"Pólo Sul", por Roald Amundsen
Na virada do século XIX para o século XX, o mundo civilizado ainda tinha uma última barreira de "ignorância geográfica" a ser derrubada. Os pólos terrestres. Até mil novecentos e poeira, nenhum ser humano lograra atingir qualquer um dos polos. Por isso, o obstinado capitão norueguês Roald Amundsen estava determinado a ser o primeiro a chegar ao Pólo Norte.
Era relativamente "perto" de casa. Afinal de contas, poucos países estão situados tão próximos do Pólo Norte como a Noruega. E Amundsen já carregava uma bagagem considerável de informações árticas. Em 1903 participara da expedição que fora a primeira a encontrar a Passagem Noroeste pelo Pólo, ligando o Atlântico ao Pacífico. Ficara três anos na região, estudando a rotina esquimó.
Prosseguindo em sua obsessão em se tornar um célebre desbravador, em 1909 começou a preparar a viagem que levaria a Noruega a ser a primeira nação a fincar a bandeira no Pólo Norte. Mas deu ruim. Enquanto se dedicava aos preparativos, chegou aos seus ouvidos a notícia de que o norte-americano Robert Peary havia posto os pés lá (posteriormente outro norte-americano, Frederick Cook, alegou ter pisado no Pólo Norte um ano antes de Peary, a parada acabou em barraco).
Tendo já arrecadado uma enorme soma a título de patrocínio para a viagem de "descobrimento" do Pólo Norte, Amundsen mudou radicalmente de planos. Não via sentido em gastar mundos e fundos para ir a um lugar onde não haveria ineditismo e sua consequente glória. Resolveu rumar no sentido oposto, ir lá para baixo, e se tornar o primeiro homem a pisar no Pólo Sul.
O problema é que já havia um outro maluco a caminho. A expedição inglesa do capitão Robert Scott.
Sem revelar nada a ninguém - sequer a seus patrocinadores -, Amundsen prosseguiu nos preparativos para a sua aventura. Enquanto todos pensavam que ele iria para o Norte, seu destino era o Sul. A própria tripulação só soube depois que estavam embarcados e navegando.
Scott, o oponente, soube também tardiamente da decisão de Amundsen. Além de alertado por um telegrama do próprio, ainda houve um encontro inusitado na Baía das Baleias. O Terra Nova dos ingleses vadeava à procura de um local para o acampamento de inverno. Avistaram um navio ancorado - era o Fram, a embarcação rival. De boa. Nada de atritos. Trocaram amabilidades e chegaram a se visitar.
Amundsen e seus oito homens hibernaram ali mesmo. O ócio, o vento e o frio congelante estimularam a equipe a construir uma vasta rede de túneis no solo antártico, ligando subterraneamente mais de uma dezena de galpões de trabalho, que incluiam carpintaria, oficina de costura, estoque de roupas, observatório astronômico, depósito de lenha e até uma sauna.
O inverno do time norueguês foi bem mais leve do que o dos concorrentes, que se meteram em uma expedição suicida para capturar ovos de pinguim-imperador (detalhes no post da semana passada).
O período mais frio do ano (quiçá do planeta) se passou sem perdas e com alguns avanços. Alguns dos ingleses quase morreram. Já os noruegueses estavam na ponta dos cascos. E indóceis.
"O que eu não daria para saber onde está Scott hoje!", escreveu o capitão, em um primaveril seis de setembro de 1911, em seu acampamento na Baía das Baleias. A expectativa não era à toa. Sua equipe estava prestes a partir para uma viagem que até então nenhum ser humano havia feito.
Na outra extremidade do Mar de Ross, a leste dos noruegueses, os britânicos também se preparavam. Estavam em maior número, tinham maiores pretensões científicas e estavam na segunda tentativa do Capitão Scott. A confiança também estava lá no alto - mas iriam partir com algumas semanas de atraso, o que seria fatal para suas pretensões pioneiras.
Atente que ambos tiveram que abortar suas previsões iniciais de partida. Roald Amundsen acabou por largar em 20 de outubro. Robert Scott partiu doze dias depois, em 1o de novembro. Como o percurso era longo, e seus pontos de partida eram diferentes, ainda que em latitudes próximas, a distância que os separava era mais do que possível de ser recuperada.
Não foi o que aconteceu.
Equipados e organizados cada grupo à sua maneira, o time de Amundsen conseguia avançar mais de trinta quilômetros por dia, ao passo que o time de Scott mal e mal chegava aos vinte. Os esquis, trenós e animais de carga não eram do mesmo tipo. O inglês apostou numa mistura de trenós motorizados e outros trenós com tração animal - mulas, pôneis e cachorros. O norueguês achou suficientes trenós de alta performance e cães esquimós.
Sem contar que noruegueses já nasceram esquiando (havia até esquiadores campeões no grupo).
Este livro do Amundsen não relata, nem também o de Apsley Cherry-Garrard (que comentei aqui na semana passada), onde estava o grupo rival. Há em ambos notas de rodapé, gentileza dos editores, que vira e mexe traçam um paralelo entre o ritmo dos dois grupos. Mas não há como fazer um comparativo real, lendo apenas um dos livros.
Bem, mesmo lendo os dois não é fácil, até porque o livro do inglês é bastante confuso.
Mas podemos tentar resumir toda a aventura por um prisma logístico (e cronológico). A lógica operacional de ambos os grupos investiu na criação de depósitos ao longo do caminho. Para estabelecer previamente estes depósitos, foram necessárias viagens específicas que antecedessem a grande, e derradeira, viagem de ataque ao polo.
Amundsen fez três viagens preparatórias. Em cada uma delas estabeleceu um depósito de gêneros alimentícios, nos paralelos 80o, 81o e 82o, todos sobre a Barreira de Ross. Já Scott fez apenas uma viagem, e pôs seu depósito aquém do paralelo 80o. A idéia era atingir o paralelo, mas dificuldades fizeram com que ele optasse por estabelecer o depósito algumas milhas antes.
No retorno, Scott iria acampar e morrer a 18km do depósito com mantimentos - depósito que, se estivesse no local inicialmente planejado, lhe teria salvo a vida.
O livro sobre o qual falei na semana passada, escrito por um dos sobreviventes (por um triz) da expedição de Scott à Antártida, é o relato do fracasso, mas não por não ter conseguido atingir o polo em primeiro lugar; e também não só pela morte de todo o grupo que atingiu o polo.
É o relato do fracasso porque todas as suas principais decisões foram mal pensadas, levando o grupo a um sofrimento continuado e danoso, o que não se deu na expedição de Amundsen - que, apesar do rigor extremado do projeto, fez do seu trajeto uma aventura relativamente tranquila, quando comparada às desventuras do grupo britânico.
Até por essa "tranquilidade", e por uma certa abordagem coquete do autor, diversos trechos da narrativa de Roald Amundsen são incrivelmente enfadonhos - e quase dois terços do livro já tinham se passado quando ele, enfim, parte rumo ao Polo Sul.
A partir daí começa a verdadeira aventura, com os obstáculos sendo sempre positivamente superados. Os desafios que o terreno inóspito e desconhecido oferece são resolvidos com um misto de cálculo e ousadia. Nada parece fugir ao controle de Amundsen e seus companheiros. Montanhas e despenhadeiros são vencidos como quem atravessa a Avenida Rio Branco.
Cinco homens e quarenta e dois cachorros compunham a expedição final ao Polo Sul.
Voltaram todos os homens e apenas doze dos cães. Houve que na ida, depois de superadas as montanhas, a maioria dos outros trinta cães foi morta no lugar que ficou marcado no mapa como o "Abatedouro". Sua carne serviu para alimentar os cães poupados.
Leva a mal, não, mas não vou deixar passar essa.
Imagino que, em tempos politicamente corretos como os de hoje, ou os bichos seriam poupados, ou o relato carniceiro seria omitido. O fato é que, à época, Amundsen não teve este pudor. Sua opção foi prática, em detrimento da compaixão.
Importante ressaltar que a força propulsora dos trenós noruegueses era exclusivamente os cães. Com este fito, foram embarcados 96 cães, 80 machos e 16 fêmeas. No trajeto nasceram mais umas três dúzias. Com isso, mais de uma centena de cães desembarcaram na Antártida.
Quando, no trajeto ao polo, já não havia mais a grande quantidade de carga a ser puxada, os cães passaram a ser um estorvo a ser alimentado. O raciocínio pragmático dos noruegueses transformou o estorvo em ração. Mortos, as vísceras se destinaram aos irmãos caninos. As partes mais nobres viraram "costeletas" para a refeição dos humanos.
Em termos da "missão", o assassinato a sangue frio dos cães era um pormenor irrelevante.
Isso em nada diminuía a importância dos cães para Amundsen, que havia negociado pessoalmente a compra de uma centena de cães da Groenlândia. Como ele mesmo afirmou, "desde o início insisti com veemência na importância capital de transportar com carinho nossos animais de tração até seu destino final, pois deles dependia o sucesso de toda a expedição".
"Antes de tudo os cães, sempre os cães", era o seu lema. Imagina se não fosse.
"E há ainda a óbvia vantagem de cães poderem se alimentar com cães. Pode-se reduzir progressivamente uma matilha sacrificando os mais fracos e alimentando os cães selecionados com a carne daqueles. Dessa maneira os animais podem receber sempre carne fresca", advogaria o capitão. Não creio que hoje ele conseguisse patrocinadores dispostos a estampar sua marca neste morticínio canino.
Amundsen cumpriu seu propósito após a subida da cordilheira antártica que levava ao platô. Prevendo que após a subida haveria uma longa superfície plana, elaborou um cuidadoso raciocínio matemático. "Calculamos que poderíamos alcançar esse ponto na viagem de volta com apenas doze cães", explicou. "Tínhamos agora quarenta e dois animais. Nosso plano era cruzar as montanhas com eles, até o alto do platô. Ali, vinte e quatro deles seriam sacrificados para alimentar os demais e a viagem prosseguiria com três trenós e dezoito cães".
As contas eram bem planejadas. "Desses últimos dezoito, seria necessário sacrificar seis, para trazer os outros doze de volta". Assim foi feito. Peço desculpas ao leitor pelo espaço desmedido que dei ao tema. É que não me desceu pela garganta. Acho perverso, traiçoeiro, desonroso. Pronto. Falei.
Com dois trenós, cada um puxado por oito cães, os noruegueses atingiram o Polo Sul - ou aquilo que poderia ser provavelmente o Polo Sul. Seus instrumentos de medição eram precários (não esqueça que os caras eram viajantes do gelo há mais de um século atrás) e, por garantia, três homens do grupo foram em direções diferentes, a partir do polo presumido, em um ângulo de 90 graus cada um. No "pólo", o trajeto individual foi de 25 quilômetros em linha reta.
O objetivo era assegurar matematicamente que pelo menos um integrante da expedição tivesse pisado efetivamente naquele que seria o polo sul geográfico. Depois disso, passaram mais de um dia fazendo medições e avançando com o acampamento mais alguns quilômetros. Era sensato. Queriam evitar as controvérsias acontecidas no Polo Norte (vide o início deste post).
Feito isso, comemoraram comendo filé de foca e fumando um bom charuto.
Diferentemente do livro sobre a expedição malfadada de Scott, quase que alheio ao norueguês, este oferece algumas notas à guisa de paralelo entre os dois grupos. À medida em que Amundsen avança, o editor nos brinda com notas de rodapé sobre a localização dos ingleses.
"No dia anterior, 1o de novembro, Scott partiu rumo ao Pólo Sul com quatro companheiros. Amundsen já havia percorrido então mais de trezentos quilômetros sobre a Barreira", somos alertados, à página 297.
Quando os noruegueses estavam a poucas milhas de enfim alcançarem seu objetivo, sabemos que "neste dia, 10 de dezembro, Scott chegou à Geleira Beardmore para iniciar sua ascensão ao Platô Antártico, estando ainda a mais de setecentos quilômetros do Pólo".
Ao hastear a bandeira da Noruega no Pólo Sul, Amundsen celebrava o feito. Já "Scott estava neste momento a cerca de seiscentos quilômetros do Pólo, enfrentando um clima terrível e numerosas dificuldades em seu avanço".
O que podemos depreender, à distância, é que não só Scott escolheu o pior caminho, com os meios equivocados, como ainda teve que lidar com circunstâncias do tempo muito mais adversas do que a equipe norueguesa teve que enfrentar. A junção de todos estes fatores - e não, isoladamente, um único deles - foi determinante para a perda da "corrida" e o final trágico da expedição britânica.
O retorno de Amundsen foi tão bem-sucedido (para os humanos) como sua ida. Comeram bem, descansaram mais do que queriam e mataram os últimos cachorros.
"Sacrificamos o primeiro cão na viagem de volta. O coitado havia esgotado completamente suas forças e já não era capaz de realizar trabalho algum. Seu corpo foi dividido em quinze porções e repartido entre os companheiros", conta Amundsen, ressaltando que Lassie era "seu animal preferido".
O autor tinha sempre algumas palavras a respeito do caráter do cão morto. Fez altos elogios a Per, de "inestimável valor como animal de tração", ao mesmo tempo que criticava Svartflekken ("Se fosse um ser humano, certamente terminaria seus dias em uma colônia penal"). Ambos foram sacrificados durante o retorno e "transformaram-se em alimento para os demais".
Na viagem de volta, o clima extremo, apesar das adversidades inomináveis da região, foi relativamente palatável para o grupo. "O clima não poderia estar melhor", considerou Amundsen em seus apontamentos. "A temperatura de 19 graus negativos nos parecia bastante veranil com essa atmosfera límpida e serena".
Algumas semanas depois, este mesmo clima se tornou intransponível e levou Scott e seu grupo a ficarem paralisados - para sempre - diante das nevascas ininterruptas. Congelaram e morreram.
Já os noruegueses não sofreram com tal destino. Seja porque tivessem sido mais rápidos ou porque privilegiaram um melhor percurso, o clima não condenou sua viagem. Vez por outra, mas bem raramente, o capitão resmungava alguma coisa em seu diário. Porém, talvez porque fossem mais hábeis, mais resilientes ou simplesmente porque o resultado final - a conquista pioneira - os tivesse deixado mais propensos a uma abordagem mais bem-humorada do trajeto, reclamações (como esta abaixo) não eram frequentes.
"9 de janeiro - o mesmo clima abominável: neve, neve, neve, nada além de neve. Isto não terá fim? Neblina também, tão fechada que não podemos enxergar dez metros adiante. Temperatura 8 graus negativos. Degelo em todo o trenó. Tudo fica úmido."
A queixa aí de cima foi um hiato. Tudo correu como num céu de brigadeiro. A condição física de todo o grupo permaneceu excelente (ao contrário dos ingleses, que foram capitulando pelo caminho, vítimas de doenças e lesões). A comida e o querosene que faltaram a Scott era de tal maneira farta nos depósitos bem calculados de Amundsen que boa parte dela foi deixada para trás, por supérflua.
Duplicaram a velocidade de avanço na volta, de tal forma se sentiam bem. Chegaram um pouco antes do previsto, 99 dias após terem partido. Uau. Posso visualizar o momento. Se fossem brasileiros, imagine o carnaval que não teria sido o reencontro do grupo que chegou ao polo e o grupo que permaneceu na base de apoio. Mas, ops, os caras eram noruegueses.
"No dia 25 de janeiro, com dois trenós e onze cães, às quatro da madrugada, chegamos de volta, saudáveis e bem dispostos", conta Amundsen. "Entramos. Um caloroso coro de boas-vindas levantou-se de todos os lados".
"E o Pólo? Chegaram lá?", perguntou um dos que ficaram no acampamento. "Sim, é claro', respondi".
"O bule de café foi colocado no fogo e o aroma de 'bolo quente' espalhou-se pela cabana, como nos velhos tempos", comemora o capitão. "Todos fomos unânimes em concordar que a expedição foi ótima, mas estar em casa era ainda melhor".
Quando subiram ao Fram, a tripulação teve a mesma reação. "Você chegou lá?" E, diante da confirmação, "alegria é uma palavra pobre para o sentimento que brilhou nas faces de meus amigos", arrematou euforicamente o capitão Roald Amundsen.
O caminho dos noruegueses de volta para casa também foi "tranquilo". Em 7 de fevereiro de 1912 o Fram já navegara para além dos limites setentrionais do continente antártico, enquanto Scott e seu grupo iniciavam o desafio da descida da geleira Beardmore, em seu retorno do Polo Sul. Ainda estavam todos vivos. O primeiro inglês a morrer, Edgar Evans, seria somente dez dias depois.
No navio, lendo alguns dos jornais publicados ao longo de 1911, trazidos pela embarcação, Amundsen desdenhou das críticas que recebeu pela sua mudança de planos.
"Algumas pessoas parecem ter ficado indignadas a respeito de nossas atividades aqui no Sul - falta de 'respeito', dizem? Estão todos malucos. Será que pensam que a questão do Pólo é exclusivamente reservada para Scott solucionar? Oh, bem, estas pessoas devem ser idiotas".
Editora Alegro, 494 páginas | 1a edição | Copyright 2001 | Tradução Roberto Cardoso
Título original: "Sydpolen"
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