"O showman", por Simon Shuster
A "Guerra da Ucrânia" continua - escondida dentro das páginas internas dos principais jornais do país. Virou uma commodity. Se já não mexia muito com ninguém aqui no Brasil, foi relegada a conflito de quinta classe, depois do multi-midiático ataque terrorista a Israel em outubro passado.
Setecentas mil pessoas já morreram na Ucrânia, estimam os envolvidos - mas esta catástrofe humanitária não é páreo, porém, para o tônus apelativo da guerra em Gaza. O frenesi ideológico, que sustenta a cobertura jornalística e as postagens em redes sociais (majoritariamente contrárias à retaliação dos judeus), carece de combustão quando o assunto é a Rússia de Putin.
Após mais de dois anos, a invasão russa é um tema inconveniente por aqui. Além de tudo, pouco instagramável. Por isso mesmo, afora os grupelhos mais vinculados ao marketing partidário do governo brasileiro, simpático ao atávico imperialismo soviético, a Guerra da Ucrânia não dá ibope.
Mas este ibope é justamente o que quer Volodymyr Zelensky, o showman do título, como nos conta seu biógrafo. Simon conhece Volodymyr de longa data. Assistia suas performances na TV. Entrevistou-o quando ainda era um artista sem pretensões políticas. Entrevistou-o quando assumiu o poder. Entrevistou-o no bunker quando começou a guerra e também no trem presidencial que, sob bombardeio, riscava o país de um extremo ao outro.
Assim, se o livro traz uma perspectiva temporal incompleta do conflito (ainda em curso e indefinido), oferece bastante substância no que tange à personalidade do biografado. Simon sabe de quem fala; e, ainda assim, não é generoso - ao menos não em excesso - com seu biografado. Melhor: seu texto não se resume ao inusitado currículo do ex-comediante Volodymyr Zelensky. Vai além.
Destrincha o complexo emaranhado das conturbadas, e sangrentas, relações russo-ucranianas. Onde o primeiro, o russo, nega a legitimidade étnica do segundo, a Ucrânia - alega-se que seriam farinha do mesmo saco. É o próprio Zelensky quem afirma que, para Vladimir Putin, a Ucrânia não existe.
Como Shuster nos relata, "Zelensky, o showman que virou presidente, conhecia o poder e o perigo da persuasão, e sabia que muito antes de os tanques russos cruzarem as fronteiras da Ucrânia, o Kremlin tinha travado sua guerra através da propaganda, procurando convencer qualquer um que fala a língua russa de que a Ucrânia não existe e seus líderes são nazistas ressuscitados".
Ué, ucranianos falam russo? Como assim? Pois é. Pausa para considerações: essa coisa do idioma é uma complicação adicional para nós, brasileiros. Aqui todo mundo fala a mesma língua e não existem dialetos. Mesmo os sotaques e regionalismos não impedem a resenha entre um gaúcho e um cearense, separados por quatro mil quilômetros.
Para efeito de comparação, esta distância entre duas capitais brasileiras supera a que separa Kiev, a capital ucraniana, de Lisboa, capital de Portugal - cruzando absolutamente toda a Europa.
Já os ucranianos são vizinhos que falam ucraniano e alguns deles só falam russo - como o próprio Zelensky, nascido e criado em Kryvyi Ryi, cidade ucraniana a quatrocentos quilômetros de Kiev, onde o idioma local é o... russo. E não só boa parte da Ucrânia fala russo, como também um percentual considerável de ucranianos se considera russo e querem que sua terra pertença à Rússia.
Tipo como se os catarinenses falassem espanhol e preferissem ser argentinos. Que zorra.
Além da confusa questão do idioma, há a questão territorial. A Ucrânia é também um dos países que mantêm a Europa "longe" da Rússia. Belarus (que aqui aportuguesamos para Bielorrúsia) e Ucrânia compõem um largo fosso que separa a Rússia dos países europeus filiados à OTAN. Ou seja, a geopolítica aqui se subordina a questões militares. A Putin não convém a fronteira com os europeus.
O imbroglio não começou agora. Em 2014 a Rússia invadiu a Ucrânia na cara dura e tomou a Criméia (a mais rica região ucraniana). Ficou por isso mesmo. A Ucrânia acabou mutilada (algo parecido com o que Maduro, presidente venezuelano, quer fazer agora com a Guiana, meter a mão) de um pedaço enorme do seu território e os líderes europeus - bem, como dizer? - colocaram o galho dentro.
Zelensky foi eleito tendo que lidar com uma zona de conflito ainda não pacificada. Tipo como o Rio lida com as comunidades cariocas. "Pertencem" ao Estado, mas o Estado lá não entra. Quem manda são os traficantes e os milicianos. Na Criméia é a mesma coisa. A Criméia é ucraniana, mas quem manda lá são os milicianos russos. E os ucranianos locais acham que funciona melhor assim.
Com este retrospecto, confiante que ia dar bom, Putin resolveu que iria pegar mais um pedaço da Ucrânia. Molinho. Afinal, teria dito ele, "a Ucrânia não existe". Então, após ameaças e pseudo-negociações que se estenderam por mais de dois anos, duzentos mil soldados russos rumaram para a fronteira ucraniana. Para fazerem "exercícios militares".
Para bom entendedor, pingo é letra. A invasão era iminente. Os satélites dos EUA identificaram uma intensa movimentação de tropas. Os países europeus ofereceram asilo a Zelensky e o orientaram a não escalar o confronto. Havia muitos interesses envolvidos e uma guerra é sempre ruim para os negócios.
Mas, como sabemos e o livro decupa, Zelensky matou no peito. Chamou a responsabilidade. Declinou de fugir. Se recusou a contemporizar com a ameaça de invasão do vizinho latifundiário. O presidente ucraniano não aceitou a sugestão de se picar, dada pelos países europeus amigos.
Supõe-se que estes deveriam estar unidos na defesa da soberania ucraniana. Mas talvez não se fiassem muito nela. "O pior ato de agressão militar na Europa desde a Segunda Guerra Mundial não foi em si suficiente para unir a União Europeia", assinala Shuster.
Então daí decorre toda a estrutura do livro - que, como vemos, é um bom ponto de partida para o entendimento da questão russo-ucraniana. Para ampliar o horizonte dos leigos na região (como eu), o autor recupera as duas décadas anteriores à eclosão da etapa mais recente da guerra e se imiscui na política local. Que, a propósito, nunca teve nada de simples.
(E para entender melhor a Ucrânia no período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, vale a leitura da substanciosa obra de Timothy Snyder, do rocambolesco "O príncipe Vermelho" ao seminal "Terras de sangue", ambos resenhados aqui no blog.)
É bom lembrar que a Ucrânia conquistou sua independência dois anos depois da queda do Muro de Berlim - mas nunca logrou desatar seus nós do Estado russo. E isso sempre se refletiu na política interna. Uma das correntes dominantes no parlamento ucraniano sempre defendeu o protagonismo russo nas questões locais, enquanto outra ala lutava pela independência de fato e de direito.
Assim, todas as eleições de lá para cá opuseram uma espécie de "Centrão" (submisso aos interesses russos) aos defensores de uma Ucrânia 100% autônoma. E nessas terras de sangue o confronto eleitoral é virulento, às vezes sórdido. Os métodos da região são assaz agressivos. Envenenamento e desaparecimento de candidatos não são coisa rara por lá. Os opositores da ala russa têm historicamente uma expectativa de vida mais reduzida.
(Na verdade, os antagonistas políticos de Putin, ou mesmo aliados que eventualmente saem da linha, estatisticamente costumam ter uma saúde frágil, que, súbito, os levam a óbito; ou, quando não, são azarados na escolha dos vôos, que explodem do nada. Circunstâncias locais.)
Embora jamais pudesse ter sido considerado um ambiente sereno, em 2004 o país entrou em modo de convulsão permanente com a Revolução Laranja, uma revolta popular contra o que foi tido como sendo uma eleição fraudada, que levou o então candidato fantoche de Putin ao poder. Ou seja, o movimento era também um ato público contra a influência russa na região. Segundo o autor, a juventude queria menos corrupção e mais Europa. A revolta ganhou as manchetes internacionais.
Era tudo o que o Kremlin não desejava. Como cita Shuster, "um dos assessores de Putin referiu-se à revolta como 'o nosso 11 de Setembro". Não à toa: a Ucrânia sempre teve enorme valor estratégico para Vladimir. O jornalista destaca que "no início do mandato, Putin descreveu o colapso soviético como 'a maior catástrofe geopolítica do século XX', e seus planos para retificar a situação dependiam da salvaguarda dos elos entre Kiev e Moscou".
Pela falta de cadáveres, a Revolução Laranja não foi muito diferente das manifestações de 2013 contra o Governo Dilma no Brasil. O povo foi para a rua protestar e ninguém morreu. Em Kiev eram mais de cem mil pessoas "de prontidão, durante semanas, em pleno inverno, entoando canções patrióticas, fazendo discursos, acenando bandeiras laranja".
O "laranja" era o símbolo da campanha presidencial de Viktor Yushchenko, líder da revolução (e que havia sido envenenado e tido o rosto desfigurado pela KGB). Ao lado dele, e contra o vencedor da eleição fraudada, Viktor Yanukovych, estava a icônica loura de tranças douradas (você já deve ter visto a dona, uma espécie de Elke Maravilha ao cubo), Yulia Tymoshenko.
E então... ops, acho que podemos parar essa digressão por aqui, né? Dois Viktor e um Yanukovych, um Yushchenko e uma Tymoshenko são suficientes pra deixar qualquer carioca confuso.
Avançando na história, a partir daí a Ucrânia atravessou uma década conflagrada, com o país puxado de um lado para o outro em um cabo-de-guerra violento, em que de um lado estavam os interesses do Kremlin, sempre financiando instituições e políticos "parceiros", e do outro as aspirações de soberania efetiva de parte da população.
"Dez anos mais tarde, em 2014", assinala bem o autor, "essa mesma dinâmica resultou em um segundo levante, muito mais sangrento, na Praça da Independência de Kiev". Escalando o conflito cada vez mais, neste mesmo ano se deu a invasão da Crimeia pelos russos. A esta altura, Zelensky já era uma celebridade televisiva na Ucrânia (e na Rússia) e um empresário influente, responsável pela produção de diversos programas de humor.
Se até então Zelensky poderia ser quase considerado um russófilo, a partir da tomada da Crimeia por Putin sua postura, e suas atitudes, mudaram. Não somente subiu o tom contra os russos em seus programas, como abriu mão de contratos milionários com a TV russa. Apesar do russo ser o seu idioma, a Ucrânia era a sua pátria, e vê-la invadida provocou nele um comportamento assertivo.
E aí houve o sucesso de uma série estrelada e co-produzida por ele, "O servo do povo" (disponível aqui no Brasil na Netflix), onde ele representava um humilde professor que, ao ter um discurso patriótico viralizado nas redes sociais, acabou eleito presidente da Ucrânia. A série bombou e Volodymir se viu picado pela mosca azul. O povo passou a enxergar no ator o personagem.
E se ele realmente se candidatasse?
A despeito do comediante ser um absoluto outsider e ser tratado com desprezo pela classe política, os ventos sopraram a seu favor. Improvável, mas plausível. Não faltam exemplos recentes de celebridades que migraram para a política e acabaram eleitas. Zelensky foi tipo assim, como se alguém do Casseta & Planeta fizesse um personagem satírico na tevê e depois, nas urnas, fosse ungido presidente à vera.
A partir desse teatro de vaudeville dá para entender um pouco mais porque Vladimir Putin não levava a menor fé na habilidade de Volodymyr Zelensky em lidar com todas as implicações militares, políticas e diplomáticas que uma invasão de território poderia acarretar.
Mas, como estamos acompanhando há mais de dois anos, para surpresa de absolutamente todo o mundo, o pequeno artista judeu no comando de uma nação historicamente antissemita não se intimidou - e vem resistindo bravamente ao ataque da segunda maior potência do planeta. Lidera a resistência ao agressor e se tornou um símbolo do nacionalismo ucraniano.
Os detalhes e as entranhas desta resistência são revelados por Simon Shuster, que entrevistou dezenas de pessoas que compartilharam com Zelensky momentos-chave dos seus dois universos - o do show-business e o de um governante de um país em guerra.
Nada é muito definitivo neste retrato; nem poderia ser. A história ainda está sendo escrita. Seu desdobramento terá influência na sua narrativa. O retrato momentâneo, junho de 2024, é desfavorável para as pretensões ucranianas de resistência. O apoio da comunidade internacional, principal instrumento de Zelensky para fazer frente à Rússia, apresenta fissuras aqui e ali.
Este apoio, diplomático e militar, foi a maior conquista de Volodymyr Zelensky à frente do cargo. Conseguiu o suporte - e armamento - dos seus dois maiores parceiros potenciais, Estados Unidos e Alemanha. Isto foi suficiente para que a Ucrânia ganhasse algumas batalhas; mas vê-la ganhar a guerra permanece sendo um horizonte distante.
Durante a cerimônia em memória aos 80 anos do desembarque aliado na França, semana passada, na quinta-feira 6 de junho, Zelenky foi ovacionado, na presença de líderes mundiais importantes, como Biden, Macron e Scholz (?). O norte-americano e o francês fizeram discursos incisivos de apoio à bravura ucraniana, prometendo armas, aviões e treinamento.
É exclusivamente devido ao suporte destas potências que a Ucrânia se mantém viva. A resistência ucraniana lhes convém. Mas conveniência é um elemento passageiro e sensível. Zelensky sabe que no embate midiático todos os aliados são importantes e devem ser capitalizados.
O Brasil, apesar da sua irrelevância diplomática, tem alguma relevância nas manchetes. Lula, o presidente, é um ícone (seu significado internacional é descolado da sua trajetória real). Pela representatividade que a imagem de um mero aperto de mãos lhe traria, diversas vezes o pequeno ucraniano de Kryvyi Ryi foi atrás do pequeno brasileiro de Garanhuns. Mas foi rejeitado.
Zelensky, na sua peregrinação por apoios, mesmo os simbólicos, se confessa frustrado pela solidariedade de Lula ao imperialismo soviético. Ratificando esta postura, a correspondente brasileira Janaína Figueiredo publicou há pouco um artigo em que enfatiza a falta de interlocução entre o país invadido e o Brasil, que, num contorcionismo verbal, se mantém ao lado do país invasor.
Na prática, a adesão brasileira à causa ucraniana influenciaria muito pouco - ou mesmo nada - no teatro da guerra. Mas a inquestionável fragilidade da Ucrânia diante da Rússia faz de cada pequeno gesto estrangeiro um reforço ao pedido de socorro da vítima, acuada num beco sem saída, após uma imprevista manifestação de coragem.
Talvez o país naufrague e seus cidadãos tenham morrido em vão.
Na sinuosa narrativa midiática internacional, a Ucrânia permanece numa espécie de umbral. Um purgatório onde a realidade não é comercializada por seu valor de face. A Guerra da Ucrânia pode produzir um milhão de mortos. Mas, dependendo do dia e das condições de temperatura e pressão, podem valer menos do que um sujeito com o braço quebrado na Faixa de Gaza.
Sinal dos tempos.
Editora Record, 419 páginas | 1a edição | Copyright 2024 | Tradução Marta Chiarelli
Título original: "The showman"
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