"Zygmunt", por Isabel Mauad e Zyg Filipecki

domingo, setembro 01, 2024 Sidney Puterman


"Felicidade era quando não acontecia nada."

Hoje, há exatos 85 anos, a Polônia estava sendo invadida pelas tropas alemãs. Embora tenha sido uma invasão anunciada pelas sistemáticas ameaças de Hitler, foi uma operação dissimulada. Os invasores armaram um teatro patético para simular que reagiam à uma agressão.

Bem típico do caráter nazista.

Milhares de civis morreram. Em um átimo, as forças armadas polonesas foram dizimadas. A Polônia foi ocupada pelos alemães, apenas vinte e um anos depois de ter reconquistado a soberania perdida por quase um século e meio. O povo fugiu em direção ao Leste. Fugia dos bárbaros.

Tinha início a Segunda Guerra Mundial. A carnificina duraria seis anos.

Um garoto polonês chamado Zygmunt Filipecki estava entre os que fugiram dos boches. Com 15 anos, escoteiro, acompanhara os preparativos militares da Polônia. Havia enorme confiança na capacidade do exército polonês, que se acreditava um dos melhores do mundo. Ledo engano. 

Como narrado em pormenores no imprescindível "Estado Secreto", por Jan Karski (veja aqui no blog), os poloneses se prepararam para uma guerra do século XIX e foram atropelados pela blitzkrieg do século XX. Foram mortos. Os sobreviventes foram feitos prisioneiros. Alguns escaparam.

Na confusão que se instalou, o menino Zygmunt se separou da família, se aliou à Resistência e queimou uma aldeia, com as pessoas dentro. Para recuperar o dinheiro do pai, voltou à região ocupada pelos alemães. Na volta, foi preso pelos russos e condenado a trabalhos forçados na Sibéria. Não é pouca coisa para quem mal entrou na adolescência.

Com o corpo fechado, Zygmunt passou por tudo sem que lhe acontecesse nada. Permaneceu prisioneiro até os nazistas invadirem a União Soviética. Livre, se juntou ao exército polonês reunido no Uzbequistão, treinado no Irã e despachado para o Iraque, daí rumando para a Palestina.

E o cara era apenas um moleque.

Com o fim da guerra, se tornou marinheiro e viajou embarcado para a Bélgica, Holanda e Inglaterra. Lá conheceu poloneses que lhe falaram do Brasil. Largou mão da relativa segurança de refugiado no Reino Unido e veio tentar a sorte no Rio de Janeiro. Um ilustre desconhecido, foi recebido com carinho pelos cariocas (somos assim) e se maravilhou com Copacabana. Não era pra menos.

Encontrou aqui seu lugar no mundo. Depois de Niterói, foi viver em Santanésia e acabou em Teresópolis. O livro é um compilado de entrevistas desse sobrevivente de guerra, feitas mais de meio século depois, conduzidas pelo próprio filho e pela nora, a editora Isabel Mauad. 

Nada poderia ser mais despretensioso e autêntico. Um relato descontraído em primeira pessoa, posto de pé com a devida contextualização histórica. Uma narrativa coerente. Encaixa e preenche o que é do conhecimento dos acadêmicos. Um enviado anônimo ao passado, sofrendo, ao lado da multidão da época, os efeitos da História.

Este pequeno e valente personagem da guerra se tornou autor de uma vasta prole brasileira. Produziu uma descendência volumosa de brasileirinhos: oito filhos, 16 netos e 11 bisnetos.

E que depois de enfrentar os desafios mais escabrosos como quem chupa um Chicabon, filosofa.

"Você não pode deixar de pensar que dormiu no chão, no piso do trem, no caminhão, com fome e com frio", rememora. Nunca mais voltou à Polônia. Satisfeito, reflete: "E hoje, ao me deitar, vejo a roupa de cama trocada, limpinha, lençol bom, travesseiro..." Tornou-se mestre da simplicidade.

"Felicidade era quando não acontecia nada."

É isso. Um texto que reúne as piores e as melhores coisas da vida.

Editora Mauad, 129 páginas  |   1a edição, 2013


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: