"O desconforto da riqueza", por Simon Schama

quarta-feira, agosto 21, 2024 Sidney Puterman


O título, "O desconforto da riqueza", é uma frase de efeito. Boa sacada. Mas não se engane. É o subtítulo - "A cultura holandesa da época do ouro" - que revela do que o autor se propõe a falar.

O tema de Simon Schama é a Holanda. Ou a Nederland, o nome "verdadeiro" do país.

Vale uma digressão. "Holanda" é, na verdade, o nome de apenas uma das regiões da Holanda. Lá eles se autodenominam "Nederland", ou "Países Baixos". Mas mesmo eles sabem que a maior parte do mundo os chama de "Holanda". Donde até o site de turismo do país é... www.holland.com.

Em holandês (nederlandês?) o nome oficial do país é Koninkrijk der Nederlanden, e em inglês é The Netherlands (com o "The" no início, "th" ao invés de "d" e um "s" no final). Mas "Holanda" nos atende bem. Pior seria se Portugal tivesse aportuguesado o nome e mandado um "Nederlândia".

Escapamos dessa.

Confesso que sempre fui fã da Holanda. Do romance juvenil "Patins de prata", à Dickens, que li quando guri (escrito por uma americana!), à arrebatadora laranja mecânica de Johann Cruijff, passando pelos diques, pelo holandês voador e pelos moinhos, tudo sobre o país me fascinava.

Quando, há nove anos atrás, pus meus pés em Amsterdam, mal acreditei. Uma semana foi pouco. A partida foi abrupta, no meio da madrugada, e me traz lembranças tristes demais - por razões que guardo no coração e as sabe bem quem me conhece. 

Só que quando eu comprei esse livro, na primeira metade dos anos 90, eu não tinha saído do Brasil uma vezinha sequer. OK, tinha ido a Puerto Stroessner, no Paraguai, e a Libris, na Argentina. Mas eram ambas cidadezinhas fronteiriças dos estados do Paraná e do Rio Grande do Sul, com mais lama do que asfalto. Não dá para chamar aquilo de "viagem internacional" sem que alguém caçoe.

E, pior, fui num microônibus mequetrefe, na insólita condição de passageiro "extra", em pé, dividindo um assento no trajeto e sem direito a hotel na chegada. Eu e um amigo de infância topamos essa. Dormimos por quatro noites no chão do ônibus em Foz do Iguaçu. Que roubada.

Mas, perrengues periféricos à parte, o tema aqui é a Holanda e sua riqueza seiscentista.

Eu comprei a edição, em capa dura, impressa em 1987, numa livraria da Praça Saenz Peña. Fui com Aninha e nosso terceiro filho, ainda bebê, para uma consulta médica. Esses atendimentos sempre demoram e eu tinha esquecido de levar algo para ler na salinha apertada.

Sem um livro, qualquer sala de espera é insuportável (imagina agora, com os onipresentes aparelhos de TV sintonizados num "não vale a pena ver de novo", um lixo sonoro incontornável).

Desci e dei um rolé pelas prateleiras da livraria da esquina. Vi o título provocativo. Pô, riqueza não dá desconforto, falei com meus botões. O que deixa a gente desconfortável é a falta dela. Pronto. Essa provocação, somada à minha antiga atração pela Holanda, me fizeram comprar o livro.

A questão, porém, é que eu mal subi pro consultório e o médico convocou a gente para entrar. Nem deu para abrir o tijolaço. Na volta, conformado, pus o livro na estante. Tinha outros na frente para ler. E aí os anos foram passando, outros livros se mostraram sempre mais momentosos, mais insinuantes, mais apropriados, e a riqueza desconfortável dos holandeses foi ficando para trás.

Passaram-se quase trinta anos. E, enfim, encafifei e puxei o livro pra mão. Antes tarde...

E já adianto que, bem mais do que a riqueza alardeada na capa, o que impressiona o habitante do século XXI ao se enfronhar na Holanda do século XVII é a complexidade e a sofisticação da sociedade urbana holandesa de quatrocentos anos atrás. Que civilização, senhoras e senhores.

Nós, moradores de um país que na mesma época dispunha de uma meia-dúzia de vilarejos litorâneos salpicados ao longo de uma costa continental (alguns deles invadidos de forma bárbara por estes próprios holandeses, sobre o que falaremos mais à frente), ficaríamos estarrecidos com as filigranas - modernas até para os dias atuais - da estrutura sócio-cultural neerlandesa.

Devemos o nosso deslumbramento ao autor. Schama investiga e se estende, de forma minuciosa, por centenas de páginas, escalavrando as mais recônditas nuances do espírito holandês. 

A primeira característica destacada é a tenacidade dos habitantes locais, migrantes de outras regiões europeias, que se estabeleceram em uma região pantanosa e salobra. O buraco lá era mais embaixo.

Você sabe, né? Os Países Baixos ("Nederland") não têm esse nome à toa. Suas terras ficam abaixo do nível do mar. Eram recorrentemente inundadas, tornando-se imprestáveis para a agricultura e, consequentemente, para a fixação do ser humano à terra.

Bem, não para os caras que resolveram fincar raízes naquela terra alagada. Só isso já demandava um tipo de gente industriosa e resiliente. Um pessoal duro na queda. E que, para serem vitoriosos sobre um habitat hostil, tiveram que priorizar o esforço coletivo. Não dá para vencer sozinho a força das marés.

Nem sempre venceram. Grandes tragédias e inundações marcam a história da Holanda. E é justamente este um dos principais pontos do autor. Como a luta contra o avanço letal das águas do oceano forjou o caráter e a cultura holandesa.

Segundo escreveu no século XIX o historiador nacionalista Robert Fruin, "as lembranças de inundações épicas no final da Idade Média, transmitidas às gerações seguintes na forma de folclore escrito e oral - fábulas, baladas, contos de fada -, condicionaram os holandeses do século XVI a considerarem-se sobreviventes predestinados e abençoados do dilúvio". 

Ou seja, os habitantes locais, em uma época de extrema religiosidade, logo se viram espelhados na narrativa bíblica, e isto criou um circuito de retro-alimentação: as inundações reforçavam seu fervor religioso; e a moral coletiva via nas inundações uma prova destinada a esculpir o perfil do povo, à feição dos contemporâneos de Noé e das tribos de Abraão.

Sintomático que os holandeses do século XVI gostassem de enxergar a si mesmos como um povo do Velho Testamento. Já o povo real do Velho Testamento, isto é, os judeus, eram admitidos na cultura holandesa sob uma série de restrições (ainda que a Holanda fosse talvez o país europeu mais receptivo aos judeus, à época).

Como assinala Schama, "a absorção dos judeus na cultura holandesa esbarrava em limites colocados com maior ímpeto pelos ministros da Igreja Calvinista". Segundo o autor, "paradoxalmente, o gosto da Igreja em definir seu rebanho como hebreus renascidos não a predispunha a ver com bons olhos os judeus reais".

Bem, esta é uma contradição global que se estende até o dia de hoje. Seria apenas uma nota curiosa de rodapé, não fosse o número de mortes que produz.

E o espírito "hebreu" dos holandeses não se restringe à sua devoção ao Livro. O desenvolvimento mercantil e financeiro deste pequeno país (característica comumente associada à comunidade judaica) foi a chave que o conduziu a liderar o comércio mundial, em constante disputa com os ingleses. E não só com eles.

O reino francês e o reino espanhol foram adversários frequentes da Holanda durante mais de um século. Ao mesmo tempo em que queriam paz para comerciar, precisavam lutar para manter sua soberania. Os charcos que antes ninguém quisera passaram a ter valor. Em ouro.

Os portugueses foram rivais circunstanciais. Se no Brasil vemos os holandeses do século XVII como terríveis algozes, Simon chama de aventura deficitária as incursões holandesas em nossas plagas.

Um erro estratégico.

Em "O trato dos viventes", Luiz Felipe de Alencastro mostra de forma muito mais detalhada as questões bélicas e comerciais envolvendo a Holanda, Pernambuco, Bahia, Portugal e Angola.

Schama realça também como os holandeses estavam à frente do seu tempo na questão do direito individual. Em uma época em que a mulher, no mundo inteiro, não passava de acessório da figura masculina, salvo exceções, na Holanda ela já ia à Justiça exercer seus direitos, em pleno Seiscentos.

A auto-imagem que os holandeses possuíam de si mesmos contribui para entendermos melhor o espírito local. Nos idos do século XVII, o historiador Romeyn de Hooghe descreveu assim a República, em seu Spiegel van Staat der Verrenigde Nederlanden ("Espelho do Estado dos Países Baixos Unidos"): "De longe a mais louvável; o Estado mais livre e seguro que já se conheceu".

De Hooghe enfatiza que "as diferenças entre estas terras e outros Estados europeus são singularíssimas". Se nos demais "a glória repousa num espetáculo exterior de bandeiras; aqui, no estilo das famílias prósperas e simples; alhures, é honroso esbanjar dinheiro; aqui, é honroso não ter dívidas".

Por este último, dá para ver que nós, brasileiros, somos bem pouco holandeses. Eles valorizam mais a prosperidade do que a aparência dela. Mas não só por aí. Em seu ponto de vista, os holandeses tinham um "corajoso espírito de oposição a um poder soberano concentrado em uma só cabeça; em seu respeito ao comércio e não à nobreza; em sua aversão à superstição".

Falando dos gêneros, julgava que "as mulheres holandesas eram trabalhadeiras, ciosas do lar e castas"; enquanto os homens eram também "trabalhadores, frugais nas despesas e escrupulosos no cumprimento das suas obrigações contratuais".

O texto de De Hooghe é de quatrocentos anos atrás. Mas é simbólico na convicção com que identificava as características do próprio povo em oposição ao seu vizinho francês, que passou a desejar o território dos Países Baixos depois que, após mais de um século, a população local conseguiu converter as terras inundadas em terreno fértil. 

Já os franceses, por sua vez, não eram tão generosos na avaliação do lugar. "A Holanda é um país no qual o demônio do ouro está sentado num trono de queijo e coroado de tabaco", escreveu Claude Saimaise, um francês radicado em Amsterdam, cuspindo no queijo que comia.

"O cheiro da Nederland era o cheiro de tabaco", reconhece Simon. Um viajante francês de nome Grosley reportou ter contado trezentos fumantes em uma única estalagem modesta de Rotterdam. Estrangeiros se diziam repugnados por verem mulheres "soltar fumaça por entre os dentes enegrecidos pelo alcatrão".

O filósofo e escritor francês Denis Diderot não deixou por menos, nominando os holandeses como "alambiques vivos, que na verdade destilam a si mesmos".

O autor admite que as críticas procediam. Comia-se muito, e bem. Os caras inventaram o waffle. Bebiam bem. "O gosto coletivo pelo fumo e pela bebida era notório, em todos os níveis da sociedade", reconhece Simon.

Cada povo com suas idiossincrasias. O autor não se furta a listá-las. São características relevantes de um perfil complexo. Mas que não empanam - ao contrário, humanizam - a capacidade do batavo em construir uma sociedade ímpar, que, à medida em que progredia acima das demais, questionava a si mesma.

"Na República holandesa, a desproporção entre a magnitude da riqueza e os limites dos recursos demográficos e territoriais provocavam bruscas mudanças de humor, indo da euforia à ansiedade", elabora Schama. "Seus grandes problemas - como ser forte mas puro? como ser rico mas humilde? - eram por definição insolúveis".

A compreensão desta personalidade peculiar levou o historiador a escrever uma enciclopédia de quase setecentas páginas, em letra miúda e entrelinhamento estreito, numa fonte que não favorece a leitura. Pesquisando no Google, vi que não houve uma segunda edição. Esta que tenho em mãos só existe disponível nos sebos.

E há que registrar que o texto de Simon Schama já não encaixa no produto editorial moderno - com vantagem para este último. Fosse posto hoje no mercado, teria que ser reescrito, para adaptar-se aos padrões atuais de storytelling. Como narrativa, apesar da substância, é um produto obsoleto.

É isso que dá esperar trinta anos para ler um lançamento.

Companhia das Letras, 683 páginas  |  1a edição 1992  |  Copyright 1987 | Trad  Hildegard Feist
Título original: "The embarrasment of riches. An interpretation of Dutch culture in the Golden Age"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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