"Estrela solitária", por Ruy Castro

sábado, dezembro 28, 2024 Sidney Puterman





"Estrela solitária", a história de Garrincha, é a mais célebre biografia do mais renomado biógrafo brasileiro, Ruy Castro. Um best-seller. A edição completa 30 anos de lançamento agora, em 2025.

Eu a devorei assim que foi publicada, em 1995, ano em que o Botafogo foi campeão brasileiro. Sem atinar para a data, resolvi relê-la agora. A feliz coincidência se repetiu. E em dobro, oba.

Não sei se você percebe o que têm em comum 1953, 1995 e 2024. Vamos amarrar essas pontas.

Porque quem pensa que o que aconteceu agora há pouco, em 30 de novembro, no Monumental de Nunez, em Buenos Aires, e em 8 de dezembro no Nilton Santos, no Rio de Janeiro, não tem nada a ver com o acontecido no estádio de General Severiano, em Botafogo, em 19 de julho de 1953 (o dia da estreia de Garrincha pelo profissional alvinegro), não está juntando lé com cré.

São datas siamesas. Garrincha em General e Luiz Henrique no Monumental. O índio de Magé e o africano do Carangola. O fulniô e o mina. Guardaí. A gente vai ver isso mais pra frente.

Vamos antes falar do Bairro. Dos bairros, aliás. Das rixas e dos apaixonados.

Botafogo e Flamengo são mais que bairros vizinhos - são rivais centenários. Na sua birra mútua, no orgulho de um e na soberba do outro, são irmãos que não se suportam. E coube a Ruy Castro, mineiro de Caratinga e rubro-negro fanático, escrever a biografia definitiva do mais fascinante jogador de futebol da história. Um ET. Um fora-de-série que despontou em e no Botafogo - a alguns quilômetros do bairro do Maracanã, onde biógrafo e biografado tiveram seu primeiro encontro.

"Num remoto domingo de novembro de 1958, vi Garrincha pela primeira vez, no Maracanã, no jogo Botafogo 3x2 Flamengo", recorda Ruy. "Foi quando descobri, olhando para dentro de mim mesmo, que até os mais ardentes torcedores do Flamengo também eram Garrincha de coração".

Seguiram carreiras distintas, o jogador e o jornalista. Ambos tiveram problemas sérios com a bebida, mas o escritor conseguiu superá-los - ainda bem. Garrincha naufragou nos anos 60. Já Ruy nos anos 70 e 80 se tornou um dos maiores jornalistas do Brasil. E, melhor, se aventurou nas biografias.

O bom é que o talento que Castro já tinha, e de sobra, subiu um degrau e virou expertise. Se antes biografara a Bossa Nova (do tricolor Antonio Carlos Jobim e do vascaíno João Gilberto), lá do bairro do Leme, e as agruras do tricolor Nelson Rodrigues - que, quase cego, comentava os jogos -, a biografia do ponta botafoguense Manoel dos Santos, de Pau Grande, é a joia da coroa. 

Baita coroa. Ruy virou o biógrafo por excelência. Li todas as suas obras-primas. As já referidas "Chega de saudade" e "O anjo pornográfico" (pretendo reler ambas), e também "Ela é carioca", "A noite de meu bem", a inigualável "Carmen" e tantas outras. Ruy não é ponta, mas dizimou a concorrência.

Feitos os salamaleques, vamos pro gramado. A figura de Garrincha é cada vez mais lendária. Nos dois sentidos. Como as lendas, o tempo lhe fez maior - para a parcela alvinegra da população, que o enaltece. Também para os sobreviventes (cada vez mais raros e caquéticos) que o viram jogar. 

Mas esta lenda, tão distante no tempo, fez de Garrincha uma sombra difusa, quiçá uma invenção botafoguense. Somente seus torcedores o exaltam. Os demais, por ignorância ou clubismo, o reduzem. O passado escoou ralo abaixo. Messi, CR7 e Neymar ascenderam ao Olimpo do futebol. 

Os feitos de Garrincha perderam substância e migraram para o folclore. As listas de grandes jogadores e grandes seleções de todos os tempos, seja no Brasil, seja no exterior, costumeiramente ignoram Garrincha. Como se ele fosse o Curupira. Como se ele não tivesse ressignificado a camisa 7. 

Para contrariar os desmemoriados, os estúpidos e os negacionistas, há registros da Copa de 1962. Há o filme "Garrincha, a alegria do povo". Para a ira incontida dos parvos, nelas se vê um mulato de pernas arqueadas destruindo todos os adversários do Brasil. Eu disse todos. 

Garrincha, em seu solo final, aos 29 anos, metaforicamente sozinho, conquistou o bicampeonato mundial para a Seleção Brasileira. Os grandes jornalistas e as testemunhas históricas enfatizam que somente dois jogadores em todos os tempos cometeram tal proeza. Garrincha e Maradona.

Mas alto lá. Há entre os dois feitos acachapante diferença. O do rapazola de Pau Grande foi duplo.

Porque o ponta-direita do Botafogo já havia feito isso na Copa anterior, a de 1958. Tudo bem que fora secundado por Didi e Pelé, dois gênios. Mas ele não só fora campeão mundial, como foi, senão o mais importante, um dos três nomes mais determinantes para a primeira conquista.

Foi Garrincha, o cachorro caramelo, que aboliu para sempre o complexo de vira-lata que assombrava a auto-estima do torcedor brasileiro. Que desde a tragédia da Copa de 1950 passara a acreditar que a miscigenação, o excesso de sangue negro, tivesse corrompido a alma do cidadão nacional.

Manoel (Francisco) dos Santos, um semi-analfabeto descendente em linha direta dos índios fulniô, um alcoólatra ingênuo e mulherengo, resgatara definitivamente a confiança do brasileiro. Ê Brasil.

E não fez isso somente uma vez. Fez duas. A segunda, repito, fez sozinho.

O caboclo se tornara bicampeão mundial. Conduzira um time de veteranos para uma segunda Jules Rimet consecutiva. Ao lado de seus companheiros do Botafogo, escrevera para sempre o nome do Brasil na história do futebol. Épico. Vitorioso, o país seguiria de vento em popa. Já o matuto Manoel...

De 1962 em diante, Garrincha rumou para a irrelevância e para o gradativo esquecimento. Ano após ano, década após década, seu nome e seus feitos começaram a ser reduzidos, apagados. Substituídos pela profusão de novos craques que a torrente midiática produzia e que a paixão clubística potencializava.

É parte do jogo. Do grande jogo da História. Mas, graças ao rubro-negro e co-irmão Ruy Castro, as pirâmides do surgimento de Garrincha foram escavadas. Os hieróglifos foram decodificados. Seu reinado foi revisitado. Sua derrocada pôde enfim ser resgatada. Seu gênio, reverenciado.

Como seus dribles, imortais, o texto o imortalizou no prelo. Muitos jovens botafoguenses não conhecem a história de Garrincha. Sabem por alto. Nunca a leram. Muitos antigos, admiradores do craque, também não tiveram oportunidade de lê-la, por falta de tempo ou de gosto para a leitura.

Então, com a licença do mestre, eu vou trazer um pouco dessa história. Vou beber da fonte e servir à multidão. Não compra o livro, não lê as quinhentas páginas, os vinte capítulos? Eu leio e conto. 

Muitas lendas são desvendadas na obra. A começar pelo nome. Ruy confirma que quem lhe deu o apelido foi a irmã, Rosa. "Garrincha" é como no nordeste chamam a cambaxirra, "um passarinho bobo, marrom". A irmã passou a chamar o irmãozinho miúdo de Garrincha quando ele tinha quatro anos. Os pais, irmãos, amigos e visitas embarcaram no novo apelido. 

Verdade que, quando surgiu no Botafogo, as manchetes estamparam seu nome como "Gualicho". Mas não foi confusão. Foi um erro proposital do repórter botafoguense Sandro Moreyra, que queria associar a revelação do time ao cavalo homônimo que vinha causando furor nas pistas. O turfe era esporte popular no Rio de Janeiro.

Não pegou. Depois de um mês tendo seu nome grafado de três formas diferentes - Garrincha, Garricha e Gualicho -, o próprio jogador deixou claro. "Meu nome é Garrincha".

O Garrincha virar sobrenome, com o Mané na frente, só veio a acontecer quatro anos depois. Antes, ninguém o chamava assim. A mulher, Nair, o chamava de Manoel. E só. Mas foi coisa dos jornais, que, com ele campeão pelo Botafogo, em 1957, promoveram-no a Mané Garrincha. 

Lá em Pau Grande - Garrincha ser de lá era o cúmulo da coincidência - ninguém nunca o chamou de Mané. E, por ele, jamais teria saído da cidadezinha, onde tinha tudo o que queria: futebol, caçada, pescaria, mulher e muita cachaça.

A cachaça, a propósito, é a questão nuclear da biografia do Ruy (que, como já disse, teve, ele próprio, complicações com o alcoolismo). Ele mostra que o jogador já chegou alcoólatra ao Botafogo, aos vinte anos. E não era à toa, diz o autor: como era comum no sertão de Alagoas, de onde vinha o pai, o cachimbo era um tônico caseiro ministrado às crianças, aos doentes e às gestantes.

"O cachimbo era uma mistura de cachaça com mel de abelhas e canela em pau, posta para curtir numa garrafa envolta em cortiça e pendurada numa viga do teto", explica Ruy. Não era usado para fins recreativos, mas sim medicinais. 

"As mulheres o tomavam durante a gravidez", elucida o autor, reforçando que era tomado também durante todo o resguardo. "Adultos e crianças o tomavam como purgante, xarope, fortificante, e para combater gripes, lombrigas, coqueluche, asma e dor de dentes. Aos bebês, era dado como tranquilizante: uma ou duas colheres antes de dormir".

Amaro, o pai, era quem preparava o cachimbo para a família. Para ele, mesmo, preferia misturar cachaça com groselha, e pôr a garrafa para resfriar no leito do rio. Era tosco, divertido e analfabeto. Priápico, conta o biógrafo que passou no cerol boa parte do mulherio local.

Garrincha sairia ao pai. Beberrão e passador de cerol. Ambos morreram antes dos cinquenta anos.

Convocado em 1955 para uma seleção carioca que enfrentaria o Chile, concentrado em um hotel do Catete, Garrincha convidou o lateral-esquerdo Jordan, do Flamengo, para tomarem um desjejum na padaria. O craque pediu dois copos dágua e piscou. Para surpresa do colega, era cachaça pura.

Mas coloquei o copo na frente dos bois. Eu falava das lendas. Outra que é muito repetida é quanto ao primeiro treino de Garrincha no Botafogo. Reza a história que ele deu um baile em Nílton Santos, que ficou atônito e exigiu a contratação do "aleijado".

Não foi bem assim. 

O primeiro treino de Garrincha no Botafogo sequer foi entre os profissionais. Chegou ao clube à tarde, quando só restava a ser realizado o treino dos juvenis - comandado por Newton Cardoso, filho de Gentil Cardoso, técnico do time principal.

Comeu a bola. O filho avisou o pai: "Com aquelas pernas tortas, ninguém acredita que ele possa jogar futebol. Mas é espetacular. Esse vai ser craque." No dia seguinte, Garrincha chegaria às nove horas da manhã em General Severiano, sacolejando três horas de trem, desde Magé. Diretamente para o tal treino, que se tornaria lendário. Mas que - como eu já disse - não era o primeiro.

"As versões sobre o que se passou nos minutos anteriores ao treino são tantas quanto as pessoas que, no futuro, diriam que estavam no campo do Botafogo naquele dia 10 de junho de 1953", ressalta Ruy. "A acreditar nelas, é como se metade do Rio de Janeiro tivesse presenciado o histórico primeiro treino de Garrincha".

Que não foi o primeiro, que não foi chamado de "aleijado", nem acabou com Nilton Santos. Segundo Castro, Garrincha começou dando uns comes no Nilton, mas que o lateral da Seleção Brasileira ganhou metade das disputas - o que já era suficiente para mostrar ao mundo que o novato chegara para ficar. O segundo treino ratificou o primeiro, com sobras, e os alvinegros começaram a debater.

"Por mim esse garoto não volta pra terra dele. O Botafogo contratava logo", disse o capitão do time, Geninho. "O garoto é um monstro. Acho bom vocês o contratarem", alertou Nilton. "É melhor ele conosco do que contra nós".

Não perderam Garrincha de vista - sequer o deixaram ir embora. Alexandre Madureira, diretor do departamento técnico, o levou ao centro da cidade, onde tiraram fotos 3x4, almoçaram no Timpanas (cuja especialidade eram o polvo e o bacalhau, mas Garrincha só quis arroz, feijão e macarrão) e no fim da tarde estavam de volta ao clube. 

Garrincha assinou lá o primeiro de muitos dos seus contratos em branco.

A sua performance no treino com os profissionais foi tão avassaladora que virou manchete nos jornais cariocas do dia seguinte. Ninguém economizou nos elogios. Foi quando o cronista Paulo Mendes Campos escreveu: "Há coisas que só acontecem ao Botafogo", se referindo à sorte alvinegra de um jogador como Garrincha brotar do nada no gramado de General Severiano.

Opa lá. Isso também vale a pena ser contado.

Além dos times de Pau Grande em que jogou desde moleque, o primeiro time "de fora" em que atuou foi o Cruzeiro do Sul, de Petrópolis. Castro não esclarece, mas o campo do clube era no Morin (treinei lá), bairro petropolitano de nome francês. Jogou lá dos dezesseis aos dezessete anos.

Se o Cruzeiro não o fez assinar um contrato, outro clube de Petrópolis, o Serrano, foi mais esperto: cooptou o garoto e o registrou na Liga Petropolitana de Futebol. Nos anos 70, a carteirinha de sócio-atleta de Garrincha no Serrano ficava exposta na vitrine do Banco do Brasil, na Rua Alencar Lima.

Mas, apesar de ter assinado um contrato profissional com o Serrano, onde por três meses se exibiu aos domingos, nunca mais apareceu por lá. Neste mesmo ano, 1950, foi levado para uma peneira no Vasco. O ex-jogador Volante, um argentino, dispensou-o, sem sequer dar-lhe a chance de treinar.

No ano seguinte, 1951, foi novamente fazer um teste. Desta vez no São Cristóvão. Entrou faltando dez minutos e não recebeu nenhuma bola. Tinham prometido um sanduíche para os garotos que fossem treinar. Mas Garrincha não recebeu nem bola, nem o sanduíche. Voltou pra casa com fome.

Neste mesmo ano Garrincha foi às Laranjeiras fazer um treino no Fluminense. O tio de Garrincha, Mané Caieira, era amigo do treinador, Gradim. Mas o salvo-conduto não funcionou. O candidato a jogador passou o dia encostado na cerca do clube, sem ser chamado para entrar em campo. Deu seis e meia da tarde e Garrincha desistiu de esperar. 

Na verdade, nesse dia ele desistiu de ser profissional de futebol. Ia ficar em Pau Grande mesmo.

Em 1952, porém, o lateral-direito do Botafogo e da Seleção, Araty, foi ao lugarejo participar de uma feijoada e, por cortesia, apitar uma partida do time local. O número 7 do time da casa fez cinco gols e ganhou o jogo sozinho. Araty, apito na boca, cercou Garrincha na bandeirinha de escanteio.

"Olha, teu lugar é no Rio e no Botafogo", falou o lateral dublê de juiz. "Lá não tem ninguém melhor do que você".

Você foi? Garrincha também não. Cansara daquela coisa de pegar três horas de trem para fazer um "teste" e não ser colocado em campo. Preferiu continuar jogando pelo time da fábrica. Mas, enquanto isso, Araty ia fazendo a fama do ponta em General Severiano. Contava para quem quisesse ouvir que no interior do Estado do Rio "havia um ponta-direita de pernas completamente tortas, que driblava como um demônio e era imarcável".

A estória era tão boa que ninguém acreditava. Se fosse bom, mesmo, já teria sido pescado por algum olheiro. Mas um sócio do clube, apaixonado por futebol, deu crédito a Araty: Eurico Salgado. Se despencou para Pau Grande no fim do ano e assistiu a duas goleadas do time, ambas com exibições primorosas de Garrincha. Descobriu que Araty não mentira. O menino era bom mesmo.

Mas somente na metade do ano seguinte, em 7 de junho de 1953, quando o Pau Grande veio ao Rio enfrentar o Ana Nery, no campo do Sampaio, no bairro de Riachuelo, é que Salgado abordou o jogador: "Você vai para o Botafogo comigo". Garrincha, sempre educado, desconversou. Ia não. Alegou que perdia um dia de trabalho, não o deixavam treinar e ainda o chamavam de aleijado.

"Desta vez vai ser diferente", garantiu o sócio alvinegro. "Quem eu levo fica".

Salgado deu seu cartão de visitas, junto com uma nota de cem cruzeiros. Combinou que iria esperar o jogador na estação da Leopoldina, daí a dois dias, ao meio-dia. Dito e feito. Foram direto para o treino. Era o tal dia em que chegaram à tarde, e participou somente do treino dos juvenis. Arrasou. Só no dia seguinte iria fazer o célebre segundo treino, agora entre os profissionais. O resto é história.

Como o passe de Garrincha pertencia ao Serrano, o clube de General Severiano comprou-o por quinhentos cruzeiros, menos de cinquenta dólares. A grana dava para comprar uma bicicleta.

Naquela época as preliminares dos jogos eram disputadas por times de aspirantes. E foi nelas que Garrincha estreou, contra o São Cristóvão. Acabou com o jogo, fazendo um gol e dando o passe para outros. Placar final: 5x0. 

Em seguida, o time de cima venceu o São CriCri pelo placar mínimo, com o ponta-direita do Glorioso, Mangaratiba, sendo azucrinado pela torcida. No apertado alçapão de General Severiano, a rapaziada ficava gritando "olha o telefone, Mangaratiba", uma forma gentil de comunicar ao atleta que o estádio gostaria de vê-lo fora do time.

O próximo jogo foi contra o Bonsucesso e Garrincha teve sua primeira chance como titular. Era 19 de julho de 1953, e meu pai (que diz ter jogado nos aspirantes do Botafogo) comemorou seu aniversário de 27 anos nas arquibancadas, numa tarde chuvosa. O Bonsuça ganhava de 2x1 - o gol do Botafogo saíra de um corner cobrado por Garrincha, que teve a chance de empatar em um pênalti a favor.

Ninguém parecia muito disposto a assumir a responsabilidade da cobrança. "Os mais velhos e experientes foram saindo de fininho", diz Castro. "O Botafogo jogara mal contra o São Cristóvão e agora fazia um papelão contra o Bonsucesso. Quem perdesse aquele pênalti estaria desgraçado".

E olha que não faltava gente graúda no time: Geninho, Araty, Nilton Santos etc - "todos deram um jeito de ficar bem longe da bola", conta o autor. Quem deu de ombros e pegou a bola para bater foi o estreante, que nem estava jogando bem. Mas, em Pau Grande, o batedor oficial de pênaltis era ele.

Ruy Castro revela que Ary, goleiro do Bonsucesso e futuro goleiro do Flamengo, provocou Garrincha. "Capricha, garoto. Chuta no canto, que é do papai aqui". Garrincha pôs a bola na cal e Ary prosseguiu. "Vê lá, menino. Os homens estão de olho em você. O Gentil Cardoso não perdoa."

Ary foi o primeiro goleiro a tomar um gol oficial de Garrincha. O chute saiu forte e no canto. 

O jogo terminou 6x3 para o Botafogo, com Garrincha fazendo o segundo, o quarto e o sexto gol do Glorioso, sendo o último com um tirambaço sem ângulo, da linha de fundo, de trivela. Ao fim do jogo, o ponta-direita estreante foi carregado em triunfo por um povo em farrapos - uma caravana de mais de trinta pessoas viera na boléia de um caminhão, diretamente de Pau Grande. 

Voltaram todos celebrando e bebendo pinga pelo gargalo. Inclusive o craque Garrincha.

O impacto meteórico de Garrincha no Botafogo, entretanto, não foi suficiente para fazer do alvinegro um super time. O clube terminou em terceiro lugar o Campeonato Carioca de 1953, com Garrincha como vice-artilheiro, com vinte gols em 26 jogos.

E, apesar do sucesso espetacular para um estreante, seu desempenho não garantiu um lugar entre os vinte e dois jogadores convocados para a Copa de 1954. Garrincha foi incluído na lista dos quarenta pré-relacionados, mas nem chegou a fazer um treino com a Seleção. O Brasil perdeu mais uma Copa.

O Botafogo também continuou perdendo. O time fechou em sexto lugar o Campeonato Carioca de 1954, com Garrincha marcando oito gols em 28 jogos. No ano seguinte foi ainda mais vexatório: o clube de General terminou em sétimo, ficando fora do hexagonal decisivo.

O Campeonato Carioca de 1955, seguindo sua tradição de fórmulas sempre excêntricas de disputa, classificava os seis primeiros para disputarem uma segunda fase, com todos contra todos, e os dois primeiros (no caso, América e Flamengo) seguindo para um tira-teima final em três jogos.

A organização era tão caprichada que os dois últimos jogos do Carioca de 1955 foram em abril de 1956.

Mas é necessário contextualizar: no meio desse calendário estapafúrdio, o Botafogo passava meses consecutivos excursionando mundo afora. Era onde estava a grana. Em junho de 1955, por exemplo, o Botafogo vencia por 5x1 o... Reims, em Paris, com um show de Garrincha.

Com apresentações que deixavam os europeus de queixo caído, os principais clubes da Europa ofereceram ao Botafogo fortunas jamais pagas por um jogador de futebol. Juventus, Inter e Real Madrid queriam Garrincha a qualquer preço. O Botafogo recusou. Nem pensar em vender o craque.

Em setembro de 1955 Garrincha foi convocado pela primeira vez para a Seleção Brasileira. Embora tenha arrasado toda a defesa chilena, o jogo terminou em 1x1 e os jornais criticaram. Garrincha não passava a bola.

Ter o jogador mais valorizado do planeta não significava que ele fosse o maior salário do time. Em 1956, Garrincha foi reajustado para 18 mil cruzeiros. Nilton Santos ganhava 30 mil cruzeiros. E Didi, a maior contratação do time, era o jogador mais bem pago do Brasil: 70 mil cruzeiros.

Enquanto isso, no único campeonato que realmente valia, o Carioca, o Botafogo, em 1956, com Garrincha, Didi e Nilton Santos, não logrou ficar à frente dos seus três maiores rivais. Encerrou o campeonato em quarto lugar (Ruy diz que ficou em terceiro, mas o Flamengo tinha um saldo de gols superior). O time perdera os últimos oito campeonatos - o título derradeiro fora em 1948.

Mas a seca estava prestes a acabar.

O ano de 1957 começara animado. O Honved, base da temida Seleção Húngara, vice-campeã mundial em 1954 e que havia eliminado o Brasil na última Copa, veio ao Rio para uma série de amistosos contra o Flamengo. Ocorreu que, nesse ínterim, a URSS invadiu a Hungria. Os jogadores comunicaram a seu empresário que não voltariam ao país e se tornaram refugiados políticos.

Em represália, a Federação Húngara exigiu da FIFA que o Honved fosse proibido de jogar. A FIFA ameaçou o Brasil de exclusão da próxima Copa e banimento do Flamengo, caso o clube enfrentasse o Honved. O time carioca convidou outros clubes brasileiros - Santos e Vasco entre eles - a também jogarem contra os húngaros, numa forma de peitar a FIFA e dificultar que a ameaça fosse cumprida.

Só o Botafogo foi solidário ao Flamengo. Não só jogou contra o Honved, como topou um combinado com quatro rubro-negros enxertados no time botafoguense: Paulinho, Evaristo, Dida e mais um. Meteram 6x2 no time húngaro - placar aberto com um golaço de Garrincha -, restando aos célebres Puskas, Czibor e Kocsis contar os gols e digerir a coça.

A partir daí os húngaros saíram pelo mundo - depois de uma suspensão de um ano, Puskas foi para o Real Madrid - e o Botafogo resolveu apostar em um novo técnico, um sujeito que pouca gente fora do clube já ouvira falar: um tal de João Saldanha, jornalista magricelo e habitué de General.

Mesmo sem ter nunca dado um treino na vida, João acreditava que o novo cargo não tinha mistério. E o time era promissor: além de Garrincha, Didi, Nilton Santos, Pampolini e Paulo Valentim, o Botafogo ainda trouxera alguns jogadores dos times rivais, como Beto, do Vasco, Servílio, do Flamengo, e o ex-tricolor Adalberto.

O problema é que, como enumera Ruy Castro, todos os outros times vinham fortes. O Flamengo vinha com Joel, Moacir, Henrique, Dida e Zagalo; o Vasco com Sabará, Almir, Vavá, Rubens e Pinga; e o favorito Fluminense com Telê, Leo, Valdo, Robson e Escurinho.

O formato do campeonato era surpreendentemente sensato: doze times, todos contra todos, em turno e returno. Por coincidência, o clássico da vigésima segunda rodada, a última do Carioca, era um Botafogo x Fluminense. Que chegaram à rodada final com 34 e 35 pontos, respectivamente.

"Estava tudo preparado para o Fluminense ser campeão. Tinha sido o mais regular do campeonato, era o favorito na partida e jogava pelo empate", esclarece Ruy. O clube já tinha tudo programado. "O Fluminense sairia de faixa do Maracanã e partiriam para uma longa excursão pela América do Sul".

Mas havia um adversário. "Não se esqueçam. Só a vitória interessa. Já vamos entrar em campo perdendo de 0x0", alertou Saldanha, na preleção. Um simples empate dava o título ao Fluminense.

Todos os ingredientes para um jogo memorável. Como bem frisou Ruy, "botafoguenses e tricolores nunca se esqueceriam daquele dia 22 de dezembro de 1957".

Aos três minutos, o artilheiro Paulinho Valentim abriu o placar para o Botafogo. Garrincha, endiabrado, driblava, driblava de novo, cruzava, chutava. O primeiro tempo terminou 3x0. Aos oito do segundo tempo, com o placar de Botafogo 4x1, Telê choramingou para Didi:

"Vocês já são campeões. Diga ao Garrincha para parar de desmoralizar o Clóvis e o Altair. Vamos ficar por aqui", disse o ponta tricolor, futuro técnico da Seleção. Não funcionou. "Aos doze minutos, Garrincha fez o quinto gol, depois de driblar meio Fluminense", conta o biógrafo.

Telê e Didi trocaram pontapés. Paulinho Valentim fez cinco gols e perdeu outro tanto. O placar final fechou em 6x2, com a primeira conquista de título de Mané pelo Botafogo. Repetiria o baile em uma outra final de Carioca, em um 3x0 sobre o Flamengo, cinco anos depois. 

Anote aí - estas duas atuações apotéoticas de Garrincha, dando dois títulos ao Botafogo, são a abertura e o encerramento do grande período do craque pelo alvinegro. Não houve nada antes - além de uma perspectiva positiva - e não houve absolutamente nada depois. Apenas tristeza e dor.

Mas, no intervalo entre estes dois jogos - cinco anos, ou sessenta meses, ou 1.823 dias - o mageense Manoel dos Santos foi o jogador que mais impacto teve no futebol mundial em toda a história.

Do Campeonato Carioca de 1957, passando pela "invenção" do olé e pelo Bicampeonato Mundial na Suécia e no Chile, em 1958 e 1962, culminando com o Bicampeonato Carioca de 1961 e 1962, Garrincha só não fez chover - porque não tinha o menor interesse em eventos climáticos. Já no que dizia respeito a futebol e mulher, fez de tudo. E só vou falar do primeiro assunto. Quem quiser saber o que ele fez no segundo que compre o livro.

Ruy Castro busca em João Saldanha a testemunha do nascimento do olé. Teria sido na Cidade do México, em 20 de fevereiro de 1958. O jogo era entre o Botafogo e o River Plate. "O River era a própria seleção argentina, com dez de seus titulares, entre os quais Nestor Rossi, Labruna e Vairo", relata o escritor. "Já desde os primeiros dribles, o estádio Universitário começou a gritar Olé, como nas touradas, quando Vairo partia para o desarme e Garrincha deixava-o sentado".

"Para os mexicanos, os dribles de Garrincha eram uma saraivada de faenas e verônicas, com Vairo no papel do touro", continua. "O Olé gritado por milhares de bocas em uníssono, transformava-se numa gargalhada quando Garrincha esquecia a bola e continuava correndo, com Vairo no seu encalço sem perceber que a bola ficara para trás".

As suas virtudes de artista já eram incontestáveis. Mas ainda não as de competidor.

Nesse mesmo ano seria disputada a Copa do Mundo na Suécia. A competição era um trauma - não só para o futebol brasileiro, como para a auto-estima nacional. Na época não se usava o termo, mas a convicção coletiva, usando uma gíria atual, é que o brasileiro pipocava na hora do vamo ver.

A raiz desse trauma eram todas as Copas anteriores - 1934, 1938, 1950 e 1954 -, com destaque óbvio para a Copa de 1950. Foi a primeira Copa do pós-guerra. A Europa estava ainda sob escombros e a competição se resumiu a treze seleções. O Brasil construiu o maior estádio do mundo para sediar o evento. A confiança era absoluta de que enfim seríamos campeões do mundo.

Todo brasileiro conhece essa história. Eu mesmo já comentei aqui no blog diversos livros dedicados à Copa de 1950. Perdemos de forma humilhante - humilhante porque havíamos tratorado todos os adversários, porque tínhamos vencido com facilidade este mesmo Uruguai dois meses antes, porque o empate nos dava o título, porque saímos na frente e porque o estádio era nosso, com duzentos mil torcedores empurrando o time.

A comoção da derrota e o peso do fiasco contribuíram para o desenvolvimento de diversas teses com pretenso embasamento psicológico, a mais repetida delas assegurando que perdemos a Copa porque éramos fracos de caráter. A desgraça era sermos miscigenados, uma mistura de brancos, pretos e índios - e não tínhamos como nos impor aos de raça pura, aos brancos de olhos azuis.

Como se os uruguaios fossem um primor de pureza racial.

Seja como for, o blablablá de que éramos inferiores de nascença dominava o discurso. Em 1954 fomos derrotados e, ao fim do jogo, saímos na porrada com o time húngaro. O que satisfez parte da mídia, dizendo que lavamos a honra nacional. A garganteada não se sustentou, porque, com a proximidade da Copa de 1958, todo o velho complexo de viralata voltou à tona.

"Até 1958, era voz corrente nos botequins que, quando se tratava de Copa do Mundo, o jogador brasileiro era frouxo", sentenciou Castro. "As derrotas para o Uruguai em 1950 e para a Hungria em 1954 pareciam justificar essa crença: não tínhamos fibra para os jogos decisivos".

Para evitar mais um fracasso, a CBD investiu muito dinheiro em preparação física e mental, trazendo pela primeira vez um psicólogo para a comissão técnica. Na convocação dos atletas, comenta-se que, sempre que possível, os jogadores negros foram preteridos por um jogador branco. Na dúvida...

Alguns negros eram obrigatórios, como Didi - o Príncipe Negro. Mas por muito pouco Pelé e Garrincha não ficaram de fora. Pelé, por ser muito novo e ter se machucado em um amistoso; Garrincha, porque estava longe de ser uma unanimidade. O Brasil continuava órfão do ponta-direita Julinho.

O paulistano Julinho havia sido titular em 1954 e dera conta do recado. Mas em 1958 jogava na Itália, e não achou justo disputar uma vaga com os demais. Então a opção de Vicente Feola, o técnico escolhido a três meses da Copa, foi por Joel como titular e Garrincha como seu reserva.

"Joel também era grande jogador", conta o jornalista. "O Flamengo o surrupiara do juvenil do Botafogo aos dezessete anos, em 1951, e Carlito Rocha ficara tão indignado que o Botafogo quase rompera relações com o Flamengo". O crime compensou. Além de goleador, Joel cruzaria nos anos seguintes bolas para centenas de gols de Índio, Benitez, Evaristo e Dida. 

Garrincha só foi testado no time titular no último amistoso antes da Copa, no Pacaembu, contra a Bulgária. Pelé também foi escalado. O Brasil ganhou por 3x1 e aquela foi a primeira partida da Seleção com Garrincha e Pelé. Com os dois em campo, o Brasil jamais perderia.

No primeiro amistoso na Europa, em Roma, contra a Fiorentina (que tinha seis titulares da seleção italiana), Garrincha cometeu a suprema heresia. Driblou meio time, inclusive o goleiro, fez que ia fazer o gol, não fez, um zagueiro veio em carreira desabalada, Garrincha ameaçou e não chutou, o zagueiro deu de cara na trave, e Garrincha entrou andando dentro do gol, dando biquinhos na bola.

Era Brasil 4x0 e os demais jogadores brasileiros xingavam Garrincha. Bellini, o capitão, gritou na cara do ponta: "Isso aqui é Copa do Mundo, porra!". Ruy acredita que a reação dos companheiros foi porque "tinham medo de que, em plena Copa, quando fosse para valer, brincadeiras como essa fizessem o Brasil perder um jogo". "Foi uma molecagem", reclamou no vestiário um diretor.

No amistoso seguinte, o titular já era Joel.

Na estreia da Copa, contra a Áustria, Feola também foi de Joel. O time entrou nervoso, a seleção austríaca teve inúmeras chances, mas quem fechou o primeiro tempo na frente foi o Brasil. No início do segundo tempo aconteceu o lendário lance em que Nilton Santos tabelou com Mazzola e pediu de volta na frente, enquanto Feola se esgoelava do banco: "Volta, Nílton, volta!"

Nilton não voltou, invadiu a área e tocou por cobertura. Brasil 2x0 e logo depois faria o terceiro.

Contra a Inglaterra, o técnico manteve Joel. Garrincha se queixou com o médico da delegação: "Doutor Hilton, não seria melhor me mandar de volta?" O botafoguense não sabia, mas o próprio médico votara pela escalação de Joel, para proteger Garrincha. Achava o lateral esquerdo inglês muito violento.

O jogo terminou zero a zero e o fantasma da eliminação começou a rondar a comissão técnica e os jogadores. Aliás, o país inteiro. "Ou o Brasil ganhava e seguia em frente - ou voltava de novo mais cedo para casa, confirmando a opinião nacional de que, no fundo, éramos um país de vira-latas".

O jogo era contra a temida Rússia e seu "futebol científico". Como conta Ruy, "havia dois anos que só se falava no futebol russo". "Dizia-se também que, em dia de jogo, eles faziam quatro horas de ginástica pela manhã", continua. "A KGB espalhara espiões pelo mundo, filmando partidas, e seus computadores haviam produzido um sistema perfeito para derrotar qualquer equipe".

A boataria não era à toa. Entrevistado antes do jogo, o treinador russo Gavrin Katchalin ousou escalar o ataque ideal do Brasil: "Garrincha, Didi, Mazzola, Pelé e Zagalo". O soviético estava tão antenado que quase anteviu a nossa escalação inédita. O que só serviu para deixar todo mundo mais apavorado.

Segundo Castro, é pura lenda a reunião de jogadores exigindo a entrada de Garrincha. Ele não teria entrado antes por questões táticas. E para o jogo contra a Rússia as fichas estavam de tal forma depositadas nele, que Feola disse na preleção do vestiário: "Didi, a primeira bola é para o Garrincha".

O Princípe Negro, que viria a ser eleito o Melhor Jogador da Copa do Mundo, seguiu à risca a instrução de Feola. Meteu a bola no ponta. Há quem diga que o início deste jogo foram os maiores três minutos da história do futebol. Para não restar dúvida, Ney Bianchi, repórter da Manchete Esportiva, se deu ao trabalho de cronometrar cada segundo.

"Didi centra rápido para a direita: 15 segundos de jogo. Garrincha escora a bola com o peito do pé: 20 segundos. Kuznetzov parte sobre ele. Garrincha faz que vai para a esquerda, não vai, sai pela direita. Kuznetzov cai: 25 segundos. Garrincha dá outro drible em Kuznetzov: 27 segundos. Mais outro: 30 segundos. Outro. Todo o estádio levanta-se. Kuznetzov está sentado, espantado: 32 segundos".

Isso com meio minuto de jogo. O mesmo tempo que Gregore levou para ser expulso no Monumental.

"Garrincha parte para a linha de fundo. Kuznetzov arremete outra vez, agora ajudado por Voinov e Krijvesli: 34 segundos. Garrincha sai de novo pela direita. Os três russos estão esparramados na grama: 38 segundos. Garrincha chuta violentamente, cruzado, sem ângulo. A bola explode no poste esquerdo de da baliza de Yashin e sai pela linha de fundo: 40 segundos. A plateia delira".

"A avalanche continua", prossegue Bianchi. "O ritmo do time é alucinante. É a cadência de Garrincha. Yashin tem a camisa empapada de suor, como se já jogasse há várias horas. Segundo após segundo, Garrincha dizima os russos. A histeria domina o estádio. E a explosão vem com o gol de Vavá, exatamente aos três minutos".

A partida terminou em parcos 2x0, para o que foi o volume de jogo do Brasil. O segundo gol foi também de Vavá. A Seleção Brasileira atacou 36 vezes, dezoito das quais com perigo, incluindo duas bolas na trave. O goleiro brasileiro fez uma única defesa.

Paulo Mendes Campos, o criador da frase "tem coisas que só acontecem ao Botafogo" (se referindo ao surgimento de Garrincha), escreveu após o jogo "que a mágica pode ganhar da lógica".

"Garrincha nascia ali, não apenas para o mundo, mas para o próprio Brasil", sentencia Ruy Castro. "A partir daquele dia, deixaram de existir botafoguenses, tricolores, rubro-negros, gremistas ou corintianos puros. Todos passariam a ser Garrincha, mesmo quando ele jogasse contra seus clubes".

O mundo ficou estarrecido. Um jornalista francês chamou Garrincha de "o maior reserva do mundo". Seu colega inglês disse que "Garrincha teria derrotado sozinho a Inglaterra". Um jornal sueco estampou: "Na quinta feira vocês verão Garrincha outra vez!" Só a CBD não foi hiperbólica. Deu a Garrincha um bicho de 50 dólares e uma empresa brasileira lhe deu uma bicicleta.

No jogo seguinte o Brasil garantiu presença nas semifinais, batendo o País de Gales por 1x0. Garrincha foi marcado - melhor dizendo, caçado - selvagemente por três galeses, deixando espaço para que Didi e Pelé acabassem com a partida.

A semifinal foi contra a França, que marcara quinze gols em quatro partidas. Com um minuto e meio de jogo, "Garrincha driblou três, deu a Zito, este a Didi e Didi a Vavá, que fez 1x0". A França empatou, perdeu um caminhão de gols e depois o Brasil se achou. Meteu 5x2, com direito a olé.

Ao saber que o próximo jogo seria a final, e contra os donos da casa, Garrincha desdenhou: "Já? Mas que torneio mixo. O campeonato carioca é muito melhor, tem turno e returno".

O jogo começou mal para o Brasil, tomando um gol de cara. Didi pegou a bola e botou no centro. "Não foi nada". Quatro minutos depois, Garrincha enfileirou Parling, Axbom e Bergmark e cruzou rasteiro, à Cuiabano, para Vavá escorar para o gol. Um a um.

Quem vê as jogadas do primeiro e do segundo gol do Brasil não consegue diferenciar que são dois lances diferentes. Pensa que está vendo um replay. Mas não. "Garrincha, irresistível, aniquilou três suecos, foi à linha de fundo e cruzou novamente (à Cuiabano) para Vavá: 2x1".

Garrincha foi à linha de fundo quinze vezes ao longo do jogo. Em todas semeou pânico na defesa.

Pelé, duas vezes, e Zagalo fecharam a conta. Um sueco ainda descontou. Brasil 5x2 e finalmente campeão do mundo. Como o próprio Botafogo faria, em 2024, em 1958 o país tiraria um peso das costas. A humilhação de 1950 podia ser agora suplantada pela conquista na Suécia. 

"O campo, num instante, tornara-se um pandemônio", conta Ruy. "Os jornalistas se abraçavam chorando aos jogadores, Feola, Zagalo e Gilmar choravam, todo mundo chorava, Joel, também chorando, fora o primeiro a pular a cerca para abraçar Garrincha".

Garrincha, o brasileiro que possibilitara toda esta catarse, era o único que não chorava.

Após uma viagem de 36 horas - com escalas em Londres, Paris, Lisboa e Recife -, a delegação brasileira desembarcou no Rio de Janeiro, às oito da noite. Desfilou em carro aberto do Galeão ao Centro da cidade. Depois das recepções, Garrincha dormiu em Copacabana, onde acordou cedo, para seguir em caravana para Magé. 

Meras 48 horas depois de embarcar em Estocolmo, onde ganhara a primeira Copa do Mundo para o Brasil, chegando em Pau Grande Garrincha "muniu-se de uma garrafa de pinga, subiu o morro até o campinho e jogou uma pelada descalço com os amigos até a noite cair", dedura o biógrafo.

Garrincha mal havia subido no platô máximo da sua carreira - e teria dificuldades para se manter estável lá em cima. A bebida, o peso três quilos acima e seu apetite insaciável pelas mulheres, com vedetes, atrizes, cantoras e camareiras no seu cardápio diário, o mantinham longe da forma ideal.

Botafogo, Flamengo e Vasco fizeram o triangular final daquele que foi chamado o Super Super Campeonato de 1958. O Vasco levou e depois ficaria doze anos na fila. Garrincha alternou grandes partidas com partidas medíocres, fosse no clube, fosse na seleção.

No ano seguinte a situação piorou. A avaliação médica sugeria uma cirurgia para extração dos meniscos do joelho direito. O Botafogo queria a cirurgia, ainda que privasse o time de sua maior estrela nas lucrativas excursões à Europa. A cirurgia foi marcada, mas Garrincha simplesmente não apareceu no centro cirúrgico. Entregou o joelho aos cuidados da dona Maria Rezadeira.

Embora em 1959 Garrincha fosse tido como o maior jogador do Brasil, estava longe de ser o maior salário. Enquanto o Pelé adolescente já recebia 120 mil cruzeiros mensais (cerca de 500 dólares), o melhor contrato que Manoel havia conseguido era de 75 mil cruzeiros mensais (300 dólares).

O Botafogo perdeu dois de seus principais jogadores - Paulo Valentim para o Boca Juniors e Didi para o Real Madrid - e se contentou com o vice-campeonato em 1959. O Fluminense, que não ganhava desde 1951, foi o campeão. Já o "Vai Que É Mole", o outro time em que Garrincha jogava, em Pau Grande, foi campeão mais uma vez. O jogo era regado a pinga. Antes e depois. Era Mané no seu habitat.

Em 1960 o Botafogo terminou a dois pontos do campeão, o América, que venceu o Fluminense na final, no Maracanã, diante de cem mil torcedores. Garrincha bebia e faturava - bichos e mulheres.

No ano seguinte, 1961, o time da Estrela Solitária montou um ataque com Garrincha, Didi, Amoroso, Amarildo e Zagalo. No fim do primeiro turno do Carioca, a diferença já era de seis pontos para o segundo colocado. "Nunca foi tão fácil ser campeão", dizia a faixa pendurada pela torcida.

Pendurada no Maracanã, diga-se de passagem, ainda no fim do primeiro turno.

Seria campeão com duas rodadas de antecedência. Faltavam ainda os jogos contra os rivais Flamengo e Vasco. Mesmo sem precisar, ganhou os dois jogos e terminou o campeonato com doze pontos de frente, metendo 3x0 no Flamengo no jogo final - placar que se repetiria na decisão de 1962.

"Aquele campeonato marcaria o início da epopeia do Botafogo como o time da moda, que dominaria o Rio pelos anos seguintes e condenaria os seus adversários a um amargo inferno astral", sentencia Ruy Castro, insuspeito para falar - já que sempre foi um torcedor visceral do rubro-negro.

"Artistas, intelectuais, grã-finos e políticos, todo mundo de repente era Botafogo".

Foi justo no fim de 1961 que Garrincha encontrou Elza Soares pela primeira vez. Um dos romances mais midiáticos do século XX estava prestes a começar. E, por muitos caminhos, atalhos e fossos, iria dar o tom da carreira de Garrincha doravante. Nos gramados, chegara a hora do canto do cisne.

E que canto. O mundo nunca mais iria esquecer o que Garrincha fez.

Três dias antes da apresentação para os treinamentos na Seleção, em março de 1962, já para a Copa do Chile, o Botafogo conquistou o torneio Rio-São Paulo, batendo o Palmeiras por 3x2. Garrincha fez um dos gols e, após o jogo, sequer comemorou o título (ninguém ligava pro torneio, mesmo).

Pegou o Simca que ganhara no concurso dos Jornal dos Sports (Ruy Castro conta em detalhes essa história pitoresca) e dirigiu quatro horas e meia até o interior de Minas Gerais, em Bicas. Ia jogar pelo time dos seus amigos de um posto de gasolina, o Esso de Caxias, contra o Biquense F.C.

Chegou amanhecendo o dia, com um farto café da manhã esperando por ele. Recusou e aceitou apenas dois copos de cachaça. Dormiu e acordou pro jogo, onde enfrentou um tal Catimba, que jurou quebrá-lo se ele viesse de gracinha. Garrincha acabou com o jogo, fez três gols e o Esso venceu por 5x1.

Era padrão. Entre cada jogo oficial, havia sempre um ou dois jogos amadores, além das peladas - tudo isso regado a cachaça. No dia da apresentação, no Hotel Paissandu, foi o único a não aparecer. Como no Botafogo, tiveram que viajar a Pau Grande para sequestrá-lo em algum botequim.

Em 20 de maio partiram para Viña del Mar. No time envelhecido, o grande nome da seleção era Pelé. Na estreia o Brasil sentiu o peso do favoritismo e não jogou bem. Mas venceu por 2x0. O lance de destaque foi a bolada de Pelé no saco do Vavá.

No jogo seguinte, contra a Tcheco-Eslováquia, aos 25 do primeiro tempo Pelé errou o saco do amigo, acertou uma bomba na trave e sentiu a virilha. Não eram permitidas substituições e o Rei se limitou a fazer número, encostado na lateral. Com um a menos, o zero a zero até que foi lucro.

O último jogo da fase de grupos era contra a Espanha. Quem perdesse estaria fora. Amarildo, o Possesso, do Botafogo, foi o escolhido para substituir Pelé. O garoto começou o jogo nervoso. Didi se aproximou: "Relaxa e olhe para os lados. Só dá Botafogo". Verdade. Estava em casa.

Mas as coisas não estavam nada boas para o Brasil. A Espanha abriu o placar e nos dava um banho de bola. Para piorar, Nilton Santos cometeu um pênalti acintoso no ponta espanhol, o Collar. F...

Foi aí que entrou para o Manual da Suprema Malandragem no Futebol o passinho que Nilton deu para fora da área, braços levantados, teoricamente induzindo o árbitro da partida - Mr. Sergio Bustamante, um chileno - a marcar uma reles falta. E não o pênalti claro, que todo mundo viu.

Na véspera, conta Castro, uma emissária de Mr. Bustamante teria visitado o palacete em que se hospedaram os cartolas da CBD - e saíra levando na bolsa um paco de 3 mil dólares.

Para se ter noção do tamanho da propina, vale lembrar que o bicho para cada jogador, em caso de vitória, era de 50 dólares. E eu vou aqui pessoalmente endossar o que Ruy insinua.

Ele não entrega o nome, mas um das fontes mais citadas pelo biógrafo sempre que o assunto fosse Seleção Brasileira era o seu tesoureiro e diretor, Adolpho Marques. Trinta anos depois, nos anos 90, essa fonte era meu diretor no Grupo Sima, onde era um dos sócios. O seu Adolpho.

Era um tricolor apaixonado. Já nos deixou. Certa vez almoçávamos no Garota da Urca, quando me contou tim-tim por tim-tim essa estória do pênalti "não marcado". E foi isso mesmo. O árbitro que apitou o jogo Brasil x Espanha na Copa do Mundo de 1962 não foi induzido por um chapliniano passinho do jogador faltoso. Ele levou foi mucha plata para apitar a favor do Brasil.

Um lembrete para os ingênuos e falsos inocentes que não acreditam que árbitros produzem resultados.

Mas, fora o pênalti não marcado, a partida transcorreu sem incidentes de monta. A não ser o fato de que Garrincha chamou a responsabilidade para si, enquanto Amarildo mostrou a que veio. O Possesso empatou aos 17" do segundo tempo. Aos 41", Garrincha driblou três adversários, foi à linha de fundo e cruzou. O Possesso estava lá - de novo - para desempatar e garantir o Brasil nas quartas de final.

Como Didi já havia dito, bastava olhar para o lado. Naquela Seleção, era tudo Botafogo.

O adversário do Brasil nas quartas seria a Inglaterra. E o ponta-direita Garrincha assumiu na Seleção a posição em que jogava no Vai Que É Mole: estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Fez de cabeça o primeiro gol, cobrou a falta no segundo gol (o goleiro bateu roupa e Vavá completou) e meteu uma folha seca à la Didi para marcar o terceiro. Estávamos nas semifinais.

O jogo seria contra os donos da casa, o Chile. E o principal duelo seria entre Garrincha e o lateral chileno, Rojas. Os dois já se conheciam bem. Garrincha já o infernizara, em diversas partidas entre Botafogo e Colo-Colo. O chileno resolveu parar o brasileiro na porrada. O juiz deu ok.

Para azar do Rojas, do juiz Arturo Yamazaki e de todo o Chile, não adiantou de nada. Garrincha trucidou o lateral e acabou com o jogo. Fez o primeiro com a canhota, fez o segundo de cabeça (de novo!) e deu o passe para o terceiro. Como diz Ruy, "já era o maior homem da Copa".

Faltando cinco minutos para acabar o jogo - já com o placar definido, um 4x2 -, Rojas deu mais um pontapé em Garrincha. De mera sacanagem, nosso fulniô levantou-se e deu com a ponta do joelho na bunda do lateral. O que fez o chileno? aquilo que hoje todos os jogadores fazem no Campeonato Brasileiro. Rolou pelo gramado como se tivesse levado um tiro.

Yamazaki expulsou Garrincha. Joelho na bunda não pode. O ponta estava fora da final.

Sabe a imprensa uruguaia, que há dois meses protestou contra a prisão dos torcedores arruaceiros do Peñarol, que tacaram fogo em carros e motos na Praia do Recreio, agrediram os locais e roubaram comerciantes? Os jornais de Montevidéu rogaram "soltem nuestros pibes! son inocentes!"

Pois a imprensa chilena fez o mesmo. Ignorou a pancadaria chilena, o pênalti não marcado em Garrincha, a anulação de um gol legítimo de Vavá, o pênalti inventado que deu o segundo gol ao Chile (mesmo pagos, às vezes os árbitros não conseguem produzir o resultado encomendado). No dia seguinte, as manchetes se concentraram no marginal Garrincha, o Violento. 

A FIFA se reuniu no dia seguinte, para estabelecer a punição a Garrincha. O bandeirinha, o uruguaio Esteban Marino, foi quem dedurara a joelhada na bunda. Mas ele não apareceu para depor - parece que a CBD lhe deu uma passagem para Montevidéu com escala em Paris. Garrincha foi absolvido.

A final contra a Tcheco-Eslováquia começou como a final contra a Suécia, em 58: com o Brasil levando um gol. Quem pegou a bola dentro do gol e disse que estava tudo sob controle dessa vez não foi o botafoguense Didi - foi o botafoguense Nilton Santos. Dois minutos depois, o botafoguense Amarildo empatou. Zito, do Santos, e Vavá, do Flamengo, fecharam o placar. Brasil bicampeão.

Era 17 de junho de 1962 e Mané Garrincha era o maior jogador do mundo.

Mas não seria nos campos de futebol que ele iria gozar esta nova etapa. Doravante, a vida de estrela, a bebida e uma paixão avassaladora por Elza Soares tomariam todo o seu tempo. Embora fosse um jogador profissional, já não treinava - só aparecia no Botafogo para jogar.

O dinheiro brotava de todo lugar. Campanhas publicitárias, luvas, renovação de contrato - Garrincha faturava, mas não ligava. Recebeu de luvas o equivalente a 10 mil dólares em janeiro, mas nunca apareceu na tesouraria do Botafogo para pegar a grana. Ou melhor, sacou em agosto, quando a inflação já comera 30% e viraram 7 mil dólares.

Os prêmios em espécie que ganhara na Copa do Mundo anterior foram guardados dentro do colchão da cama das crianças - que mijavam no colchão. As notas apodreceram. Certa vez os jornalistas Armando Nogueira e Sandro Moreyra foram a Pau Grande recolher o dinheiro que Garrincha guardava em casa.

"Encontraram dinheiro em gavetas, fruteiras, enfiado em velhos exemplares de Mindinho e Reis do Faroeste, debaixo de outros colchões e até caído por trás do fogão", apurou Ruy. "Havia cruzeiros, libras, francos, liras, pesetas, coroas suecas, florins holandeses, moedas de toda parte onde o Botafogo jogara nos últimos anos, além de soles e bolívares que tinham deixado de valer".

Isso não era tudo. "Havia também inúmeros cheques jamais descontados e muitos, muitos maços de notas de dólar". Administração financeira não era o forte do Mané.

Garrincha e os jornalistas levaram a grana toda pro banco. "Feitas as contas e as conversões, descobriu-se que, entre salários, prêmios, doações, cachês e outros dinheiros intocados, Garrincha tinha perto de 20 mil dólares". Cerca de 420 mil dólares em dinheiro de hoje.

Ainda assim, o dinheiro que o Botafogo lhe pagava não estava à altura da sua importância. Nilton Santos, Zagalo e Amarildo conseguiram contratos melhores. Garrincha reclamou e ganhou um quarto-e-sala na Barata Ribeiro como compensação. Os outros continuaram ganhando mais do que ele.

Sem treinar, bebendo, namorando Elza incontáveis vezes por dia e desperdiçando dinheiro sem pensar no amanhã, foi inevitável que sua contribuição ao clube se reduzisse. Conta Ruy que o Carioca estava no segundo turno e o Botafogo estava a sete pontos do Flamengo. A torcida estava irritada.

Já nas excursões - onde o clube faturava 20 mil dólares por partida - Garrincha vinha arrasando. O Botafogo meteu 6x5 no grande Millionarios de Bogotá, com atuação fenomenal de Garrincha. Mas no Carioca, que era o que importava para a torcida, Garrincha não vinha bem. Foi vaiado contra o Madureira e substituído contra o Vasco. O craque reclamava que não lhe passavam a bola.

Garrincha comprou um Kharmann Ghia e ameaçou largar o futebol. Ficou na ameaça.

O Botafogo vinha reagindo no campeonato. Terminara o primeiro turno com uma sequência de seis vitórias (incluindo um 3x1 no Flamengo) e iniciara o segundo turno com uma sequência de quatro vitórias. Diminuiu tanto a distância para o líder, que chegou ao jogo final a apenas um ponto.

E, como em 1957, a tabela do campeonato tinha por último jogo do Botafogo justamente o confronto contra o virtual campeão, precisando de um mero empate para garantir o título - e dessa vez era o Flamengo. O clube da Gávea tinha 38 pontos, enquanto o Botafogo tinha 37 pontos.

Na semana do jogo, Garrincha não apareceu no clube. Ou bebia em Pau Grande ou namorava na Urca. Na antevéspera, como relata Ruy, "Elza perdera a conta das vezes em que tiveram relações aquela madrugada". A torcida, alertada, fora à Urca e jogou pedras na janela da casa. Elza era flamenguista e estava exaurindo o craque antes da final.

Além de Elza, o técnico do Flamengo, Flavio Costa, também tinha planos especiais para Garrincha. Resolveu escalar o talentoso meio-campo Gerson para atuar - contrariado - numa marcação tripla ao ponta-direita. Mas nada deu certo para o time rubro-negro naquela tarde de sábado.

Garrincha teve, dizem, a maior atuação da sua carreira. Diante de 158 mil torcedores, trucidou seus marcadores: o lateral Jordan, o zagueiro Vanderlei e o atarantado Gerson. Fez os três gols da goleada, sendo que, no segundo, o beque Vanderlei ajudou, cortando o chute de Garrincha com a cabeça. 

Botafogo bicampeão carioca em 1962. Seleção Brasileira bicampeã mundial em 1962. Tudo isso na conta exclusiva de Garrincha. Era o ápice. Mas, tristemente, o início de uma vertiginosa derrocada.

O joelho, que já o vinha incomodando desde a Copa no Chile, estava muito mais inchado do que de costume, no início de 1963. Vinha jogando à base de punções - drenagens do líquido sinovial. Era o próprio Garrincha quem as pedia, pois, sem jogar, não receberia o bicho. Logo ele, o único jogador do time que recebia o bicho em dobro.

Mas a situação piorava e Garrincha não conseguia jogar duas partidas seguidas. Ao mesmo tempo, negociava com o Botafogo uma reforma no seu contrato de três anos - faltavam ainda dois e ele queria uma valorização. O Roma ofereceu um milhão de dólares pelo seu passe. O Botafogo pediu dois e o Roma desistiu. O Juventus também tentou. O Botafogo não vendeu.

A relação do atleta com o clube azedou. Garrincha não jogava, o Botafogo nem lhe aumentava, nem lhe vendia, e o impasse permanecia. Garrincha sumiu do clube e deu entrevistas detonando o Botafogo. Foi multado e detonado de volta. Sua vida pessoal estava um pandemônio. Se afastou da mulher e das sete filhas. A imprensa, sensacionalista, pintava a ele e Elza, a amante, como degenerados.

Vida sexual conturbada. Além da mulher, Nair, da amante oficial, Iraci, da nova amante, Elza, e de todas as eventuais namoradinhas, havia a vedete Angelita Martinez, ex-amante e a mulher mais desejada do Brasil, gritando na porta de Elza: "Sua vaca! Eu quero esse homem de volta!"

Não vou me estender nos aspectos pessoais da intimidade do craque. Não que sejam desimportantes; foram decisivos para o seu desmoronamento. Recomendo fortemente a leitura da biografia para quem quiser saber o que se passou, em detalhes. Mas meu foco é o campo de jogo.

A Taça Brasil de 1962 foi decidida em 1963. Esta mesma que hoje vale como se fosse um Campeonato Brasileiro. Como campeões estaduais, Botafogo e Santos entravam já nas semifinais. Se enfrentaram. O time carioca perdeu a primeira por 4x3 e vencera a segunda por 3x1. Garrincha conseguiu jogar - e acabou com o jogo. 

O problema é que a negra foi marcada para apenas dois dias depois - tempo insuficiente para recuperar seu joelho. Garrincha não jogou nada, o Botafogo tomou um esculacho do time de Pelé (5x0) e o time saiu vaiado do Maracanã. Também...

O joelho piorava e Garrincha fugia da cirurgia. Bebia cada vez mais. O público o hostilizava - até mesmo em Pau Grande. Um pool de clubes italianos, sem saber o que se passava (estávamos nos anos 60), tentou comprar Garrincha, novamente por um milhão de dólares. Mas logo viu que era furada.

Mesmo estropiado, Garrincha era figurinha carimbada nas excursões. Sem ele, o time não faturava. E sem os amistosos, a grana também não entrava no bolso de Garrincha. Mas seu joelho "parecia um aleijão de monstro de circo", diz Castro.

Não havia muita compreensão. "O Botafogo o paga para dar uma voltinha em campo nessas excursões", vociferou João Saldanha no rádio. "Não há motivo para Garrincha viver dodói".

O Botafogo vendeu Amarildo para os italianos - por 400 mil dólares - e comprou Gerson do Flamengo, que chegou ganhando o mesmo que Garrincha. Iria lançar incontáveis bolas para o ponta-direita do Botafogo; mas não seria Garrincha, e sim seu sucessor, Jairzinho, de 19 anos.

Garrincha, a seu turno, se submetia a todos os tratamentos imagináveis - menos o centro cirúrgico. Inativo, engordou. Das 22 partidas do Botafogo no campeonato, entrara em campo em apenas três. O time terminou em terceiro e o título ficaria com o Flamengo. 

Participou de alguns amistosos no início de 1964. "Mas, sempre que lhe davam a bola, sua secreta sensação era de pânico", conta Ruy. "Sabia que, por menos que se mexesse, seus joelhos estariam em pandarecos depois do jogo e ele voltaria para casa quase que de rastos".

A Seleção o convocou - mas ele não foi. Não tinha o que fazer lá.

Cada vez pior, Garrincha finalmente aceitou fazer a cirurgia. Só que, para surpresa de todos, não com o dr. Lídio Toledo, que vinha cuidando dele todos esses anos (e tentando convencê-lo a operar). E sim com o médico do... América. Se chamava Marques Tourinho, faria a operação de graça e dizia que não iria doer nada. Essa última parte foi determinante para conquistar Garrincha.

"A cirurgia foi feita em 29 de setembro de 1964, na Cruz Vermelha, e durou uma hora e dez minutos, com anestesia geral", descreve o biógrafo. "Não existia artroscopia - o joelho era aberto como se fosse uma jaca. O trauma na região operada era fortíssimo".

Trinta e oito dias depois, Garrincha retornava ao Botafogo. Passaria o resto do ano em fisioterapia. "E, durante o ano de 1965, jogou suas últimas 23 partidas pelo Botafogo. Ou simulou jogar".

O Botafogo agora queria vendê-lo, mas não havia quem o comprasse. Um relatório interno classificava Garrincha como "incapacitado para o futebol". Garrincha pedia que lhe dessem seu passe - ainda não seria dessa vez que o atenderiam. 

Para todos efeitos, ainda era Garrincha. Tanto, que a Seleção fazia questão dele, e o convocara novamente. Principalmente João Havelange, que queria ser presidente da FIFA e considerava ele e Pelé como seus cabos eleitorais. Junto com ele fora convocado Jairzinho. O novo titular.

Havelange chegou a cogitar o absurdo da CBD "comprar" Garrincha ao Botafogo. Seus treinos vinham sendo intensos. Parecia que uma inimaginável recuperação acontecera. Jogou três partidas seguidas da Taça Guanabara. Fez o gol único do jogo na vitória contra o Flamengo, em 22 de agosto.

Mas clube e atleta continuavam em rota de colisão. Momentaneamente recuperado, o Botafogo o queria nas excursões. Mas Garrincha queria o Maracanã. O Botafogo o multou e Garrincha sumiu.

Os dirigentes, segundo Ruy, "não gostavam quando Garrincha era escalado nos jogos do campeonato. Sabiam que, com ele no time, era como se o Botafogo jogasse desfalcado. Mas, nos amistosos no interior, não tinha importância. Os adversários eram fracos e a sua presença, como um urso de feira, garantia a cota, o público e o bicho".

A estreia do Botafogo no Campeonato Carioca de 1965 foi contra a Portuguesa, em General Severiano. Era o dia 15 de setembro, uma quarta-feira à noite, e o time venceu por 2x1, com dois gols de Gerson, que acabaria expulso. O ataque tinha Garrincha, Jairzinho, Sucupira e Oton.

Havia 5.309 pessoas na arquibancada. Elas não sabiam, mas testemunharam o último jogo de Garrincha com a camisa do Botafogo.

O jogador que vinha sendo um problema para o Botafogo poderia ser a solução para outro time. Em São Paulo, o Corinthians já amargava doze anos na fila e o presidente Wadih Helu resolveu apostar em uma contratação de impacto, com o apoio da torcida. Se dois anos anos o clube de General Severiano recusou um milhão de dólares pelo ponta, agora o venderia por 90% menos.

Não houve jogo de despedida, nem aperto de mão. Nem os colegas de time iam mais à casa dele, desgastados pelos constantes sumiços, pelos privilégios do ponta e pelo relacionamento conturbado do jogador com a amante, Elza Soares - e a família abandonada, com mulher e oito filhas.

(Ruy coloca Elza como o grande amor da vida de Garrincha e totalmente dedicada a ele; seja na carreira, seja contra a bebida, e até mesmo a favor de dar uma vida digna à ex-esposa e às filhas. Não tenho porque duvidar. Mas a impressão que tive é que as entrevistas com Elza foram uma das principais fontes da biografia, o que pode ter suavizado algumas coisas e agravado outras. Vá saber.)

Em janeiro de 1966, Garrincha assinou com o Corinthians um contrato de dois anos. Ganharia menos do que ganhava no Botafogo. E, com os descontos pelo aluguel do apartamento e da pensão para a ex-mulher, lhe sobravam 10% do salário. Foi recebido no aeroporto e desfilou em carro aberto. 

Porém, além dos problemas físicos e da eterna briga com o peso, Garrincha lidava diariamente com o inimigo que o aniquilaria. "Sua escalada alcoólica era irreversível - independia de sua força de vontade", relata Castro. "Seus amigos do Rio, mesmo familiarizados com seu apreço pelo produto, assustavam-se ao visitá-lo em São Paulo e serem recebidos por ele com um copo longo na mão, de coquetel, com cachaça até a boca".

Segundo o biógrafo, "Garrincha já não estava bebendo por prazer ou diversão. Era seu organismo que passara a exigir álcool". Diz ele que Mané, "ao acordar com um certo tremor, este só passava se bebesse. Daí a necessidade de ter bebida em casa ou de escapar para beber na rua".

Quarenta dias depois de assinar o contrato, Garrincha estreou pelo Timão. Estava com 32 anos e no peso ideal (chegara com 79 quilos, mas conseguira perder os oito que sobravam). No dia 2 de março estreou contra o Vasco, pelo Rio--São Paulo. Errou tudo o que tentou. Vasco 3x0.

O segundo jogo foi contra o seu ex-clube, o Botafogo, no Maracanã. "Vai ser duro jogar aqui, na minha casa e contra tantos amigos", disse. O Botafogo, com Manga, Gerson e Jairzinho, goleou. 5x1.

O terceiro jogo foi contra o rival Palmeiras, em 21 de março. Aos 43 minutos do segundo tempo, coube a Garrincha bater o pênalti que daria o empate. Perdeu. Palmeiras 2x1.

Mesmo com atuações muito abaixo do seu nível - e certamente abaixo do nível de um jogador de Seleção Brasileira -, Garrincha foi convocado para a Copa de 66. Sua presença era estratégica para as ambições políticas do presidente da CBD. Seriam três meses de treinamento, durante os quais Mané se limitaria a tocar a bola ou cruzar para a área. Dribles, nem pensar. Linha de fundo, jamais.

Revela Castro que, segundo Elza Soares, ele preferiria ter sido cortado. Mas teria dito que "se eu não for e o Brasil perder, vão dizer que foi por minha causa".

Não somente Garrincha já não era o mesmo. O fracasso da própria Seleção era previsto até internamente. "O Brasil só será tri por milagre", disse a Feola o espião da seleção, Ernesto Santos, depois de acompanhar os treinos e jogos de Inglaterra, Alemanha, Hungria e Portugal. 

O jornalista inglês Peter Lorenzo, do The Sun, fez o mesmo, em sentido inverso. Acompanhou o Brasil e vaticinou: "Bellini e Garrincha morreram".

Mais pela fragilidade do adversário do que pelo próprio brilho, o Brasil venceu o primeiro jogo, contra a Bulgária, por 2x0. Foram dois gols de bola parada, de Pelé e ... Garrincha. De falta era mais fácil. Foi o último jogo da dupla Pelé-Garrincha pela Seleção. Juntos, nunca perderam um jogo.

Sem Pelé, machucado, o escrete tomou um pau no segundo - 3x1 contra a Hungria, único jogo que Garrincha perderia pelo Brasil. E sua única derrota pela Seleção viria justo neste último jogo: tinham sido, até aquela tarde, 52 vitórias e sete empates. Em seguida, já no jogo decisivo contra Portugal, Feola barrou nove jogadores. Entre eles, Mané Garrincha. Levamos outro pau e fomos eliminados.

Em um Santos x Corinthians do Campeonato Paulista, em 9 de outubro, seu ex-companheiro de seleção, Zito, não perdoou e f... de vez o joelho de Garrincha. Que já vinha muito mal. O próprio técnico do time, Zezé Moreira, já confidenciara a amigos: "É triste dizer isso, mas Garrincha acabou".

O Corinthians foi correto com Garrincha e pagou-lhe o combinado. O ponta jogou ao todo treze partidas pelo clube ao longo de 1966. Ao fim do ano, Garrincha pediu para voltar para o Rio. Foi liberado para procurar um clube que tivesse interesse nele e pagasse por seu passe.

A primeira porta onde Mané foi bater foi a do próprio Botafogo, treinado pelo seu ex-companheiro de seleção, Zagalo. Chegou a fazer dois ou três treinos para manter a forma - e nada mais. Foi também às Laranjeiras, para ver se o então treinador, Evaristo, também seu ex-companheiro de seleção, conseguiria um lugar para ele no tricolor. Nada, também.

Insistente, foi até o Vasco, treinado por Gentil Cardoso, seu primeiro técnico no Botafogo, quatorze anos antes. Recebeu apenas um convite para um amistoso em Cardoso, no interior paulista.

Não havia nenhum clube interessado em Garrincha. Houve quem sugerisse a realização de um jogo de despedida. Ele mesmo vetou: "Não preciso me despedir. Ainda tenho futebol para muitos anos".

No meio do ano, aceitou um convite da Portuguesa, da Ilha do Governador, para excursionar com o time pelo interior de Goiás, Mato Grosso e Bolívia. A expectativa dos torcedores locais era enorme. 

"Garrincha entrava no começo da partida e tentava algumas jogadas. A princípio, o zagueiro se assustava", relata Ruy. "Mas, em poucos minutos, descobria que não tinha nada a temer e tomava-lhe a bola".

A consequência era Mané se desinteressar do jogo. Segundo o autor, foi vaiado na maioria das partidas e substituído no intervalo. A excursão terminou em La Paz e Garrincha levou um calote.

Em 1968 permanecia à procura de um clube que o aceitasse. Sem noção, viajou até Montevidéu e Buenos Aires, onde tentou treinar no Nacional e no Boca Juniors, respectivamente. Mas nenhum dirigente o deixou sequer entrar em campo. Garrincha declarou aos jornais argentinos:

"Ninguém me deixa jogar. Parece até que querem me eliminar do futebol."

Mané cada vez mais desenvolvia o vitimismo que iria lhe acompanhar até o fim dos dias. Acima do peso e invariavelmente embriagado, não percebia o quão distante estava de um atleta profissional.

Volta e meia, porém, algum desavisado se deixava lesar. O colombiano Atletico Junior, de Barranquilla, foi um deles. O clube lhe adiantou algum dinheiro e lhe enviou a passagem. Castro descreve assim o episódio: "Uma semana depois da sua chegada, o Atletico Junior mandou-o embora. A torcida queria agredi-lo à saída do estádio depois do primeiro e único jogo".

O outro foi o... Flamengo. O técnico Walter Miraglia e o preparador físico José Roberto Francalacci (responsável pelo condicionamento da mirrada promessa rubro-negra Zico) acreditaram que, com alguns meses de treino, o ponta-direita poderia ao menos disputar alguns amistosos fora do Rio. O Corinthians liberou o "atleta" sem cobrar nada.

"O Flamengo não acolheu Garrincha apenas por razões humanitárias", explica Castro. "Havia três anos o clube não era campeão carioca. Estava mal de finanças, ninguém o queria para excursões e a presença de Garrincha no time seria uma atração em cidades do Norte e Nordeste".

Além de Francalacci, os médicos do Flamengo e um ortopedista tricolor, Paulo Calarge, também estavam envolvidos na recuperação do craque. João Saldanha, sem papas na língua, advertiu o especialista: "Você vai perder tempo e se queimar. Garrincha só falta beber querosene".

Ruy Castro acredita que os médicos que ao longo de toda a vida tentaram recuperar Garrincha acreditavam que parar de beber fosse uma escolha. "Mesmo no Flamengo, ninguém cogitou de submetê-lo a um tratamento específico contra a dependência, sem o que qualquer tentativa de recuperá-lo para jogar regularmente estava condenada ao fracasso", diz.

Garrincha chegou ao Flamengo em 21 de setembro de 1968, com 84 quilos. Fez um contrato de risco com o clube, ganhando apenas por partida - além de luvas, uma ajuda de custo mensal e um carro novo (um Galaxie do ano). O contrato era válido até 30 de junho de 1969. 

Sua estreia foi contra o Vasco, pela Taça de Prata, no dia 30 de novembro (data que viria a se tornar parte da da história do seu ex-clube, o Botafogo, cinquenta e seis anos depois). O jogo valia pela Taça de Prata, torneio antecessor do Campeonato Brasileiro. 

Era um sábado à noite e cem mil pessoas foram ao Maracanã ver Garrincha jogar pelo Flamengo.

De volta a seu peso normal, ovacionado pela torcida e diante de um zagueiro apavorado - "Eberval, o lateral vascaíno encarregado de marcá-lo, estava morto de medo" -, Garrincha partiu para cima e conseguiu o primeiro drible. O estádio veio abaixo. Parecia o velho Mané redivivo.

Fontana, beque do Vasco, foi menos generoso. Segundo Ruy, o zagueiro gritava: "Deixa de ser frouxo! Mete o pé nele!". O lateral seguiu o conselho à risca. "O que se viu então foi uma chacina: nas sete ou oito bolas seguintes que recebeu, Garrincha foi pisado, empurrado ou derrubado por Eberval. Numa delas, o próprio Fontana acertou um soco no estômago de Garrincha".

Mané pisou num buraco, torceu o tornozelo e não voltou para o segundo tempo. "A torcida queria acreditar que assistira à uma ressurreição", afirma o biógrafo. Depois do jogo, o Museu da Imagem e do Som lhe concedeu o prêmio Golfinho de Ouro como o "atleta do ano". Prêmios...

Garrincha foi a principal atração do time no ano seguinte. O Flamengo saiu para excursionar em janeiro de 1969, começando pelo Suriname e descendo por Belém, Manaus, Natal e Salvador. O "atleta do ano", porém, recuperou o peso que perdera e se embebedava diariamente, além de traçar com volúpia as torcedoras locais. 

De volta ao Rio, jogou as quatro primeiras partidas do Flamengo pelo Campeonato Carioca. Em 13 de abril, após uma vitória de 1x0 sobre o Campo Grande no Maracanã, foi a Pau Grande, levando a filha adotiva e a sogra. Dirigindo bêbado, como sempre (o livro descreve diversos acidentes seus, inclusive o atropelamento do pai), na viagem de volta colidiu com um caminhão e decapitou a sogra.

Em depressão, sob toneladas de culpa, abandonou o futebol e tentou se matar.

No fim do ano, o casal resolveu se auto-exilar. Elza Soares vinha recebendo ameaças de meganhas ligados à ditadura militar. A casa dos dois chegou a ser alvo de um atentado a tiros. Como sempre, estavam atolados em dívidas. Mais uma vez cogitou-se a realização de um jogo de despedida.

A ideia de Elza é que a renda do jogo quitasse a casa em que moravam. Mas nem Otávio Pinto Guimarães, da Federação Carioca, nem João Havelange, da CBD, toparam. Elza e Mané viajaram para a Itália em 24 de janeiro de 1970. Deixaram os filhos na casa não-quitada. Meses depois, um oficial de justiça bateu a porta e despejou as crianças.

Em Roma, alugaram um apartamento que parecia um palacete. Elza se tornou sucesso instantâneo e Garrincha era reconhecido e aclamado onde fosse - como o grande craque que tinha sido. Mas Mané ainda acreditava que poderia voltar a jogar. 

"O máximo que Garrincha conseguia era exibir-se em amistosos entre times amadores, quase sempre de colégios, fábricas ou sindicatos", conta Ruy, que diz que Mané recebia um pequeno cachê pela participação. "Fingia achar aquilo divertido, mas todo o cenário era deprimente: os jogos eram disputados em campinhos de pelada, em dias de semana, para arquibancadas vazias".

Araújo Netto, correspondente do Jornal do Brasil na Itália, era quem o levava para estes jogos. E testemunhou Mané assistindo na tevê aos jogos da Seleção Brasileira na Copa de 1970. No primeiro jogo (que Ruy dá o placar errado), contra a Tchecoslováquia, gritou para Jairzinho:

"Vai lá, gente boa! Vê se honra essa camisa!"

Jairzinho honrou. Meteu dois golaços - com direito a balãozinho no goleiro, matada no peito e tirambaço contra as redes, em um, e a driblar toda a defesa tcheca, no outro - e Garrincha "pareceu satisfeito", revela o biógrafo. Mas meio que se desinteressou da Copa.

"Assistiu aos demais jogos em silêncio, rodando pensativamente o conhaque dentro do copo."

As coisas não seguiram nada bem. Os shows de Elza escassearam; estavam submersos em novas dívidas, agora em liras; o alcoólatra pacífico se tornara agressivo e quebrara a cara da cantora. 

"No Brasil, circulavam os primeiros rumores sobre a situação de Garrincha na Europa", registra Ruy. "Quase todos bem perto da verdade: não conseguia jogar em time nenhum, fora visto catando tocos de cigarros nas ruas e ele, Elza e os filhos estavam passando fome". Este último era exagero.

Diante das notícias, amigos jornalistas no Brasil mexeram os pauzinhos e conseguiram que o governo nomeasse Garrincha como "embaixador do café", recebendo um bom salário mensal do IBC e com o compromisso de apenas comparecer às feiras e eventos na Europa, com tudo pago.

Houve resistências. O chefe do escritório do IBC em Milão era o industrial paulista João di Pietro, indicado pelo ministro da Fazenda, Delfim Netto. Pietro reagiu: "Não quero bêbado aqui dentro". Foi Jarbas Passarinho, ministro da Educação, quem intercedeu por Mané e garantiu o cargo.

No fim de 1971 o casal voltou ao Brasil. O diretor comercial do Ponto Frio era ligado ao Olaria e convidou Mané para voltar a jogar. Ele, que aos 36 anos dizia que ainda tinha muito futebol pela frente, mentia a idade: "Estou com 33 anos. Dá para jogar por mais uns três, né?"

O Olaria ofereceu a Garrincha um salário de 5 mil cruzeiros mensais e participação na renda em jogos contra time grande. A ideia do clube era tomar o lugar de América e Bangu e se tornar o quinto maior do Rio. "Ter Garrincha ajudaria a impor respeito e chamar o público", esclarece Castro.

Em uma chuvosa noite de quarta-feira, 49.276 ingressos foram vendidos para o jogo de estreia de Garrincha pelo Olaria, contra o Flamengo, em fevereiro de 1972. Eu, molecote, me lembro do frisson que senti, na expectativa de ver o craque atuar (ainda que pela TV) pela primeira vez na minha vida.

Aos nove minutos do segundo tempo, Gessé, do Olaria, abriu o marcador. Garrincha, que até então não fizera absolutamente nada (o lateral adversário era o seu amigo Paulo Henrique, que não deu nenhum bote nele), foi quem recebeu todos os abraços, soterrado sob uma pirâmide de jogadores. O treinador aproveitou para substituí-lo. Os jogadores do Flamengo foram cumprimentá-lo na linha lateral. Doval empatou logo depois e o jogo terminou 1x1. Mas não importava.

De fevereiro a agosto, Garrincha fez dez partidas pelo Olaria, entre jogos oficiais e amistosos. Sua última partida profissional foi contra o... Botafogo. Era o dia 23 de agosto de 1972. Quase dez anos antes, fizera seu último grande jogo, no 3x0 contra o Flamengo, em dezembro de 1962.

"Resolveu parar com o futebol profissional. Mas só parou porque quis - pelo Olaria, teria continuado", nos conta Ruy. "Começara a envergonhar-se daquela amável farsa que era a de simular seu futebol num campeonato oficial, com jogos a valer dois pontos". E, opina o biógrafo, "começara a ter com o futebol uma consciência que nunca teria com o alcoolismo".

Doravante se limitaria aos jogos festivos Brasil afora. "De abril a novembro de 1973, Garrincha exibiu-se em cerca de sessenta cidades", contabiliza o autor. Mas a grande festa, um jogo de despedida, nunca fora feita. Até então.

O "Jogo da Gratidão", com a presença da Seleção Brasileira de 1970 contra um combinado do resto do mundo, foi agendado para 19 de dezembro de 1973.

A renda do jogo seria parte de Garrincha e parte para as suas filhas (o advogado salafrário que vinha drenando o dinheiro do ponta há dez anos tentaria, como sempre, surrupiar a maior fatia, a título de honorários). 

"Um mar de 131.555 pagantes fechou o anel do Maracanã aquela noite", descreve Ruy. Elza, ao entrar no estádio, exclamou: "Agora já posso morrer!" O Brasil formou com Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo, Rivelino e Paulo César; Garrincha, Jairzinho e Pelé. Timaço.

Eu lembro: Garrincha deu uma caneta, tabelando com a canela do marcador, entrou na área e isolou por cima do gol. Bruñel fingia marcá-lo, de pernas abertas, oferecido. A arrecadação bateu em uma fortuna, equivalente hoje a um milhão e meio de dólares.

Independência financeira pro resto da vida, né? Não pro casal.

(Ruy Castro revela que foi sugerido ao compadre e amigo fiel de Garrincha, o grande Nílton Santos, "que o ajudasse a administrar o dinheiro, mas Nilton tirou o corpo fora imediatamente: 'Não aceito. Ele é inadministrável. Um dia esse dinheiro acaba e eu é que levo a culpa".)

Da sua cota, Mané deu dinheiro a torto e a direito. Em seguida, convencido por Elza, compraram um restaurante em Vila Isabel - O Bigode do Meu Tio - por uma fábula. O dono era Joffre Rodrigues, filho de Nelson Rodrigues. Mudaram o nome para La Boca. Mas, se Garrincha não era capaz de administrar a geladeira de casa, que dirá um misto de churrascaria com casa de shows. Faliram. 

Seu casamento com Elza Soares desmoronaria em breve. Ela já o vinha sustentando há anos, mas passara a ser agredida. Começou a traí-lo e se separaram. Garrincha logo casou com Vanderléa. A morena ficara viúva há três meses de um amigo seu, Jorginho Carvoeiro, ex-jogador do Vasco. Os dois já tinham se encontrado antes. Foram morar juntos na casa dela no Rio da Prata, em Bangu.

Deram a ele um emprego na LBA, para dar aulas de futebol a jovens necessitados. Seu primeiro dia de trabalho teve cobertura do Jornal Nacional. Mas, nas semanas e meses seguintes, mais bebia do que comparecia para bater o ponto - que se resumia a prestigiar o lançamento de escolinhas.

Logo sua rotina se restringia a se encachaçar e a cair desacordado pelas esquinas do bairro. Às vezes era carregado para casa; em outras, uma ambulância o levava para o hospital, sempre às custas da LBA. Criaram um tratamento ambulatorial exclusivo para Garrincha, em Laranjeiras, com sessões semanais, e carro e chofer à disposição. Mané fugia e ficava um mês sem aparecer na clínica.

As recaídas eram constantes e o tratamento, para um paciente rebelde e desinteressado, ineficaz. Fugia e bebia. As internações agora duravam uma semana. Mas bastava sair da clínica para o roteiro se repetir. Sempre requisitado, no Natal de 1982 foi a Planaltina, a 46 quilômetros de Brasília, se exibir pelo Londrina local, contra o time da AGAP. Foi sua última partida de futebol.

De volta à Bangu e ao cotidiano alcoólico, sua cada vez mais acelerada descida ao poço se aproximava do fim. Em 12 de janeiro, os médicos foram à sua casa para levá-lo de maca, amarrado, ao hospital. Pudera. Transtornado, nu, com um pedaço de pau, ameaçava matar Vanderléa.

Ficou seis dias sob sedativos e no dia 18 teve alta. No dia seguinte foi à rua, bebeu, voltou para casa. Dormiu, levantou e caiu. Se machucou. Foi para a cama e começou a se debater. A ambulância veio buscá-lo. Deu entrada na casa de saúde, foi avaliado e sedado. Deixaram-no sozinho em um quarto. 

"Uma estrela mais solitária do que nunca naquela noite imensa", escreveu Ruy.

Mané definhava. Enfim, aos 49 anos (aparentando quinze anos mais), seu corpo sucumbiu à bebida. 

Quando me encarreguei da tarefa (encomendada por mim mesmo) de sintetizar a trajetória esportiva de Garrincha, imaginei interromper a narrativa na sua saída do Botafogo. Seria suficiente dizer que, depois de se desligar do alvinegro, ele jogara, precariamente, em um time ou outro. Mas não consegui dissociar o ápice da tragédia.

O maior jogador do Botafogo de todos os tempos teve início mágico e fim trágico. Acredito que a grande maioria dos torcedores saiba da sua história somente por alto; amam, cultuam e idolatram alguém de quem não conhecem os pormenores. Já eu acho que vale a pena saber dos detalhes.

E não conheço nada melhor que "Estrela Solitária" para se saber quem foi Garrincha.

A biografia escrita por Ruy Castro é fenomenal. Merece ser lida - e relida - de cabo a rabo. Conta do jogador; mais de 50% das páginas, porém, são sobre o homem. Manoel Francisco dos Santos. Mas basta ver os filmes de Mané em seu auge - nas Copas do Mundo e no Maracanã - para ver que ele era metade homem e metade bicho. Um centauro, um Pégasus, uma outra espécie de animal.

Vai ver é por isso que sua estátua em General Severiano tem asas.

Companhia das Letras, 520 páginas  |  1a edição, 1995  |  Copyright 1995

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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