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"Leonardo da Vinci", por Walter Isaacson

 


Biografia correta e bem decupada de um dos maiores ícones da história da pintura. Consistente, a leitura flui e a proposta do biógrafo, Walter Isaacson, é funcional, alternando temas e ilustrações com critério. O resultado obtido, saboroso e de fácil digestão, não é à toa: Isaacson é calejado no assunto e assinou as biografias de Benjamin Franklin, Albert Einstein, Steve Jobs e, enfim, esta, de Leonardo - a mais recente. Temos, portanto, um autor especializado em biografar gigantes e apresentá-los não só em seus momentos de gênio, como também em suas particularidades pessoais. Como bem enfileira os fatos o biógrafo, a trajetória do artista, filho bastardo de um tabelião bem situado, foi linear e bem-sucedida. O fato de ter sido gerado fora do matrimônio lhe privou do reconhecimento oficial, mas não lhe impôs exclusão social. Arranjou-se um casamento da mãe do pintor e seus avós o criaram. Cedo começou a pintar e foi trabalhar em um atelier de produção quase industrial, onde rapidamente se desenvolveu. Assim que seu talento começou a lhe granjear alguma reputação, saiu da oficina do mestre e patrão e montou a sua própria. Durante toda a vida esteve sempre em posições social e profissionalmente confortáveis - algumas mais, outras um pouco menos. Homossexual discreto, vegetariano assumido e um postergador por natureza, Leonardo logo ficou conhecido pelas suas obras inacabadas e suas comissões jamais entregues. Protegido por muitos dos nobres mais temidos do seu tempo, Leonardo teve por mecenas os Sforza, os Borgia, o papa e outros italianos menos afamados, mas com bolsas igualmente polpudas. Entretanto, foi um francês - e também o último dos seus patrocinadores milionários -, o rei François I, quem mais o enalteceu e quem, diz-se, esteve ao pé do leito do artista no momento da sua morte. Diz-se. Lógico que, como falamos de um personagem que esteve no planeta há meio milênio, tudo é cercado de muita imprecisão; e os fatos, em si, que possam costurar as minudências da sua vida comezinha pari passu com suas criações monumentais são porcamente sabidos. E é daí que vem o pior da biografia de Isaacson: se o seu trabalho de pesquisa é inequivocamente competente, a narrativa que resultou do astuto encadeamento dos temas fica o tempo todo em banho maria. Nem lá, nem cá. Eu ousaria: insossa. Sim, do que reclamo? o tempero do talento de Leonardo é suficiente para dar sabor a qualquer prato - mas a gente se ressente de um envolvimento maior com os pormenores da vida do pintor, já que estamos lendo uma... biografia. A leitura é fria e a descrição é enciclopédica. Não seria demasiado chamarmos a edição de uma sucessão de verbetes sobre um mesmo sujeito, com 634 páginas reunindo dados e reproduções. Com isso, a leitura agrada, mas não empolga, o que é um senão grave. Porque a narrativa sobre um artista completo, um inventor séculos à frente do seu tempo e um anatomista pioneiro tem por obrigação entusiasmar o leitor diletante. Ora se não. Muito mais que o pintor que passou para a posteridade, Leonardo foi o medium de um mundo ainda não existente. Sua ânsia em desenhar uma civilização ainda impensada (literalmente) fica clara na sua paixão obsessiva pela engenharia militar, mesmo sendo, em tese, um pacifista: sua primeira proposta a qualquer um dos figurões que o contrataram foi sempre a de aprimorar defesas, desenvolver armamentos, estipular um novo planejamento urbano, desviar o curso dos rios, distribuir jardins - atacando, defendendo, entretendo, gerando energia e beleza. No livro do experiente Isaacson o leitor terá todos estes itens metodicamente relacionados, ordenados como num extrato bancário. Vez por outra, o autor insere algo mais peculiar, como sua relação de gato e rato com a nobre Isabella d'Este, riquíssima, que passou anos mendigando uma pintura do mestre, em vão (se alguém queria deixar o Leonardo da Vinci mal-humorado, bastava pedir para ele pintar). Mas, à parte os senões, o autor nos presenteia com uma minuciosa descrição da evolução, do estilo e das obras do grande artista florentino. Acompanhamos em minúcias os detalhes de criações icônicas, como "A última ceia", "Homem vitruviano", "Salvador Mundi", "São João Batista", "Madona do fuso", "Leda e o cisne", "Dama com arminho", "A virgem e o menino com Santa Ana", "Retrato de uma jovem noiva" e, lógico, a "Mona Lisa". Um mero passeio pelo processo de confecção destas obras-primas já é suficiente para valer a leitura e garantir um bom lugar na estante para este trabalho de Isaacson. Sem sombra de dúvida, uma edição para divertir e ilustrar.

Mas, cá pra nós, ainda está por surgir, neste século, uma biografia à altura de Leonardo da Vinci.

Intrínseca, 634 páginas

"Vincent", por Barbara Stok

Fascinante homenagem em quadrinhos a um dos maiores artistas de todos os tempos. A quadrinista holandesa Barbara Stok parte do relacionamento afetuoso entre os irmãos Vincent e Theo Van Gogh para retratar os meses finais da vida do atormentado gênio holandês. E faz isso em imagens e balões, numa HQ delicada que emula as telas e as pinceladas do mais poderoso - e perturbador - dos impressionistas. Stok nos convida também para um convívio amoroso com a personalidade difícil do gênio. Ressalte-se que com filtros: seu caráter irascível é atenuado (como bem convém a uma história em quadrinhos) e sua anti-sociabilidade explosiva é figurada como ranzinzice. Se ela suaviza, porém, a natureza de Vincent, atribuindo-lhe uma meiguice impensável, não esconde seu temperamento forte, suas crises repentinas, as suas grosserias e constantes tempestades em copo dágua que eram do seu feitio - e que faziam dele, cá pra nós, uma criatura insuportável. O roteiro inicia com sua partida de Paris rumo à pequena Arles, que coincide com o início da sua deterioração física e, simultaneamente, com o amadurecimento da sua obra. A maior parte dos seus mais de 800 quadros foram pintados na região, onde elaborou sua forma particular de expressar as cores. E onde encontrou também os girassóis. Stok faz foco na expectativa de Vincent pela chegada de Gauguin (cuja obra do século XIX vem sendo moralmente condenada em semanas recentes do século XXI) à cidade, para a concretização do sonho de montar uma república de pintores sob a intensa luz do sudeste francês. Como todos os demais relacionamentos de Vincent, este também deu absolutamente errado, acelerando seu desmoronamento emocional (foi então que se deu o célebre episódio da auto-mutilação de Van Gogh, quando ele cortou fora a própria orelha). Abalado, aceitou a internação em uma casa psiquiátrica em um vilarejo próximo, Saint-Rémy-de-Provence, onde deu continuidade à sua obra estonteante - foi lá que pintou "Noite Estrelada", um dos seus temas mais famosos e dominantes (título também da exposição atualmente em cartaz à qual me refiro no post scriptum). Parênteses: no que depender de mim, eu ainda vou dormir um dia sob esse céu. Quero ver a noite que ele viu. Pouco depois dessa sua estada em Saint-Rémy, o gênio se deu alta e foi morar em uma cidadezinha próxima à Paris, Auvers-sur-Oise, para poder voltar a conviver com seu irmão Theo, agora casado e com um filhinho ao qual deu o nome... Vincent. É durante a sua curta permanência em Auvers que tem a notícia da venda do seu primeiro quadro e do frisson que seu trabalho vem provocando em Paris. O tão sonhado reconhecimento à genialidade da sua obra encontra um pintor cansado e desiludido, quase indiferente à repercussão provocada. O aplauso que procurou por toda a vida já não o comove, nem interessa. Apático, em alguns dias ele irá morrer, com um tiro no peito. A tese do suicídio ainda é dominante, embora a mais recente biografia de Van Gogh, resenhada aqui no blog em 2015 ("Van Gogh - A Vida", por Steven Naifeh e Gregory White Smith), refute esta teoria de um Vincent suicida; e vai além, defendendo a hipótese de assassinato e apontando o autor do crime. Eu me senti convencido. Mas esta morte não acontece no livro de Barbara - nem de um jeito, nem de outro. Na doce e sonhadora trajetória desenhada por ela, a única referência à sua morte é o par de lápides, de Vincent e de Theo, lado a lado, arrematando uma comovente página em branco. Antes, uma sucessão de pranchas interpondo os trigais de Van Gogh com sua própria presença nos campos que retratava mistura criador e paisagem em um mesmo cenário. Solitário, na quina de ângulos distorcidos e convexos, como ele tanto gostava de pintar. A autora nos faz ver que eles são um só - o gênio de Vincent era parte da beleza que testemunhava. Não tenho dúvida que, lá da noite estrelada onde habita, o pintor sorriu para a carinhosa estória desenhada por Barbara Stok.

LP&M Editores, 143 páginas

P.S.: Esta foto estourada, desfocada, sou eu imerso na "Noite Estrelada", agora em abril, no Atelier des Lumiéres, em Paris. Mais um trabalho genial embebido no gênio de Van Gogh. A previsão é que a mostra se encerre em janeiro de 2020 - você, se puder, vá. Pena que, fechando já agora, em quatro semanas, eu não terei oportunidade de retornar, rever e me encharcar de Van Gogh. Ah, se eu pudesse...

"O melhor guia de Nova York", por Pedro Andrade

Pedro Andrade é o jornalista responsável pelos comentários e reportagens de cultura do excelente "Manhatann Connection", talk show transmitido diretamente de Nova York (há pelo menos 20 anos) e atualmente exibido aos domingos, na grade da GloboNews. O jornalístico, onde se excedia Paulo Francis, tem Lucas Mendes à frente, e, ao lado, o barbudinho boa praça Caio Blinder. De Veneza, Diogo Mainardi expele sua costumeira bílis e, de São Paulo, o contraponto cabe ao mordaz Ricardo Amorim. Bem, este é o programa. Nele, Pedro Andrade é o jovem mosqueteiro que, com inequívoca vocação para dândi inglês, nos leva às galerias e restaurantes da Grande Maçã - invariavelmente com estilo, conteúdo, impecáveis enquadramentos e um background musical que sempre me faz pensar "onde esse cara achou isso?" Moçada, só rola filé: do blues ao indie, enveredando pelo jazz e outros que tais. Viajante. Mas não era do livro que eu ia falar? Pois é. Andrade conseguiu transpor suas aparições do vídeo para as páginas. Tanto que não sei se, ao vivo, ele parece que lê ou se, no livro, ele parece estar ao vivo. Não importa. O livro é o Pedro - sem tirar nem por -, só que impresso. As dicas são práticas e com um suave quê de esnobismo que é a cara do apresentador. Tudo rápido, afiado e tentador. Qualquer sujeito com um mínimo de curiosidade pegaria o primeiro vôo para Nova York, para checar uma a uma as instigantes sugestões de um repórter que, provocantemente, diz ter escrito o melhor dos guias sobre a melhor das cidades. Humm... Ir para Manhatann, agora, fim do ano? É um caso a se pensar. Sossega, dólar.

Editora Rocco, 268 páginas

Post Scriptum: Pois é. Fui. No mês passado, outubro. O dólar? não sossegou. Se assanhou. Pobres (literalmente) de nós, que ganhamos em reais. Mas Nova York estava exuberante. Repleta, confusa e irresistível. Cruzei a Big Apple de Norte (The Cloisters) a Sul (Battery Park), de Leste (Smorgasborg)  a Oeste (High Line). Já o flagrante acima é em frente à McNally, downtown Manhatann, tudo dica do Pedro. 

"Van Gogh - A Vida", por Steven Naifeh e Gregory White Smith

Vincent Van Gogh, o grande pintor holandês, morreu em 1890 (justamente hoje, 29 de julho, faz 125 anos da sua partida) e suicidou-se em 1950. Foi quando... Opa. Há algo errado nessa frase. Não pode alguém morrer no século XIX e suicidar-se 60 anos depois. Só que, com Vincent, foi quase assim. Vou explicar melhor. Porém, antes de mais nada, vale a pena falar um pouco do cara - um personagem que é mais conhecido pela orelha, ou melhor, por ter cortado a própria, do que pela obra. Injusto. Vincent foi um dos maiores artistas de todos os tempos. Pode ser uma afirmação subjetiva (e é!), mas tem a ver com o impacto que sua obra causou no mundo da arte e no planeta civilizado. Vincent, súbito, logo após sua morte, depois de uma abominável vida de escárnio, estupidez e indiferença, passou a ser admirado - e desde então seu prestígio nunca parou de crescer. Ano após ano, seu nome foi se tornando maior. Os quadros com a assinatura "Vincent" valiam cada vez mais. Sua arte fascinava a cada instante um número maior de mortais embasbacados. O traste desdentado, repulsivo e mal cheiroso se tornou o grande Van Gogh. O planeta se curvou ao seu valor. Assim, os museus e espaços dedicados a ele vêm sendo, décadas a fio, sucessivamente renovados e ampliados. Por tudo isso que disse, conhecê-lo um pouquinho não é mau negócio. O louco e tido por suicida Vincent Van Gogh era maluco. Pancada da ideia. Assim que nem o Jobson. Era instável, temperamental. Obsessivo e obcecado. Mas, se doido, suicida não era. Somente nos anos 50 essa versão do gênio louco que tirou a própria vida ganhou vulto, com o filme "Sede de Viver". Kirk Douglas fazia o papel do holandês e arrebatou multidões. A partir daí, a fama de Van Gogh começou a transcender o espaço da pintura. Eu, moleque, quando vi o filme, fiquei vidrado (vi o filme já na TV, na Sessão Coruja da Globo, em meados dos anos 70). Vincent era um dínamo. A intensidade do pintor me lembrava mais o lutador Roberto Mano-de-Piedra Durán do que um artista. E o mito do artista incompreendido que, em mais um rasgo da forte personalidade, deu cabo de si mesmo, fez do personagem uma lenda, conhecida e repetida por todos. Seus quadros e sua pintura única, soberba, se tornaram um pormenor. O estereótipo se sobrepôs ao conteúdo. Van Gogh é, numa primeira citação, o cara que cortou a própria orelha. Tudo o mais é secundário. Mas, voltando ao guri fisgado pelo filme, toda vez que via uma foto de um quadro dele me lembrava do poço de energia e vitalidade com que Kirk Douglas (pai do Michael Douglas, galera, que fez "Wall Street" e "Atração fatal") o representou. E passei a prestar atenção nas telas dele. E aí vi "Noite estrelada" - e nunca mais fui o mesmo. Eu vejo "Noite estrelada" e choro. Vejo "Noite estrelada" e fico hipnotizado. E "Os Ciprestes". E "O Quarto". E... Van Gogh sempre me fascinou. Quando fui ao Museu de Arte Moderna, em Nova York, há 20 anos, era atrás dos quadros dele que eu estava. Sentei e fiquei olhando. Não lembro se chorei. Mas eu e o quadro permanecemos um frente ao outro por um longo tempo. Depois disso, comprei umas réplicas, emoldurei, pendurei. Confesso que, na azáfama dos dias, já não recordava o quanto ele me impressionava. Há coisa de dois anos, contudo, soube que lançaram uma nova biografia dele, super elogiada. Eu, que nunca tinha lido nenhuma das escritas sobre ele, não resisti. Comprei. Uma beleza. Um tijolo de mais de 1.000 páginas. Lindo. Com um auto-retrato na capa dura. Não obstante, ficou na estante. Tinha outros trezentos livros na frente. Então, no início desse ano, resolvi ir à Holanda. Pensei: se não ler agora, quando? Então peguei o bruto e comecei. Rapaz, vou te falar: que livro lindo. Absurdamente bem escrito, com base em uma pesquisa pterossáurica, compilando centenas de cartas pessoais e nos permitindo ocupar um pequeno espaço dentro da mente perturbada desse gênio único. Uma biografia que é uma obra-prima, narrando a história de um louco. Um desajustado. Um iracundo.  Um homem retraído e sanguíneo, de difícil convivência. Raramente violento, mas que se auto-punia selvagemente. Que tentou ser muita coisa: professor, pastor, vendedor de quadros. Inequivocamente, um fracassado. Que, evitado e desprezado por todos - da família às prostitutas, passando pelos moleques de rua -, resolveu, já adulto, ser pintor. Percebe isso? Um cara que morreu jovem (37 anos), resolveu, aos 28 anos, virar pintor. Do nada. Um retratista. Mas, como nas demais atividades que tentou, só acumulou insucessos. Por mais que trabalhasse, com uma obstinação que era só sua, não tinha êxito. Para os pais e irmãos, uma vergonha. Para os tios, um peso morto. Para os cidadãos, um pária. Para os pintores, uma chacota. E, por incrível que pareça, essa descrição fala de Vincent Van Gogh, um dos maiores gênios da pintura de todos os tempos. Seus 37 anos de vida são contados em um livro alentado. Que desnuda um pintor feito de luz e rudezas. A figura de Van Gogh é prato cheio para os estereótipos. Estes são práticos. Reduzem qualquer um a dois ou três adjetivos. Mas "maluco", "gênio" e "incompreendido" estão longe de definir Vincent. As observações e descrições artísticas da primorosa biografia escrita a quatro mãos por Naifeh e Smith descortinam a paisagem de um ser humano ímpar, que carregava o fardo de suas tantas fraquezas e o lastro das suas obsessões. As mais de 700 cartas trocadas entre Vincent e Theo (seu irmão mais novo) e também com outros familiares e pintores ajudam os biógrafos a erigir um amplo painel da personalidade do gênio. O Vincent que eles esculpem é um gigante. Um cíclope apaixonado. Possessivo e manipulador. Um atormentado. É tal a força do personagem que os autores minuciosamente pincelam, que, entristecido, sofro de saudade ao chegar ao fim do livro. O artista me toma e não é fácil saber que, terminando a leitura, não mais poderei compartilhar a convivência com esse cara, que partiu há mais de um século, depois de uma vida de desajuste, sofrimento e dezenas de obras-primas que redefiniram a história da pintura. Algumas versões sobre ele se tornaram lendas, mas não procedem: dizem que não vendeu um quadro em vida. Vendeu. Vender suas obras era tudo o que queria, para poupar o irmão do peso de sustentá-lo. Mas, quando começou a vender, não acreditava que fosse o suficiente. O fracasso comercial, entretanto, não é o traço mais forte da trajetória de Vincent. E sim a compulsão pela repetição ilimitada, maníaca, que enfim desabrochou em uma obra absolutamente genial. Nunca li nada mais perfeito sobre Vincent do que o texto escrito por Albert Auriers, o primeiro crítico que percebeu a grandeza da obra de Van Gogh, muito antes de qualquer outro - inclusive o próprio Theo, que permanecia cético sobre o real talento do irmão. À época, o trabalho de Vincent era execrado - "o irmão louco do galerista Theo Van Gogh" - e ninguém se ocupava seriamente dele. Entretanto, faltando poucos meses para a sua morte, começaram a surgir comentários e resenhas positivas sobre "o talento do holandês que se mudara para o Sul da França e enlouquecera". Auriers, escrevendo sob o pseudônimo de Luc le Flâneur, buscando um mote que desse substância à revista que estava por lançar, fez uma apresentação soberba da obra de um pintor que, via de regra, era caçoado à primeira citação de seu nome: "Uma estranha natureza, verdadeira e quase sobrenatural, uma natureza excessiva em que tudo, seres e coisas, sombras e luzes, formas e cores, se subleva, se levanta numa vontade raivosa de gritar no timbre mais intenso... a natureza inteira retorcida de maneira frenética, elevada ao paroxismo, erguida aos ápices da exacerbação; é a forma se tornando o pesadelo, a cor se tornando labaredas, lavas e pedras preciosas, a luz se fazendo incêndio... atmosferas pesadas, ardentes, abrasadoras que parecem se exalar de fantásticas fornalhas, as assustadoras silhuetas em chamas... nunca houve nenhum pintor que apelasse tão diretamente aos sentidos." Esse foi apenas um trecho de uma extensa apologia à Vincent - que, pasme, leu a crítica e se resumiu a discordar. Se disse constrangido por alguém ver nele uma grandeza que sabia não possuir. Incomodava a ele o perfil de "selvagem" e de "artista em estado bruto" com que a apologia do jornalista o retratava, pois a mãe e a família já o viam sobremaneira bestializado - tudo o que ele não queria ser. Dias depois, se entusiasmou com a perspectiva de que aquela crítica ajudasse a vender os seus quadros, podendo a partir daí não mais sobrecarregar o irmão, que, doente, recém-casado e com uma criança pequena, passava também por dificuldades. Os meses seguintes, os finais da vida de Vincent, ele dedicou não ao novo status de artista reconhecido, mas prosseguiu na sua antiga ânsia de ser parte de uma família que o acolhesse. Nos últimos anos, a pintura só o interessava como válvula de escape das suas carências, complexos e fragilidades.  Rejeitado pela própria família desde a mocidade - de forma compreensível, dado o seu mau gênio e comportamento assumidamente hostil - procurou, ao longo da sua trajetória, reparar essa relação tragicamente mal resolvida (sempre sem sucesso, piorando-a mais e mais a cada tentativa). Por conta disso, por inúmeras vezes tentou formar um núcleo que reproduzisse a família que lhe faltava, indo dos pintores às prostitutas. Fez isso via de regra de forma desequilibrada, sendo repetidamente rechaçado por eles e elas. Era esse sentimento de família o que buscava (mais uma vez com o próprio irmão, Theo, agora incluindo a cunhada Jo e o sobrinho Vincent), ao se mudar para uma pacata cidade próxima a Paris, Auvers. Lá foi seu derradeiro endereço: um dia retornou, andando, ao pequeno hotel em que morava, a Estalagem Ravoux, com um orifício sob as costelas. Sangrava. Era um mínimo buraco de bala, que ficara alojada em seu organismo. Perguntado sobre quem atirou nele, pediu "que não envolvessem ninguém nisso, que ele próprio se acidentara". Já com o organismo debilitado por tantos anos de maus cuidados, em menos de 48 horas morreu. Expirou na cama, silenciosamente, com o irmão ao seu lado - o único que veio de Paris para vê-lo. Ninguém da família compareceu ao enterro. Nem a mensagem passada pelo irmão para o seu vasto círculo de relacionamento fez com que os parisienses se dispusessem a enfrentar os meros 30 km que separavam a Cidade Luz do insosso município. As razões que levaram à morte permaneceram obscuras. Van Gogh nunca teve arma e, religioso, exprobava os sucidas. Não houve bilhete ou testamento. O tiro foi em uma região improvável para quem pretendia se matar. A arma nunca foi encontrada. Com a passagem dos anos e o lançamento da biografia "Sede de Viver", na década de 30, a hipótese do suicídio ganhou vulto. A filha do estalajadeiro passou a dar versões cada vez mais completas de hipotéticos relatos do pai sobre a morte do - naquela hora, 40 anos depois - internacionalmente famoso pintor. O filme estrelado por Kirk Douglas deu exposição mundial a essa tese. Agora sim, era inequívoco: o gênio havia se suicidado. Poucos deram atenção ao relato de René Secrétan, que teve uma entrevista publicada em 1956, desmentindo a hipótese do suicídio. René, então com 80 anos, havia convivido na adolescência com Vincent Van Gogh. Debochava dele. Pregava-lhe peças. Passava pimenta nos pincéis do pintor, que tinha a mania de levá-los à boca. O irmão de René, Gaston, era amigo de Vincent, que tolerava René em deferência a Gaston. René, de família rica, era obcecado pelas histórias de Bufallo Bill e se trajava como tal, de chapéu, colete de pele de gamo com franjas e... um pequeno revólver. Real. Que não somente atirava, como René jamais se separava dele. René não confessou nada, ainda que mais de 60 anos depois. Mas afirmou que Vincent não se matara. E o fato é que, estranhamente, logo após a morte de Vincent, René e sua família abastada haviam saído da cidadezinha, onde passavam anualmente as férias, para nunca mais voltar. A arma, repito, nunca foi encontrada. Vincent uma vez havia escrito: "Eu jamais me mataria - mas, se a morte viesse ao meu encontro, eu nada faria para evitá-la." Não há teorias que calcem a hipótese do assassinato. Mas a obra de Naifeh e Smith não se esquiva e expõe sua tese, atribuindo a Renê o ônus, acidental ou não, da morte de Vincent Van Gogh, aos 37 anos, em Auvers. Não obstante, a lenda superou os fatos. O pintor que havia cortado a própria orelha depois se matou. Não foi bem assim e agora isso nada importa. Ficou a arte imortal deste gênio atormentado. Arte extraída a fórceps das próprias entranhas e que lhe custou a sanidade. Hoje faço minha reverência a esse cara incomparável. E dou testemunho de que a obra-prima escrita por Steven Naifeh e George White Smith ergueu um gigantesco monumento à memória de Vincent. Ave, Vincent. Era verdade, você estava certo. Só você era capaz de ver o que ninguém via.

Companhia das Letras, 1.095 páginas

P.S.: Na foto, me deleito com a bio de Vincent, em Amsterdam, numa gelada Marnixstraat, meu endereço temporário. Repare a garrafa de vinho no parapeito. Quando eu era guri e meu tio Werther nos visitava em Petrópolis, ele sempre colocava uma garrafa de vinho do lado de fora da janela, para tomá-la no que ele chamava "temperatura ambiente". Ignoro se a crença é falsa ou verdadeira, mas repeti-lo é lembrá-lo. Saudades, tio! 

"Rio de Janeiro, cidade mestiça", por Jean-Baptiste Debret

Em 1808 o Rio de Janeiro mudou de patamar. Havia chegado a corte imperial. A quente e poeirenta cidade se tornara sede do único reino europeu fora da Europa. O dinheiro veio, os negócios (e os ingleses) surgiram, a economia cresceu e os artistas (franceses) afluíram. Em 1816 desembarcou na cidade um dos mais longevos entre eles, e que nela permaneceria por 15 anos, legando registros que se tornariam clássicos sobre o Rio. Era Jean-Baptiste Debret. Ele aqui dedicou-se a um minucioso trabalho, que, reunido, culminou na "Viagem pitoresca e histórica ao Brasil", lançado na França oito anos após seu retorno, em 1839. Para meu deleite, acabei de ler uma compilação do livro original, reeditado na França em 2001. Com organização de Patrick Straumann, a obra traz no posfácio articulistas das três pátrias (ou continentes) envolvidas, que analisam o contexto, a pintura e o período retratado. Acima de tudo, é um livro importante na iconografia da cidade e do país. Poucas coleções retratam com tamanho critério e disciplina o Rio de então - ainda que não se furte às distorções de estilo e às exigências de mercado. Debret aportou no cais da Praça XV já um artista maduro, de 47 anos, o que refletiu na sua produção e contribuiu para que ela se tornasse fundamental fonte de informação sobre o Rio d'antanho. É um Rio negro. Nas suas ilustrações, as ruas da cidade estão coalhadas de escravos; e, quando há brancos, há todo um séquito de africanos a servi-los (Luiz Felipe de Alencastro, em texto ao fim do livro, se estende sobre a onipresença negra: à época, um terço da população carioca havia nascido na Àfrica, e, ao todo, 41% dos habitantes da cidade eram escravos). As gravuras eram feitas para comercialização na Europa, para uma burguesia cada vez mais àvida por conhecer imagens da exótica América do Sul. É fato que nem sempre eram fidedignas e não raro descambavam para o estereótipo - assim atendendo melhor às expectativas do consumidor europeu. O próprio Debret, que havia passado uma temporada na Índia, trai a impressão que o período lhe causou, ao retratar o interior das casas brasileiras com fisionomias e costumes típicamente orientais (hábitos os quais, a serem verdadeiros, não deixaram herança). Mas, decerto, foram também influência de uma caracterização que já detinha seu próprio mercado nas capitais européias. As gravuras são acompanhadas por descrições do próprio pintor, enriquecendo o livro. Após a seleção das ilustrações, três articulistas da Guiné, do Brasil e da França abordam temas correlatos à obra. Tierno Monénembo vê no Brasil de hoje os sintomas de um passado comprometido com a escravidão, cuja atual eqüidade racial julga mais aparente que real; Luiz Felipe de Alencastro analisa estatísticas demográficas e do trabalho escravo, tema recorrente de Debret; Serge Gruzinski aborda o estilo e as razões para o afluxo de pintores ao continente, acompanhando a evolução da pintura de vários artistas e sua crescente capacidade de reprodução da realidade observada. "Cidade mestiça" é uma obra que qualquer devoto da história do Rio deve ter na estante. Eu, que me listo entre eles e recomendo o livro, fui surpreendido há pouco pela notícia de uma exposição das obras originais de Debret da Coleção Castro Maia, no Centro Cultural dos Correios, na Primeiro de Março. Corri até lá numa sexta-feira desse mesmo mês. Era uma noite quente e chuvosa. Cheguei aos Correios saltando em meio aos buracos, poças e tapumes que são bem a cara da nossa cidade maravilhosa. Porém, para minha decepção, deparei com uma exposição banal. Resumida à repetição do formato padrão das exposições, não empolga. Entedia. Por isso, sugiro aos interessados que optem pelo livro. Qualquer um que o tenha em mãos vê mais acuradamente o trabalho de Debret do que a mostra permite. No livro há erros, como o das páginas 168 e 169, cuja legenda trata por Baía de Guanabara o que é uma panorâmica da Lagoa Rodrigo de Freitas, mas não há percalços. Porém, se ainda assim alguém se aventurar pelas salas vazias da exposição, que suba a escada e evite o elevador centenário. A relíquia parou no tempo e também no meio do caminho. A ascensorista, irritada, gritava com o segurança, que, segundo ela, tinha que ir não sei onde e apertar lá um tal botão. Enquanto isso, ficamos trancafiados na gaiola suspensa. Melhor não.

Companhia das Letras, 200 páginas

"Cadernos de viagem: Rio de Janeiro", por Jano

Há quem escreva um tratado de sociologia sem escrever uma linha. É o caso do Jano. O francês conta a poluída exuberância social do Rio em 30 imagens. Nelas, sequestra os mínimos detalhes do ambiente e dos atores locais com um risco minucioso, dando brilho ao que, na origem, era opaco e despercebido. Ácido observador do habitat carioca (com o viés que só forasteiros têm), seu caderno de viagem esquadrinha a cidade à procura da essência do Rio - e acha. A primeira ilustração, a Rua do Catete, retrata o riponga, os desocupados sentados nos respiradouros do metrô, o bêbado, a faixa pendurada na fachada, os caixotes de laranjas, o pachorrento na sacada tomando sua cerva em plena tarde, o contraste dos sobrados rococós com as linhas insípidas da lateral do espigão. Já no desenho escolhido para ilustrar o post, Jano compõe seu mosaico com as diferentes simetrias dos paralelepípedos, do cobogó verde-água, do composê de cerâmica multicolorida em formato de pedras irregulares, das listras pretas e amarelas das bandeiras de alerta na traseira do caminhão-pipa, das tábuas aparentes no trapiche no alto da cena. Nada é sem propósito: enquanto seus personagens com corpo de gente e cara de bicho trazem non-sense e movimento à peça, a luz embaçada nas encostas do morro (o Vidigal, do qual vemos a base da grande pedra que forma o Dois Irmãos) dão a distância e o volume do enquadramento. Jano, fazendo as vezes de um pós-Debret, é mais um francófono de talento que vem à Terra Brasilis registrar o o desorganizado, sensual e preguiçoso cotidiano carioca. E o trabalho que ele nos lega é brilhante. Mais: é excepcional. Para quem gosta do Rio subcutâneo - a paisagem sob a derme -, o caderno de Jano é um achado.

Gráfica Casa 21, 72 páginas

"Eu fui Vermeer", por Frank Wynne

Han Van Meegeren foi um pintor holandês de refinada técnica, à feição dos grandes artistas holandeses do passado. Teve dinheiro, sexo com as mais belas mulheres, obras expostas nos principais museus e quadros alvo de disputa e ofertas milionárias. Que beleza. Bem, seria, não fosse um ou outro pormenor - o sortudão tinha uns probleminhas. Primeiro, é que as telas que ele pintava  e vendia por fortunas eram assinadas por pintores mortos. Segundo, as mulheres que ele pegava não eram dele. Terceiro, é que oficiais nazistas, em uma Europa dominada pelo III Reich, se interessaram demasiadamente pelos seus quadros (que, lembramos, não eram “seus”). Mas não pense que foi isso que condenou o nosso amigo; Han era tão virado pra lua que nada disso impediu que ele continuasse tendo um vidão. O que complicou Van Meegeren foram as mentiras que ele contou durante a ocupação alemã  (apenas para justificar a razão da venda dos quadros) e que fizeram com que o julgassem, erradamente,  após a guerra, um colaborador nazista. Esta, que poderia ser a história fútil de um bon-vivant, escroque e marchand, virou o relato do julgamento do maior falsário de todos os tempos. Um gênio que deu o azar de nascer no século errado – algo como ser o Cauby Peixoto em um show exclusivo para fãs do João Gilberto. O livro, enxuto e bom de ler, nos revela um estelionatário que pintou Vermeer (um dos mais venerados artistas holandeses, mestre dos semitons, das luzes e das sombras) tão bem que até hoje, mais de meio século após sua morte, muitos Van Meegeren podem estar ocultos sob nomes absolutamente admirados. Em 2004, a tradicional Sotheby’s leiloou um… Vermeer?, “Jovem sentada ao virginal”, por 27 milhões de dólares. Se é uma obra-prima de 350 anos ou uma fraude quase perfeita, não há, por ora, quem nos traga a resposta. Os dois que poderiam afirmar – Vermeer e Van Meegeren – viraram adubo. E, lendo o livro, você já não sabe dizer até onde isso importa. 

Companhia das Letras, 296 pgs

Obs.: Aninha achou e me enviou esta foto em maio de 2018. Identifiquei o livro em minhas mãos e, pela beleza da companhia, se tornou de pronto a imagem do post de 7 anos atrás. A camiseta é de autoria da Leopoldina e eu sou de autoria dessa moça bonita aí de cima.