"Vincent", por Barbara Stok
Fascinante homenagem em quadrinhos a um dos maiores artistas de todos os tempos. A quadrinista holandesa Barbara Stok parte do relacionamento afetuoso entre os irmãos Vincent e Theo Van Gogh para retratar os meses finais da vida do atormentado gênio holandês. E faz isso em imagens e balões, numa HQ delicada que emula as telas e as pinceladas do mais poderoso - e perturbador - dos impressionistas. Stok nos convida também para um convívio amoroso com a personalidade difícil do gênio. Ressalte-se que com filtros: seu caráter irascível é atenuado (como bem convém a uma história em quadrinhos) e sua anti-sociabilidade explosiva é figurada como ranzinzice. Se ela suaviza, porém, a natureza de Vincent, atribuindo-lhe uma meiguice impensável, não esconde seu temperamento forte, suas crises repentinas, as suas grosserias e constantes tempestades em copo dágua que eram do seu feitio - e que faziam dele, cá pra nós, uma criatura insuportável. O roteiro inicia com sua partida de Paris rumo à pequena Arles, que coincide com o início da sua deterioração física e, simultaneamente, com o amadurecimento da sua obra. A maior parte dos seus mais de 800 quadros foram pintados na região, onde elaborou sua forma particular de expressar as cores. E onde encontrou também os girassóis. Stok faz foco na expectativa de Vincent pela chegada de Gauguin (cuja obra do século XIX vem sendo moralmente condenada em semanas recentes do século XXI) à cidade, para a concretização do sonho de montar uma república de pintores sob a intensa luz do sudeste francês. Como todos os demais relacionamentos de Vincent, este também deu absolutamente errado, acelerando seu desmoronamento emocional (foi então que se deu o célebre episódio da auto-mutilação de Van Gogh, quando ele cortou fora a própria orelha). Abalado, aceitou a internação em uma casa psiquiátrica em um vilarejo próximo, Saint-Rémy-de-Provence, onde deu continuidade à sua obra estonteante - foi lá que pintou "Noite Estrelada", um dos seus temas mais famosos e dominantes (título também da exposição atualmente em cartaz à qual me refiro no post scriptum). Parênteses: no que depender de mim, eu ainda vou dormir um dia sob esse céu. Quero ver a noite que ele viu. Pouco depois dessa sua estada em Saint-Rémy, o gênio se deu alta e foi morar em uma cidadezinha próxima à Paris, Auvers-sur-Oise, para poder voltar a conviver com seu irmão Theo, agora casado e com um filhinho ao qual deu o nome... Vincent. É durante a sua curta permanência em Auvers que tem a notícia da venda do seu primeiro quadro e do frisson que seu trabalho vem provocando em Paris. O tão sonhado reconhecimento à genialidade da sua obra encontra um pintor cansado e desiludido, quase indiferente à repercussão provocada. O aplauso que procurou por toda a vida já não o comove, nem interessa. Apático, em alguns dias ele irá morrer, com um tiro no peito. A tese do suicídio ainda é dominante, embora a mais recente biografia de Van Gogh, resenhada aqui no blog em 2015 ("Van Gogh - A Vida", por Steven Naifeh e Gregory White Smith), refute esta teoria de um Vincent suicida; e vai além, defendendo a hipótese de assassinato e apontando o autor do crime. Eu me senti convencido. Mas esta morte não acontece no livro de Barbara - nem de um jeito, nem de outro. Na doce e sonhadora trajetória desenhada por ela, a única referência à sua morte é o par de lápides, de Vincent e de Theo, lado a lado, arrematando uma comovente página em branco. Antes, uma sucessão de pranchas interpondo os trigais de Van Gogh com sua própria presença nos campos que retratava mistura criador e paisagem em um mesmo cenário. Solitário, na quina de ângulos distorcidos e convexos, como ele tanto gostava de pintar. A autora nos faz ver que eles são um só - o gênio de Vincent era parte da beleza que testemunhava. Não tenho dúvida que, lá da noite estrelada onde habita, o pintor sorriu para a carinhosa estória desenhada por Barbara Stok.LP&M Editores, 143 páginas
P.S.: Esta foto estourada, desfocada, sou eu imerso na "Noite Estrelada", agora em abril, no Atelier des Lumiéres, em Paris. Mais um trabalho genial embebido no gênio de Van Gogh. A previsão é que a mostra se encerre em janeiro de 2020 - você, se puder, vá. Pena que, fechando já agora, em quatro semanas, eu não terei oportunidade de retornar, rever e me encharcar de Van Gogh. Ah, se eu pudesse...
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