"Contos completos de Lima Barreto", org. por Lilia Moritz Schwarcz

quarta-feira, novembro 27, 2019 Sidney Puterman

Lima Barreto sempre me fascinou. Seu Policarpo Quaresma, com sua utopia nacionalista, borbulhava em meu coração adolescente. Desde então, sempre quis saber mais do autor, pouco reconhecido em seu tempo. Hoje, quase um século após sua morte, Lima é um autor celebrado. Bem diferente do status rarefeito que desfrutava quando vivo. E a generosa compilação de textos feita por Schwarcz nos concede observar o apogeu e decadência (esta provavelmente devido à doença que o enlouqueceu) da sua prosa. São dezenas de textos, vindos da mesma pena, mas que jamais estiveram juntos. Reunidos, nos permitem traçar uma mediana da sua verve impiedosa. Lima era desdenhoso e de uma erudição debochada. Sua cisma era retratar, com sarcasmo sutil, o conhecimento aparente e a subserviência aos cargos e posições sociais, revelando a impostura do establishement (ainda assim, em sua vida pessoal perseguiu à exaustão as benesses deste universo desprezível que tanto criticava). Em sua introdução, Lilia destaca: "A literatura de Lima Barreto se caracteriza por um claro 'ressentimento', dando vazão a temas como cor e exclusão, corporalidade e discriminação, divisões sociais e hipocrisias científicas." A reverência popular ao domínio de alguma ciência ininteligível, ou mesmo o pertencimento a alguma cultura distante, foram temas de alguns dos seus melhores contos (como "O homem que sabia javanês", "A nova Califórnia", "Miss Edith e seu tio", "Como o 'homem' chegou", entre outros). Se é inegável seu talento, da mesma forma o são seus recalques - transbordam em todas as linhas e parágrafos do seu texto de camuflada irreverência. Recorrendo frequentemente às contradições do contrato social entre cavalcantis e cavalgados, como se diria no Pernambuco, Lima era sobremodo autorreferencial e geograficamente monotemático. Mas para nós, cariocas, esta circunscrição demasiada é um verdadeiro presente. Cronista da nossa antiga periferia suburbana (hoje alargada até os municípios fluminenses da Baixada), ler Barreto é viajar ao Rio de Janeiro do início do século XX. É uma imersão nas raízes da brasilidade - tosca, ingênua, presunçosa -, um atavismo que nos molda, para o bem ou para o mal (mais para o mal, na ácida visão do autor, que tachava o brasileiro de medíocre). Fato é que Lima era sobretudo um crítico mordaz. Criticava a tudo e a todos. Era contra o samba, a vacina, o futebol, os evangélicos, os políticos, os doutores. Gostava de fazer troça dos sabichões, ainda que, nos seus contos, estes costumassem ser bem sucedidos, pela vantagem da sua falta de caráter ou pela inocência das vítimas engambeladas. Seja pela forma, seja pelo conteúdo, Lima Barreto transcendeu o tempo. O alcance da sua obra é tal que, semana passada, 108 anos após sua primeira publicação, o ministro Luís Roberto Barroso se valeu do conto "O homem que sabia javanês", de Lima, para ilustrar um prolixo e atrapalhado voto do atual presidente do STF, Dias Toffoli, cujo substância, após modorrentas quatro horas de leitura, ninguém conseguiu captar. Toffoli tentava explicar sua liminar proibindo o compartilhamento de informações pelo COAF (que, nos quatro meses em que o país aguardou o voto do eminente presidente, passou a se chamar UIF), em uma ação onde o dito cujo não era utilizado, nem com um nome, nem com outro (diz-se que o malabarismo de Toffoli era para proteger um figurão, filho de um outro maior ainda; é o que se escreve nos jornais - tremo só de pensar...). Já o conto ironiza como um charlatão, em busca de uns trocados que lhe pagasse as contas, vê um anúncio no jornal ("Procura-se quem ensine javanês") e arrisca se fazer passar por professor do remoto idioma malaio. Embora fosse uma língua da qual o vigarista não fizesse a menor ideia, ele foi à Biblioteca Nacional, leu lá uns verbetes de enciclopédia e deu-se por achado. Para surpresa e contentamento do próprio, o golpe colou, e o rematado ignorante fez-se doutor do que não era. Toffoli, se entendeu o chiste (ou se o explicaram para ele), não deve ter gostado nada da zombaria. Mas a citação, jocosa ou não, dá bem a dimensão da obra maiúscula, atemporal, deste brilhante negro carioca, certamente um dos maiores cronistas do Rio, dos seus subúrbios e das suas idiossincrasias. E, antes que os arautos do politicamente correto venham denegrir o meu uso da expressão negro carioca, me pichando de racista, dou voz ao próprio Lima, em seu conto "A barganha": "Foi dizendo isto a um petulante crioulo, muito preto, de um preto fosco e desagradável, cabeleira grande, gordurosa, repartida ao alto, e o chapéu a dançar-lhe em cima dela. (...) O negro, ao ouvi-lo, chegou-se muito junto ao turco e indagou com um ar autoritário (...). O humilde armênio pensou logo que tratava com um soldado de polícia à paisana, pois lhe parecia que, nesta terra em que estava, todos os pretos são soldados e podem prender todos os armênios." A prosa desenxabida de Lima prova que - estejamos falando de javanês, de negritude ou de cafajestes banais - nada supera a boa e velha prática de dar nome aos bois, parte integrante da riqueza do idioma. Viva Lima.

Companhia das Letras, 711 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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