. Há um vasto rol de situações em que Jair Bolsonaro e Flávio Bolsonaro estiveram muito próximos de Adriano da Nóbrega, como descreve Sérgio Ramalho. O autor resgata o primeiro contato, quando Flávio foi assaltado e, ainda por cima, esculachado.

O futuro senador milionário, então ainda vereador, foi reconhecido durante o roubo de seu carro e posto de joelhos no meio da rua, para morrer, com um revólver apontado para a cabeça. Mudaram de ideia. Após alguns tapas e pontapés, os assaltantes mandaram Flávio correr, sem olhar para trás. 

Ser assaltado no meio da rua não era novidade na família. O pai, Jair, também já tinha sido assaltado sete anos antes. Na ocasião, os meliantes levaram sua moto de 350 cilindradas e sua arma, uma pistola Glock 380. Trancou, pianinho. Não reagiu. Mas, já deputado, com o ex-DOI-CODI Nilton Cerqueira à frente da Secretaria de Segurança Pública, Bolsonaro não ficou na mão.

Diferentemente de 99,9% dos cariocas que são roubados, em 48 horas a moto e a arma já estavam reintegradas ao seu patrimônio, recuperadas na favela de Acari. O chefe do tráfico de drogas na favela foi capturado oito meses depois. Jogado na cela às onze da noite, deprimido, enforcou-se.

A mãe e a sogra não acreditaram na versão do suicídio motivado por forte depressão dada pelos policiais. Ainda que descrentes, não tiveram tempo para sustentar a discordância, pois foram assassinadas a tiros no dia seguinte, em São João do Meriti. O bagulho ficou por isso mesmo.

É assim que a banda toca por aqui.

Desculpe a digressão. Volto ao assalto do Flávio. Acompanhado do sargento Fabrício Queiroz (que em 2018 viria a se tornar famoso como operador das rachadinhas dos Bolsonaro), Flávio foi dar queixa na delegacia, aonde foi apresentado ao então tenente Adriano da Nóbrega. 

Começou aí o relacionamento entre estes dois grandes brasileiros, o futuro CEO do Escritório da Morte, o Patrãozão, Adriano da Nóbrega, e o futuro senador da República pelo Estado do Rio de Janeiro, e também dono de uma franquia de bombons de chocolate, Flávio Bolsonaro.

Foi juntar a fome com a vontade de comer.

À medida em que ia subindo na hierarquia do crime, Nóbrega também encurtava seus laços com o inseguro primogênito (que, anos depois, disputando um debate televisivo pela prefeitura do Rio, teve um ataque de pânico e desmaiou, sendo atendido no ar pela candidata Jandira Feghali - o que enfureceu o pai, pelo ridículo da cena). Adriano se tornou o chefe da segurança de Flávio Bolsonaro e o escoltava em todos os seus deslocamentos.

Tendo doravante um amigo influente, o ex-capitão do Bope ia dando polimento na sua ascensão.

Ramalho pontua a trajetória rumo ao topo de Adriano. Mostra o quão habilidoso ele foi na ocupação de espaços. Como se tornou um matador respeitado e um miliciano empreendedor, dono de centenas de imóveis em Rio das Pedras, que mensalmente lhe rendiam milhões.

Relata como sua maior ambição era se tornar bicheiro e ocupar uma posição de prestígio na máfia do jogo. Conta seu avanço progressivo no universo do crime. Como deixou de matar no varejo e ter uma equipe, sob seu comando, para executar os assassinatos (serviço prime que vendia a peso de ouro). Sua ramificação imobiliária e na prestação de serviços, passando pelo fornecimento de gás, energia e tv a cabo. Um tycoon do crime.

O assassinato de Mariele Franco, porém, no qual ele - ironicamente - não estava envolvido, foi o turning point que provocou o desmoronamento da estrutura na qual ele investira tanto tempo e energia. Levou ao escancaramento do Escritório do Crime e à sua identificação. Depois de tantos anos fora do radar da polícia, a Polícia Federal foi acionada e ele se tornou oficialmente procurado.

Resolveu fugir e assumir uma identidade falsa. Vivia Brasil afora como se fosse um fazendeiro milionário em férias. Mas sempre sob risco de ser desmascarado e denunciado (anonimamente, lógico, que ninguém teria peito para dedurar o homem e viver para contar).

Mas era um roteiro pré-escrito. Adriano sabia demais, envolveu-se demais, matou gente demais. Com sua existência sob os holofotes, já não convinha a ninguém. Sua propalada amizade com os Bolsonaro, a essa altura, mais o atrapalhava do que ajudava. Jair era agora o presidente do Brasil.

Enquanto xingava os repórteres no cercadinho, como se estivesse em um botequim cercado por seguranças, Jair se recusava a responder sobre o antigo aliado, a quem homenageara e defendera diversas vezes enquanto deputado. 

Após um ano de fuga e esconderijos, Adriano da Nóbrega, o Gordo, como seu pai o chamava (e ninguém mais), foi cercado em um sítio no interior baiano e executado. Como isso aconteceu, é descrito em pormenores pelo jornalista. Ramalho traz os detalhes eletrizantes da perseguição final.

Um livro virulento, uma cidade perigosa e um Estado omisso. É o que temos por ora.

Editora Matrix, 232 páginas  |  1a edição, 2024

"Milicianos", por Rafael Soares


Hoje é Sete de setembro. Dia da Pátria. Dia do desfile das Forças Armadas. Canhões, tanques, mísseis. Ícones anacrônicos, né? Porque no mundo real não existe a ameaça de inimigos externos. O inimigo armado vive dentro do país. Financiado pela receita do tráfico, comanda batalhões de marginais, imiscuídos na periferia das grandes cidades. As forças que os combatem são as policiais.

A PM, a Civil. O problema é que este "combate" é de mentirinha. É para inglês (ou carioca) ver.

Este é o livro: "Milicianos" disseca o envolvimento das forças policiais do Rio de Janeiro com o crime organizado - o tal que deveriam combater. Desnuda sua infraestrutura, dá nome aos bois e, de brinde, redige pequenas biografias de notórios ex-policiais que se bandearam para o lado do crime.

A sociedade - em sua maioria formada por comunidades pobres - é vítima desta perversa contradição.

O jornalista Rafael Soares demonstra como o Estado provê e financia a formação de criminosos, dentro das suas próprias fileiras. Explica como profissionais destemidos, bem preparados e que não hesitam em arriscar a própria vida, trocam um cargo mal-remunerado (de paladinos) pela bem mais polpuda ocupação de capangas de bandidos - ou bandidos eles mesmos, sem intermediários.

O texto, direto, nos apresenta a milícia, o tráfico e os bicheiros como artérias que irrigam a vasta rede criminosa da cidade (que vem sendo tema de uma ampla série de matérias de página dupla no jornal O Globo, assinadas pelo próprio autor deste livro). O conteúdo é relevante e o jornalista é corajoso.

Volta e meia espoca nas redes sociais um boato inverossímil sobre guerras hipotéticas. Contra a Argentina ou a Venezuela. Estórias da carochinha. Nossa guerra real acontece nos subúrbios, nos morros e nas vias expressas. Brasileiros contra brasileiros. O Estado (a força policial) contra o exército paralelo (as quadrilhas). Só que tudo junto e misturado.

"Brasil/ mostra tua cara/ quero ver quem paga/ pra gente ficar assim", já cantava Cazuza nos anos 80.

Soares nos conta das entranhas da polícia e do crime. A mineira, os adidos, os espólios. Seus protagonistas são Falcon, Pereira, Curicica, Lessa, Adriano, Batoré, Mad, Tonhão, gente continuamente na linha de tiro (tanto que quase todos os mencionados já não estão mais entre nós).

Porém, antes de me estender aos bandidos de carteirinha, quero abrir um parênteses. Porque há os espertalhões que se aproveitam do filão, lucram com essa guerra interna, mas estão sempre fora do alcance das balas. E, entre eles, um pequeno personagem ("pequeno" sob a ótica do crime, porque nunca esteve sob fogo e nem trocou chumbo com ninguém) me chamou a atenção.

Um político local, veemente, à época do boom das milícias pouco expressivo, colado a um nicho do eleitorado - o ex-militar Jair Bolsonaro. Como um parasita dos agentes policiais envolvidos com o crime, o político, do baixo clero, lhes oferecia pequenas vantagens e homenagens duvidosas.

Em troca, aumentava seu cacife eleitoral e se inflava com a proximidade dos meganhas de quem puxava o saco. Curioso como, usando apenas a garganta e sem nunca colocar o dele na reta, poucos anos depois o político chegou a presidente, enquanto seus aliados de primeira hora mofavam na cadeia ou pediram a conta e e se mudaram, encaixotados, para o cemitério.

Jamais esteve sob perigo, exceto quando um demente - não um bandido - aproveitou um ajuntamento e lhe esfaqueou a barriga. A partir daí, gato escaldado, o costurado Jair poderia esquecer a cueca, mas jamais o colete à prova de balas. Dizem os mais cascudos que a maioria não se deixa intimidar tão facilmente. Não foi seu caso.

Verdade é que, no livro, Bolsonaro é coadjuvante de segunda linha. Dei mais exposição a ele aqui por razões "patrióticas". Os outros morreram. E pegavam muito pouco dinheiro do Estado (ao menos, não diretamente). Não se pode dizer o mesmo dos Bolsonaro e dos demais políticos.

Como já dizia a nossa avó, tudo farinha do mesmo saco.

Mas reitero que o livro não dá a nenhum político o protagonismo que dei aqui. A obra é sobre gente que passou a vida debaixo de bala, emboscando e sendo emboscada.

No desdobramento do texto, diversos casos de assassinato por encomenda são enumerados. É quando o autor conta do Escritório do Crime, uma prestação de serviços ilegal, especializada em matar gente em troca de dinheiro. Segundo Soares, algumas mortes chegavam a custar um milhão e meio de reais.

A "descoberta" pública do tal escritório pela polícia demorou dez anos. Durante esse tempo, um grupo profissional de pistoleiros, comandado pelo ex-PM Adriano da Nóbrega (semana que vem falo dele), matou por encomenda no Rio de Janeiro sem que a polícia tivesse investigado um único crime que apontasse para a sua existência. Todo mundo sabia do Escritório. Menos os agentes do Estado.

E ressaltando que o bando só foi descoberto na esteira das investigações do caso Marielle - que, por sinal, não foi morta pelo grupo, e sim por um free-lancer audaz e talentoso, o Ronnie Lessa.

Todos milicianos.

Outra grande estrutura criminosa na cidade do Rio é também escalavrada por Soares. A Liga da Justiça. Uma ironia tipicamente carioca. Bandidos assumindo a identidade de super-heróis. Neste caso, o batismo do grupo se deu, segundo o autor, pela presença na milícia do Batman e do Robin. Stan Lee deve ter virado no túmulo. 

Enquanto isso, o morador gira no espeto, como frango de padaria, com a cachorrada de olho.

É o que resta. Vivemos no Estado do Rio de Janeiro, aprazível região que já tem por tradição hospedar seus governadores na cadeia. Pena que por períodos curtos, tipo Airbnb. A exceção foi o Sérgio Cabral, que fez um contrato mais longo, de 30 meses, renovável. A temporada só acabou quando o Gilmar Mendes autorizou. Nada como o STF para soltar alguém.

É um estado onde delegados, chefes de polícia e comandantes de batalhão se acostumaram a ir em cana. Efeitos colaterais das práticas de comércio ilegal. A grana corre e o crime impera. A droga enriquece e financia os traficantes. A exploração das comunidades financia as milícias. Uma parcela da Justiça é azeitada pelo crime organizado. O lucro, gordo, suborna as autoridades. 

O atual governador do Estado do Rio, Claudio Castro, foi alvo de filmagens recebendo propina (enquanto ainda era vereador). É réu em diversos processos de corrupção. Sintomático que não tenha currículo ou representatividade política para ser governador. Sequer carisma ou poder de oratória. É um fruto do acaso. Era vice, o antigo governador foi afastado, ele assumiu. Depois foi (re)eleito em primeiro turno pela população do estado. O povo e sua sabedoria contumaz.

Castro costuma se manter na sombra. Só aparece quando inevitável, para balbuciar algum lugar-comum. A pronúncia é embolada pela língua engrolada, difícil de entender. Em 23 de outubro do ano passado, frente à queima de 35 ônibus a mando dos bandidos, o governador Castro soltou esta pérola: "Que o crime organizado não ouse desafiar o poder do Estado".

Quem?? A fala em si já é um desacato. Ele não falou isso na Finlândia. Falou no Rio.

Há quem diga que o governador é um fantoche do crime organizado. Esta semana ele trocou mais uma vez o secretário de Polícia Civil. Exonerou o quarto e nomeou o quinto. Dizem que ele atendeu a um determinado grupo. Eu não sei. Só sei que um povo que elege seus próprios algozes para tomar conta do governo é um povo fragilizado. Exposto.

Em suma, "Milicianos" é o raio-X da falência do Estado. E a radiação alcança todo mundo.

Não importa o teatrinho governamental. A população está em maus lençóis. Sejam os soldados do tráfico, saídos das famílias numerosas de mães solteiras, sejam os maus policiais, funcionários públicos que se aprimoraram na arte de matar, o povo está sitiado pelos bandidos e enquadrado pelos políticos. Crédulo, se auto-engana, dizendo a si mesmo que as nossas instituições são sólidas. 

São não. Elas são como uma cidade cenográfica. É tudo fachada.

O livro de Rafael Soares revela o que se esconde por trás dos panos. E, além disso, é um testemunho capital sobre um período negro da história do país. Justo este em que vivemos. 

Editora Objetiva, 317 páginas  |  1a edição, 2023

"O plano Flordelis", por Vera Araújo


O livro é o relato organizado, cronológico e, pena, monocórdio de registros, notícias e depoimentos relativos ao crime aparentemente concatenado por Flordelis e cometido por seus filhos. Adianto que a narrativa da jornalista Vera Araújo se limita ao conteúdo disponível na mídia sobre Flordelis, além da investigação e dos procedimentos processuais.

Ainda que escrito com correção e sobriedade, o texto decepciona o leitor interessado em um aprofundamento dos personagens envolvidos. Verdade que segue o indigente padrão editorial do país. Como é comum nos livros-reportagem brasileiros, o trabalho do autor é pobre em material exclusivo. Oferece pouco, algumas vezes nada, além do já publicado.

Não é uma crítica à autora, e sim ao mercado, do editorial ao leitor, que se satisfaz com o oferecido. É um cata-cata, um copia-e-cola, feito aqui com monótona competência. É o que temos.

O crime veio a júri popular nesta segunda-feira, 7 de novembro, e a previsão é de que o julgamento se encerre amanhã, domingo, ou, no mais tardar, na próxima segunda, 14. A pastora, cantora gospel e ex-deputada Flordelis dos Santos de Souza, 61, é acusada de ser a mandante do assassinato do seu marido, Anderson da Silva, 41.

A ré ficou famosa no fim dos anos 90, quando os programas de TV descobriram a estória de uma religiosa que se afirmava mãe adotiva de 55 filhos. Não obstante, o amor e a generosidade que aparentavam ser sua motivação exclusiva não resistiam a uma espiadela mais meticulosa.

Financiada por filantropos (após a divulgação da sua caridade), o que se constata é uma rigorosa estrutura hierárquica, onde os três filhos biológicos estão no topo da cadeia alimentar e disciplinam - com prepotência e algumas vezes com violência - os níveis inferiores da "filiação" adotiva.

Um primeiro nível ainda goza de privilégios parciais, mas aos "filhos adotivos" (na verdade não o eram, eram apenas jovens admitidos na casa, alguns permanentemente, outros temporariamente) cabiam os trabalhos domésticos e uma alimentação básica, sem acesso à geladeira vip.

Logo no início da formação desta família peculiar, a mãe, Flordelis, então com 35 anos, se casa com um dos adolescentes, Anderson, então com 17 anos, que namorava a sua filha biológica, Simone.

O envolvimento dos dois tem uma versão diferente para cada um que você escuta entre os 57 moradores da casa. E, no caso da ré, a verdade de qualquer circunstância é muito difícil de apurar, pois a narrativa de Flordelis é todo o tempo enviezada, com contradições contrapostas por clichês e reações emotivas teatralizadas.

Dependendo do tamanho da divergência entre fato e versão, via de regra Flordelis escapa do assunto com alguma platitude relativa a algum outro tema e começa a chorar. Geralmente funciona. Talvez não com a lei.

Ressalto o mérito da autora, Vera Araújo, em entregar substância suficiente para que o leitor possa compor o seu próprio panorama da família (muito ajudado pelo ótimo diagrama das páginas iniciais, que traz o nome dos filhos mais próximos e as respectivas camadas familiares).

No acompanhamento da investigação, espanta a ingenuidade e o amadorismo com que Flordelis arquitetava as tentativas de assassinato. Passa a impressão de que ela tinha absoluta confiança de que o nível de credulidade da sociedade como um todo seria idêntico àquele que ela desfrutava em casa e àquele que ela usufruía na comunidade evangélica frequentadora dos seus cultos.

O assassinato é tosco. O compartilhamento de informações incriminatórias por intermédio da rede de celulares da família é risível. Filhos interagiam entre si, via aplicativo de mensagem, combinando emboscadas ou procurando matadores de aluguel. Pesquisavam venenos na internet.

E o pior: tudo isso foi tentado. Um pistoleiro foi contratado e pago. A vítima, porém, ainda com sorte, mudou a rotina no dia. Então envenenaram a comida de Anderson, que foi parar no hospital, mas não morreu. Os filhos reclamaram entre si, por mensagens, que o sujeito "não morria de ruim".

Dezenas destas mensagens incriminadoras partiram do próprio celular de Flordelis, orientando os filhos ou discutindo detalhes do crime com eles. Na polícia e no tribunal, ela achou que era suficiente alegar, para limpar a própria barra, que o celular dela não possuía senha (!) e todo mundo usava. 

Lógico que não colou.

Incontáveis versões se sobrepuseram, cada uma tentando consertar os buracos da anterior, confrontada com novas descobertas. Tão inverossímeis que começaram com uma tentativa de roubo seguida de morte e terminou em uma vingança passional da filha por assédio sexual.

Agora escolheram uma outra. Neste início de novembro de 2022, a nova alegação da banca de advogados de defesa é que Anderson estuprava a esposa, transformando a vítima em culpado e a culpada em vítima. Embora estapafúrdia, certamente esta é a versão que os causídicos contratados consideraram aquela que ofereceria mais chances para reduzir a pena da mandante do crime.

Faltou combinar com o júri popular, que talvez não engula mais uma nova estória.

Voltando aos fatos, o plano com que finalmente conseguiram matar Anderson foi simplório. Flordelis arrastou o marido para Botafogo (alguns depoimentos afirmam que eles foram a um clube de swing, hábito antigo deste casal-celebridade de pastores evangélicos) por algumas horas, enquanto os filhos mancomunados com a pastora ficaram em casa, preparando a emboscada.

O casal chegou depois das três da manhã e entraram na residência. Após já ter tirado a roupa, Anderson foi de cueca até a garagem (deduzo eu que a esposa deva ter pedido que ele voltasse para buscar alguma coisa "esquecida" por ela no carro), quando foi surpreendido pelos filhos biológicos de Flordelis, Flávio e Simone, que deram mais de 30 tiros no padrasto, boa parte deles na genitália.

Não posso nem dizer que matar foi "fácil", haja visto tantas tentativas frustradas, mas, realmente, matar foi a parte mais fácil do crime, diante das dificuldades óbvias de de camuflá-lo depois. A alegação de de Flordelis de terem sido seguidos por motoqueiros, que entraram na garagem atrás de Anderson e o executaram, para roubá-lo, não parou em pé nem por 24 horas.

Não só porque nenhuma das afirmações dela pôde ser comprovada (na verdade, diversos detalhes foram logo desmentidos), como toda a sua versão do idílico passeio a dois que fizeram naquela noite, em comemoração do aniversário de casamento, não batia com os sinais de celular captados.

A tecnologia atual não dá mole. Sinalzinho de celular é o maior dedo-duro do século 21.

A partir daí foi uma sucessão de versões-tampão derrubadas a cada nova tentativa de confundir os investigadores. Crime mal planejado - a bem da verdade, pelo relato de Vera Araújo, aparenta ter sido mesmo um crime desnecessário, um capricho da pastora -, com muito a perder e pouco a ganhar. Deu ruim e a cantora-gospel deputada e líder evangélica está na cadeia desde agosto de 2021, quando foi destituída do seu mandato popular. 

Me vem à mente o que não quer calar - será que nenhum daquelas dezenas de agregados que ela chamava de filhos momento algum fez a pergunta certa a se fazer - "E se descobrirem?"

Eu, curioso para tentar entender melhor este núcleo tão brasileiro, encomendei o "Flordelis, pastora do diabo", do Ulisses Campbell. Se eu tiver tempo e estômago para ler, comento aqui em breve.

Editora Intrínseca, 296 páginas  | 1a edição | Copyright 2022

"A república das milícias", por Bruno Paes Manso


A historiografia do crime organizado no Rio de Janeiro. Sóbrio, técnico, o paulista Paes Manso narra não somente a ocupação do Rio pelos milicianos, mas recupera de forma pormenorizada o avanço da criminalidade no Rio, desde os tempos em que a cidade ainda era a capital federal. Em paralelo, o surgimento da polícia mineira, da época de Fleury, Milton e Mariscot, dos Homens de Ouro à Scuderie Le Coq.

Relaciona os bandidos emblemáticos que assombraram, marcaram e depois dividiram o controle da cidade: Mineirinho, Cara de Cavalo, Escadinha, Gordo, Uê, Orlando Jogador, Marcinho VP, Nem, Beira-Mar (até o Marcola entra no bolo). Decupa as comunidades do Alemão, da Rocinha, da Maré, da Cidade de Deus. Retroage no Comando Vermelho, nos Amigos dos Amigos, no Terceiro Comando. 

O bicho, a polícia, a milícia. A história de Rio da Pedras, de Nadinho a Adriano. O Escritório do Crime. A mistura de todos eles com a política. Os milicianos eleitos vereadores, os governadores e suas estratégias de combate ao crime, da bonificação faroeste de Marcelo Alencar ao tiro na cabecinha de Wilson Witzel. Da apologia da milícia na Assembleia Fluminense, com Queiroz e os Bolsonaro diplomando matadores presos. 

A história do assassinato de Marielle Franco e as muitas pistas (falsas) seguidas. Curicica, Ferreirinha, Girão, Brazão - quem, por trás de Ronnie Lessa? Ninguém sabe ainda e o livro também não. O autor enumera processos e induz conclusões, mas não traz respostas para as perguntas de sempre.

Sua descrição minuciosa da contabilidade do tráfico e da milícia, com a inclusão das despesas com armamento e com o arrego (pagamento feito à polícia pelo tráfico), expõe como funcionam os conglomerados empresariais da ilegalidade. Um negócio que envolve construção, locação, corretagem, gás, sinal de tv a cabo, internet e segurança. O balancete se traduz em dezenas de milhões de faturamento. Semanais.

Técnicas relativamente pouco conhecidas empregadas na associação entre policiais e criminosos também são reveladas. Além da mineração assídua - nada mais do que extorquir dinheiro de bandidos, traficantes e bicheiros para não prendê-los -, os tiras "ganhavam para passar informações aos criminosos sobre as operações em curso, o que ajudava os assassinos a destruir as provas e fugir", assinala didaticamente o autor.

Ele acrescenta que "os policiais também faziam vista grossa aos assassinatos cometidos pelo grupo e embuchavam a autoria de homicídios não esclarecidos nos inimigos das quadrilhas que os pagavam".

O cidadão de bem certamente não é íntimo dessa técnica de embuchamento. "Como a polícia científica e a perícia do Rio estão sucateadas, em vez de fundamentadas em testes de DNA e análise de digitais, boa parte das condenações baseiam-se em depoimentos e testemunhas de acusação, escutas telefônicas, registros de antenas de celular, imagens de câmeras", explica Bruno. "Na vida real da investigação brasileira, basta arrumar uma testemunha convincente para embuchar um homicídio em um desafeto."

Que dizer? É uma leitura adequada para os meus contemporâneos. A quem vive no Rio convém ler. Não só: quem vive em qualquer lugar do país também - lhes diz respeito. Gostemos ou não, estes são os intestinos da segunda maior cidade brasileira, que o presidente eleito em 2018 promoveu a entranhas do país. 

Cidade incomum, incongruentemente chamada de "maravilhosa". O que a fez merecer o epíteto, um dia, ela já perdeu há muito tempo. As montanhas que a cercam se tornaram municípios de ocupação irregular (a Rocinha tem cem mil habitantes), a baía que já foi seu nome virou um lixão aquático e parte da sua malha urbana virou terra de ninguém. Ou melhor, de ninguém legalmente autorizado. É um território de administração terceirizada à bala.

Não esqueça que nenhum de nós anda despreocupado por boa (má) parte do Rio. Dependendo da área, a inquietação é constante. A gente disfarça, mas sempre dá uma conferida periférica, faz um pente fino visual. E o sobressalto não acomete somente gente comum. Acontece até com quem vira presidente. Convém lembrar que o Messias, quando ainda era um virulento político local, andava de moto, armado, quando foi rendido por bandidos em um sinal de trânsito. Não reagiu e entregou tudo. 

O presidente atual, a propósito, é personagem recorrente na obra de Manso - chegando mesmo a ter sido incluso no subtítulo: "Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro". Há decerto a possibilidade da inclusão ter obedecido mais a um critério comercial do que de pertinência. Mas é realmente difícil separar, como tantas vezes relaciona o texto, a família Bolsonaro da confraternização política com os milicianos.

Além da presença deles no próprio gabinete da família na Assembleia, como contratados (Fabrício Queiroz, a filha de Queiroz, Adriano Nóbrega, a esposa de Adriano e a mãe de Adriano são relacionados no livro), há as homenagens com moções e outras deferências aristocráticas a integrantes de milícias, com o dinheiro do Estado - ainda que paradoxalmente presos por este mesmo Estado, por crimes de morte cometidos contra a população do Estado.

Bruno, se contido na forma, é incisivo no conteúdo e incontroverso na análise.

"Bolsonaro venceu a eleição de 2018 porque parte dos brasileiros foi seduzida pela ideia da violência redentora. Diante da crise econômica e da descrença na política, os eleitores escolheram um justiceiro para governá-los. Como se o país decidisse abandonar suas instituições democráticas para se tornar uma enorme Rio das Pedras gerida por princípios milicianos."

Tenta evitar a retórica fácil da polarização: "A tristeza e a depressão chegaram porque o Brasil prometido pela Nova República não aconteceu. Bolsonaro foi o sintoma dessa desesperança."

Vitor Sznejder, um amigo jornalista, que conheceu tempos mais duros, se surpreendeu com a coragem do autor: "Em outro momento político, menos democrático, o Manso estaria no mínimo sendo torturado: sua acusação é factual e direta. Assustador."

Ter o presidente da República como protagonista de uma obra toda ela dedicada a tratar da ocupação do Estado pelo crime organizado é sem dúvida um ato de coragem. A sociedade fica devendo mais essa a Bruno Paes Manso, que parece flertar com o risco, ao diligentemente se aprofundar em estruturas ocultas e fora da lei (outra obra do autor sobre um tema correlato é "A ascensão do PCC e o mundo crime no Brasil"; não li, mas já está na prateleira).

E ainda nos cabe agradecer que o seu trabalho não se restringiu ao mapeamento macro. Operações menores, mas também ilegais, como a hoje popular rachadinha - praticada com devoção e impunidade por milhares de detentores de mandato - também são explicadas em minúcias pelo jornalista. Manso inclusive faz uma digressão isentando os Bolsonaro (seus mais famosos adeptos) de terem se envolvido nos grandes esquemas de corrupção.

"Os Bolsonaro não pegavam dinheiro de empreiteiras nem de bancos, não se vendiam a grandes empresários. A família não precisava de muito dinheiro para fazer campanhas políticas, pois já contava com os votos garantidos de militares e policiais (e seus familiares). Bolsonaro, contudo, achava que ganhava pouco como deputado federal. Conforme explicou certa vez, a maior parte de seu salário ia para o pagamento de impostos, fundo de garantia e pensão para a ex-mulher. 'Fico somente com 5% do salário", reporta o autor.

Para ajudar no entendimento, Bruno discrimina a composição dos ganhos de um cidadão eleito para a câmara: "O dinheiro que os deputados recebiam ao assumir o mandato era muito acima do salário de um parlamentar. A verba de gabinete que a Assembleia Legislativa do Rio, por exemplo, destinava para cada deputado contratar até 25 funcionários, com salários entre 548 reais e 15 mil reais, era de 107 mil em 2020."

Para dar números que permitam ao leitor avaliar o volume financeiro movimentado em um esquema do gênero, ele dá um exemplo lastreado nas transferências recebidas pelo assessor de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, nomeado em março de 2007. A contar de abril deste ano a dezembro de 2018, foram transferidos 2,39 milhões de reais para a conta de Fabrício. A suspeita é a da prática sistemática da rachadinha. Para justificar o valor, Queiroz candidamente explicou: "Eu faço rolo".

Evitando deixar no vácuo este período momentoso, vale frisar que Fabrício Queiroz, o ex-assessor de Flávio Bolsonaro, foi preso enquanto estava escondido na casa do Frederick Wassef, então advogado de Jair Bolsonaro. De Atibaia ele foi levado para Bangu 8 e lá libertado pelo habeas corpus concedido pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha, que liberou Queiroz para o prudente isolamento domiciliar (na companhia de Marcia Aguiar, sua esposa, que estava foragida).

Os temas são muitos e foram em boa parte dissecados com critério pelo jornalista.

Para registro, apesar do texto enxuto e da análise temporal bem encadeada, há alguns calos na narrativa. Há momentos em que a obra perde fluidez, pela repetição de cenários e personagens abordados em páginas anteriores, diluindo a profundidade com que Bruno já havia dissertado sobre cada um destes assuntos em momentos diversos do livro. Daí a impressão que o texto foi construído em blocos, em momentos diferentes e posteriormente unidos, sem que tivesse sido expurgada uma eventual superposição de conteúdo. Conhecedor da tirania dos prazos, reputo que a urgência no lançamento da obra possa ter impedido o autor de fazer o refinamento e a consolidação final.

Sem dúvida, a Todavia nos traz mais uma edição oportuna, quanto ao tema, e acanhada, quanto ao acabamento. Um passo à frente dos livros de bolso e aquém do que merecem os bons trabalhos que a editora vem selecionando para publicação.

Se este é o preço para distribuir no mercado um conteúdo relevante, que seja.

Editora Todavia, 302 páginas


"A casa", por Chico Felitti


João Teixeira de Faria, 79, vulgo "João de Deus", saiu de casa no último fim-de-semana para se internar na UTI do hospital Sírio e Libanês, em Brasília. Em janeiro o paciente havia sido condenado a 40 anos de prisão (pelo estupro de cinco mulheres), um mês após ser sentenciado a outros 19 anos (pelo estupro de outras quatro mulheres). Mesmo para quem não estava familiarizado com o caso, este número já impacta. Mas estas nove mulheres violentadas somam menos de 3% das 320 denúncias de crimes sexuais que Faria é acusado de cometer.

E tem mais. Há também contra o apenado outras suspeitas em investigação e outros inquéritos em andamento - a maioria por posse ilegal de armas de fogo (além de um arsenal de armas curtas, ele tinha uma potente bazuca de guerra no quintal, à guisa de decoração). Um destes inquéritos já resultou na sua condenação a 4 anos de prisão. Foi sua primeira condenação, a propósito.

É lícito supor que, a despeito do que ainda está por vir, o montante já significasse uma boa pena. Na prática, porém, não é assim que funciona. Se ilude quem pensa que o sentenciado esteja sujeito a só sair da cela aos 109 anos, após cumprir a pena máxima brasileira de 30 anos de cadeia. À vera, ele sequer foi para ela. Os 63 anos de pena e os 9 feminicídios cometidos não foram avaliados uma dose penal suficiente para que o juiz responsável considerasse Faria mais adequadamente domiciliado em uma penitenciária do que numa residência. Por ordem do magistrado, o estuprador está como nós: confinado em casa (no caso específico dele, uma mansão).

"Cuidemos dos nossos idosos". Como Faria era um velho criminoso, talvez o mote tenha trazido à tona a veia piedosa do juiz. Zeloso, se preocupou em manter o estuprador a salvo do coronavírus.

Mas, até o momento em que escrevo, nem ele contraiu covid, nem começou a pagar as penas às quais foi condenado. Refeito do susto, deixou a UTI ontem, na hora do almoço, e foi para o quarto. Na unidade intensiva, não chegou a ser entubado - mas seu médico particular reforça que sua situação é de risco. O maior deles, porém, é o risco de escapar à Justiça, a qual ele vem driblando há algumas décadas.

Sua história, conhecida de forma fragmentada até pouco tempo atrás, atualmente é de domínio público. Porque, depois de anos de uma idolatria restrita aos iniciados, suas centenas de crimes começaram a pipocar na mídia como grãos de milho malocados numa panela quente. O estopim foi a corajosa denúncia de uma jovem holandesa, Zahira Lieneke Mous, 34, que aceitou fazer o que as mulheres não se sentem seguras de fazer quando são violentadas - ela mostrou a cara. A partir daí, com um rosto, os crimes do estuprador se tornaram matéria no Fantástico, uma série foi lançada, um livro foi publicado. É dele que falo aqui.

Como vocês sabem, não resisto a um bom livro, dedicado à estória que se propõe contar. Gosto dos detalhes - como dizem, é lá que o diabo mora. Pena que esta não é uma ansiedade generalizada. Por falta de tempo, curiosidade ou paciência, sei de antemão que poucos lerão a bem apurada obra de Felitti. Mas, por outro lado, muitos verão o vídeo. Já é pra lá de bom.

Está há alguns meses disponível em streaming a série documental "Em nome de Deus". Vi o primeiro episódio. Excelente. Mais que isso, tem um privilegiado lugar de fala, com o protagonismo de Pedro Bial e sua roteirista, Camila Appel. Foi no seu programa de TV, "Conversa com Bial", que a holandesa citada acima fez a denúncia dos estupros praticados pelo mundialmente celebrado John of God.

Na verdade, o criminoso já vinha sendo denunciado desde os anos 90, sem grandes (nem pequenas) consequências, como conta em profusão de minúcias o sóbrio livro de Chico Felitti, que recomendo para quem queira se inteirar da trajetória do facínora. O texto, embora acrescente pouco ao já conhecido, tem por maior mérito expor de forma aguda e organizada a longa trajetória de crimes do priápico médico espiritual.

Faria tem pedigree. O pai era maluco de manicômio. A mãe era vidente. Ele trazia o dom de casa. Embora no início da carreira tenha tido outros endereços menos bem sucedidos, foi em Abadiânia que ele fincou sua espada, numa sorveteria falida que ele alugou, afastou os freezers e encheu de macas. A fila de pacientes ávidos por curas do além se estendeu ali por 40 anos. É muito tempo para um charlatão.

O autor relata denúncias dos primeiros tempos, de "doentes" que eram contratados para simular paralisia, seguida de súbita e miraculosa recuperação após uma cirurgia fake conduzida pelo João Curador. Ou do uso de Cibazol, um antibiótico, que ele espremia o pó na mão. O fio de água entrava limpo e descia vermelho pela ação do Cibazol, aparentando escorrer sangue das operações sem anestesia praticadas pelo Curador. A plateia se maravilhava.

Ele não fez dessas só no Brasil: em uma das suas teatrais aparições no Peru, João curou a dona de casa Maristela Vasquez, que chegou de muletas e saiu sem elas, coxeando. Os repórteres locais foram entrevistá-la. Señora Vasquez não economizava: "É um milagre! É um homem de Deus!" Um repórter de melhor memória questionou-a se ela também não havia sido curada da mesma doença alguns anos atrás, quando da visita de uma imagem da Virgem Maria à Lima. A septuagenária, cada vez melhor, subiu nas tamancas e tentou dar um pau no jornalista inconveniente: "Usted miente! Usted miente!" A exdrúxula cena está disponível no YouTube.

Mas também na Casa de Dom Inácio de Loyola santo de casa não faz milagre. A mãe de Faria teve um câncer agressivo no rosto, que a deformou. De pronto o Curador receitou a construção de um muro alto ao redor da casa da mãe, para que não se testemunhasse a sua doença, nem a falta da cura.

Um truque recorrente do curandeiro era o de enfiar uma tesoura inteira no nariz do crente. Como se vê nos muitos vídeos de divulgação do seu negócio, Faria metia a tesoura, rodava e se virava para a plateia, ou para a câmera, com uma expressão de "tá vendo só a proeza que eu fiz?" A performance foi condenada na rede pelo dr. Joe Schwarcz, diretor da Universidade McGill. O médico explica que a cavidade nasal pode realmente acolher uma tesoura inteira. Ele demonstrou como usando um boneco cabeça de batata. E explicou: "Eu nunca faria isso em um humano. Eu não sou louco."

Outra estripolia boa do Faria foi aquela de tentar contrabandear uma tonelada de autunita, minério radioativo, na caçamba da sua picape, há 35 anos. O carro foi apreendido com o minério sendo transportado pelo Curador, seu sobrinho Wagner e mais três outros sujeitos: Diomar, Jerônimo e Possidônio. Era assunto de segurança nacional, pois é da autunita que se obtém o urânio. Em 18 de novembro de 1985, o SNI registrou que a quadrilha extraiu 1.030 kg de autunita de um garimpo próximo a Dianópolis, e seguia em direção ao aeroporto de Alto Paraíso, onde a encomenda seria despachada para a Guiana. Faria era dono das três armas encontradas no carro - uma delas em sua cintura, com a numeração raspada - e declarou ter combinado receber 4 milhões de reais (em dinheiro de hoje) pelo frete. Não recebeu a bolada, mas escapou de ser preso.

Na verdade, escapar da prisão passou a ser uma das suas especialidades, doravante. Não que não soubessem dos seus crimes, ou do seu paradeiro. O pessoal só não o prendia. Ao redor da Casa - que era como todos chamavam o centro espiritual - o que nunca faltou foi crime.

Como o do sargento da reserva Francisco Borges de Siqueira, o Borjão. Tomou dois tiros à queima-roupa, pelas costas, no estacionamento, quando saía da Casa, abraçado a Urubatan Andrade da Mota, 26, sobrinho de Faria. A estória é enviezada e, resumindo, conta que Borjão era frequentador do local e que as duas filhas menores de idade do Borjão vinham se relacionando sexualmente com o Urubatan nas dependências da Casa.

Borjão, parece, quis fazer "do limão uma limonada" (expressão que ele usou em um bilhete enviado ao Curador) e conseguir um dim-dim em troca de não abrir o bico. Aparentemente, a Casa resolveu economizar no acordo e gastar com pistoleiro e munição. Isaac Jorge Vasconcelos, 33, e José Aldo de Almeida Mota, 21, pegaram o serviço. Descobertos e acusados, o processo se arrastou por 22 anos. Em 2010 os matadores de aluguel pegaram 12 anos. Urubatan foi julgado muito antes, em 1993, e foi absolvido, por 7 a 6. Faria, eventual mandante, figurou apenas como testemunha.

Uma outra testemunha de defesa de Urubatan experimentou o mesmo azarado destino de Borjão, no mesmo lugar. Ô carma. Mário Augusto dos Reis, que tocava com a esposa a cantina da Casa, tomou onze tiros no estacionamento. O modus operandi se repetiu, com dois executores descarregando as armas na vítima, de costas. Também de novo Urubatan era suspeito. A questão aí era disputa por fatias do mercado alimentar.

Aventava-se que os carrinhos de suco, em formato de laranja, gerenciados pelo sobrinho do Curador, tenham sido o pomo da discórdia. Os laranjinhas, lembra? marcaram época. O processo que acusava Urubatan foi finalizado sem sua presença. O acusado explodiu dentro de um bimotor 65-A80 , que despencou em parafuso sobre o bairro de Lourdes, em Anápolis (trata-se do mesmo modelo que, num longínquo futuro, cairia, matando Teori Zavascki, ministro do Supremo).

Quinze anos depois, o laudo sobre a queda do avião foi dado por inconclusivo. Em 2010, o finado Urubatan foi considerado como mandante do crime. Não alterou sua posição no cemitério, mas mexeu com seu patrimônio. Faria processara o sobrinho defunto para pegar dois milhões de volta.

Estrangeiros também morriam misteriosamente. A alemã Johanna Hannelore Bode, 65, veio à Abadiânia atrás do filho viciado em drogas, que aportara na cidade em busca de uma cura mística. Ao visitar a Casa e presenciar o que considerou um engodo, a mãe passou a espalhar no comércio local que iria denunciar o charlatanismo na internet. Não teve tempo. Em 27 de junho de 2006, ajoelhada numa rua de terra a cinco minutos do centro de tratamento, ela recebeu um tiro à queima-roupa que entrou pelo queixo e foi parar no tórax. O inquérito não menciona o nome de Faria. O processo foi arquivado. A embaixada alemã ignorou a morte da compatriota.

Deixando um instante os tiros de lado, o livro detalha também os estupros acontecidos enquanto o médium tratava as pacientes. Alguns, na presença dos próprios parentes da estuprada - pai, mãe, tio, avô -, que ficavam de olhos fechados, em oração, enquanto Faria se mantinha em ação. As abusadas muitas vezes choravam, gemiam e tentavam dificultar. Faria não amolecia. Coagidas, amedrontadas, muitas se submeteram à dureza do tratamento à moda da Casa por anos a fio.

A armadilha sexual de João seguia um protocolo. Quando alguma visitante agradava ao curandeiro, ele pedia que ela o aguardasse ao lado da porta do seu escritório, ao fim da sessão. Os assistentes do curandeiro conduziam a paciente ao local. Dezenas de vítimas descrevem da mesma maneira a sala de João, os prolegômenos e os finalmentes. O espaço era composto de uma sala grande, um sofá confortável e um banheiro, com toda a lenga-lenga de símbolos religiosos e frases de consolo pendurada nas paredes. O curador dizia que estava dando uma benção especial e colocava o membro para fora, para que a abençoada segurasse e manipulasse o instrumento de cura. A masturbação, com ejaculação, era o carro-chefe do abusador. A penetração era eventual.

O autor entrevistou uma das abusadas, A., sete anos depois do crime. "Você quer saber do que eu me lembro, né? Eu me lembro de tudo." Ela foi à Casa em julho de 2012, com duas amigas. Queria se livrar das cólicas. Faria, que dizia incorporar o espírito do dr. José Valdivino, lhe convocou: "O médium quer lhe ver. Quando terminar o atendimento, vá à sala dele." Ela esperou do lado de fora do escritório. Era a última de uma fila de seis mulheres.

Quando chegou a sua vez, Faria ficou às suas costas. Diz A. que ele começou a alisar seu ventre. "Eu achei que fosse um passe na região em que a doença estava." Ele avançou. "Ele apertava a minha bunda com as duas mãos, uma de cada lado." O curandeiro dizia: "É, você vai precisar de uma limpeza. De uma boa limpeza." Ele empurrou seus ombros para baixo, para que ela ajoelhasse. Abriu o zíper e pôs o pênis para fora. "Eu lembro daquele pinto mole, nojento, cheio de pele. Eu lembro que a unha do dedão dele estava roxa, parecia que ia cair. E eu olhava para aquela unha enquanto ele colocou uma mão atrás da minha cabeça, e com a outra segurava o pau meio mole dele. Eu foquei nessa unha como se fosse um jeito de fugir. Eu pensava em gritar, mas eu não consegui na hora, eu não tive força e..."

As amigas não foram convidadas a ir à sala de João. A. jamais contou às amigas o que aconteceu. Oito meses depois conseguiu um diagnóstico para as suas cólicas - endometriose, uma inflamação no endométrio, o tecido que reveste o útero. Fez três cirurgias e ficou curada. Mas a visita à Casa gerou um estresse pós-traumático. Passou a ter ataques de pânico. "Eu fecho os olhos e sinto o cheiro daquele dia. De sabonete Dove. Sinto o cheiro da pessoa que você odeia."

Porque as vítimas se calavam? Além da vergonha, da inaceitação da experiência e da sensação de sujidade que tomava as vítimas, havia toda a aura que cercava o Curador. Um homem santo, quase uma divindade, que milhares de pessoas esperavam dias para ver. Brasileiros e estrangeiros de todo o planeta vinham reverenciá-lo. Além da multidão de anônimos fragilizados, artistas, políticos, juízes, celebridades vinham se entregar ao médium. Muitos davam depoimentos públicos, de autêntica veneração, após serem atendidos por ele. Xuxa ("Ele é um iluminado") e a norte-americana Oprah Winfrey ("Me senti muito humilde ao ver o que eu vi") são exemplos . Se é sempre difícil denunciar um estupro, este era ainda mais. 

Até hoje sob o impacto do crime, A. desabafa: "Você está lá disposta a acreditar em uma coisa que é misteriosa, que não é normal. Está todo mundo de boca aberta o dia inteiro, vendo cura atrás de cura. Isso cria uma confiança, é como se todo mundo ali compartilhasse um segredo que o mundo ainda não sabe. Um milagre. E ele abusava dessa confiança."

Após as denúncias se avolumarem país afora, A. compareceu ao Ministério Público e prestou seu testemunho. O crime está prescrito pelo "prazo de decadência" para crimes sexuais. Ela sabe que não ganhará o processo, mas tenta uma catarse. "Na minha cabeça é como se estivesse acontecendo ainda. O tempo todo, acontecendo. Eu só espero um dia que minha vida ande pra frente."

A sanha bolinadora do Curador não conhecia fronteiras. Em 2010, em uma das suas dezenas de viagens internacionais (onde era tratado como se fosse o próprio Dalai-lama), uma mulher denunciou Faria por abuso sexual. Ela compareceu à delegacia da pequena cidade de Sedona, Arizona, EUA e registrou que John of God "a obrigou a pegar em seu pênis na frente do marido e da filha de doze anos". O registro policial da denúncia permanece acessível. Não houve processo. Segundo Felitti, parece que um cheque de 60 mil dólares chegou à conta do marido. 

O autor optou por entremear capítulos. Uns avançam de forma cronológica, detalhando a formação do Curador, outros estão no tempo presente, que mostra a Abadiânia à beira do colapso, sem o guru popstar que atraía milhares de devotos e milhões de reais à cidade. Na verdade, a Abadiânia oficial continuou pobre; quem enriqueceu foi o trecho do outro lado da estrada, onde o João Curador ergueu uma nova cidade, na qual ele, informalmente, era prefeito, juiz e polícia.

Esta parte mais bem aquinhoada sempre pagou pedágio para o Curador. É prática comum no Rio, nas zonas dominadas pela milícia, e nas regiões de atuação da máfia, mundo afora. O dinheiro extorquido tinha até um nome: "salário da entidade". Do motorista de táxi (meio salário) ao dono de pousada (um salário), passando por qualquer lojinha de uma porta só que vendesse bugigangas, todo mundo pagava um pedágio mensal para trabalhar nas margens do fluxo caudaloso de gente que o João trazia à Abadiânia, com alguma grana e muita esperança. Boa parte de ambas ficava por lá mesmo.

Rico mesmo ficou o curandeiro. Milionário, aliás. Ganhava dinheiro que nem água. Esta, a propósito, respondia por um terço da receita da Casa. O Curador prescrevia três garrafas dágua fluidificada para cada paciente. A quinze reais cada, R$ 45,00 no total, mais os remédios (o outro terço), multiplicado pelos milhares de visitantes mensais, dá para calcular a fortuna. Já a Receita Federal não calculava. É que, além da casa não emitir nota de praticamente nada, no Brasil dinheiro de "igreja" não paga imposto.

O Ministério da Fazenda conseguiu mensurar uma parte da sua fortuna apenas por meio do Coaf, departamento que supervisiona as movimentações financeiras. Logo após as denúncias, detectou que Faria, assustado, baixou 35 milhões de reais das suas aplicações para a conta-corrente. Suspeita-se que a abrupta transferência de fundos visava financiar uma eventual fuga.

Mas o Coaf só identificou a movimentação em reais. Boa parte do faturamento de Faria se dava em moeda forte - dólares, euros e libras. Hordas de turistas norte-americanos e europeus afluíam à Abadiânia, em busca da revelação espiritual e de transcenderem a este mundo cão. Eram milhares por ano. O negócio ficou tão organizado que as excursões internacionais também pagavam o salário da entidade, renomeado aqui de "doação". Uma taxa fixa de 400 a 1.000 dólares, dependendo do tamanho do grupo. E às taxas eram acrescentados mais uma comissão de 10% sobre o valor total faturado pela excursão.

Dinheiro, entretanto, pertencia à matéria. Os fiéis cruzaram o planeta em busca de um portal para o outro plano. John of God era o seu guia. O fascínio era tal que, nas noites de dezembro, os gringos cantavam animadamente nas dependências da casa, ao som de Jingle Bells: "John of God/ Entities/ Dom Inaci-o/ Thank you so for healing us/ In body, mind and so-ul!"

Mas tudo tem início, meio e fim. Uma guia turística norte-americana, Amy Biank, que visitou Abadiânia 48 vezes (trazendo ao todo 1.500 turistas), certa vez inadvertidamente surpreendeu o curandeiro numa situação libidinosa com uma fiel. João, com presença de espírito, mandou que Amy sentasse e fechasse os olhos. Deu prosseguimento ao trabalho que já fazia e, ao fim, congratulou a fiel: "Parabéns, você passou no teste." Ela, atônita, ficou em dúvida se entendeu o que tinha visto. Mas na última vez em que esteve na casa, viu uma criança sair da sala do Curador com esperma ao redor da boca, que uma funcionária do centro correu para limpar, alertando: "É ectoplasma!" Biank podia não conhecer este, mas conhecia aquele. Estupefata, começou a falar além do que devia.

À noite, avisado, o próprio João foi à pousada e lhe disse: "Quando eu sou João, eu sou só um homem. E um homem tem necessidades." Outros lhe disseram: "Mulheres brancas desaparecem no Brasil o tempo todo. Você deveria pegar um avião agora e ir embora." Alguns anos depois, Amy foi entrevistada por Pedro Bial, ao lado da holandesa Zahira, no programa que revelou os crimes do estuprador. O escândalo, enfim, foi imediato. O assunto dominou o noticiário e foi para os trending topics das redes sociais. Era o ponto final da sua longa carreira de abusador.

Depois da prisão de Faria, a cidade virou um deserto. Sem o curandeiro, não havia peregrinos. Os que vieram para fazer a vida retornaram às suas origens. O povo local não tinha esta alternativa. Voltou para a sua vidinha de sempre, se isentando diante da repercussão gerada pela descoberta das atividades de João. Há quem critique. Como Paulo Paulada, ex-gerente da Casa, que depois virou desafeto. "As pessoas daqui, no meu ponto de vista, são todas cúmplices, a cidade toda. Porque enquanto todo mundo vivia de lá e ganhava o dinheiro de lá, ele era bom. Agora, ele não presta." Paulada desfere: "Agora que a onça morreu todo mundo quer tirar foto com ela."

Felitti quase não escreveu o livro, por receio de uruca: "Tinha medo de mexer com misticismo", revela. Bom que resolveu escrever. O tema é relevante e Chico é do ramo. Abrangente, aborda muitas facetas do condenado João Teixeira de Faria - o fenômeno da mídia, dos negócios e das curas -, enquanto desfia seu rosário de estupros. É muito assunto. Sugiro a leitura. Já eu aqui me restrinjo mesmo ao criminoso. 

João se dizia médium e eu me digo espírita. O que não me dá nenhum ponto-de-vista especial como leitor da estória do João Curador. Porque embora a fé tenha sido ferramenta para a concretização da maioria dos seus crimes, eles são apenas isso. Crimes.

Roger Abdelmassih, outro estuprador em série que vez por outra goza da liberdade (este é um país que nunca se sabe quem está solto e quem está preso), também foi alvo de centenas de denúncias. Ao invés de curas, ele prometia filhos. Falo dele aqui no blog, em "A clínica". O médico Roger estuprava mulheres anestesiadas na sua clínica de fertilização e as engravidava com seu próprio sêmen. O médium João estuprava mulheres amedrontadas na sua casa de cura e algumas vezes atirava nelas, para matar. 

Editora Todavia, 260 páginas

P.S.: Convém sempre dar uma atualizada no Google para saber o paradeiro da dupla. Como já são ambos velhos e doentes, em breve estarão debaixo da terra. Enquanto não, nunca se sabe se dormem numa prisão ou num resort.

"Diários de Raqqa", por Samer

Nada do que está na capa deste título editado pela Globo Livros é verdadeiro. Nem o autor. O texto atribuído à BBC ("no futuro, quando as pessoas necessitarem compreender o que foi a guerra da Síria, é este o livro que elas lerão") não procede. Lendo o livro, você não compreende o que foi a guerra da Síria, que é dez mil vezes mais complicada do que isso. Nem o subtítulo é digno de fé. Trata-se de mera marquetagem para produzir o tipo comercial de legenda que se tornou padrão nos livros de não-ficção nos últimos anos: um encadeamento rítmico de frases que dá um ar de thriller e de novidadismo ao produto editorial (recurso popularizado pelos ótimos livros de Laurentino Gomes). Ao fecharmos o livro, descobrimos que Samer não foi jurado de morte, nem muito menos desafiou o Estado Islâmico. Tirante esses detalhezinhos, antecipo: é leitura das boas. Daquelas de não se conseguir largar. Texto valorizado pelos delicados desenhos de Scott Coello, nos ambientando no universo hostil que circunda o narrador, Samer (que, esclareço, não é seu nome real: por motivos de segurança, dele e da família, seu relato foi assinado sob pseudônimo). Seus diários foram publicados no âmago do conflito, em 2016, período em que a cidade ainda estava sitiada. Alvo de 20.000 bombardeios e com 90% do seu território destruído, Raqqa somente foi libertada no fim de 2017. Durante os anos de ocupação, a cidade, no norte da Síria, se tornou a capital do Estado Islâmico, o Daesh. É justamente a narrativa desta ocupação o cerne dos diários de Samer. Ele já era um jovem ativista antes da chegada do Daesh. Era presença assídua nos protestos contra o governo corrupto dos Assad, há meio século no poder. Uma ditadura cruel, que detia, punia e matava seus opositores - onde uma reles denúncia sobre um comentário trazia graves consequências. Foi o que aconteceu com o pai de Samer. Seu chefe o delatou por ter feito críticas à corrupção do regime. Preso, só foi libertado depois que o chefe aceitou refazer seu depoimento, amenizando as acusações. A revisão da denúncia não foi de graça. Para ter o marido solto e com o emprego de volta, a mãe vendeu suas joias e também um terreno herdado do avô, financiando assim a boa-vontade do chefe. Infelizmente, uma transação cotidiana na cultura local. Pior é que a ditadura síria não era apenas corrupta, mas também violenta. O massacre de Hama, conduzido por Hafez Al-Assad (pai do atual presidente), em 1982, matou 35 mil civis. O filho, Bashir Al-Assad, assumiu o poder em 2000 e apertou o torniquete do regime. Por isso, a chegada das forças rebeldes, em 2013, foi considerada por muitos como uma esperança de libertação de Raqqa da opressão praticada pela dinastia Assad. A princípio, foi uma vitória comemorada. Unidos em coalizão, o Exército Livre da Síria, o Ahrar Al-Sham e a Frente Al-Nusra (com o Daesh) expulsaram o exército de Assad da cidade. Jovens como Samer, veteranos das manifestações contra o governo sírio, se entusiasmaram. Mas foi uma reação precipitada. Ao longo das semanas seguintes, viram que a situação era menos promissora do que parecia. O combate militar pela cidade se intensificou e o Daesh assumiu isoladamente o controle de Raqqa - implantando um novo regime de terror, em uma escala alguns graus acima da até então exercida pelas forças regulares. O Daesh é o braço sírio da Al-Qaeda (a Frente Al-Nusra chegou a reivindicar o ataque às torres gêmeas, em 2011) e esteve por trás de diversos atentados terroristas nos últimos anos, incluindo os de Paris, em 2015. Fez de Raqqa seu bastião, aproveitando sua localização estratégica, no extremo oposto da capital da Síria e dispondo da produção dos seus fertéis campos de petróleo, cuja produtividade passou a financiar as ações terroristas da facção. Como corajosamente revelam os diários de Samer - pois o mero registro dos fatos na cidade fazia dele um sério candidato a ser decapitado em praça pública -, o Daesh impôs à cidade um fundamentalismo religioso extremado, exigindo dos moradores locais uma observância peculiar do Corão. Aos homens, tudo era proibido - fumar, beber, acessar internet, ver TV - e às mulheres, tudo isso e muito mais. Patrulhas femininas, como as Brigadas Khansa, circulavam nas ruas em busca de uma burca mais justa ou uma bochecha de fora. Os homens eram interpelados sobre o comprimento das calças - sua bainha tinha que terminar nos tornozelos - e sobre a que horas tinham rezado, e que parte do Corão tinham lido. Como a resposta, fosse ela qual fosse, nunca satisfazia à vigilância do Daesh, os moradores eram então punidos com uma semana integral de cursos sobre a interpretação da Sharia pelo Daesh. Na prática, exigia-se que fossem re-ensinados no culto do Islamismo, sob as regras do Estado Islâmico - que dizia com isso que a interpretação correta do Corão era a nova, trazida pelo Daesh, e não a até então praticada. E sob o chicote do grupo não havia nenhum espaço para contemporização. Para qualquer delito (incluindo uma mera ausência a uma das aulas dos cursos), a punição podia acabar em decapitação. Muitas vezes, em frente à casa da família. O corpo era deixado crucificado, sem a cabeça, como um lembrete do que poderia acontecer a qualquer um que contestasse as regras estabelecidas. Afora esta observância religiosa, na parte econômica a atuação do Daesh era como a de uma milícia: comerciantes, taxistas e trabalhadores tinham que pagar taxas aos integrantes do grupo. Quem assumiu a arrecadação foi a Zakah, uma antiga organização que deveria ser de cunho beneficiente, mas que se tornou um braço de extorsão dos ocupantes. Além do tributo, as lojas não tinham permissão para um lucro superior a 25% sobre seus produtos, o que comprometeu e inviabilizou a maioria dos negócios, que se viram obrigados a fechar as portas. As mulheres solteiras da cidade passaram a pertencer prioritariamente aos soldados do Estado Islâmico. A namorada de Samer teve o irmão sequestrado, acusado de ser simpatizante do governo sírio, e só libertado após negociação com a família, que deu a namorada do autor em matrimônio para o soldado. Esposas eram exigidas e os casamentos se davam a partir dos 9 anos de idade das jovens meninas, apartadas de seus pais. O nível de fanatismo, aliado ao poder sem limites, era extremo: Samer narra a estória do perturbado Waleed, que se tornou integrante do Daesh, denunciou a própria mãe e a executou em público. Ô loco. Raqqa vivia sob bombardeio sírio e a economia acabou estrangulada. Vivendo em ruínas, os moradores não tinham mais acesso aos hospitais, que se tornaram exclusivos dos combatentes do Daesh. Os amigos de Samer, aqueles com os quais ele tinha vínculos antigos nas ações de protesto contra o governo anterior, vinham sendo então acusados de ativismo pelo Daesh e muitos foram presos e executados. O Exército Livre da Síria era agora inimigo do Estado Islâmico. Além de tudo, o Daesh, de forma suspeita, muitas vezes parecia agir em consonância com o governo. Em um cenário confuso como este, em lugar nenhum a população poderia se sentir segura, sequer em família, porque o Daesh tinha infiltrados em todos os grupos da cidade. Com seus amigos mortos, sem trabalho e com o aviso clandestinamente recebido de que ele próprio estava sob vigilância, Samer resolveu fugir. Antes, fez chegar seus relatos escritos a correspondentes no estrangeiro. Como destacam os editores, a valentia do autor em escrever e enviar seus diários enquanto ainda permanecia na Raqqa ocupada, proporcionou uma perspectiva rara e em tempo real do que acontecia na cidade, sob o domínio cruel do Estado Islâmico. Sua narrativa é pulsante e o traço de Coello contribui para concebermos o panorama surreal de opressão que ele e a população síria experimentavam. As imagens da Raqqa destruída não nos deixam dúvida da dimensão da tragédia. Se o marketing de venda da edição é uma balela, seu conteúdo é legítimo e impactante. Revela muito das práticas do Estado Islâmico e dos grupos terroristas defensores do jihadismo. Como sintetiza o autor: "O Daesh utiliza a religião para encobrir sua criminalidade". Um depoimento para não esquecer.

Globo Livros, 108 páginas 

"Eu, Christiane F., a vida apesar de tudo", por Christiane Felscherinow

"Eu, Christiane F., drogada, prostituída..." foi lançado em 1978. Seu impacto foi tal que mesmo hoje permanece na prateleira das livrarias, quatro décadas depois. Deve estar na centésima edição. E a um preço convidativo: está neste domingo por R$ 26,14 nas Casas Bahia. Você já deve ter lido ou, ao menos, ouvido falar nele (se não, vale a pena comprá-lo, custa pouco mais que um big mac e dá muito mais onda). Eu li, eletrizado, na virada da década de 70. Um pouco mais velho, mas bem menos rodado, do que a depoente do título, uma menina classe média de 13 anos que se prostituía nas ruas de Berlim para sustentar o vício. O livro era mesmo uma pancada. Nos anos pós-movimento hippie, de culto às drogas e ao amor livre, em meio a uma atmosfera ainda psicodélica, ela personificava o papel de uma junkie que ia às últimas consequências contra o sistema. Em um planeta que ainda experimentava os limites da liberdade, o livro achou seu nicho e bateu recordes de venda. Se tornou um clássico da juventude sem meias-medidas. Esta exposição da vida perdida rende até hoje: Christiane F. tem 58 anos e sobrevive há 42 anos dos direitos editoriais da obra, vendida em mais de 30 países e traduzida em 15 idiomas. Ela permanece junkie, mas agora encarna uma mulher de meia-idade dependente do sistema contra o qual colidiu. Despida do glamour rebelde que fez do seu nome um carimbo de desprezo pelas convenções, sua estória parecia ter tido um ponto final muito tempo atrás. Para surpresa de muitos, porém, há sete anos Christiane abduziu seu pseudo-anonimato e lançou um novo livro, descrevendo como administrou a vida pós-hecatombe do sucesso mundial. Assim que foi publicado aqui, me interessou, na minha qualidade de leitor moleque do primeiro livro. Sempre instiga ver como alguém lidou com esta mudança de perspectiva. Imagine: você até ontem era uma guria drogada que vivia como pedinte em um parque público e, da noite para o dia, se torna uma popstar. Christiane, após a divulgação internacional do livro, foi capa de revista e cruzou o Atlântico na primeira classe da Lufthansa. Era aguardada em Nova York e em Hollywood, onde deu entrevistas sobre o filme inspirado em sua vida. Temporariamente uma estrela, passou a conviver com outros nomes badalados. Não é pouca coisa. Indo a um show, diz ela que "embarquei no jato emprestado dos Rolling Stones com David Bowie e toda a equipe. Não havia propriamente poltronas, o espaço era ocupado por enormes camas redondas com lençóis de cetim. Tínhamos um banheiro de mármore em pleno céu. Após aterrissarmos, assisti ao show nos bastidores, com Bowie perguntando se eu estava realmente gostando!" A situação tinha potencial para deslocar o eixo da pessoa mais centrada do planeta. Christiane F., a então ex-drogada, não. De pronto ela percebeu que aquele mundo não era muito a cara dela. "Entre Bowie e eu a coisa nunca passou de papo furado. Preciso reconhecer que nossos encontros eram tão superficiais quanto nossas conversas." Christiane F. não desperdiçou muito tempo nesta nova etapa de celebridade. E, diante da questão que propus há pouco, até onde a nova circunstância mudou sua vida, Christiane mata essa minha curiosidade de bate-pronto: "Vida de merda" é o título do primeiro capítulo deste seu "A vida apesar de tudo". Eu, que li seus únicos dois livros, posso dizer que é um puta poder de síntese. E faço coro com sua opinião sem traço de moralismo, porque me droguei o suficiente na juventude para saber o pântano pegajoso em que um drogado se mete - e sei que dali não é fácil sair. Christiane, que nunca saiu, que o diga. "Na verdade, nunca parei com a heroína. Quer dizer, no inicio, sim. Nos primeiros três meses em Zurich." Após algumas tentativas fracassadas de aproveitar a fama, com uma carreira frustrada de atriz e cantora de rock, ela resolveu mudar de ares. Com o frisson em torno do seu nome já esvanecido, passou um tempo na capital suiça, como agregada de um casal de editores de livros de arte. Era dublê de babá dos filhos do casal e assistente de eventos literários. Christiane poderia aí ter dado um novo rumo à sua vida - o que faria com que jamais houvesse um segundo livro junkie. Mas Zurich foi "meu bem, meu mal" para Christiane. "Zurich era uma cidade pequena e nela circulava muita droga. E um junkie percebe isso de imediato. Então, é claro, precisei ver isso de perto. Em qualquer cidade, é na estação que se encontram os viciados. Não foi dificil achar o parque Platzspitz, perto da estação. Um lugar inacreditável. Nunca tinha visto coisa assim. No Platzspitz tudo se passava às claras. (...) As pessoas se serviam em público, como se fosse um estande de salsichas. Picavam-se ali mesmo, com centenas de pessoas rolando no chão. Muitas tinham o corpo coberto de feridas, outras pareciam mortas. Eram milhões de seringas jogadas fora de qualquer jeito. Parecia um lixão." Christiane parece narrar um laboratório de figuração para o clipe "Thriller", de Michael Jackson. "Centenas de drogados - Drögeler, como diziam os moradores de Zurich - se juntavam nesse parque, que certos dias chegava a reunir três mil deles. (...) Alguns arrancavam as roupas, procurando uma veia intacta no corpo infestado de feridas purulentas. Mesmo no inverno. Picavam-se na virilha ou no pescoço, com as outras veias já inflamadas. Corpos semidespidos ficavam jogados no gramado - azuis de frio, alguns já mortos." Para você ver que esse zoombie park do Primeiro Mundo não ficava nada a dever às nossas cracolândias. Tendo ultrapassado incontáveis síndromes de abstinência ao longo da sua movimentada biografia, neste novo livro Christiane continua perdida e valente. E sempre derrotada pela heroína. A narrativa tem seus altos e baixos, mas cumpre seu propósito. E mesmo quem não leu seu primeiro livro não terá dificuldade em se situar. Ela abre revisitando a infância e os principais momentos publicados na edição dos anos 70. Em seguida narra o ambiente de estrelato em que se meteu após a repercussão estrondosa do livro em todo o planeta. Com apenas 15 anos tinha no banco uma conta milionária, mas não podia tocar no dinheiro. Envolvida com jovens tão sem rumo quanto ela, se manteve dedicada a uma sucessão de oportunidades perdidas, alternando com mergulhos na esgotosfera - incluindo dez meses encarcerada em uma penitenciária berlinense e incontáveis tentativas de se manter afastada da droga. Maior de idade, a montanha de dinheiro à mercê dela no banco não a salvou de uma rotina banal de viciada. Mesmo rica, permaneceu vivendo a vida de antes, e você pode colocar nessa conta momentos de miséria e retorno eventual à prostituição. Há um apelo hippie na sua temporada na Grécia, onde viveu uma love story pra lá de tumultuada com o grego Panagiatis. Seu novo amor virou um relacionamento abusivo e destrambelhado, com viagens de ácido pela Índia e assaltos à banco na Europa. Com o grego fez um dos seus muitos abortos, até que resolveu virar a chave e se tornar mãe. O pai era um rapaz desajustado quinze anos mais jovem. Na nova função materna, Christiane F. se revelou mãe coruja e careta. E, com o filho a tiracolo, ela prosseguiu dando cabeçadas Europa afora, não fosse ela quem é. Já no trecho final do livro, ela capricha no quesito "lambança". Assessorada por um personagem sombrio e mal explicado, um tal de Beckermann, ela raptou o próprio filho e fugiu para Amsterdam. A partir deste imbroglio o relato perde clareza e a compreensão de certas passagens se torna nebulosa. Não sei se a responsável pela falha narrativa é a ghost-writer, Sonia Vujkovic, ou se, também possível, a biografada não forneceu ou mutilou informações. Mas este Beckermann, chamado por ela própria de um mau-caráter que a prejudicou e roubou, tem uma descrição cheia de lacunas. Não nos fica claro como ele conquistou suas prerrogativas - e é também incoerente sua apologia como chefão do crime em Berlim, rebaixando-se depois a atuar como um ladrão barato. O bagulho é confuso. Parece mesmo é que, na sua fuga do serviço de proteção à criança da Alemanha (não esqueçamos que, como viciada, ela tinha que se prestar a normas rígidas de acompanhamento), alguma coisa Felscherinow e Vujkovic esqueceram de contar ao leitor. Por fim, o livro encerra com dois posfácios: o da autora e o da personagem. Vujkovic é convencional e conta como conseguiu a concordância de Christiane para um novo livro. Já o encerramento assinado por Christiane é absolutamente alucinado, com ela se revelando perseguida por fantasmas e por agentes secretos. Os espiões, travestidos de vizinhos, ela reputa à mando da mãe. Inconvenientes, estão em todo lugar onde ela vai e invadem sua casa todas as vezes em que ela sai. Cheguei até a pensar que estes "disfarçados" fossem alguma troça dela com o leitor ingênuo. Nada, era mesmo paranoia explícita e constrangedoramente registrada para a posteridade. A dose cavalar de alteradores químicos de consciência que ela inseriu na corrente sanguínea vieram um dia cobrar seu preço. Pena. A corajosa Christiane F. acabou uma velha perturbada.

Bertrand Brasil, 264 páginas

"Irmãos: uma história do PCC", por Gabriel Feltran

"Irmãos" não é um relato de alcova da vida bandida - como o título poderia sugerir. É um livro sobre negociação e domínio de mercado. Sobre estratégias de liderança e compartilhamento de poder. Sobre um credo, uma seita ou, como o autor prefere, uma loja maçônica. Em suma, é uma obra que pretende mais interpretar a essência e o modus operandi do Primeiro Comando da Capital - o PCC, hoje a maior organização criminosa do país - e menos pormenorizar sua história e seus protagonistas. Nos primeiros dias de 2019, o grupo, aliado a outras facções, vem ostentando seu aparato de violência e praticando seu know-how incendiário contra a população do Ceará. A ação terrorista domina o noticiário e pretende derrubar o novo secretário de Administração Penitenciária. Este, por sua vez, é opositor ferrenho da divisão das cadeias entre as facções, o que levou todas elas a deixarem suas diferenças de lado e unirem-se contra o recém-nomeado secretário linha-dura. Ou seja, a queda de braço no estado cearense, entre o crime e o sistema, continua sem hora para acabar - e é tácito que muitas ações espetaculosas ainda disseminarão pânico entre o resiliente povo local. Para nosso alívio, entretanto, o PCC não aprova a violência gratuita - em tese. Segundo o livro, nenhuma das suas atitudes prescinde de cálculo e sua força provém da execução peculiar do seu conceito de justiça. O autor, Gabriel Feltran, é especialista no tema, tendo já lançado, em 2007, "Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo". Entremeado ao seu descritivo sociológico, o pesquisador defende em seu livro teses profundas e paradoxais. A primeira delas é atribuir à política de segurança do governo paulista a criação das condições orgânicas para o surgimento e organização do PCC. No entendimento de Feltran, a estratégia de combate ao crime do Estado de São Paulo, sob o comando do PSDB (que ele não nomeia, mas que, como todos sabemos, é o partido à frente do governo estadual na última década e meia), proporcionou ao mundo do crime as condições ideais para o desenvolvimento do grupo. Sua premissa é a de que a sucessiva construção de novas cadeias para um volume crescente de clientes incrementou a oferta de combatentes para as fileiras do crime; e as leis gradativamente mais rigorosas contra a massa carcerária favoreceram sua união em torno de um dispositivo agregador. A segunda e mais original de suas teses, contraditória em termos, é a de que a expressiva redução no número absoluto de assassinatos no estado, ao longo de mais de dez anos, não é fruto do sucesso da política de combate ao crime do poder público, e sim da normatização da atividade criminal sob a regulação criteriosa do Primeiro Comando. A terceira e última, relativamente trivial nestas plagas, é a consolidação da Organização como um poder paralelo, por seu avanço na substituição do Estado no fornecimento de serviços básicos, como Justiça, Segurança e Assistência Social. Feltran se dedicou a uma extensa e longeva coleta de dados no campo. Tornou-se íntimo de criminosos e seus familiares (a ponto de ter dirigido para a família de um deles quando de uma prisão imprevista). Decodificou o peculiar universo de códigos da periferia e do mundo marginal. De posse desta massa crítica, o autor traça a linha de crescimento da organização, assinalando seu ponto de partida: "O PCC nasceu na cadeia, um ano depois do massacre de Carandiru. Reivindicava a reação à opressão do sistema contra os presos, mas também do preso contra o preso." Segundo Feltran, "a reforma no mundo prisional paulista dos anos 1990 quadruplicou a população carcerária na década seguinte, impulsionada pela equivalência do tráfico de drogas a crime hediondo, que jogou dezenas de milhares de jovens nas cadeias". Colocando as cartas na mesa com base nos números oferecidos pelo pesquisador, no mínimo vinte mil jovens a mais foram presos, ao redor de dez anos, em virtude do endurecimento da legislação. Isto dá dois mil jovens a mais sob encarceramento por ano, ou seja, pelo menos 6 jovens por dia teriam sido presos, todos os dias, sem exceção de nenhum, por 10 anos consecutivos, por conta destas leis mais estritas. É um número importante, que temo não se confirme - o que, estatisticamente, fragilizaria sua tese, ainda que não a negue. Gabriel prossegue afirmando que, em 2001, a mega-rebelião simultânea em 29 presídios paulistas foi uma inequívoca demonstração de força do PCC, contragolpeada pela criação do RDD, o Regime Disciplinar Diferenciado. A partir daí, no ponto de vista do autor, uma espécie de onda de marketing, quase um merchandising criminal, oriunda da dimensão ampliada do confronto, disseminou a marca PCC por todo o estado de São Paulo. Este reconhecimento entre os  próprios pares fez com que o grupo se fortalecesse pela adesão da população criminosa, voluntária ou não, às regras da organização, às suas empreendedoras políticas comerciais e, acima de tudo, ao seu estatuto (seus parágrafos são ungidos pelo autor ao status de uma constituição, relevante a ponto de ser reproduzida, na íntegra, ao fim do livro). Cinco anos depois, em 2006, Gabriel destaca que "ataques coordenados na periferia de São Paulo somaram-se a rebeliões em mais de 80 prisões e que dezenas de policiais foram assassinados em uma só noite". Diz ainda que a resposta policial foram 500 homicídios em uma semana. Nesta no mínimo estranha conta de chegada - não a reputo mentirosa, equivocada ou inverossímil, mas não me furto a avaliá-la estranha -, a partir deste momento, por conta de um acordo não escrito, mas praticado, envolvendo as sintonias do PCC, cada um no seu corre e o policiais, "as taxas de homicídio seguiram em queda, atingindo os menores índices do país". Sendo seus números corretos, os homicídios de jovens caíram a 10% do que eram dez anos antes. Simultaneamente, uma grande rede de negócios ilegais seguiu em crescimento acelerado, da venda de drogas aos assaltos, incluindo roubo, desmanche e revenda de veículos (este quesito merece um interessante capítulo à parte, um dos pontos altos da obra, onde Feltran disseca a ampla grade de negócios que inicia na apreensão criminosa do automóvel - a parte mais arriscada e também mais mal remunerada de toda a operação - e irriga revendedores, desmanches, mercado de autopeças, fabricantes, seguradoras e leiloeiros), roubos a bancos e empresas de valores, a mansões, condomínios, caixas eletrônicos etc. Sua conclusão é de que a normatização do crime sob o pulso firme do PCC coibiu drasticamente o número de assassinatos, tirando assim os méritos constantemente auto-promulgados da repressão oficial do estado. O livro traz ainda um constrangedor raio-X do emprego dos advogados na organização, contados na casa dos milhares pelo autor, que explica: "Embora a função do advogado seja garantir o funcionamento rotineiro da Justiça, defendendo seus clientes individualmente, há muitas outras funções que os presos esperam conseguir deles, como levar recados a outras penitenciárias, bilhetes com salves para seus contatos, dinheiro e celulares para os presídios, mas, sobretudo, negociar a partir dos repertórios legais ou ilegais as progressões de pena, as liberações e os acertos financeiros com policiais, promotores, delegados e mesmo juízes, em nome do preso ou da facção." Ele ainda complementa com um depoimento de um dos antigos líderes do movimento, Macarrão: "Sempre o interesse maior nestas contratações de advogados era pela luta e pela defesa dos interesses do crime organizado. Eles são os legais. Onde a penitenciária não tem um telefone celular, tá com dificuldade de visita, quem age é o advogado." É. O professor não se inibe ao descerrar o véu das relações - que me parecem criminosas - entre o presidiário e seu representante legal. Gabriel tem mesmo uma visão bastante generosa quanto à ilegalidade. No caso específico do roubo de carros, onde não raro a cena do crime inclui violência e morte - falamos aqui de brasileiros inocentes, famílias em passeio, trabalhadores em deslocamento - o autor não se faz de rogado em legitimar o destino final dos veículos, sob a perspectiva das necessidades econômicas estrangeiras: "De tempos em tempos, Paraguai e Bolívia realizam regularizações de carros brasileiros rodando em seus territórios. Cada país defende sua economia como pode." Já eu acho que não pode. Nesta e em muitas outras circunstâncias resta evidente o quanto o universo do crime e das máfias que o controlam é sedutor para Gabriel Feltran. Pessoalmente, dou um desconto. Escritores ou não, somos seres humanos, boa parte de nós movidos a paixão. É isto que nos motiva e incendeia. Feltran se deixa legalmente incendiar por organizações ilegais que incendeiam ônibus e vans escolares. Ainda que compreensível, talvez este seu fascínio contamine o texto além do recomendável, embora o autor se afirme isento, ressaltando que "não busca julgar o que faz um ou outro lado da contenda". Não me pareceu. Mas leia você o livro - cujo conteúdo é uma matéria-prima e analítica singular, com bons momentos, aos quais acrescento aqui sua visão das correntes migratórias que alimentaram a periferia paulistana - e dê sua própria opinião. Preciosa é também a presença do dialeto dos seus entrevistados, com seus sintonias, salves e corres. Exemplifico com uma frase do estatuto, "numa sintonia, os disciplinas de cada quebrada devem conhecer todas as biqueiras locais", que, livremente traduzido, eu transcreveria "em um determinado controle circunscricional do Comando, os responsáveis autorizados de cada bairro/região devem conhecer todos os estabelecimentos de comércio ilegal da localidade." Há diversas outras expressões curiosas, como viajar a Miami (quando alguém é morto a mando de outrém), talaricar um irmão (ter relações sexuais com uma cunhada, como são chamadas as mulheres dos irmãos), a cebola (contribuição mensal devida à organização), o já mencionado corre (a especialidade no crime, a rotina criminosa) e a caminhada (a história de atitudes de cada um, que oferece a reputação do sujeito no crime). A linguagem, esta sim, me fascina. Mas voltemos ao crime, ou, melhor dizendo, ao tema da obra. Embora o autor não tenha economizado nos dados estatísticos, não foram suficientemente incontroversos para que eu endosse sua principal tese, a de que a gestão do PCC é a responsável determinante pela redução de crimes em São Paulo. A meu ver, faltaram subsídios para assegurar sua teoria - possível, mas não provada; razoável, mas não evidente. Reduzidos, seus argumentos se reproduzem demasiado. Sem oferecer conteúdo complementar, Feltran a cada quinze páginas se repete, como se fosse um clipping de textos antigos seus sobre o mesmo assunto. Em uma organização sequencial e ininterrupta como ondas vindo dar à praia, o autor exalta o proceder e o estatuto do Primeiro Comando. O pesquisador deixa de lado as diversas realidades e confrontos que poderiam negar sua tese principal, como a sublevação interna, a existência de áreas fora de controle, o crescimento de grupos rivais, as reações da política de segurança, as conveniências de cada área periférica etc. Mais que tudo, na visão de Gabriel Feltran, o Primeiro Comando da Capital está na posição privilegiada que ocupa por ser defensor de um superior código moral de justiça. Nele não há chefes ou interesses pessoais. A gestão é compartilhada por mérito. O uso da força é reprimido e aplicado somente em necessidade extrema, mas sempre sob a ótica do que é justo. Todos têm a mesma importância e igual acesso à proteção e à justiça. Visto assim, parece mesmo a descrição do mundo ideal. Digo mais: este mundo do crime descrito pelo autor está espiritualmente muito acima do ambiente mundano em que vivemos no dia a dia. Mas, por outro lado, é um mundo em que a pena de morte é banal, em que o acesso à plena defesa é restrito e onde as penas são executadas imediatamente após a decisão colegiada. É um mundo que extrai sua sobrevivência da subtração violenta do conquistado pelo esforço alheio. Que tem uma política assistencialista, característica da pior política praticada no Brasil nas últimas décadas. Que tem uma filosofia militarizada, como prescreve o artigo 11 do seu estatuto: "Toda missão destinada deve ser concluída", equivalente ao estigmatizado "missão dada, missão cumprida". Eu, particularmente, acho a nossa sociedade, a legal, eivada de equívocos e injustiças. Mas esta versão admirada por Feltran não me parece muito diferente nos defeitos. Talvez alguns ainda não tenham vindo à luz devido à relativa pequenez deste novo sistema paralelo, mas o inevitável inchaço deste dragão justo e criminoso levaria a disputas intestinas de poder idênticas às do congresso, das prefeituras, das estatais etc. Em miúdos, mesmo em uma extremada utopia, onde o novo regulamento do crime se imporia e substituiria primeiro a polícia legal, e depois a própria administração social, o resultado final acabaria na vala comum. Respeito a caminhada e o corre de Gabriel. Mas divergimos de paixão, o que é da natureza individual. O que não resta dúvida é que os veículos incendiados no Ceará nos aproximam mais da África do que da Escandinávia.

Companhia das Letras, 318 páginas