"Milicianos", por Rafael Soares

sábado, setembro 07, 2024 Sidney Puterman


Hoje é Sete de setembro. Dia da Pátria. Dia do desfile das Forças Armadas. Canhões, tanques, mísseis. Ícones anacrônicos, né? Porque no mundo real não existe a ameaça de inimigos externos. O inimigo armado vive dentro do país. Financiado pela receita do tráfico, comanda batalhões de marginais, imiscuídos na periferia das grandes cidades. As forças que os combatem são as policiais.

A PM, a Civil. O problema é que este "combate" é de mentirinha. É para inglês (ou carioca) ver.

Este é o livro: "Milicianos" disseca o envolvimento das forças policiais do Rio de Janeiro com o crime organizado - o tal que deveriam combater. Desnuda sua infraestrutura, dá nome aos bois e, de brinde, redige pequenas biografias de notórios ex-policiais que se bandearam para o lado do crime.

A sociedade - em sua maioria formada por comunidades pobres - é vítima desta perversa contradição.

O jornalista Rafael Soares demonstra como o Estado provê e financia a formação de criminosos, dentro das suas próprias fileiras. Explica como profissionais destemidos, bem preparados e que não hesitam em arriscar a própria vida, trocam um cargo mal-remunerado (de paladinos) pela bem mais polpuda ocupação de capangas de bandidos - ou bandidos eles mesmos, sem intermediários.

O texto, direto, nos apresenta a milícia, o tráfico e os bicheiros como artérias que irrigam a vasta rede criminosa da cidade (que vem sendo tema de uma ampla série de matérias de página dupla no jornal O Globo, assinadas pelo próprio autor deste livro). O conteúdo é relevante e o jornalista é corajoso.

Volta e meia espoca nas redes sociais um boato inverossímil sobre guerras hipotéticas. Contra a Argentina ou a Venezuela. Estórias da carochinha. Nossa guerra real acontece nos subúrbios, nos morros e nas vias expressas. Brasileiros contra brasileiros. O Estado (a força policial) contra o exército paralelo (as quadrilhas). Só que tudo junto e misturado.

"Brasil/ mostra tua cara/ quero ver quem paga/ pra gente ficar assim", já cantava Cazuza nos anos 80.

Soares nos conta das entranhas da polícia e do crime. A mineira, os adidos, os espólios. Seus protagonistas são Falcon, Pereira, Curicica, Lessa, Adriano, Batoré, Mad, Tonhão, gente continuamente na linha de tiro (tanto que quase todos os mencionados já não estão mais entre nós).

Porém, antes de me estender aos bandidos de carteirinha, quero abrir um parênteses. Porque há os espertalhões que se aproveitam do filão, lucram com essa guerra interna, mas estão sempre fora do alcance das balas. E, entre eles, um pequeno personagem ("pequeno" sob a ótica do crime, porque nunca esteve sob fogo e nem trocou chumbo com ninguém) me chamou a atenção.

Um político local, veemente, à época do boom das milícias pouco expressivo, colado a um nicho do eleitorado - o ex-militar Jair Bolsonaro. Como um parasita dos agentes policiais envolvidos com o crime, o político, do baixo clero, lhes oferecia pequenas vantagens e homenagens duvidosas.

Em troca, aumentava seu cacife eleitoral e se inflava com a proximidade dos meganhas de quem puxava o saco. Curioso como, usando apenas a garganta e sem nunca colocar o dele na reta, poucos anos depois o político chegou a presidente, enquanto seus aliados de primeira hora mofavam na cadeia ou pediram a conta e e se mudaram, encaixotados, para o cemitério.

Jamais esteve sob perigo, exceto quando um demente - não um bandido - aproveitou um ajuntamento e lhe esfaqueou a barriga. A partir daí, gato escaldado, o costurado Jair poderia esquecer a cueca, mas jamais o colete à prova de balas. Dizem os mais cascudos que a maioria não se deixa intimidar tão facilmente. Não foi seu caso.

Verdade é que, no livro, Bolsonaro é coadjuvante de segunda linha. Dei mais exposição a ele aqui por razões "patrióticas". Os outros morreram. E pegavam muito pouco dinheiro do Estado (ao menos, não diretamente). Não se pode dizer o mesmo dos Bolsonaro e dos demais políticos.

Como já dizia a nossa avó, tudo farinha do mesmo saco.

Mas reitero que o livro não dá a nenhum político o protagonismo que dei aqui. A obra é sobre gente que passou a vida debaixo de bala, emboscando e sendo emboscada.

No desdobramento do texto, diversos casos de assassinato por encomenda são enumerados. É quando o autor conta do Escritório do Crime, uma prestação de serviços ilegal, especializada em matar gente em troca de dinheiro. Segundo Soares, algumas mortes chegavam a custar um milhão e meio de reais.

A "descoberta" pública do tal escritório pela polícia demorou dez anos. Durante esse tempo, um grupo profissional de pistoleiros, comandado pelo ex-PM Adriano da Nóbrega (semana que vem falo dele), matou por encomenda no Rio de Janeiro sem que a polícia tivesse investigado um único crime que apontasse para a sua existência. Todo mundo sabia do Escritório. Menos os agentes do Estado.

E ressaltando que o bando só foi descoberto na esteira das investigações do caso Marielle - que, por sinal, não foi morta pelo grupo, e sim por um free-lancer audaz e talentoso, o Ronnie Lessa.

Todos milicianos.

Outra grande estrutura criminosa na cidade do Rio é também escalavrada por Soares. A Liga da Justiça. Uma ironia tipicamente carioca. Bandidos assumindo a identidade de super-heróis. Neste caso, o batismo do grupo se deu, segundo o autor, pela presença na milícia do Batman e do Robin. Stan Lee deve ter virado no túmulo. 

Enquanto isso, o morador gira no espeto, como frango de padaria, com a cachorrada de olho.

É o que resta. Vivemos no Estado do Rio de Janeiro, aprazível região que já tem por tradição hospedar seus governadores na cadeia. Pena que por períodos curtos, tipo Airbnb. A exceção foi o Sérgio Cabral, que fez um contrato mais longo, de 30 meses, renovável. A temporada só acabou quando o Gilmar Mendes autorizou. Nada como o STF para soltar alguém.

É um estado onde delegados, chefes de polícia e comandantes de batalhão se acostumaram a ir em cana. Efeitos colaterais das práticas de comércio ilegal. A grana corre e o crime impera. A droga enriquece e financia os traficantes. A exploração das comunidades financia as milícias. Uma parcela da Justiça é azeitada pelo crime organizado. O lucro, gordo, suborna as autoridades. 

O atual governador do Estado do Rio, Claudio Castro, foi alvo de filmagens recebendo propina (enquanto ainda era vereador). É réu em diversos processos de corrupção. Sintomático que não tenha currículo ou representatividade política para ser governador. Sequer carisma ou poder de oratória. É um fruto do acaso. Era vice, o antigo governador foi afastado, ele assumiu. Depois foi (re)eleito em primeiro turno pela população do estado. O povo e sua sabedoria contumaz.

Castro costuma se manter na sombra. Só aparece quando inevitável, para balbuciar algum lugar-comum. A pronúncia é embolada pela língua engrolada, difícil de entender. Em 23 de outubro do ano passado, frente à queima de 35 ônibus a mando dos bandidos, o governador Castro soltou esta pérola: "Que o crime organizado não ouse desafiar o poder do Estado".

Quem?? A fala em si já é um desacato. Ele não falou isso na Finlândia. Falou no Rio.

Há quem diga que o governador é um fantoche do crime organizado. Esta semana ele trocou mais uma vez o secretário de Polícia Civil. Exonerou o quarto e nomeou o quinto. Dizem que ele atendeu a um determinado grupo. Eu não sei. Só sei que um povo que elege seus próprios algozes para tomar conta do governo é um povo fragilizado. Exposto.

Em suma, "Milicianos" é o raio-X da falência do Estado. E a radiação alcança todo mundo.

Não importa o teatrinho governamental. A população está em maus lençóis. Sejam os soldados do tráfico, saídos das famílias numerosas de mães solteiras, sejam os maus policiais, funcionários públicos que se aprimoraram na arte de matar, o povo está sitiado pelos bandidos e enquadrado pelos políticos. Crédulo, se auto-engana, dizendo a si mesmo que as nossas instituições são sólidas. 

São não. Elas são como uma cidade cenográfica. É tudo fachada.

O livro de Rafael Soares revela o que se esconde por trás dos panos. E, além disso, é um testemunho capital sobre um período negro da história do país. Justo este em que vivemos. 

Editora Objetiva, 317 páginas  |  1a edição, 2023

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: