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"Hitler s beneficiaries", por Götz Aly


Volta e meia vem o noticiário com uma estória qualquer de neonazistas. Esse tipo é que nem carrapato, dá num lugar específico. Aqui no Brasil eles geralmente aparecem no Sul. Mas o padrão é sempre o mesmo: um bando de sujeitos aparentando algum retardamento mental, reunidos em vantagem física e numérica para surrar alguém vulnerável.

Além da imbecilidade, um fator comum a todos eles é a total ignorância do que tenha sido o nazismo. Fossem só estes os idiotas, menos mal; pior é que o desconhecimento é coletivo.

Mas sempre é tempo de dar uma revisada.

O nazismo era uma milícia estatal adepta do esculacho, paramentada como uma escola de samba (figurino gótico). Calçavam coturnos, luvas e eram nota dez no quesito capas de couro. Seus membros eram fissurados em tochas, ordem unida e pancadaria organizada.

Bem, noves fora toda esta parte alegórica (marchinha, suásticas, culotes etc), os caras eram basicamente milicianos. Ladrões. Deixe de lado o blablablá da intolerância racial, da perseguição aos judeus, e se concentre no essencial: o nazista roubava. A essência do Estado nazista era, como uma milícia, atacar para roubar (e, eventualmente, vender "segurança").

Sabemos bem como isso funciona.

A leitura do excepcional livro de Götz Aly não deixa dúvida quanto à natureza do regime. Infelizmente não publicado no Brasil. Mas não resisti e encomendei. Valeu a pena - a edição é um minucioso registro contábil da ocupação da Europa de 1939 a 1945 pelo III Reich.

Numa coisa temos que tirar o chapéu para a milícia nazista: mesmo no crime, a organização da alemoada era impecável. Assim, cada país europeu ocupado mereceu o registro detalhado dos recursos desviados. Roubavam e anotavam. E, em moeda atual, foram bilhões de euros surrupiados. 

Apenas para não passar batido, quero voltar ao primeiro parágrafo, antes de permitir que as cifras da apropriação tomem conta do nosso bate-papo aqui. Os neonazistas brasileiros (um oxímoro, né?) babam Adolf Hitler - um sujeito que, se pertencesse à família deles, seria expulso a pontapés.

Hitler era um mala. Um esquisitão. Não comia carne, não fodia, não se exercitava e enchia o saco de quem estivesse ao seu redor. Fã da estética do Império Romano, era capaz de repetir a mesma ladainha monotemática, horas a fio, para o seu grupo de comensais (oficiais próximos e o time de secretárias do Führer). Ninguém podia sair enquanto ele falava, nem sequer ousar abrir a boca.

Um pé no saco.

Mencionei isso só para deixar claro que o fascínio pela figura histórica do cara é uma babaquice. Seus idólatras atuais não sabem quem estão idolatrando. Sim, sem ele o nazismo não teria prosperado, nem feito a guerra que dizimou a Europa e provocou a morte de sessenta milhões de pessoas. Danem-se os Hitlerheads. Hitler era, acima de tudo, um babaca.

Ok, volto ao assunto quando comentar a biografia de Hitler. Li recentemente uma ótima, assinada por Ian Kershaw (tão boa, ou melhor, quanto a escrita por Joachim Fest). Em breve (?) aqui no blog.

Preciso falar do livro de Aly, que trata de um tema mais burocrático. Como foi que, em cada país invadido, os alemães regularam a economia. Isso significa falar em impressão de dinheiro, inflação, cupons de guerra, criação de novas moedas, subordinação dos bancos centrais, promoção de títeres, controle do comércio, desvio de recursos, expropriação dos bens etc. 

Nem de longe é tão emocionante quanto os abobados neonazistas tupiniquins. Mas é o que temos.

Outra coisa, como o livro foi vertido do alemão para o inglês, sem tradução para o português, e quero reproduzir alguns trechos, irão em inglês mesmo. É basicão. Quem preferir pode jogar os trechos no tradutor do Google ou tirar as dúvidas nos melhores dicionários digitais, tipo Longman, Webster ou um outro qualquer.

Não vou traduzir, mas vou comentar. Vamos pro livro.

Ao rastrear a movimentação financeira da Alemanha nazista (a velha regra do follow the money), o autor deixa evidente como o apoio popular interno ao nazismo derivava do compartilhamento do butim. Era um método. A população alemã foi poupada do ônus de custear a guerra e era obsequiada com o que de melhor havia para ser roubado nos países vizinhos.

De cara já trago um parágrafo essencial, pelo seu poder de síntese.

"The policy of plunder was the cornerstone for the welfare of the German people and a major guarantor of their political loyalty, which was first and foremost based on material considerations", enfatiza Aly. "The unshakable alliance between the state and the people was not primarily the result of cleverly conceived party propaganda. It was created by means of theft, with the spoils being redistributed according to egalitarian principles among the members of the ethnically defined Volk".

Na opinião do autor, o populacho alemão não era persuadido, era subornado - com uma parcela do roubo. O saque era redistribuído na forma de comida, roupas, móveis etc. Mas, ressalto, a maior parte ia para o governo, porque não só os países invadidos eram roubados, como o roubo financiava a própria máquina de guerra.

"Although much of what was confiscated was sold off at bargains prices, state treasuries earned significant revenues from the transactions. The expropriation and sale of Jewish assets in 1938 was not just a one-time emergency measure the Reich took to close gaps in state finances. The procedure served as a model for use in the countries and regions Germany conquered during World War II", explana o autor.

À medida em que avançavam, utilizavam o que era roubado para pagar as contas do avanço.

"Aryanization was essentially a gigantic, trans-European trafficking operation in stolen goods" diz Aly, com todas as letras. O texto é claro. Não vamos deixar que paire nenhuma dúvida. O Estado Racial era na verdade um gigantesco esquema de tráfico de mercadorias roubadas.

 "It may have taken different forms in different countries, but the ultimate destination of the revenues generated was always the German war cheast. These funds enabled the Reich to refray its main financial burdens", esclarece, sobre o real destino da receita oriunda do butim.

Assim, apesar da movimentação de uma ciclópica máquina de guerra, o grosso do dinheiro para financiá-la não vinha dos cofres públicos alemães, nem dos impostos pagos pelos cidadãos. Enquanto isso, no único país que reagira à invasão alemã, a Inglaterra, a população juntava moedas para doar ao governo. O cidadão inglês vivia na penúria, mas dava o que tinha para bancar os "nossos rapazes". 

Os alemães espoliavam os países vizinhos e escravizavam seus habitantes. 

"A significant portion of the Reich's increased revenues came from its annexed territories, from its exploitation of forced labor, and from profit based on dispossession, financial manipulation, and genocide", reforça o autor. "It is clear, therefore, that the increase in the tax burden in Great Britain was more than double that in Germany. Moreover, in stark contrast to the situation in Germany, 85 percent of the increased revenues from taxes and contributions came from British citizens earning the modest sum of 500 pounds or less a year".

De novo: enquanto o Reino Unido dependia dos tributos pagos pelos próprios cidadãos para fazer guerra aos agressores, estes obsequiavam os alemães (militares e civis) com o espólio arrancado das mãos dos demais povos europeus. Assim como os hunos fizeram, alguns séculos antes.

Vale dar uma olhada atenta nos números, ainda que isso tome um pouco mais de tempo.

"In therms of all wartimes revenues, internal and external, low and midlle income Germans, who together with their families numbered some 60 million, accounted for no more than 10 percent of the total sum". Ou seja, de acordo com os valores apurados pelo historiador, apenas um décimo dos custos de guerra recaíam sobre as classes baixa e média do povo alemão. 

"More affluent Germans bore 20 percent of the burden, while foreigners, forced laborers, and Jews were compelled to cover 70 percent of the funds consumed every day by Germany during the war", explica. "The middle and working classes derived advantages from the Third Reich's dual emphasis on race and class: 'wartime socialism' combined with a sense of racial superiority and imperial adventurism guaranteed solid support for the regime well into the second half of the war".

Para garantir o abastecimento contínuo de recursos, o exército alemão não avançava sem concomitantemente por em funcionamento sua engrenagem de saque, expoliação, contabilidade e remessa de valores. Nos mais remotos e pobres cantos da Europa que a máquina de guerra nazista alcançou, o procedimento foi idêntico. 

Não pense que a arrecadação provinha somente dos países mais próximos, mais ricos ou mais hostis. Os nazistas roubaram dos camponeses russos aos comerciantes gregos. Exemplos?

"The Wehrmacht squeezed 25,000 gold pounds from Jews in Salonika to meet its operating costs for November and December 1942", relata Aly, com informações extraídas dos anais do julgamento de Max Merten, em Atenas. Doze toneladas e meia de ouro roubadas da comunidade judaica de Salônica - e este é só um exemplo, entre duzentos outros.

A propósito, durante décadas não se soube o paradeiro deste ouro. Os nazistas, após a guerra, negaram tê-lo roubado. Os gregos não sabiam de nada. As toneladas desapareceram no ar.

"The transactions remained so secret that, after the war, there was no need for either Germans or Greeks to deny them. No one asked where the gold had gone", pontua o historiador. "According to Merten, the gold of the Jews of Salonika had been lost at sea".

Naufrágio conveniente, né?

"After the war, it must have been common knowledge in Athens financial circles where the gold had gone. It had neither been sunk at sea nor carted off to Germany", afirma, para revelar  que "most of it had remained in Greece, where it had changed hands for money".

A expropriação de bens e o assassinato de seus legítimos proprietários funcionava como um sistema de abastecimento em tempos de carência - consequência da guerra - e a supressão dos consumidores assassinados estabilizava o mercado e contribuía para o controle inflacionário.

"The immediate effect of the complete dispossession of a group of victims was an increase in supplies of consumer goods - especially clothing, furniture, kitchen appliances - that were in great demand. The sudden availability of goods stabilized prices", enumera Gotz. "The removal of a significant number of urban inhabitants reduced the number of consumers, which in turn reduced demand at a time when supplies were increasing".

A técnica era um dos primeiros mandamentos dos fundamentos econômicos do nazismo. E, lógico, para ter um subterfúgio "moral" (por mais imoral que seja), um grupo étnico foi oportunamente estigmatizado como inimigo do povo alemão - sem direito à vida e aos próprios bens.

A esta altura, convém reiterar minha opção recorrente pelo texto original em inglês. Não só permite que eu seja corrigido caso tenha distorcido ou mal compreendido algo, como traz verossimilhança a um tema sempre conturbado. Então achei melhor compartilhar alguns destes trechos na íntegra.

Isso (re) explicado, vamos seguir vendo isso juntos.

"Historians who have investigated the legal and moral dimensions of the Aryanization campaigns have generally ignored the financial technique, introduced by Nazi Germany in 1936, of funding military aims by forcibly shifting private investments into government bonds. This scholarly blind spot is all too appropriate, as the Nazi Regime was at pains to conceal the material benefits of its epic-scale larceny".

Como constatamos aqui, pena que os historiadores, em sua maioria, tenham ignorado este esquema de conversão do dinheiro (judeu) confiscado pelo regime nazista. Porque este é um dado importante. O valor era subitamente transformado em certificados de depósito bancário emitidos pelo governo alemão - que, naturalmente, ocultava a manobra.

"During the war, reports about the compulsory conversion of Jewish assets into war bonds were forbidden, and concrete figures about the proceeds earned were kept secret", relata Aly, ao desvendar a estratégia. "Instead, the persecution of Jews were depicted in Nazi propaganda as a purely ideological issue. The defenseless victims of a mass campaign of murderous thievery were treated as enemies whose lives had no value whatsoever".

O autor coloca o dedo na ferida e questiona a atuação dos especialistas na história da guerra: "Scholars should not confuse Nazi propaganda with historical fact", assevera.

Não vou me estender em mais dados, muito menos nas dezenas de páginas que reproduzem os próprios registros nazistas - que controlavam em livros contábeis cada centavo roubado. São mais do mesmo. Foi a descoberta desses registros que permitiu a Götz Aly escrever sua obra.

Voltando rapidamente aos nossos neonazistas, nariz de cera do nosso post, eles não são a ameaça que a mídia pinta (dá ibope). Estes "neonazis" são meras caricaturas, incapazes de reproduzir a essência do regime nazista: uma disciplinada máquina de guerra, movida a roubo e assassinato.

Não são nada além de sujeitos perturbados, que, à falta da fantasia do nazismo, iriam botar uma capa preta, se dizerem a reencarnação do Drácula e saírem mordendo pescoços por aí.

Já o texto de Aly é conteúdo que exige reflexão. A leitura deste que é um dos mais respeitados historiadores alemães nos permite um prisma mais agudo da Segunda Guerra Mundial.

A edição da Metropolitan Books também prima pela forma. Capa dura com uma sobrecapa em papel couchê de alta gramatura. Páginas impressas em papel off-white

A sobrecapa reproduz um flagrante comum naqueles tempos. Cidadãos alemães e austríacos celebrando, em êxtase, o Terceiro Reich. O populacho, repleto de mães de família, vibrava como quem recebe um time campeão. Porém, como sabemos, no fim o time das mãezinhas perdeu.

Para quem esperava mil anos de boa vida e salsicha na mesa, a alegria dos chucrutes foi efêmera.

Metropolitan Books, 433 páginas  |  1a edição, 2007  |  Tradução  Jefferson Chase

Título original: "Hitlers Volkstaat"

"Declínio e queda do Império Otomano", por Alan Palmer



Culturas diferentes sempre trazem surpresas. Ainda mais aquelas mais remotas, perdidas numa metafórica terra de ninguém, entre nós e o outro lado do mundo. Essas, que já conhecemos pouco no presente, desconhecemos tudo do passado. Como o distante e misterioso Império Otomano.

Não só sua estrutura, ou como se formaram; também os seus ritos e mecanismos.

Exemplo? Olha só esse esquema de sucessão. Para prevenir que fossem assassinados ou que conspirassem, todos os descendentes masculinos da família real - potenciais ocupantes do trono - passavam a vida presos, no kafe, uma ala do palácio feita exclusivamente para confiná-los.

Os príncipes viviam como latas sobressalentes de molho de tomate, trancadas numa despensa.

Alguns deles passaram duas décadas ou mais trancafiados em seus aposentos reais quando, do nada, o titular morria ou fora morto por alguém interessado na sucessão. Aí, de repente, um sujeito com experiência zero, que nunca viu nada, nem ninguém, passava a liderar o Império.

Não tinha como dar certo, mas ainda assim o Império durou meio milênio. Vá entender.

Bem, na verdade, até hoje ninguém entendeu. Ou ninguém soube explicar muito bem o que se passou nesse "breve" lapso de tempo - quase cinco séculos. Alan Palmer, um prolífico historiador inglês, e que por dezenove anos havia sido professor de História na Highgate School, em Londres, chamou a tarefa para si.

O cara é respeitado. Martin Gilbert, um conterrâneo seu e também renomado historiador, biógrafo oficial de Winston Churchill, não mediu elogios em seu comentário sobre o autor, publicado na Wikipedia: "Alan Palmer is one of my favourite historians. I have read all his thirty plus books, and have learned from them all. His reference works serve as models of clarity and presentation".

Acho que é um bom ponto de partida para avaliarmos se Palmer entende do riscado. O cardápio das suas publicações é extenso. Vai da Rússia ao Reino Unido, passando por Napoleão. Aborda guerras específicas, como a da Criméia. Ou fala de populações inteiras, como os povos do Báltico (me interessei nesse, mas a edição é absurdamente cara).

Esse seu livro sobre o Império Otomano é bem conciso. São trezentas páginas para cobrir mais de quatrocentos anos de guerras, golpes e revoluções. Com isso, naturalmente, a abordagem de Palmer é superficial na maioria das circunstâncias, principalmente tratando-se das mais remotas. Mas é suficiente para nos dar uma ideia da evolução e das circunstâncias do império.

Uma ideia pouca lisonjeira, a propósito.

Como sabemos todos, o ciclópico Império Otomano derreteu, do nada, após o fim da Primeira Guerra Mundial. Um colosso que estava lá desde 1453, quando Constantinopla caiu diante dos turcos. Como assim, "do nada"? Essa era a minha pergunta, provavelmente também seja a sua, e é com esse objetivo que o autor trabalha para nos responder.

É bem sucedido. Seu livro não empolga, mas elucida. E Palmer já aborda a questão no prefácio.

"O aspecto mais fascinante da história otomana não é a sucessão de uns poucos soberanos notáveis, e sim a extensão geográfica do Império e a forma como uma classe dirigente espantosamente pequena conseguiu impor seu governo em terras que se estendiam das planícies do Danúbio às montanhas do Cáucaso, às águas quentes do Golfo, aos desertos do sul da Arábia e do norte da África", enumera. 

E conclui ressalvando que, apesar do tamanho e da duração, "é preciso reconhecer que, embora o Império Otomano dominasse os Bálcãs e o Oriente Próximo por mais de seis séculos, quando desmoronou, no rastro da Primeira Guerra Mundial, ninguém se surpreendeu ao vê-lo desaparecer".

Para que possamos entender como isso aconteceu, ele segue a velha e boa linha do tempo.

Palmer nos conta como os turcos - cavaleiros nômades da Ásia Central que abraçaram o Islã no século IX - tomaram Constantinopla e puseram fim ao Império Bizantino, em 1453. Eram "otomanos" por conta da dinastia "Osmanli", chamada pelos árabes de "Othman". Eram temidos como "bestas selvagens" e "bárbaros desumanos". Submeteram búlgaros e sérvios e dominaram os Bálcãs.

Em menos de cem anos, ou seja, em três ou quatro gerações, os otomanos atingiram o seu apogeu, sob o comando de Suleiman, o Magnífico. Como desenrola o historiador, "exerceu seu governo sobre boa parte do sul da Rússia, sobre Transilvânia, Hungria, Bálcãs, Anatólia, Síria, Palestina, Jordânia, Kuwait e costa ocidental do Golfo".

Uau. Nos mapas, que coloquei acima na ilustração, dá para se ver a extensão do Império. "Foi o guardião do Islã na Arábia Saudita", continua Palmer, "além de ser o senhor supremo em Aden, Iêmen e toda a costa norte da África, desde o delta do Nilo até o sopé dos Montes Atlas".

Quando hoje em dia se fala em imperialismo, muitas vezes é uma metáfora (bem, no caso dos russos raramente o imperialismo é metafórico) para a verdadeira concretização de um império, como foi o otomano. "É tudo nosso", diziam, com propriedade, os turcos. Hepsi bizim.

Na definição do historiador, o Império Otomano "teve sua origem em uma instituição militar dedicada ao cumprimento do dever sagrado de estender o 'Domínio do Islã' por meio da conquista das terras dos infiéis". E quem são os infiéis? Eu e você (inferindo que você não seja muçulmano, né).

Suleiman foi o grande sultão. O conquistador e proprietário de todas as terras conquistadas. Após sua morte, em 1566, nenhum outro sultão foi tão poderoso e capaz, a começar pelo seu próprio sucessor - Selim, o Beberrão. 

Não obstante, o imenso latifúndio territorial obtido por Suleiman escondia a sua própria dissolução interna. Com a passagem das décadas (e dos sultões), a contínua expansão do Império já não demonstrava o mesmo vigor.

Até que os turcos imbatíveis foram batidos na invasão de Viena. Foi em 1683, no grande clássico do século, Império Otomano x Império Austro-Húngaro (se bem que, justiça seja feita aos meus ancestrais, quem derrotou os bárbaros foram os poloneses, que vieram em socorro do Imperador).

Súbito, os europeus se tocaram que não havia mais razão para temer o "Grão Turco". OK. Só que, ainda assim, os caras mantiveram seu império, mesmo que aos tropeções, por mais dois séculos e meio. Vai ser resiliente assim lá em Istambul.

Houve muitas razões para isso. O Velho Continente era um grande tabuleiro de xadrez. As maiores forças viam a presença do Império Otomano como o fiel da balança, em muitos dos seus confrontos diretos. As grandes potências que eram a Inglaterra, a França, o Império Austro-Húngaro e a Rússia tinham interesses geopolíticos, e a pressão que os otomanos exerciam nos povos que constituíam seu império tinha grande valor estratégico, derivando para o diplomático.

Alguns dos países sob domínio otomano não eram tão dominados assim - como no caso do Egito, cujo poder se fazia sentir Palestina e Síria adentro, até a Grécia e, quiçá, até sobre alguns dos países balcânicos. Em tese, faziam parte do Império. Mas, devido à sua força, havia vezes que os egípcios davam mais ordens ao Sultão do que eram subordinados a ele.

E todo esse jogo de pesos e contrapesos variava de acordo o momento, com a economia, com as guerras etc. Ora aumentando, ora encolhendo, o Império Otomano atravessou os séculos XVIII e XIX como um importante ator no teatro bélico.

Seja no Mar Negro, na Criméia, nos Dardanellos, no Egeu, nos Bálcãs, no Golfo Pérsico - tudo isso estava na escritura dos otomanos, mas estava ao mesmo tempo sempre em disputa, puxado para lá ou para cá por nações mais poderosas. Elas não se apropriavam das terras cobiçadas porque outras potências se aliavam ao Império Otomano na resistência; e o próprio Sultão só mantinha sob controle sua colcha de retalhos com o apoio dos países belicamente mais potentes.

Um parêntese nessa narrativa deve ser dedicado a um tema momentoso, a região palestina. Ela era propriedade do Sultão, mas governada pelos egípcios (e vez por outra pelos sírios). O povo que morava nos desertos e pântanos locais era mais nômade do que aferrado à terra - por razões óbvias. 

Como a evolução do planeta registra um crescente aumento demográfico, o areal chamado Palestina não estava imune a isso. As comunidades se multiplicaram. Mas permaneceram economicamente irrelevantes e politicamente submissas ao governante de plantão, fosse sírio, egípcio ou turco.

Creio que o parêntese é necessário porque a região teve seu valor de face superestimado por conta da atual conveniência midiática. A Palestina e o sertão do Cariri nunca tiveram boa cotação ao longo da história. Mas a primeira foi trazida para o palco da queda-de-braço geopolítica do atual cenário mundial, com narrativas confusas, tendenciosas e maliciosas.

Uma região pobre e insalubre foi ocupada econômica e demograficamente por imigrantes - os judeus - funcionalmente mais qualificados do que a população local. A nova supremacia se deu em detrimento da anterior. Já vimos isso acontecer em centenas de regiões mundo e História afora. 

Lá houve que os otomanos, que eram os donos de direito, mas muitas vezes não de fato (porque quem dava as ordens eram os egípcios), viraram carta fora do baralho com a chegada dos ingleses e franceses, que racharam a área entre si. No processo, escanteiaram os sírios e egípcios.

Os judeus, que eram hostilizados e vítimas de racismo na Europa, começaram a afluir para a região - não só porque era vazia e ociosa, como porque era o berço milenar do judaísmo. Mais ainda depois que Theodor Herzl publicou seu manifesto sionista (o qual professava que o judeu seria sempre um pária, por mais que estivesse integrado às demais culturas e países; para preservar o seu próprio povo, precisava de uma terra para chamar de sua).

Foram chegando paulatinamente, mas aos milhares, comprando terras, contratando os nativos e investindo em modernização e produção - o que logo se constituiu em um problema regional e geopolítico. Era muito avanço para um lugar acostumado ao atraso e à subserviência.

O Império Otomano logo pressentiu que aquela judeuzada toda no seu quintal não daria em boa coisa. Vínculos históricos com aquele deserto todo mundo tinha. Como relata Palmer, "os árabes também eram um povo antigo, como os judeus. Podiam alegar a descendência de comunidades que lá viviam por dez ou mais séculos, remontando, talvez, aos cananeus da Bíblia".

A questão era prática, explica. "O governo otomano temia que, se milhares de aldeões judeus pobres da Rússia convergissem para aquela região tão sensível, provocariam um conflito permanente com os árabes e seriam um ônus para as colônias judias já existentes, algumas instaladas lá há mais de trinta anos".

Os judeus, entretanto, eram apenas um cisco no caldeirão de problemas do Império. Os turcos, além de desestimularem oficialmente a presença deles, faziam vista grossa à bandidagem árabe que atacava os vilarejos judaicos. Eles que se lascassem. O Sultão tinha questões maiores com que se preocupar.

O viés nacionalista que insuflava a Europa era uma ameaça interna ao Império. Além dos adversários de sempre e das violentas reivindicações de búlgaros, gregos e sérvios, havia os Jovens Turcos, que eram contra o sultão e a favor de uma unidade turca imposta em novas bases.

Puxado para lá e para cá, o Império Otomano era um urso de circo, aterrorizante para uns, mas domesticado para outros. Dividido entre as influências inglesa e alemã, se equilibrava na corda bamba quanto a quem obedecer e a quem reprimir. 

Apenas para exemplificar o alto grau de intervenção, em 1903 o czar Nicolau II e o Imperador Franz Joseph - Rússia e Império Austro-Húngaro, respectivamente - se reuniram em um pavilhão localizado 160 quilômetros ao sul de Viena para deliberar na administração da Macedônia, que, oficialmente, era parte do Império Otomano.

Os monarcas decidiram que dois representantes civis, um russo e um austríaco, assessorariam o governador turco, além de mais um chefe de polícia europeu, no comando de zonas de policiamento iinstituídas pelas grandes potências europeias. Abdulhamid, o sultão enfraquecido, tolerava.

"Os alemães me ajudam o mais que podem, enquanto o restante da Europa me incomoda o quanto pode", resmungou o sultão. Só que, segundo Palmer, "a geração mais nova de oficiais do exército não fazia muita distinção entre franceses, ingleses, italianos ou russos, aos quais o Sultão parecia nitidamente subserviente, e os alemães que lucravam visivelmente com as concessões comerciais obtidas", assinala.

Outra peça determinante no tabuleiro foi a descoberta de petróleo. Os ingleses subtraíram aos otomanos o controle dos pequenos domínios dos sheiks no Golfo Pérsico. A região se tornou protetorado britânico, ainda que formalmente sob a soberania do Sultão.

O mundo civilizado fechava a primeira década do século XX em convulsão e logo entraria em guerra. O Império Otomano, fragmentado, derretido, não sobreviveria a ela. Ainda assim, antes da Grande Guerra, teria fôlego para se meter em muitas guerras particulares.

O esfacelamento do Império deu força para que Sérvia, Bulgária, Grécia e Montenegro se aliassem em uma Liga Balcânica e atacassem os otomanos, que já vinham claudicando em uma guerra contra a Itália pela posse da Líbia. O Império Otomano rumava para um colapso final.

Se em 1878 perdera dois quintos das suas terras, entre 1908 e 1913 mais um terço lhe escapou pelos dedos. Ao entrar na guerra ao lado da Alemanha e contra os russos, ingleses e franceses, selou definitivamente a sua sorte. Ainda que tivessem lutado com brio, estavam do lado perdedor.

Os Jovens Turcos eram quem ditava a política interna e estavam engajados na criação de um estado turco, em substituição ao Império de cinco séculos. Declararam uma jihad contra os ingleses, que aproveitaram o grito de guerra para redesenhar o Oriente Médio, privilegiando os árabes, que por centenas de anos foram subordinados aos otomanos.

A Inglaterra articulou a criação de um califado hashemita na região, da Síria ao Iêmen e do Mediterrâneo à Mesopotâmia. Omitiu com quem ficaria a Palestina e com Jerusalém e ignorou os judeus. Se sentou à mesa com seu aliado francês para estipular quem teria o quê.

O ex-cônsul francês em Beirut, François Georges-Picot, se reuniu em Londres com o arabista coronel Sir Mark Sykes. "Chegaram a a uma proposta para a divisão do Império Otomano no Levante que foi aceita em maio de 1916 como o acordo Sykes-Picot", assinala Palmer.

"Previa a criação de dois estados árabes, um sob a proteção francesa, em torno de Damasco, e outro sob a proteção inglesa, de Bagdá a Aqaba", explica. "Os franceses administrariam o Líbano desde o norte de Beirut até o sul de Tiro e os ingleses controlariam Acre e Haifa. A Palestina ficaria sob a responsabilidade conjunta da França, da Inglaterra e da Rússia (czarista)".

O novo mapa, feito no escritório, precisava agora ser confirmado no teatro de guerra. De um lado, os otomanos sob o comando de um alemão, o general Erich von Falkenhayn; do outro, os árabes comandados pelo general britânico Edmund Allenby.

Falkenhayn tinha catorze divisões otomanas e 6.500 homens especializados do Asia Korps alemão, mas Allenby tinha duas vezes mais infantaria e dez vezes mais cavalaria. Enquanto o alemão desdenhava dos seus próprios soldados turcos, Allenby lançou uma ofensiva no Sinai que capturou Jerusalém e definiu o resultado da guerra no Levante.

"A vitória de Allenby encerrou quase setecentos anos de domínio otomano sobre a única cidade do mundo igualmente sagrada para judeus, cristãos e muçulmanos", exalta o historiador.

Com o fim da guerra, o regime Jovem Turco já se esfacelava. O acordo de paz foi generoso com os turcos - não haveria ocupação militar de Constantinopla. Mas não era nada confortável o Sultão olhar pela janela do seu palácio, o Dolmabahche, e ver uma linha de navios de guerra inimigos enfileirados em uma extensão de 16 milhas até o Mar de Mármara.

Na verdade, perdem-se os anéis, mas ficam os dedos. Pelo menos Mehmed VI preservara seu trono, ao fim da Primeira Guerra Mundial. Já o Kaiser Wilhem, o Rei-Imperador Karl e o Rei Ferdinand ficaram sem os seus. Mas Mehmed não ficaria sentado nele por muito tempo. Muito em breve fugiria do palácio, protegido pelos ingleses, aos quais fez um pedido, que Palmer registrou: "Poderia, por favor, tomar conta das cinco esposas que deixara para trás em Yildiz e enviá-las depois?"

Ainda não havia a Amazon. Ignoro se os ingleses atenderam ao pedido de delivery do sultão. 

"No início do inverno de 1918-1919, Constantinopla era uma cidade terrivelmente desmoralizada, abarrotada de refugiados, muitos deles debilitados por tifo e outras doenças", conta Palmer. "Por toda parte faltava alimento e era quase impossível conseguir carvão para aquecimento. Os otomanos tinham perdido nove guerras no último século e meio, mas nunca antes a população da capital sentira tão amargamente o impacto da derrota".

O butim da guerra, por outro lado, já causava dissensões entre os aliados. Os franceses protestaram contra a ocupação inglesa de Mosul (cidade produtora de petróleo), enquanto Lawrence da Arábia alertava que, na Síria, "os inimigos eram os franceses, não os turcos".

Estes, por sua vez, antes de serem irremediavelmente reduzidos, ainda tiveram força e energia para matar um milhão de civis armênios, no que pode ter sido o segundo maior genocídio da História. Mas era o canto do cisne, ops, do diabo. C'est fini

"A soberania imperial otomana estava morta. O restolho da autoridade da dinastia, embora em declínio, não", relata o historiador. "Arrastou-se por quinze meses num mundo em transformação, atrasando o surgimento da República Turca".

Alguns (conturbados) anos se passariam até que, em 1923, Mustafa Kemal foi eleito pela Assembleia Nacional como o primeiro presidente da Turquia. No ano seguinte o Califado foi abolido, o califa foi deposto e todos os membros da antiga dinastia governante foram expulsos da República Turca.

"Que Deus nos livre de um Sultão assim fraco e submisso", disse Ali Hayder, príncipe árabe leal à dinastia. "A família imperial turca é a maior responsável pela desintegração do mundo muçulmano". O Sultão espinafrado aceitou de boa e foi viver em San Remo, na Riviera italiana. Nada mau.

Mehmed VI, o Sultão, morreu em 15 de maio de 1926, na bota. Foi o primeiro sultão a não ser enterrado em Constantinopla. Abdulmecid, o Califa, morreu em Paris, dezoito anos depois, em uma data histórica: 23 de agosto de 1944, dia que a cidade se libertou dos nazistas.

Lógico que ninguém tava nem aí para a morte do último califa.

O Império Otomano era uma página virada. 

Globo Livros, 317 páginas  |  1a edição, 2013  |  Copyright 1993  |  Tradução Gleuber Vieira

"Uma terra prometida", por Barack Obama


"Apesar de todo o poder e toda a pompa, a presidência não passa de uma função administrativa", filosofa o ex-presidente (2008-2016) dos Estados Unidos, Barack Obama, no prefácio. Se refere à dedicação dos jardineiros da Casa Branca e complementa: "Eu dizia a mim mesmo que eu precisava cumprir minha função com o mesmo zelo com que eles faziam seus serviços".

Barack escreve bem. É autor de boa parte dos próprios discursos. Não por acaso, esta sua autobiografia parece ditada do púlpito. É política. É um comício de mais de setecentas páginas, onde estão sempre presentes seu bom-mocismo, seu enfoque social, sua América para todos, sua visão ampla e generosa do contexto político-econômico.

A edição foi lançada há exatos quatro anos, em agosto de 2020, em plena pandemia. 

"Neste exato instante, o país permanece mergulhado numa pandemia global e numa crise econômica decorrente, com mais de 178 mil americanos mortos, empresas fechadas, milhões de pessoas sem emprego", escreve. "E, talvez o fato mais preocupante, nossa democracia parece estar à beira do precipício".

Donald Trump era o presidente, que rumava em busca da reeleição, numa corrida contra Joe Biden, ex-vice presidente do próprio Barack Obama. Trump havia sucedido Obama, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton. O sentimento pela sucessão impensada é descrito na primeira página da biografia, quando menciona os "resultados inesperados de uma eleição em que alguém diametralmente oposto a tudo que nós representávamos fora escolhido para me suceder".

Bem, estamos hoje diante de um outro momento-chave. Kamala resgata parte da aura da eleição de Barack Obama. Trump, que tudo indicava que nocautearia o incumbente senil com facilidade, trovejou alto demais na encarada. O Partido Democrata substituiu o bom e velho Joe por uma candidata mais enérgica. Aparentemente, um mau negócio para o alaranjado Donald. A ver.

Eu já tinha este livro na estante desde o lançamento. Nunca me senti impelido a ele, entretanto. Porém,  quando vi o Trump remitificado por uma bala de raspão na orelha, o tijolo se jogou no meu colo. Era agora ou nunca. Foi acertado. Conhecer o Obama ajuda a entender melhor a política norte-americana. 

Antes de mais nada, a história pessoal do ex-presidente, embora eu já tivesse uma ideia, é diferente da que eu pensava. Ok, ele é filho de um casamento misto, uma branca americana e um negro africano. Até aí eu sabia. O que eu não sabia é que, exceto pela cor, pela mulher e pelas filhas, Obama é "branco". E não vaí aí nem uma gota de racismo, crítica, identitarismo ou ideologia.

(Se eu tivesse alguma relevância midiática, seria fulminado agora por um cancelamento instantâneo.)

Explico: o que a autobiografia revela é que ele é culturalmente branco, criado sem pai por uma mãe branca, e foi paparicado por seus avós tão brancos como podem ser brancos os norte-americanos anglo-saxões descendentes dos pioneiros.

Não desvirtue o que eu disse. Ele não é, como dizem de um negro quando querem desprezá-lo por ser submisso aos brancos, um negro "de alma branca". Ele é um branco com design preto. Um motor branco em um protótipo negro. E não me pergunte o que isso significa. Esqueça a burrice ideológica. Sua origem é um lar branco, de avós conservadores, e uma mãe branca, feminista e de personalidade forte. A maçã nunca cai longe da árvore.

A única imagem negra que Barack encontrava em seu clã familiar era o espelho.

Seja lá qual for a importância disso, não vou teorizá-la. Não tenho interesse, nem background para isso. É apenas uma constatação, lendo sua autobiografia. Registre, cancele ou lacre.

E, para acabar com qualquer viés racial aqui nesse comentário, vale deixar claro que, em seu texto, Obama se mostra totalmente engajado com a causa negra. E que não só se vê como negro - até porque seria contraproducente se assim não fosse -, como faz troça constante da surpresa coletiva com sua origem esquisita.

"Tudo isso me deixava dividido", conta. "Por causa da própria estranheza da minha posição, com um pé em cada mundo, era como se eu pertencesse a todos os lugares e, ao mesmo tempo, a lugar nenhum, uma junção de partes que não se encaixavam direito, como um ornitorrinco".

Uma combinação que geralmente desemboca em conflitos emocionais. Mas Obama resolveu bem.

"Tendo sofrido minha própria cota de afrontas raciais, eu podia ver muito claramente a herança persistente da escravidão e da segregação racial a qualquer hora andando pelo Harlem ou por algumas áreas do Bronx. Mas, por razões biográficas, aprendi a não invocar a cada instante a minha posição de vítima e resistia à ideia de que os brancos eram irremediavelmente racistas".

O trabalho social que realizou em Chicago, enquanto ainda era estudante, com uma grande comunidade negra vivendo em condições difíceis, o ajudou a lidar melhor consigo mesmo. Através das pessoas que conheceu, reflete, "resolvi as questões pendentes de minha identidade racial. Pois ficou claro que não havia só uma forma de ser negro; tentar ser uma boa pessoa já bastava".

Nos seus primeiros passos na política, teve que enfrentar oposição da própria comunidade negra, do tipo "Obama é de fora; tem o apoio de gente branca; é um elitista de Harvard. E esse nome? Será que é mesmo negro?"

E não só a cor. Tinha também o nome. Conta que seu marqueteiro disse duvidar que alguém com um sobrenome que rimava com "Osama" conseguisse votos no sul do estado.

Não só conseguiu, como acabou eleito presidente dos Estados Unidos. A cara e o nome não foram os únicos obstáculos. Já no fim do seu primeiro mandato, às vésperas da reeleição, ganhou força a fake news de que Obama não tinha nascido no país. Um balão todo dia soprado por um apresentador de televisão - Donald Trump. Só parou de aporrinhar quando o presidente apresentou a certidão de nascimento original em uma coletiva de imprensa.

Barack trata de cada um destes detalhes neste primeiro volume da sua auto-biografia (entrevistado mês passado por Malcolm Gladwell, o ex-presidente disse que está quase terminando o segundo volume). É um livro metódico, pausado, e, como já disse, elegante como um discurso de Obama. 

Embora ele exponha muito, fica a impressão que ele esconde bastante. É um autor com absoluto controle da narrativa. Ainda que procure apresentar a si mesmo de forma despojada, como o vizinho ou o cara da esquina, ele de comum não tem nada. Mas é como se vende. Bem vendido, aliás.

Obama é verossímil, convincente. De carne e osso, mas um tanto intangível, etéreo, idealizado, como um protagonista dos filmes de Frank Capra. Uma mistura do Morgan Freeman com o Tom Hawks.

Já a obra que nos oferece é pura disciplina. Inicia com uma pequena biografia pessoal. Seus pais, seu nascimento, sua infância, seus avós, sua formação no Havaí, onde nasceu, e na Indonésia, onde sua mãe a certa altura foi trabalhar. O retorno aos EUA, a faculdade, seus sonhos, seu primeiro emprego, seu engajamento nas ações sociais (como a mãe) e sua iniciação na política.

Aí vem Michelle, o casamento, o financiamento da casa própria, a eleição para senador, o nascimento das filhas, a chegada no Senado, a campanha para presidente. Barack joga foco na equipe, nas alianças, nos comícios, nos adversários. Tudo muito leve, muito fluido, com doses calibradas de ponderação, irreverência e ceticismo.

Eleito presidente, ele nos entrega os tópicos de forma organizada e com um conteúdo estanque. Cada assunto é apresentado como um capítulo à parte, independentemente do seu tamanho. Não é um avanço essencialmente cronológico, onde os fatos invadem uns aos outros. Há, sim, o respeito à cronologia, mas cada assunto é como uma ala dedicada de museu. 

Assim, dispostos dessa forma, nós vamos acompanhando os principais temas do seu primeiro mandato. De cara, muitas páginas são dedicadas àquele que foi apelidado de Obamacare, a reformulação na saúde americana que foi uma obsessão de Obama logo na sua chegada ao poder.

Diferentemente do que se afirma a esmo por aqui, com o livro sabemos que há sim um serviço de proteção à saúde financiado pelo governo nos Estados Unidos. Por meio de diversas alíneas, ele cobre quase que 90% da população. Ele não cobre os 100% que dizemos aqui ser coberto pelo SUS brasileiro.

(Em tempo: o SUS brasileiro é uma falácia. Embora todos os brasileiros, em tese, tenham direito ao atendimento, a sua baixa qualidade empurra a classe média para os planos de saúde particulares. Eu pago o meu e o da minha família desde o início dos anos 90, há mais de trinta anos, e é disparado o meu mais profundo gasto anual. Representa a maior fatia do meu orçamento familiar.)

Voltando à saúde norte-americana, Barack conseguiu aprovar parte do seu plano, mas não na íntegra. Ele amenizou a situação dos 10% de americanos sem nenhuma cobertura hospitalar, mas teve que fazer concessões. Normal. Onde não? Faz parte do jogo político.

Mas a grande crise do sistema financeiro americano, que teve início pouco antes das eleições presidenciais de 2008, e se estendeu por grande parte do seu primeiro mandato, é o assunto que mais ocupa espaço na biografia - o que revela como o livro é tático. Obama atribui a crise do subprime aos republicanos e que coube a ele e aos democratas desfazer a lambança.

Alega ainda que a maior dificuldade foi superar a objeção dos republicanos no Congresso ao pacote de estímulo à economia que seu time de governo desenvolveu. As negociações foram extensas e tomam alguns dos 27 capítulos.

Embora o assunto tivesse tido impacto mundial (lembra? no Brasil o nosso líder máximo a chamou de "marolinha", antes da crise aportar aqui e afundar o governo da sua inesquecível sucessora), os políticos norte-americanos de segundo escalão, citados à farta, não significam nada para nós e deixam toda a racionália bastante modorrenta.

Já outro tema de porte na biografia são as relações externas dos EUA. Ele analisa pormenorizadamente os contenciosos e faz comentários curtos - com propriedade e, às vezes, com alguma dose de ironia - sobre cada governante com quem teceu relações, superficiais ou não.

Sobre sua maior parceira europeia, a alemã-oriental Angela Merkel, criada no comunismo, disse que "sua aparência fleumática refletia uma sensibilidade pragmática e analítica. Era conhecida por sua aversão a arroubos emocionais e grandiloquência retórica". Obama comenta que "mais tarde sua equipe me confessaria que ela de início duvidou de mim justamente por causa de minhas aptidões para a oratória".

Já a respeito do presidente francês Nicolas Sarkozy, Obama usou as mesmas palavras, mas com sentido oposto. O chamou de grandiloquente e passional. Comparou ambos, dizendo que Sarkozy, "como Merkel, ganhara fama como político de centro-direita, chegando à presidência com uma plataforma de economia de laissez-faire, relaxamento das regulações trabalhistas, menos impostos e um Estado de bem-estar social menos abrangente".

Mas Obama dá uma debochada do colega. Qualificando o francês como metade húngaro e um quarto judeu grego, caiu de pau em sua baixa estatura, dizendo que ele "tinha 1,67 metro, mas usava palmilhas especiais para ficar mais alto" e que "parecia saído de um quadro de Toulouse-Lautrec". Chamou-o ainda de "errático". C... no baixinho. Que feio.

Com o primeiro-ministro britânico Gordon Brown ele foi bem mais afável e contido. Considera que ele "não tinha as brilhantes aptidões políticas do antecessor", Tony Blair, mas que era "um homem atencioso, responsável e que entendia de de finanças internacionais".

Sobre Lula, então presidente do Brasil, como agora, Obama foi simpático. Mas disse também que o brasileiro tinha "os escrúpulos de um chefão do Tammany Hall, e circulavam boatos de clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões".

Observação: o Tammany Hall, recorrente no livro "As gangues de Nova York", resenhado também aqui, era uma sociedade política que dominou Nova York por mais de meio século. Foi sobretudo um antro de corrupção, formação de quadrilha etc. Pra saber mais, dê uma olhada na Wikipedia.

(Lula, ao saber da menção no livro, estressou e ficou decepcionado com as palavras do parceiro.)

O que Barack, com benevolência, chamou de "boatos" se confirmou e redundou na prisão de Luís Inácio Lula da Silva, em 2018, por corrupção e lavagem de dinheiro. Lula acabou solto um ano e meio depois, em meio a filigranas políticas e jurídicas, em uma decisão do STF. As provas e a razão da condenação não foram questionadas, e sim o foro em que foram julgadas. 

Mas a observação da conduta corrupta do presidente brasileiro incide em um ponto recorrente no texto de Obama: a corrupção. Fora as questões pontuais relativas ao seu próprio governo, a referência crítica à corrupção, nos mais diversos países, é uma constante na obra.

Barack conta que essa foi uma ideia inculcada na mente dele pela mãe. "Quando nos mudamos para a Indonésia, para morar com meu padrasto, ela fez questão de explicar os males da corrupção governamental ('é pura roubalheira, Barry'), ainda que todos parecessem agir da mesma forma".

Fala da corrupção no Afeganistão ("relatos de corrupção desenfreada"), no Quênia ("me sentei com parentes que me falaram do tribalismo e corrupção que afligiam seu país"), na África do Sul ("grande parte da credibilidade conquistada durante a luta heroica de Mandela havia sido desperdiçada pela corrupção"), na Índia ("Singh me pareceu escrupulosamente honesto, mas refém dos caprichos de corruptos funcionários locais"), nos autocratas tchecos ("defendem o livre mercado ao mesmo tempo que se envolvem na mesma corrupção que havia no passado [comunista]"), no Irã pré-aiatolás ("a antiga indiferença dos Estados Unidos em relação à corrupção"), na Rússia dos anos 90 ("colapso econômico, corrupção desenfreada, populismo de direita"), etc.

Se é que isso nos serve de consolo, o caso brasileiro foi a referência top no quesito valores amealhados por meio da corrupção - Obama se refere explicitamente a "propinas na casa dos bilhões" no governo Lula. Acho que não dá para a gente se orgulhar, mas é um tipo de reconhecimento.

O ex-presidente norte-americano também toca no tema quanto aos políticos do Oriente Médio ("Hafez al-Assad, da Síria, Saddam Hussein, do Iraque, e Muammar Gaddafi, da Líbia, mantinham seu poder em boa parte por meio da corrupção, da repressão brutal e de uma incessante, ainda que ineficaz, campanha contra Israel"), mas a região mereceu um espaço maior nos dez por cento finais do livro, devido aos seus constantes conflitos.

Principalmente a questão israelense-palestina.

Barack Obama, um político democrata que é ícone da esquerda, negro, com nome árabe e filho de um professor universitário muçulmano, traz alguns insights relevantes no que diz respeito ao litígio. Inclusive faz um resumo sucinto e acurado da questão histórica.

"O conflito entre árabes e judeus era uma ferida aberta na região havia quase um século", contextualiza, "remontando à Declaração Balfour de 1917, com a qual os britânicos, então ocupando a Palestina, se comprometiam a criar um 'lar nacional para o povo judeu' num território ocupado por uma maioria esmagadora de árabes".

"Nos vinte anos seguintes", continua, "líderes sionistas mobilizaram uma onda de migração judaica para a Palestina e organizaram Forças Armadas altamente treinadas para defender seus assentamentos. Em 1947, na esteira da Segunda Guerra Mundial e à sombra dos inomináveis crimes do Holocausto, a ONU aprovou um plano de partição para estabelecer dois Estados soberanos, um judeu e o outro árabe, com Jerusalém - cidade sagrada para muçulmanos, cristãos e judeus - a ser governada por um órgão internacional".

Como a gente sabe, não deu certo. Mas Obama explica o porquê: "Os líderes sionistas acataram o plano, mas os árabes palestinos, bem como os países árabes vizinhos, que também emergiam do domínio colonial, se opuseram vigorosamente. Com a retirada da Grã-Bretanha, os dois lados não demoraram a mergulhar na guerra".

Não demoraram mesmo. Sequer vinte e quatro horas.

"E, com a vitória das milícias judaicas em 1948, o Estado de Israel foi oficialmente criado", recorda. "Para o povo judeu, era um sonho realizado, um Estado na pátria histórica de seu povo depois de séculos de exílio, de perseguição religiosa e dos horrores mais recentes do Holocausto; mas para os 700 mil palestinos árabes que se viram sem um Estado próprio e expulsos de suas terras, os mesmos acontecimentos viriam a ser conhecidos como a Nakba, ou 'Catástrofe", conclui.

Obama disserta ainda longamente sobre a questão israelo-palestina, pois, como destaca, "praticamente todos os presidentes americanos desde então tentaram resolver o conflito árabe-israelense, com variados graus de sucesso". Eu colocaria um in antes: "variados graus de insucesso".

Fora de dúvida que o havaiano Barack Obama tem o melhor texto de um líder mundial desde Winston Churchill. As mais de setecentas páginas de seu primeiro volume são bem palatáveis.

Gostaria muito de ler algumas páginas escritas pelos nossos líderes locais, para lhes saborear o estilo. Um texto da própria lavra de Lula ou Jair Bolsonaro seria interessante, né não? 

Mas só daria crédito à autoria se eles fossem trancados em uma sala, ambos de short (e sem celular), sem acesso à internet ou qualquer coisa da qual pudessem copiar - e, lógico, trancafiados em salas separadas, senão os dois iriam se unir e dar um jeito de trapacear.

Mas seria uma vã ilusão. No Brasil, um país com mais de duzentos milhões de habitantes, oito milhões e meio de quilômetros quadrados (o quinto maior do mundo) e um PIB acima de quatro trilhões de dólares, presidentes não precisam saber escrever.

Faz sentido. Aqui os eleitores podem ser analfabetos. Temos que admitir que é coerente.

Companhia das Letras, 751 páginas  |  1a edição, 2a reimpressão  |   Copyright  2020  

"Eu sou o último judeu", por Chil Rajchman


Hoje faz um ano do súbito ataque palestino a Israel. Como uma horda selvagem, três mil milicianos do Hamas cruzaram a fronteira e investiram contra civis. Em poucas horas, mil e duzentas pessoas foram mortas. Não pouparam ninguém. Trucidaram mulheres, crianças e idosos. Inclusive Gina. Câmeras de trânsito registraram o terror. Para merecer um tiro, bastava estar vivo. 

As vítimas colhidas nas ruas estavam todas desarmadas. Centenas de jovens surpreendidos em uma festa foram executados. Os rapazes foram mortos e as meninas foram estupradas. Não só: após o estupro coletivo, foram assassinadas. Os árabes, de forma metódica, atearam fogo em casas de família e em abrigos. Fuzilaram à queima-roupa e a sangue frio.

Organizadas, as unidades do Hamas fugiram de volta para Gaza antes que o exército israelense chegasse. Levaram como butim mais de duzentas e cinquenta pessoas. Não devolveram: completado um ano, metade dos sequestrados permanece em cativeiro, sabe-se lá em quais condições. A outra metade foi morta. Um punhado escapou, libertado pela IDF ou negociado pelo Hamas.

A ação foi longamente planejada e seu resultado superou as expectativas mais otimistas. Houve euforia no auto-denominado "Eixo da Resistência" - uma aliança informal de países e milícias, liderada pelo Irã e integrada também por Hezbollah, Hamas, houthis do Yemen e grupos xiitas do Iraque, Afeganistão e Paquistão. Se beijaram, em êxtase. Festa nas ruas, de Beirute a Teerã.

Embora os fatos sejam públicos e as informações estejam disponíveis, há quem não pegue as sutilezas.

Ontem mesmo, passados doze meses, ouvi um "cientista político" dizendo que o conflito está "escalando", e que é necessária uma solução que "traga a paz". Escalando? Paz? Como a grande maioria dos auto-denominados "especialistas", o tal cientista não sabe do que fala.

A paz não é o objetivo de nenhum dos atores árabes do Oriente Médio. A guerra é um negócio e os seus líderes são todos profissionais - ainda que aleguem motivações de fé e ideais patrióticos. Balela.

Nem tudo são flores sob o véu muçulmano. O jogo é de interesses. A Arábia Saudita, sunita, é parceira comercial dos Estados Unidos. O Irã, xiita, é adversário dos americanos e conta com o apoio ora dissimulado, ora ostensivo, de antagonistas dos EUA no cenário mundial, como China e Rússia.

Israel é um enclave ocidental no Oriente Médio, o que já seria suficiente para ser alvo do Irã. Mas sua existência se presta também para consolidar a liderança político-religiosa iraniana no mundo árabe. Incitar e coordenar a violência contra o infiel judeu lhe assegura o protagonismo em uma parte do mundo onde devoção fundamentalista e ódio ao estrangeiro são moeda corrente.

Não tendo fronteira comum e nem de longe interessado em iniciar uma guerra total contra o exército israelense, a principal arma do Irã é o financiamento de grupos terroristas. Este é o modelo que permitiu que nos últimos anos o Irã, indiretamente, atacasse Israel. 

Sua estratégia se concretiza por meio das milícias do "Eixo da Resistência", onde chefes locais sedentos de poder são hábeis em conduzir jovens para matar e morrer pela "causa". 

O Hamas, na Faixa de Gaza, e o Hezbollah, no Líbano, são as pontas-de-lança iranianas. Quando Israel declarou estar em vias de celebrar a paz com a Arábia Saudita, que sinalizou positivamente, o sentido de urgência se apossou do regime dos aiatolás. Era hora de acionar a mais radical das ferramentas. A paz dos judeus com os sauditas, se anunciada, seria catastrófica.

Não lembra? Confira como sites brasileiros republicaram notícias da Reuters comunicando que um acordo de paz entre Arábia Saudita e Israel estava sendo costurado. A notícia foi amplamente veiculada no Brasil em 22 de setembro de 2023, duas semanas antes do ataque terrorista do Hamas:

<https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2023/09/22/israel-esta-prestes-a-alcancar-acordo-de-paz-com-arabia-saudita-diz-netanyahu.htm>

Para esvaziar qualquer possibilidade de paz, o Irã autorizou que o abusado plano de invasão de Israel fosse deflagrado. Era um feroz ataque armado, mas sem objetivo militar. As taxas de sucesso eram irrelevantes. O que importava não era a ocupação temporária de uma faixa desimportante da fronteira - e sim a reação de Israel ao número de vítimas. Quanto maior a reação, melhor.

O ataque de um grupo terrorista palestino, estourando a fronteira entre Gaza e Israel, deveria ser bárbaro e escabroso, para que a retaliação israelense fosse também desmedida. Com o rastilho de pólvora aceso no paiol árabe-israelense, a guerra Israel-Hamas era garantida e o acordo de paz entre sauditas e judeus, inviável - ao menos enquanto durasse o conflito, que não tem prazo para acabar.

O simples estado de guerra já seria uma vitória iraniana.

Os desdobramentos dependeriam da extensão do revide judeu e de como a narrativa político-ideológica seria manipulada. Apesar de bem-sucedida na inversão do story-telling na mídia internacional (fazendo dos civis judeus decapitados e das jovens israelenses estupradas os culpados pelo sofrimento árabe nos últimos cento e cinquenta anos de História), a intensidade e a extensão do troco israelense ultrapassaram as previsões mais calamitosas.

Mas como calibrar esta resposta? Como mensurar como os judeus reagiriam a este ataque covarde?

É aí que entra a história do judeu polonês Chil Rajchman, "Eu sou o último judeu". Rajchman foi um dos poucos sobreviventes do campo de extermínio de Treblinka, que matou um número estimado entre 700.000 e um milhão de seres humanos. Todos foram mortos por serem judeus.

(Em tempo, isso é genocídio - quando o objetivo do assassinato coletivo é a extinção de uma etnia.) 

O livro foi publicado após sua morte, em 2004, sessenta anos após os eventos narrados. Eu já li dezenas de narrativas dos campos de extermínio. Não me lembro de nenhuma tão didática. 

A sua descrição da linha de montagem do matadouro humano é perturbadora. A logística que possibilitava que milhares de pessoas desembarcassem na estação de Treblinka e em questão de horas estivessem mortas, despojadas, violadas e enterradas era um processo selvagem. 

Os matadores alemães e ucranianos geriam a matança com prazer. Talvez tenha sido um  comportamento determinante para, em grande escala, gerenciar a morte de seis milhões de judeus. O ataque palestino de 7 de outubro passado reavivou estes fantasmas. É um lembrete. Os não-judeus podem subitamente invadir o gueto e, com prazer, confinar e degolar os judeus.

A violência da carnificina e o cativeiro sob a guarda do Hamas é a reexibição de um filme que os judeus achavam que já tinha saído de cartaz. Mesmo que não se igualasse aos campos de extermínio, como o de Treblinka, é inevitável a correlação. Ambos os eventos eram o resultado articulado de um plano racional para cometer uma ação - digamos - irracional.

Recordemos. Depois que a Solução Final (leia aqui no blog "Os nazistas e a Solução Final", de Mark Roseman) foi determinada na Conferência de Wannsee, em janeiro de 1942, o destino dos judeus da Europa estava selado. Chil foi um dos muitos milhões embarcados nos comboios da morte.

Partiu da estação de Lubartow, a 20km de Lublin, acompanhado da irmã caçula, Rivke ("uma bonita garota de 19 anos"). Ao chegar em Treblinka, são separados na estação. Homens à direita, mulheres à esquerda. Sucinto, diz o autor que "nos beijamos rapidamente e nos despedimos para sempre".

Seguiu para um pátio, onde foi espancado, despido e expoliado. Dali seguiriam para as câmaras de gás. Como cada leva de 10.000 judeus transportada pelos comboios demandava mão de obra para separar as roupas e depois carregar os cadáveres para as valas, algumas dezenas de jovens saudáveis eram postos à parte, para se encarregarem do serviço. Extenuados, cobertos de sangue e rasgados pelas chicotadas, geralmente levavam uma bala na cabeça, ao fim do dia.

Chil Rajchman, um destes jovens, revela a mecânica de funcionamento do campo e como sobreviveu ao extermínio genocida. Um entre milhares. Mesmo para um leitor experiente, sua narrativa é devastadora. Diríamos: Não é admissível que seres humanos se comportem assim. Vai nessa.

Após ter estado entre os 1% poupados da morte imediata, conseguiu estar entre os 0,1% integrados às equipes regulares de trabalho. Disse saber cortar cabelos e se tornou tonsurador. Sua função era cortar os cabelos das mulheres nuas. Tinha que fazê-lo com até cinco tesouradas, sob pena da chibata e da bala na cabeça. Os cabelos se tornariam perucas para as mulheres alemãs.

Ao fim de cada "atendimento", com as mulheres nuas e carecas correndo debaixo de pancada para uma das treze câmaras de gás de Treblinka, ele e os outros tonsuradores tinham que cantar uma canção "bonita" para os nazistas e os guardas ucranianos. Deboche sádico.

"Pessoas ao lado morrem asfixiadas e devemos cantar", se resigna Chil. De tempos em tempos", diz, "um dos guardas sai no corredor e olha para uma janelinha". Era para conferir se as mulheres já estavam mortas. Quando já ninguém respirava, era a hora da equipe de coleta de cadáveres.

Havia as câmaras menores e as maiores. Rajchman, que foi remanejado para este "serviço", diz que nas maiores as pessoas demoravam mais a morrer. Você já deve ter lido muitas histórias do extermínio. Mas devo reproduzi-las. Foi por isso que Chil escreveu seu diário. Para que soubéssemos.

"É um inferno. Quando as portas se abrem, as primeiras emanações são perigosas. Os cadáveres, de pé, estão tão espremidos uns nos outros, os braços enlaçados e as pernas umas sobre as outras, que os subalternos, na rampa, correm risco de vida enquanto não conseguirem retirar as primeiras dezenas de cadáveres. Em seguida, o monte se desagrega e os corpos se soltam por si sós. Essa compressão se dá porque as pessoas ficam apavoradas e se abraçam, umas às outras, quando são obrigadas a entrar na câmara de gás. Elas prendem a respiração para entrar e encontrar espaço. O corpo incha depois, durante a sufocação e a agonia, de maneira que os cadáveres não formam nada mais senão uma massa."

Como Rajchman já havia nos alertado, "os cadáveres apresentavam uma diferença dependendo se vinham das câmaras de gás pequenas ou grandes". Explica que "nas pequenas, a morte era mais rápida e fácil. Parecia, vendo seus rostos, que as pessoas estavam adormecidas: de olhos fechados, apenas a boca, numa parte das vítimas, ficava deformada, uma espuma misturada com sangue aparecendo nos lábios. Os corpos, cobertos de suor. Antes de expirar, haviam urinado e defecado."

Eram os corpos de pessoas comuns, como eu e você. O autor continua: "Os cadáveres provenientes das grandes câmaras de gás, onde a morte demorava mais a chegar, haviam conhecido uma atroz metamorfose, tinham o rosto todo preto, como se tivessem sido queimados, os corpos ficavam inchados e azuis. Tinham os maxilares tão trincados que era impossível abri-los para acessar as coroas de ouro, às vezes tínhamos que arrancar os dentes verdadeiros para lhes abrir a boca."

Os carregadores precisavam extrair o corpo do judeu morto desta massa, pô-lo sobre uma maca e despejá-lo em uma bancada, para ser "tratado" pelos dentistas. Rajchman conheceu bem a função.

Depois de ter sobrevivido a quatro semanas como carregador, o autor conseguiu uma vaga entre os "dentistas" - o que, pela especialização, aumentava suas chances de viver mais algumas semanas (0,01% dos judeus), caso superasse as chibatadas e a falta de água e comida. 

Os dentistas eram os que removiam o ouro e a platina da boca dos cadáveres. Inspecionavam também a vagina das mulheres mortas. Quem deixasse passar uma obturação (ou um diamante, ou aliança, ocultos) levava uma bala na cabeça.

Rajchman esclarece de forma pormenorizada como funcionava a linha de montagem, ou melhor, de desmontagem dos seres humanos.

"As tarefas de evacuação dos cadáveres eram distribuídas por vários grupos. Além dos rampiazhes (os subalternos na rampa, uns 20 homens), havia também entre 30 e 40 carregadores, seis dentistas e, nas valas, uma brigada de coveiros. Entre estes, uma dezena de homens dispunha os cadáveres na fossa, cabeça com pés a fim de fazer caber o máximo. Outro grupo cobria cada camada com areia, antes de alinharem por cima a camada seguinte de cadáveres."

O autor chama o ritmo frenético, a corrida de um lugar para o outro e as chibatadas de "cortejo diabólico". Alemães e ucranianos, chicote em punho, miravam sempre onde machucasse mais.

"Os rampiazhes deviam agir de maneira a que houvesse sempre um monte de cadáveres pronto, a fim de que os carregadores não tivessem que esperar", elucida Rajchman. "Os carregadores tinham que recolher um cadáver na corrida (e escolher de longe, com o olho, um corpo fácil de tirar do monte), atirá-lo sobre sua maca e partir a galope para a vala comum".

No transporte da rampa para a vala, os carregadores paravam em frente à brigada de dentistas, sem por o corpo no chão. Um dentista avaliava o interior da boca para ver se havia dentes de ouro ou próteses e, em caso positivo, destinava o cadáver a um dentista livre. Este tinha que extrair todos os dentes de ouro, sem passar nenhum - sob pena de entrar na chibata, pois os SS faziam o controle.

Chil conta que o dentista que fosse o último da fila era o que apanhava. Uma vez levou 25 chibatadas, em outra 70. "Ele me chicoteou as costas com toda a sua força e sempre no mesmo lugar. Quase quebrou minha coluna", diz. Infeccionou. Mas nem assim Chil morreu.

O livro é curto - mas minucioso. Rico em detalhes objetivos. Um registro fundamental.

A leitura é difícil, sei; mas educativa. Lendo estas atrocidades, às vezes não suporto e choro. Na maior parte das vezes, apenas prendo a respiração. Há quem prefira não ler - e, como consequência, não saber. Curioso que ainda assim haja os que não sabem e têm uma opinião formada. 

Mesmo tendo lido dezenas de narrativas dos campos de extermínio, e de ter visitado pessoalmente um deles - o mais famoso de todos, o de Auschwitz-Birkenau -, Treblinka me impacta de forma singular. O livro "Treblinka", de Jean-François Steiner, foi meu primeiro contato com a história do Holocausto. Eu tinha apenas treze anos. O que li, então, me marcou. E deixou uma cicatriz.

Seu subtítulo era "A revolta de um campo de extermínio". Uma ficção (também comentada aqui no blog), lançada nos anos 60, baseada no depoimento de sobreviventes. Chil Rajchman não está entre os depoentes. Por razões que desconheço, guardou seu testemunho até o dia da sua morte, seis décadas depois. Seu relato corrobora a maior parte do descrito no romance de Steiner.

Atente que a história do campo de extermínio de Treblinka é diferente daquela da maioria dos campos. Não no que diz respeito ao morticínio. Mas sim à forma que tudo terminou. Os mortos-vivos de Treblinka se rebelaram. Mataram seus algozes e fugiram. A quase totalidade foi morta na fuga.

A revolta aconteceu em 2 de agosto de 1943. Os prisioneiros judeus fizeram uma cópia da chave do depósito de armas e mataram os SS. Com os facões usados para retalhar cavalos mortos, os presos degolaram os guardas ucranianos. Depois de morrerem quase um milhão, mataram algumas dezenas. Para quem exige proporção, destaco que o número de baixas foi desproporcional.

Os condenados fugiram em bandos, à louca, em desvario. Zanzaram a esmo pelos bosques. Os nazistas os matavam e os poloneses locais, se os vissem, os deduravam. Ganhavam recompensas por cagoetar os zumbis que fugiram do inferno. Reputa-se que quase mil escaparam. À exceção de umas três dúzias, foram todos recapturados e executados.

Na sua fuga, sozinho, Chil foi salvo pela bondade de um casal polonês de camponeses. O abrigaram, lhe deram roupas e alimento. Um vizinho descobriu e cagoetou. Mas até dessa ele escapou. Conseguiu chegar a Varsóvia. Um amigo lhe escondeu e providenciou documentos arianos.

Ao fim da guerra, livre, o corajoso Chil resolveu ir para Montevidéu. Me surpreendi. Eu, que nunca fui, também estou indo para lá no fim do mês. A vida é assim. Cheia de coincidências.

A guerra no Oriente Médio segue o rumo desejado pelos seus perpetradores. Segundo publicado pelo New York Times nesta sexta, o líder do Hamas, Yahya Sinwar, pleiteia a ampliação da guerra. O chefe da milícia se recusou a avançar em um acordo de cessar-fogo e lamenta que o Irã e o Hezbollah "não tenham vindo em seu socorro": 

"Hamas leader is holding out for a bigger war", diz o título. "Yahya Sinwar has blocked a cease-fire deal and been frustrated that Iran and Hezbollah have not come for his aid", prossegue a matéria.

Os milhares de mísseis lançados pelos aliados contra o território israelense parecem não entrar na contabilidade do palestino. Os quarenta mil habitantes de Gaza mortos pelos bombardeios de Israel também não o sensibilizam. A destruição da Faixa de Gaza não importa. Sinwar quer mais.

O aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã, se pronunciou sobre o "ataque maciço iraniano com cerca de 180 mísseis ao território israelense". Na mesma sexta, o aiatolá "defendeu a ofensiva e também os atentados de 7/10, realizados pelo grupo terrorista palestino Hamas". Ali quer mais.

Hoje, quase oitenta anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, são poucos os sobreviventes dos campos de extermínio. Ironicamente, alguns que sobreviveram aos nazistas não escaparam ao ataque do Hamas de Yahya Sinwar, na ação bancada e festejada pelo Irã de Ali Khamenei.

Gina Smiatich, criança judia nascida em 1933 e prisioneira nazista em Theresienstad, sobreviveu ao campo, mas foi morta pelos palestinos em 7 de outubro passado. A então encarquilhada senhorinha, de 90 anos, foi metralhada em frente à porta de sua casa, no kibutz Kissufin.

Nunca haverá paz. Mesmo se o último judeu for morto.

Editora Zahar, 147 páginas  |  1a edição, 2010  |  Copyright 2009  |  Tradução  André Telles

Título original: "Je suis le dernier juif"




"Zygmunt", por Isabel Mauad e Zyg Filipecki


"Felicidade era quando não acontecia nada."

Hoje, há exatos 85 anos, a Polônia estava sendo invadida pelas tropas alemãs. Embora tenha sido uma invasão anunciada pelas sistemáticas ameaças de Hitler, foi uma operação dissimulada. Os invasores armaram um teatro patético para simular que reagiam à uma agressão.

Bem típico do caráter nazista.

Milhares de civis morreram. Em um átimo, as forças armadas polonesas foram dizimadas. A Polônia foi ocupada pelos alemães, apenas vinte e um anos depois de ter reconquistado a soberania perdida por quase um século e meio. O povo fugiu em direção ao Leste. Fugia dos bárbaros.

Tinha início a Segunda Guerra Mundial. A carnificina duraria seis anos.

Um garoto polonês chamado Zygmunt Filipecki estava entre os que fugiram dos boches. Com 15 anos, escoteiro, acompanhara os preparativos militares da Polônia. Havia enorme confiança na capacidade do exército polonês, que se acreditava um dos melhores do mundo. Ledo engano. 

Como narrado em pormenores no imprescindível "Estado Secreto", por Jan Karski (veja aqui no blog), os poloneses se prepararam para uma guerra do século XIX e foram atropelados pela blitzkrieg do século XX. Foram mortos. Os sobreviventes foram feitos prisioneiros. Alguns escaparam.

Na confusão que se instalou, o menino Zygmunt se separou da família, se aliou à Resistência e queimou uma aldeia, com as pessoas dentro. Para recuperar o dinheiro do pai, voltou à região ocupada pelos alemães. Na volta, foi preso pelos russos e condenado a trabalhos forçados na Sibéria. Não é pouca coisa para quem mal entrou na adolescência.

Com o corpo fechado, Zygmunt passou por tudo sem que lhe acontecesse nada. Permaneceu prisioneiro até os nazistas invadirem a União Soviética. Livre, se juntou ao exército polonês reunido no Uzbequistão, treinado no Irã e despachado para o Iraque, daí rumando para a Palestina.

E o cara era apenas um moleque.

Com o fim da guerra, se tornou marinheiro e viajou embarcado para a Bélgica, Holanda e Inglaterra. Lá conheceu poloneses que lhe falaram do Brasil. Largou mão da relativa segurança de refugiado no Reino Unido e veio tentar a sorte no Rio de Janeiro. Um ilustre desconhecido, foi recebido com carinho pelos cariocas (somos assim) e se maravilhou com Copacabana. Não era pra menos.

Encontrou aqui seu lugar no mundo. Depois de Niterói, foi viver em Santanésia e acabou em Teresópolis. O livro é um compilado de entrevistas desse sobrevivente de guerra, feitas mais de meio século depois, conduzidas pelo próprio filho e pela nora, a editora Isabel Mauad. 

Nada poderia ser mais despretensioso e autêntico. Um relato descontraído em primeira pessoa, posto de pé com a devida contextualização histórica. Uma narrativa coerente. Encaixa e preenche o que é do conhecimento dos acadêmicos. Um enviado anônimo ao passado, sofrendo, ao lado da multidão da época, os efeitos da História.

Este pequeno e valente personagem da guerra se tornou autor de uma vasta prole brasileira. Produziu uma descendência volumosa de brasileirinhos: oito filhos, 16 netos e 11 bisnetos.

E que depois de enfrentar os desafios mais escabrosos como quem chupa um Chicabon, filosofa.

"Você não pode deixar de pensar que dormiu no chão, no piso do trem, no caminhão, com fome e com frio", rememora. Nunca mais voltou à Polônia. Satisfeito, reflete: "E hoje, ao me deitar, vejo a roupa de cama trocada, limpinha, lençol bom, travesseiro..." Tornou-se mestre da simplicidade.

"Felicidade era quando não acontecia nada."

É isso. Um texto que reúne as piores e as melhores coisas da vida.

Editora Mauad, 129 páginas  |   1a edição, 2013


"O homem dos pedalinhos", por Bruno Leal Pastor de Carvalho


Ano passado li um outro livro dedicado a este mesmo personagem e seus pedalinhos. Um romance curto, narrado em voz feminina, onde Herbert Cukurs - o personagem em um questão - era um quarentão sedutor. Chamava-se "O cisne e o aviador". O cisne ao qual se referia o título era uma judia emigrada para o Brasil. Na trama, ela se envolvia com um aviador matador de judeus.

Já esta obra de Bruno Leal é uma pesquisa robusta sobre a fuga de um criminoso de guerra para a América do Sul. O aviador é o mesmo. Mas aqui, ainda bem, o cisne se resume à imagem mequetrefe escolhida pela Fundação Getúlio Vargas para ilustrar a capa. Volto a ela no fim.

O aviador, protagonista que titula ambas as obras, foi um sujeito atípico. Herói na Letônia, um pequeno país báltico, é considerado até hoje um pioneiro da aviação. Fez travessias mirabolantes com um avião que ele mesmo montou, indo da Europa à África. Noutra feita, sobrevoou a Ásia. Quando a Alemanha nazista ocupou a Letônia, se integrou às forças da SS.

Aderiu ao pior da corja que invadiu sua pátria e se engajou na execução dos dezenas de milhares de judeus do país. Depois, com a derrota dos alemães, fugiu para a França e de lá para o Brasil. Chegou aqui legalmente, em 1946, com seu nome verdadeiro, e acompanhado da sua família (esposa, sogra e três filhos). Veio também com eles uma moça judia (!), Miriam Kraicners.

(Uma dúvida: será que essa tal Miriam é o cisne do outro romance, ou teria sido inspiração para ele?)

No Rio de Janeiro, Cukurs trabalhou como instrutor de vôo e logo abriu um negócio de pedalinhos na Lagoa Rodrigo de Freitas. A atração se tornou um sucesso e rendeu a ele uma série de matérias positivas nos jornais. Junto com a fama, porém, veio um indesejado reconhecimento público. Judeus letões emigrados o identificaram. Foi denunciado pelo que era, um genocida sanguinário. Seus pedalinhos foram danificados pelos judeus e a prefeitura suspendeu sua licença para operar no local.

A mídia que antes o celebrara passou a acusá-lo. Associações judaicas pleitearam sua expulsão do país. Ao mesmo tempo, o letão estava com seu pedido de naturalização em andamento. Se o escândalo acabou por impedir que o governo autorizasse o pedido (politicamente não ficava bem), por outro lado não teve força suficiente para provocar sua expulsão do país, como ansiado.

Armou-se um cabo de guerra que não saiu do lugar, estacionado na burocracia federal.

Esperando baixar a fervura, Cukurs foi com a família para São Paulo, onde se estabeleceu e montou novos negócios, entre vôos de turismo e agricultura, sempre bem-sucedido. O aviador era talentoso, ousado e hábil nos relacionamentos. Enquanto isso, na esfera jurídica, ambos os processos permaneceram em aberto: o da naturalização e o da expulsão. Mas em banho-maria.

E daí a coisa não avançou. Se alguma notícia punha o letão em evidência, o assunto logo caía no esquecimento. E assim o aviador assassino foi levando a vida em território brasileiro.

Mas com o sequestro do nazista Adolf Eichmann empreendido pelo Mossad (o serviço secreto israelense), no início dos anos 60, o assunto Cukurs foi requentado. O genocida esquecido (por uma década e meia) passou a ser o genocida lembrado.

Eichmann, para quem não sabe (tem a biografia do dito cujo aqui no blog, o excelente "Caçando Eichmann", por Neal Bascomb), tinha fugido para a Argentina e se estabelecido com a família em Buenos Aires, sob nome falso. O alemão fôra o principal burocrata da máquina nazista de genocídio, um super barnabé, da confiança de Heindrich - mas sem prestígio entre seus pares.

Localizado e denunciado, os judeus montaram um esquema cinematográfico (tanto, que já rendeu mais de um filme, o último com o oscarizado Ben Kingsley no papel de Eichmann) para sequestrar o medalhão. Os argentinos deram um ataque de pelanca ao verem sua soberania ultrajada; afinal, eles se davam o direito de ser um paraíso de fugitivos nazistas e Israel mostrou que, se a carne portenha era boa, o serviço local tinha os seus furos.

Herbert Cukurs ficou apavorado, dizem, com a perspectiva de ter um destino equivalente. Eichmann, depois de sequestrado e embrulhado como um presunto, foi julgado em Tel Aviv e depois enforcado. Temendo pelo próprio pescoço, com aparente razão, o aviador se apresentou à polícia paulista. Queria do governo brasileiro a proteção que o governo argentino não conseguiu dar ao alemão.

(Frise-se que até hoje o governo é acusado de ter sido conivente com a permanência de Herbert Cukurs no país, como destacou uma reportagem da Folha de São Paulo de alguns anos atrás.)

Este é justamente o ponto do autor. Para investigar a suspeita de uma pretensa proteção governamental, Bruno Leal fez uma extensa pesquisa em documentos oficiais e no noticiário da época, em busca da confirmação desta postura parcial. Houve ou não acobertamento e proteção federal para o criminoso? Ele nos oferece suas conclusões, em bem explicados pormenores.

O lento avanço burocrático dos pleitos dos acusadores e do acusado. As dificuldades das instituições judaicas na obtenção de documentos que comprovassem as atividades genocidas de Cukurs. Seu esforço em obter a naturalização. Está tudo no livro.

Assim, o conteúdo da obra é menos sobre Herbert Cukurs e sobre os crimes que recaíam sobre ele, e muito mais sobre a conduta do governo brasileiro na gestão do caso.

Conta também, de forma resumida, como os judeus pegaram o seu antigo algoz. 

Dito isto, não vou deixar passar em branco a imagem que ilustra a capa de "O homem dos pedalinhos". É a foto em primeiro plano de um pedalinho com bico de cisne. Em segundo plano, a lagoa, com um barquinho e a mata nas margens. Ao fundo, edifícios. 

Fácil de acertar o logradouro, né? Já sabíamos que o aviador montou pedalinhos na Lagoa Rodrigo de Freitas - uma lagoa com barquinhos, vegetação e prédios em toda a sua circunferência. Resta óbvio que a lagoa da foto é a lagoa do "homem dos pedalinhos"... Só que não. Cresci jogando bola na Lagoa. E basta olhar a foto para ver que aquela da foto não é a lagoa da qual trata o livro.

Impressionado pela pachorra, resolvi fuçar. Vi na ficha que a foto era do banco de imagens Pixabay, tirada pelo fotógrafo Igor Ovsyannykov. Se no site de imagens não consegui pesquisar pelo nome do fotógrafo, um russo, no Google achei seu portfolio virtual. E lá, entre centenas de fotos, encontrei a foto de capa. Sua lagoa fica em Bangcok, Tailândia. Mais precisamente no Lumphini Park (https://pixabay.com/pt/users/6222956/?tab=all&order=latest&pagi=4).

Ou seja, o pedalinho, o cisne e a lagoa da capa de "O homem dos pedalinhos" são todos tailandeses. Por que diabos a editora, cujo endereço é Rua Jornalista Orlando Dantas, 9, em Botafogo, a míseros 5 quilômetros da Lagoa Rodrigo de Freitas (dá pra ir andando, de uber deve dar 15 minutos, menos de vinte merréis), não usou uma foto real da lagoa em questão, que qualquer estagiário poderia tirar, e se valeu de uma foto de banco de imagens para montar uma capa graficamente bem meia-boca, permanece um mistério. Autenticidade é relevante em um livro lastreado em documentação.

Caraca, dar um pulinho na Lagoa com um celular e fazer umas fotos não mata ninguém, né não?

Só como exemplo, fiz uma pesquisa preguiçosa no Google e já catei de cara uma série de ótimas fotos da Lagoa. Não quer ir até lá? Faz contato com o autor de uma destas imagens que estampei aqui na ilustração do post, compra e publica na capa. Inclusive fazendo uma arte melhorzinha.

Bem, não vou me estressar mais do que já me estressei com isso. A capa marota (eu ia dizer estelionatária, mas deixa pra lá) não interfere no conteúdo. Só pega mal.

Já o texto é uma contribuição valiosa para quem tem interesse na participação brasileira na ocultação do rebotalho da Segunda Guerra Mundial. Loas ao Bruno. O historiador é criterioso e demonstra isenção. Seu livro é uma grata surpresa em um país onde pesquisa consistente não é levada a sério.

E que, vale dizer para aliviar o lado dele, certamente não teve o direito de palpitar na capa.

Mas que foi uma tremenda bola fora da editora, foi.

FGV Editora, 335 páginas  |  1a edição  |  Copyright 2021

"O showman", por Simon Shuster


A "Guerra da Ucrânia" continua - escondida dentro das páginas internas dos principais jornais do país. Virou uma commodity. Se já não mexia muito com ninguém aqui no Brasil, foi relegada a conflito de quinta classe, depois do multi-midiático ataque terrorista a Israel em outubro passado.

Setecentas mil pessoas já morreram na Ucrânia, estimam os envolvidos - mas esta catástrofe humanitária não é páreo, porém, para o tônus apelativo da guerra em Gaza. O frenesi ideológico, que sustenta a cobertura jornalística e as postagens em redes sociais (majoritariamente contrárias à retaliação dos judeus), carece de combustão quando o assunto é a Rússia de Putin.

Após mais de dois anos, a invasão russa é um tema inconveniente por aqui. Além de tudo, pouco instagramável. Por isso mesmo, afora os grupelhos mais vinculados ao marketing partidário do governo brasileiro, simpático ao atávico imperialismo soviético, a Guerra da Ucrânia não dá ibope.

Mas este ibope é justamente o que quer Volodymyr Zelensky, o showman do título, como nos conta seu biógrafo. Simon conhece Volodymyr de longa data. Assistia suas performances na TV. Entrevistou-o quando ainda era um artista sem pretensões políticas. Entrevistou-o quando assumiu o poder. Entrevistou-o no bunker quando começou a guerra e também no trem presidencial que, sob bombardeio, riscava o país de um extremo ao outro.

Assim, se o livro traz uma perspectiva temporal incompleta do conflito (ainda em curso e indefinido), oferece bastante substância no que tange à personalidade do biografado. Simon sabe de quem fala; e, ainda assim, não é generoso - ao menos não em excesso - com seu biografado. Melhor: seu texto não se resume ao inusitado currículo do ex-comediante Volodymyr Zelensky. Vai além.

Destrincha o complexo emaranhado das conturbadas, e sangrentas, relações russo-ucranianas. Onde o primeiro, o russo, nega a legitimidade étnica do segundo, a Ucrânia - alega-se que seriam farinha do mesmo saco. É o próprio Zelensky quem afirma que, para Vladimir Putin, a Ucrânia não existe. 

Como Shuster nos relata, "Zelensky, o showman que virou presidente, conhecia o poder e o perigo da persuasão, e sabia que muito antes de os tanques russos cruzarem as fronteiras da Ucrânia, o Kremlin tinha travado sua guerra através da propaganda, procurando convencer qualquer um que fala a língua russa de que a Ucrânia não existe e seus líderes são nazistas ressuscitados".

Ué, ucranianos falam russo? Como assim? Pois é. Pausa para considerações: essa coisa do idioma é uma complicação adicional para nós, brasileiros. Aqui todo mundo fala a mesma língua e não existem dialetos. Mesmo os sotaques e regionalismos não impedem a resenha entre um gaúcho e um cearense, separados por quatro mil quilômetros.

Para efeito de comparação, esta distância entre duas capitais brasileiras supera a que separa Kiev, a capital ucraniana, de Lisboa, capital de Portugal - cruzando absolutamente toda a Europa.

Já os ucranianos são vizinhos que falam ucraniano e alguns deles só falam russo - como o próprio Zelensky, nascido e criado em Kryvyi Ryi, cidade ucraniana a quatrocentos quilômetros de Kiev, onde o idioma local é o... russo. E não só boa parte da Ucrânia fala russo, como também um percentual considerável de ucranianos se considera russo e querem que sua terra pertença à Rússia.

Tipo como se os catarinenses falassem espanhol e preferissem ser argentinos. Que zorra.

Além da confusa questão do idioma, há a questão territorial. A Ucrânia é também um dos países que mantêm a Europa "longe" da Rússia. Belarus (que aqui aportuguesamos para Bielorrúsia) e Ucrânia compõem um largo fosso que separa a Rússia dos países europeus filiados à OTAN. Ou seja, a geopolítica aqui se subordina a questões militares. A Putin não convém a fronteira com os europeus. 

O imbroglio não começou agora. Em 2014 a Rússia invadiu a Ucrânia na cara dura e tomou a Criméia (a mais rica região ucraniana). Ficou por isso mesmo. A Ucrânia acabou mutilada (algo parecido com o que Maduro, presidente venezuelano, quer fazer agora com a Guiana, meter a mão) de um pedaço enorme do seu território e os líderes europeus - bem, como dizer? - colocaram o galho dentro.

Zelensky foi eleito tendo que lidar com uma zona de conflito ainda não pacificada. Tipo como o Rio lida com as comunidades cariocas. "Pertencem" ao Estado, mas o Estado lá não entra. Quem manda são os traficantes e os milicianos. Na Criméia é a mesma coisa. A Criméia é ucraniana, mas quem manda lá são os milicianos russos. E os ucranianos locais acham que funciona melhor assim. 

Com este retrospecto, confiante que ia dar bom, Putin resolveu que iria pegar mais um pedaço da Ucrânia. Molinho. Afinal, teria dito ele, "a Ucrânia não existe". Então, após ameaças e pseudo-negociações que se estenderam por mais de dois anos, duzentos mil soldados russos rumaram para a fronteira ucraniana. Para fazerem "exercícios militares".

Para bom entendedor, pingo é letra. A invasão era iminente. Os satélites dos EUA identificaram uma intensa movimentação de tropas. Os países europeus ofereceram asilo a Zelensky e o orientaram a não escalar o confronto. Havia muitos interesses envolvidos e uma guerra é sempre ruim para os negócios.

Mas, como sabemos e o livro decupa, Zelensky matou no peito. Chamou a responsabilidade. Declinou de fugir. Se recusou a contemporizar com a ameaça de invasão do vizinho latifundiário.  O presidente ucraniano não aceitou a sugestão de se picar, dada pelos países europeus amigos. 

Supõe-se que estes deveriam estar unidos na defesa da soberania ucraniana. Mas talvez não se fiassem muito nela. "O pior ato de agressão militar na Europa desde a Segunda Guerra Mundial não foi em si suficiente para unir a União Europeia", assinala Shuster. 

Então daí decorre toda a estrutura do livro - que, como vemos, é um bom ponto de partida para o entendimento da questão russo-ucraniana. Para ampliar o horizonte dos leigos na região (como eu), o autor recupera as duas décadas anteriores à eclosão da etapa mais recente da guerra e se imiscui na política local. Que, a propósito, nunca teve nada de simples.

(E para entender melhor a Ucrânia no período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, vale a leitura da substanciosa obra de Timothy Snyder, do rocambolesco "O príncipe Vermelho" ao seminal "Terras de sangue", ambos resenhados aqui no blog.)

É bom lembrar que a Ucrânia conquistou sua independência dois anos depois da queda do Muro de Berlim - mas nunca logrou desatar seus nós do Estado russo. E isso sempre se refletiu na política interna. Uma das correntes dominantes no parlamento ucraniano sempre defendeu o protagonismo russo nas questões locais, enquanto outra ala lutava pela independência de fato e de direito.

Assim, todas as eleições de lá para cá opuseram uma espécie de "Centrão" (submisso aos interesses russos) aos defensores de uma Ucrânia 100% autônoma. E nessas terras de sangue o confronto eleitoral é virulento, às vezes sórdido. Os métodos da região são assaz agressivos. Envenenamento e desaparecimento de candidatos não são coisa rara por lá. Os opositores da ala russa têm historicamente uma expectativa de vida mais reduzida. 

(Na verdade, os antagonistas políticos de Putin, ou mesmo aliados que eventualmente saem da linha, estatisticamente costumam ter uma saúde frágil, que, súbito, os levam a óbito; ou, quando não, são azarados na escolha dos vôos, que explodem do nada. Circunstâncias locais.)

Embora jamais pudesse ter sido considerado um ambiente sereno, em 2004 o país entrou em modo de convulsão permanente com a Revolução Laranja, uma revolta popular contra o que foi tido como sendo uma eleição fraudada, que levou o então candidato fantoche de Putin ao poder. Ou seja, o movimento era também um ato público contra a influência russa na região. Segundo o autor, a juventude queria menos corrupção e mais Europa. A revolta ganhou as manchetes internacionais.

Era tudo o que o Kremlin não desejava. Como cita Shuster, "um dos assessores de Putin referiu-se à revolta como 'o nosso 11 de Setembro". Não à toa: a Ucrânia sempre teve enorme valor estratégico para Vladimir. O jornalista destaca que "no início do mandato, Putin descreveu o colapso soviético como 'a maior catástrofe geopolítica do século XX', e seus planos para retificar a situação dependiam da salvaguarda dos elos entre Kiev e Moscou".

Pela falta de cadáveres, a Revolução Laranja não foi muito diferente das manifestações de 2013 contra o Governo Dilma no Brasil. O povo foi para a rua protestar e ninguém morreu. Em Kiev eram mais de cem mil pessoas "de prontidão, durante semanas, em pleno inverno, entoando canções patrióticas, fazendo discursos, acenando bandeiras laranja".

O "laranja" era o símbolo da campanha presidencial de Viktor Yushchenko, líder da revolução (e que havia sido envenenado e tido o rosto desfigurado pela KGB). Ao lado dele, e contra o vencedor da eleição fraudada, Viktor Yanukovych, estava a icônica loura de tranças douradas (você já deve ter visto a dona, uma espécie de Elke Maravilha ao cubo), Yulia Tymoshenko.

E então... ops, acho que podemos parar essa digressão por aqui, né? Dois Viktor e um Yanukovych, um Yushchenko e uma Tymoshenko são suficientes pra deixar qualquer carioca confuso. 

Avançando na história, a partir daí a Ucrânia atravessou uma década conflagrada, com o país puxado de um lado para o outro em um cabo-de-guerra violento, em que de um lado estavam os interesses do Kremlin, sempre financiando instituições e políticos "parceiros", e do outro as aspirações de soberania efetiva de parte da população.

"Dez anos mais tarde, em 2014", assinala bem o autor, "essa mesma dinâmica resultou em um segundo levante, muito mais sangrento, na Praça da Independência de Kiev". Escalando o conflito cada vez mais, neste mesmo ano se deu a invasão da Crimeia pelos russos. A esta altura, Zelensky já era uma celebridade televisiva na Ucrânia (e na Rússia) e um empresário influente, responsável pela produção de diversos programas de humor. 

Se até então Zelensky poderia ser quase considerado um russófilo, a partir da tomada da Crimeia por Putin sua postura, e suas atitudes, mudaram. Não somente subiu o tom contra os russos em seus programas, como abriu mão de contratos milionários com a TV russa. Apesar do russo ser o seu idioma, a Ucrânia era a sua pátria, e vê-la invadida provocou nele um comportamento assertivo.

E aí houve o sucesso de uma série estrelada e co-produzida por ele, "O servo do povo" (disponível aqui no Brasil na Netflix), onde ele representava um humilde professor que, ao ter um discurso patriótico viralizado nas redes sociais, acabou eleito presidente da Ucrânia. A série bombou e Volodymir se viu picado pela mosca azul. O povo passou a enxergar no ator o personagem.

E se ele realmente se candidatasse?

A despeito do comediante ser um absoluto outsider e ser tratado com desprezo pela classe política, os ventos sopraram a seu favor. Improvável, mas plausível. Não faltam exemplos recentes de celebridades que migraram para a política e acabaram eleitas. Zelensky foi tipo assim, como se alguém do Casseta & Planeta fizesse um personagem satírico na tevê e depois, nas urnas, fosse ungido presidente à vera.

A partir desse teatro de vaudeville dá para entender um pouco mais porque Vladimir Putin não levava a menor fé na habilidade de Volodymyr Zelensky em lidar com todas as implicações militares, políticas e diplomáticas que uma invasão de território poderia acarretar. 

Mas, como estamos acompanhando há mais de dois anos, para surpresa de absolutamente todo o mundo, o pequeno artista judeu no comando de uma nação historicamente antissemita não se intimidou - e vem resistindo bravamente ao ataque da segunda maior potência do planeta. Lidera a resistência ao agressor e se tornou um símbolo do nacionalismo ucraniano.

Os detalhes e as entranhas desta resistência são revelados por Simon Shuster, que entrevistou dezenas de pessoas que compartilharam com Zelensky momentos-chave dos seus dois universos - o do show-business e o de um governante de um país em guerra.

Nada é muito definitivo neste retrato; nem poderia ser. A história ainda está sendo escrita. Seu desdobramento terá influência na sua narrativa. O retrato momentâneo, junho de 2024, é desfavorável para as pretensões ucranianas de resistência. O apoio da comunidade internacional, principal instrumento de Zelensky para fazer frente à Rússia, apresenta fissuras aqui e ali.

Este apoio, diplomático e militar, foi a maior conquista de Volodymyr Zelensky à frente do cargo. Conseguiu o suporte - e armamento - dos seus dois maiores parceiros potenciais, Estados Unidos e Alemanha. Isto foi suficiente para que a Ucrânia ganhasse algumas batalhas; mas vê-la ganhar a guerra permanece sendo um horizonte distante.

Durante a cerimônia em memória aos 80 anos do desembarque aliado na França, semana passada, na quinta-feira 6 de junho, Zelenky foi ovacionado, na presença de líderes mundiais importantes, como Biden, Macron e Scholz (?). O norte-americano e o francês fizeram discursos incisivos de apoio à bravura ucraniana, prometendo armas, aviões e treinamento.

É exclusivamente devido ao suporte destas potências que a Ucrânia se mantém viva. A resistência ucraniana lhes convém. Mas conveniência é um elemento passageiro e sensível. Zelensky sabe que no embate midiático todos os aliados são importantes e devem ser capitalizados.

O Brasil, apesar da sua irrelevância diplomática, tem alguma relevância nas manchetes. Lula, o presidente, é um ícone (seu significado internacional é descolado da sua trajetória real). Pela representatividade que a imagem de um mero aperto de mãos lhe traria, diversas vezes o pequeno ucraniano de Kryvyi Ryi foi atrás do pequeno brasileiro de Garanhuns. Mas foi rejeitado.

Zelensky, na sua peregrinação por apoios, mesmo os simbólicos, se confessa frustrado pela solidariedade de Lula ao imperialismo soviético. Ratificando esta postura, a correspondente brasileira Janaína Figueiredo publicou há pouco um artigo em que enfatiza a falta de interlocução entre o país invadido e o Brasil, que, num contorcionismo verbal, se mantém ao lado do país invasor.

Na prática, a adesão brasileira à causa ucraniana influenciaria muito pouco - ou mesmo nada - no teatro da guerra. Mas a inquestionável fragilidade da Ucrânia diante da Rússia faz de cada pequeno gesto estrangeiro um reforço ao pedido de socorro da vítima, acuada num beco sem saída, após uma imprevista manifestação de coragem.

Talvez o país naufrague e seus cidadãos tenham morrido em vão.

Na sinuosa narrativa midiática internacional, a Ucrânia permanece numa espécie de umbral. Um purgatório onde a realidade não é comercializada por seu valor de face. A Guerra da Ucrânia pode produzir um milhão de mortos. Mas, dependendo do dia e das condições de temperatura e pressão, podem valer menos do que um sujeito com o braço quebrado na Faixa de Gaza.

Sinal dos tempos.

Editora Record, 419 páginas  |  1a edição  |  Copyright 2024  |  Tradução Marta Chiarelli

Título original: "The showman"