"A batalha do Avaí", por Lilia Schwarcz
É comum dizermos que a história "é escrita pelos vencedores". Não só, mas também. Quer um exemplo? O Paraguai perdeu a guerra, mas conta essa história segundo a sua própria conveniência.
(Lembrando que até o nome da guerra requer perspectiva. No Brasil ela atende pelo nome do oponente - a "guerra do Paraguai". Em Assunção eles se referem aos seus três algozes juntos. Nos bancos escolares paraguaios, as crianças chamam-na "la guerra de la Triple Alianza".)
Se hoje o confronto é contado por uma multiplicidade de plataformas, no passado os meios se restringiam aos livros e às pinturas. Os quadros, mormente os de dimensões monumentais, eram o canal predileto dos governos - pois resumiam a narrativa a uma única cena grandiosa. O pintor reproduzia o momento (congelado e maquiado) que interessava ao governante e fim de papo.
Pronta, a obra era exibida publicamente, com festa, e depois iria decorar alguma parede palaciana.
Importante era ser encomendada ao cara certo. Vindo com a grife adequada, já era garantia de aprovação prévia. Nesse sentido, em termos de pintura histórica, dois nomes monopolizavam o mercado de grandes encomendas: o catarinense Victor Meirelles e o paraibano Pedro Américo.
Victor Meirelles foi o autor de "A primeira missa no Brasil", "Combate Naval do Riachuelo", "Passagem de Humaitá" (ambas da Guerra do Paraguai) e "Batalha dos Guararapes".
Pedro Américo foi o autor de "Fala do Trono", "O Grito do Ipiranga", "Chaco", "Batalha de Campo Grande" e "A batalha do Avaí" (as três últimas sobre a Guerra do Paraguai).
Curioso é que Américo fechou contrato para pintar a batalha dos Guararapes, ocorrida duzentos anos antes, e resolveu por conta própria pintar a batalha do Avaí, que tinha "acabado" de acontecer.
Aí a encomenda sobrou pro Meirelles, que fez a pintura do confronto com os holandeses. Prontas praticamente ao mesmo tempo, as telas foram expostas ao público lado a lado. Choveram críticas.
Caxias ficou estressado. Américo o retratou em posição de destaque, mas desabotoado. O duque achou um acinte a representação. Alegou que nunca estivera descomposto em batalha.
Houve também quem criticasse a representação do general Osorio, apartado do comando, em meio à soldadesca. Zoaram que ele era o comandante "de si mesmo".
Não foram estes os únicos comentários negativos. Muitos chamaram Américo de empreiteiro de pintores (acusavam-no de ter posto onze diferentes artistas para executar o quadro) e, pior, de plagiário. Julgue você mesmo. Schwarcz, a autora do livro sobre a obra, exibe as pinturas, de outros autores famosos, dos quais Pedro Américo havia surrupiado as cenas.
A área nobre de "A batalha do Avaí" exibe o Duque de Caxias, montado a cavalo, em um promontório iluminado, ao lado de outros dois oficiais. Confira no livro uma representação idêntica na obra de Gustave Doré em seu "Bataille de Montebello", uma litografia de 1859.
O que mais denuncia a cópia é que os três cavalos estão em posição corporal absolutamente idêntica, assim como seus três cavaleiros. A única sutil diferença é que um deles segura um binóculo. Aos olhos de hoje, seria uma tremenda cara-de-pau. À época, provável que Américo apostasse que ninguém jamais iria constatar a "coincidência".
Que não se restringiu a essa, vale frisar. Se a representação de um dos dois grandes personagens da guerra - Caxias - foi copiada de um outro autor, o outro personagem de destaque, Osorio, também teve sua postura plagiada de uma outra obra.
Paul Delaroche, em seu "Charlemagne traversant les alpes", um óleo sobre tela datado de 1847, exibe o francês em posição semelhante à escolhida por Américo para representar Osorio. O plágio, neste caso, não é tão evidente. Schwarcz presenteia o leitor, permitindo a comparação entre as duas obras.
Antes de vir para o Brasil, a pintura foi vista, ainda na Europa, por Pedro II. Ou seja, já desembarcou por aqui com o selo da aprovação imperial. O quadro foi pintado na Itália, de 1872 a 1877.
A historiadora Lilia Schwarcz disseca o quadro e o contexto do período. Seu estudo analisa diligentemente o momento político e os poderes envolvidos - o Império, o Senado e o Exército.
Traz também a ironia dos cartunistas brasileiros sobre a celeuma entre os quadros de Américo e Meirelles. Mostra a divertida caricatura de Angelo Agostini, publicada na Illustrada, em 1879, onde os personagens da sangrenta e caótica pintura d' "A batalha do Avaí" invadem a pintura mais estática e (me pareceu) conspiratória de "Batalha dos Guararapes".
Voltando à questão inicial, de que cada país é dono da sua própria história e a chancela como lhe agrada, o livro exibe também o óleo sobre tela "Batalla do Abay" (isso mesmo, com "b"), atualmente exposto no Museo Nacional de Bellas Artes do Paraguay.
Na tela paraguaia (sem data e autor), ao contrário do massacre das forças imperiais, em um dia tempestuoso, sobre um exército acuado e seminu, temos uma refrega mais contida, onde, em um dia ensolarado e verdejante, um bem composto exército paraguaio encurrala as tropas brasileiras, com direito a um mastro da bandeira paraguaia enfiado em uma garganta imperial.
Cada um conta a história como lhe apraz. Aí você tem que ler, para depurar o que realmente sucedeu...
Graficamente, o livro é espetacular. Com capa dura e sobrecapa em couchê (mesmo papel e gramatura do miolo), a obra de Schwarcz reproduz dezenas de obras do período. E, o principal, o quadro que é motivo do livro é desdobrado em uma página tripla, com 37,5cm de altura e generosos 79cm de largura (além da ampliação de cenas específicas e substanciosas).
A edição, pena, não está mais disponível nos principais sites livreiros. Mas exemplares usados são encontrados, na Amazon e no Estante Virtual, a partir de R$ 89,00. Uma pechincha.
Editora Sextante, 172 páginas | 1a edição, 2013

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