"Escute as feras", por Nastassja Martin
Nastassja foi atacada por um urso e está à beira da morte. A antropóloga francesa foi retalhada no cume nevado de uma montanha, numa península siberiana. A narrativa começa com as impressões da vítima, fragmentadas, ao despertar em um hospital nos confins de Kamtchátka.
A prosa é deliberadamente dúbia, fora de foco. Provável que em seu livro ela tenha buscado nos deixar com um grau de imprecisão semelhante ao dela ao acordar. Sua descrição é crua. Se queixa (aos leitores) de estar nua, exposta, amarrada e com um tubo na traqueia.
Seja na Sibéria, ou São Gonçalo, amarrar pacientes entubados é prevenção corriqueira em hospitais.
A despeito do seu quadro, quase engolida por um urso selvagem e toda costurada, o médico e as enfermeiras não têm muita empatia com a estrangeira. Zelam grosseiramente por sua rotina. Segundo conta a antropóloga, são profissionais de saúde russos com um comportamento peculiar.
A autora entrega que diariamente o médico come uma das enfermeiras. Metem na maca atrás da sua. Nastassja, que não consegue se mexer, se incomoda com o ritmo dos gemidos. Queria que o médico dedicasse a ela o tempo (não especificamente o tratamento) que dedicava à enfermagem.
Na verdade, a falta de zelo do corpo médico com a paciente talvez viesse da convicção que ela não sobreviveria. Pela pressuposição, bem plausível, de que uma mulher (ainda mais uma gringa) não fosse capaz de sobreviver ao ataque de um urso feroz que lhe abocanhou a cara e lhe levou um pedaço da mandíbula.
No entanto, Nastassja está ali na maca, desfigurada, meio morta, num mórbido compasso de espera.
A antropóloga vivia entre as tribos autóctones locais ("evens, coriacos, itelmenos ou o que resta deles"). Compartilhava seu estilo de vida. Corria os riscos que os indígenas corriam. Tanto que foi atacada por um urso. Agora ela era uma miêdka. Para os nativos, "aquela que vive entre os mundos". Na prática, designa as pessoas que foram "marcadas pelo urso" e sobreviveram ao encontro.
Foi um amigo nativo quem primeiro a visitou no hospital, alguns dias após o ataque. Depois vieram sua mãe e seu irmão, que a levaram de volta para a França. Com a cara toda remendada.
Em Paris, foi levada para o Salpêtrière, onde os médicos locais desdenhavam dos médicos russos. Logo ficou conhecida como "a moça do urso". Confinada em seu quarto, em quarentena, Nastassja imagina os doutores resenhando: "Está desfigurada, pobrezinha. Devia ser bonita antes".
A psicóloga do hospital vai visitá-la e pergunta como ela está se sentindo "psicologicamente". Explica, "com um olhar que se pretende amável e cheio de boa vontade. Mas, de verdade, como você está se sentindo?, insiste. Um silêncio, em seguida ela retoma. Porque, você sabe, o rosto é a identidade".
Sua identidade está mais ligada aos nativos do Grande Norte (as regiões glaciais do Ártico, a taiga, a tundra, o vazio, a Sibéria) do que às psicólogas de Paris. Volta para a terra dos ursos. Da Rússia ela quer o exílio selvagem. Zomba da civilização, mesmo na remota Milkovo, cidadezinha da península de Kamtchátka, onde o império russo acaba. Mais à leste que tudo, mais à leste que o Japão.
"Série de conjuntos habitacionais rachados. Gagarin em uma fachada, CCCP, a estrela, a foice, o martelo: nada disso está longe", diz, ao chegar na cidade, à noite. "Em Milkovo, como em todos os lugares do Grande Leste, esse passado foi ontem".
Os russos locais reconhecem a cientista. Não entendem o que ela busca lá, nem sua incompreensível preferência pelos indígenas, a quem desprezam. Um deles comenta o ataque.
"Que desgraça", diz o russo, genericamente se referindo ao urso. "Ele começa então a vituperar contra os indígenas que vivem em algum lugar na floresta para além das montanhas, tão pobres e carentes que não têm nem casa nem eletricidade, que se abrigam certamente embaixo de raízes ou em buracos de árvores, como animais".
Nastassja não engole o tratamento dispensado pelos russos aos nativos, estrangeiros na própria terra. "Ele manifesta a repugnância que sente ao me ver voltar para lá mais uma vez", escreve.
Mas é na floresta que ela se sente em casa, em uma comunidade que ela julga igualitária. "Aqui, todo mundo sabe fazer de tudo", enfatiza. "Caçar, pescar, cozinhar, lavar, colocar armadilhas, buscar água, colher bagas, cortar lenha, fazer fogo". Ressalta que o nomadismo diário implica que é preciso "poder fazer de tudo a qualquer momento". A sobrevivência depende dessas capacidades.
Sob a perspectiva ocidental, é difícil entender porque uma jovem antropóloga francesa semi-assassinada por um urso selvagem voltaria para o mesmo lugar. Ela julga ser o seu destino. Dária, uma nativa, acredita que ela está "enfeitiçada". Nastassja é agora uma miêdka, nem gente, nem urso. Alguém que transita entre os dois mundos.
"Os miêdka devem ser evitados e, acima de tudo, não se deve encostar nas coisas deles", diz a nativa.
Miêdka é quem sobrevive ao urso. Desta improbabilidade escorre a estória e o ataque. Que talvez tenha durado menos de 15 segundos. Encontro que ela só relata nas páginas finais.
"Foi no coração dos glaciares e no meio dos vulcões, longe dos homens, das árvores, dos salmões e dos rios que eu o encontrei, ou que ele me encontrou", poetiza. "Um urso tão desorientado quanto eu passeia igualmente por estas alturas onde ele também não tem nada a fazer, é quase como um alpinista, o que ele tem a fazer aqui, nesta terra desguarnecida, sem bagas nem peixes, quando poderia estar tranquilamente pescando na floresta?"
"Nos deparamos um com o outro", nos situa. "Quando o avisto, ele já está diante de mim, está tão surpreso quanto eu. Estamos a dois metros um do outro, não há escapatória possível, nem para ele, nem para mim".
Na solidão da montanha, mulher e urso se enfrentam. "Com medo, ele mostra os dentes para mim, e eu o imito, arreganho meus dentes para ele". Ele ataca. Ela revida. Ambos sangram.
Mais não conto. Leia o livro. A obra, sui generis, recebeu o prêmio François Sommer de 2020 por sua contribuição à reflexão sobre as relações entre o homem e a natureza. Boa. Foi lá que eu li.
Editora 34, 106 páginas | Copyright 2019 | Tradução Carina Boldrini e Daniel Lühmann
Título original: "Croire aux fauves"
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