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"O lugar", por Annie Ernaux


Prêmio Nobel de Literatura em 2022, a octagenária escritora francesa segue badalada mundo afora, desde sua premiação pela academia sueca. Já seu ápice tupiniquim se deu na edição da Flip de novembro do ano passado, em Paraty, onde Mme Ernaux foi a principal homenageada.

Segundo li nos jornais, ao longo de prolífico meio século de carreira literária, a autora havia vendido dez mil exemplares no Brasil. Mas só nos últimos dois meses foram quinze mil - observou um site literário. Ou 35 mil, comemorou uma colunista. Um baita aumento exponencial.

Bem, talvez não seja muito. A escritora mineira Carla Madeira vendeu 50 mil exemplares de seu livro "Tudo é Rio", que eu, por sinal, não li e nunca tinha ouvido falar. Nem do livro, nem da autora. Pois é.

Voltemos à francesa. Como convém a um tempo identitário, em Paraty seu sucesso global foi celebrado como uma vitória particular das mulheres. Ok. Ernaux, née Duchesne, tornou, assim, o nome do marido famoso. Já o pai, em seu livro "O lugar" - que também poderia ser intitulado "O pai", "A origem", "O café", mantendo seu estilo nominativo - é chamado só pelas iniciais: A... D...

A própria Annie, ao longo de toda a sua carreira, investiu fortemente no discurso feminista. Tinha suas razões - que são difíceis de serem avaliadas aqui e agora, nestes conflagrados trópicos mezzo lulistas, mezzo bolsonaristas (50,5% - 49,5%), no ano da graça de 2023. É inadequado traçar um paralelo entre o feminismo raiz da intelectual francesa e a retórica feminista atual.

Fato é que vivemos tempos estranhos, onde a simbologia superficial sequestrou o espaço antes tradicionalmente dominado pelo conteúdo. Já ela, Annie, vem de um outro tempo, cultura e lugar. Por isso, o feminismo que ela defende tem outro peso, que não julgo. Se quiser, julgue você.

"O lugar" foi seu segundo livro. É um depoimento pessoal sobre as origens camponesas e operárias da sua família. É um compilado de anotações sobre o seu pai. Compõe uma narrativa de gerações, cerzida com propriedade e um agudo senso de observação.

O lugar que sua família ocupava no universo social francês; o lugar que era a residência dual (meio casa, meio loja) em que Annie cresceu; o lugar que era a pequenina cidade de Yvetot, onde moravam, que a escritora denominava apenas por Y...

O título original da obra é "La place" e a tradução escolhida pelo editor brasileiro foi  "O lugar". Correta. Nada a opor. Mas, ao falarmos do livro, gera certa confusão, porque o vocábulo "lugar" em português é bem mais recorrente do que "place" em francês, que é mais particular.

Este "O lugar" no nosso idioma é um conflito permanente entre condição e localização. Não sei se você no meu lugar pensaria de forma diferente.

Ernaux escreveu este seu livro em 1983, dezesseis anos após a morte do pai. No ano seguinte a obra recebeu o prêmio Renaudot. Não sei se já disse, seu livro é autobiográfico, mas seu significado e suas referências vão muito além. Ela fala sobre a França, sobre divisão de classes, sobre sexismo, sobre exclusão e sobre a inevitável distância entre gerações.

"Uma professora minha disse certa vez que a nossa casa era bonita, 'uma verdadeira casa normanda", conta Annie. "Meu pai achou que ela só estava querendo ser educada. Aqueles que admiravam as nossas coisas velhas, a bomba d'água no pátio, as casas normandas com viga de madeira aparente, certamente queriam nos impedir de ter o que eles já tinham, eles que eram tão modernos, com água na torneira e uma casa branca".

No futuro seria diferente. O lento e pequeno sucesso do pai como comerciante permitiu que ele modernizasse a aparência do imóvel. Mas era uma modernidade que vinha na contramão.

"Agora que o café do meu pai tinha, enfim, a fachada toda pintada de branco e o letreiro em neon", lamenta ela, "os proprietários dos cafés com certo faro comercial estavam voltando para as fachadas normandas, com vigas falsas e lâmpadas antigas."

O que era raiz era pobre, e depois virou cult, para quem não era pobre. Dilema constante.

"O patoá foi a única língua dos meus avós", ressalta, dizendo que "há quem aprecie o aspecto pitoresco do patoá e do francês popular". Mas destaca que para o pai "o patoá era uma coisa antiquada e feia, um traço de inferioridade. Ele se orgulhava por ter, em parte, conseguido se livrar dele. Ainda que seu francês não fosse bom, pelo menos era francês".

Ela fala também do ceticismo político do pai, que havia votado em Pierre-Marie Poujade "sem convicção, achando que ele era uma farsa, 'muito blá-blá-blá". O dito cujo era um populista que liderou protestos de direita na França dos anos 50. Segundo diz em nota de rodapé o editor do livro, "seu discurso anti-intelectual, xénofobo e colonialista deu origem ao Poujadisme".

O partido do poujadisme era o UDCA, que elegeu 56 membro para a Assembleia em 1956, cujo parlamentar mais jovem entre os eleitos era Jean-Marie Le Pen - hoje símbolo da direita xenófoba europeia e pai de Marine Le Pen, que carrega, em pleno 2022, a bandeira do pai.

Saindo da política e indo para o picaresco, a autora alimenta a versão do pouco apreço dos franceses pelo banho, ao dizer que "domingo era dia de tomar um bom banho, ir à missa (...)". Não fica claro se bom banho significa um banho melhor do que o tomado nos outros dias ou se, porque era o único da semana, era bom, ou, ainda, bom que este único banho fosse enfim tomado. Fica a seu critério.

Sempre com distanciamento, Annie revela o quão emocionalmente longe ela viveu de um pai fisicamente próximo. Faz isso com substância, ritmo, concisão. E a riqueza com a qual ela descreve esta relação e tudo que a delimitava não tem a ver com gênero. Tem a ver com talento. 

Annie Ernaux, née Duchesne, escreve sobre sua circunstância e escreve excepcionalmente bem.

Editora Fósforo, 69 páginas 1a edição 2021 (4a reimpressão, 2022)  |  Tradução Marília Garcia

Título original: "La place"   |  Copyright 1983

"Estado secreto", por Jan Karski


Dá para a gente chutar que centenas de milhões de livros já foram publicados. Por baixo, né. Por conta da quantidade, impossível fazer uma seleção dos melhores. Mas esse que vou falar aqui hoje é um que, se eu fosse escolher entre tudo o que já foi impresso, não poderia faltar na minha estante.

Por uma série de razões. A relevância do tema, o envolvimento do autor no "enredo", a dimensão da denúncia, o contexto geopolítico, o calibre das personalidades mundiais presentes, a publicação do texto enquanto o evento narrado ainda se desenrolava, a celebração além-fronteira do livro e do autor, a negação mundial e a subsequente condenação de obra e autor ao sigilo, o anonimato deliberado do seu protagonista por quatro décadas, a redenção quase meio século depois.

Ufa. Mais que um livro, é um registro e um agente da História. Isto posto, dou nome aos bois.

O tema em questão é a Segunda Guerra Mundial, considerado por muitos (eu entre eles) o evento mais importante da Era Moderna. Seu autor é Jan Kozielewski, ou melhor, Jan Karski.

Oficial polonês, católico, oriundo da classe média (seu pai era seleiro), teve seu regimento bombardeado pelos alemães no primeiro dia da guerra, foi prisioneiro dos russos, escapou disfarçado, foi prisioneiro dos alemães, escapou se jogando de um trem em movimento, na clandestinidade se tornou agente secreto do governo polonês no exílio, foi preso e torturado pela Gestapo, fugiu e retomou suas atividades de agente, foi à França e ao Reino Unido levar pessoalmente informações da resistência polonesa, voltou à Polônia e às atividades clandestinas, se tornou elemento importante da contra-propaganda, se infiltrou por duas vezes no Gueto de Varsóvia para testemunhar e registrar as condições bárbaras e os assassinatos contra os judeus, se infiltrou disfarçado de guarda em um campo de concentração, onde testemunhou e registrou o bárbaro crime nazista contra a humanidade, em 1942 retornou ao Reino Unido, onde se encontrou com o ministro Anthony Eden e apresentou os documentos que comprovavam a existência dos campos de concentração e de extermínio dos judeus, seguiu para os Estados Unidos, onde se encontrou com o presidente Franklin Roosevelt e denunciou o Holocausto contra a população judaica da Europa.

Tudo isto acima foi um cara só, ao longo de exíguos cinco anos. Além do seu protagonismo pela Polônia, Jan Karski foi o primeiro homem a denunciar, com provas e testemunho pessoal, o genocídio em curso no Leste Europeu. 

Em 1944 percorreu os Estados Unidos fazendo palestras e participando de conferências. Lá lançou o seu livro "Estado Secreto", que vendeu 400.000 exemplares somente nos EUA - esgotou em poucas semanas. Houve em seguida uma edição inglesa e em 1945 uma edição sueca; uma outra norueguesa em 1946 e uma edição francesa em 1948; e aí tudo estancou.

Suas denúncias do extermínio da população judaica repercutiram na América do Norte quando do lançamento do livro - mas não foram suficientes para provocar uma mobilização dos Aliados que salvasse os judeus. Tudo seguiu inalterado. É que havia um problema com o emissário Karski.

Jan Karski era polonês. E fiel ao governo polonês exilado em Londres, que era formado por aqueles que nos últimos vinte anos tinham lutado por uma Polônia independente. Muitos guerrearam contra o Exército Vermelho, em 1920, quando os russos quiseram retomar sua parte perdida do território polonês (e, para surpresa global, deu zebra: os russos foram derrotados e expulsos da Polônia).

Ocorre que, naquele momento, 1944, a União Soviética era a grande aliada da Inglaterra e dos Estados Unidos na guerra contra Hitler. As duas potências não queriam contrariar os russos. E a última coisa que a União Soviética queria era que um representante do governo polonês no exílio tivesse visibilidade e liderança.

(A propósito, a União Soviética já tinha um governo títere para empossar na Polônia quando a guerra estivesse acabada. Não à toa, ela manteve em agosto de 1944 centenas de milhares de soldados russos imóveis na margem oriental do Vístula, assistindo, do outro lado do rio, o exército da resistência polonesa - o Armia Krajova, que ela prometera ajudar - ser trucidado pelo exército nazista.)

Os poloneses leais ao governo polonês não teriam vez na nova ordem mundial.

Este é, resumidamente, o contexto em que Jan Karski realizou a sua heroica e inacreditável trajetória - e como foi relegado ao ostracismo após ter feito tudo o que ele fez. 

O livro que temos em mãos - aquele que eu não vou deixar fora da minha prateleira - é a vida (posta inúmeras vezes em risco) do autor, um testemunho histórico e um documento político que atravessou gerações. À cada época o livro oferecia um significado diferente, variando ao sabor dos ventos e humores da Guerra Fria.

(Na Polônia ele só foi publicado em 1987. Os poloneses demoraram quase meio século para ler o relato de um dos seus mais abnegados heróis.)

Sem esquecer também que, como disse acima, ele é retrato de um momento capital. Karski escreveu sobre a guerra enquanto ela ainda estava em curso. Com isso, se não teve o benefício da visão retrospectiva e do suporte de outras publicações, seu texto é ainda mais visceral e representativo.

Para quem queria apenas uma noção rápida e concisa daquilo de que trata o livro, acho que já está bom por aqui. 

Para quem quer saber um pouquinho mais, eu vou contar - desde o início. Basta me seguir.

Para os apaixonados pela História, o livro já abre em um momento crucial: o ataque alemão à Polônia, em  de setembro de 1939, sem declaração prévia de guerra, sob a perspectiva de um subtenente aquartelado em Óswiecin. Este tenente era Jan Kozielewski, depois Jan Karski.

Jan era irmão de Marian Kozielewski, 18 anos mais velho, que, à época, era o comandante da polícia de Varsóvia. Nascido na parte russa de uma Polônia que não existia até 1919, Marian havia lutado na Primeira Guerra Mundial de 1914 a 1918 e sido condecorado na guerra contra os russos, em 1920.

Os anos 30 foram de estabilidade geopolítica na Polônia, mas de muita confrontação interna, com diversas forças políticas duelando entre si. E, logicamente, estavam atentos ao que vinha acontecendo na Alemanha desde 1933, com a chegada do nazismo ao poder.

Um fato que não é comum ser mencionado é que os poloneses já se preparavam para enfrentar o ataque "surpresa" dos alemães na última semana de agosto. A movimentação de tropas na fronteira já denunciava a intenção dos nazistas, e havia também uma subida de tom no discurso de Hitler. 

Entretanto, a Polônia foi instada pela França a reduzir seus preparativos, para não "provocar" os alemães - o que gerou uma perda de tempo fatal na organização das defesas. Ainda assim, os reservistas foram secretamente convocados, Jan Karski entre eles, com destino à Cracóvia.

Como ele mesmo registra, durante a viagem os recrutas poloneses davam seguras demonstrações de confiança e achavam que iam tirar os alemães para nada. Um dizia que "nossa mobilização é apenas uma resposta da Polônia à guerra de nervos dos nazistas", enquanto outro afirmava que a Alemanha "estava enfraquecida e Hitler estava blefando", para complementar que "quando visse que a Polônia estava 'forte, unida e preparada', Hitler recuaria e todos voltaríamos para casa".

Um soldado se referiu a Hitler dizendo que, caso não recuasse, "aquele bufão fanático receberia o castigo merecido da Polônia, ajudada pela Inglaterra e pela França". O comandante do pelotão se empolgou, afirmando que "dessa vez, não vamos precisar da Inglaterra e da França. Podemos acertar as contas com ele sozinhos".

Um equívoco de percepção dessa grandeza só se acha em um relato escrito ainda no calor dos acontecimentos.

Toda a atmosfera de convicção na força nacional desmoronou às 4 horas da manhã do dia  de setembro, quando o soldadesca foi despertada por um dilúvio de bombas incendiárias. Era o início daquilo que veio a ser conhecido como a Segunda Guerra Mundial.

Diante do intenso bombardeio da Lutwaffe, do maciço avanço dos tanques por terra e da trairagem dos atiradores quinta-coluna das janelas da cidade (Volksdeutsch, ou seja, poloneses de origem alemã), não restou alternativa ao exército polonês sediado na cidade que não a retirada. Que se tornou ainda mais confusa com as notícias que vinham do leste: o rádio anunciava que os russos também estavam invadindo o país.

A surpresa e a incredulidade de quem antes se considerava garantido pela aliança com Inglaterra e França, e iludido pelas intenções ocultas do pacto Ribbentrop-Molotov, dá partida na ignição de um texto que já daí prometia ser adrenalina pura.

Repelidos na Cracóvia, seguiram em frente e continuaram marchando. Marcharam por três semanas.

Chegando a Tarnopol, foram polidamente feitos prisioneiros pelo exército russo, que também havia invadido a Polônia, mancomunado com os alemães. Foram desarmados, metidos em um trem e mandados para o interior russo. No campo de prisioneiros o tenente Karski experimentou a demagógica inversão russa da etiqueta militar: os oficiais foram acomodados em estrebarias e os soldados ganharam melhores rações e acomodações.

Para retornar ao solo polonês, ele se valeu de uma oportunidade surgida em um acordo entre Alemanha e União Soviética: os soldados poloneses nascidos em cidades pertencentes à metade alemã da Polônia foram trocados por soldados ucranianos e bielorussos.

Karski nem nascera lá, nem era soldado, mas conseguiu forjar ambas as coisas e foi trocado.

O campo de prisioneiros gerido pelos alemães era muito mais organizado e cruel do que aquele sob comando soviético. Em um transporte para um campo de trabalhos forçados, Karski logrou escapar, saltando de um trem em movimento. Estava em Kielce. Dali seguiu para Varsóvia, onde encontrou sua irmã (cujo marido fora fuzilado). Um amigo o introduziu no movimento clandestino de resistência.

O amigo, Jerzy Dziepaltowski, cuja função era executar agentes da Gestapo e traidores, foi preso, torturado e fuzilado poucos meses depois, após matar um oficial alemão. Mas, graças a ele, Karski, que agora se chamava Kucharski (entre outros incontáveis nomes...), já estava em ação.

Sua função era uma das mais importantes em tempos de guerra: a de correio. Levar mensagens escritas e verbais. Para tanto, atuava sempre sob uma camada de disfarces, meticulosamente elaborados. Um agente secreto da Resistência não poderia ser desmascarado. Por isso, cada nova identidade exigia novos documentos falsos e uma biografia convincente e verificável. 

Caso ele fosse capturado, mesmo com toda esta cautela, suas ordens eram para se matar.

Sua primeira missão foi viajar para o lado soviético da Polônia ocupada. Era necessário que as forças clandestinas da resistência polonesa de ambos os lados da partilha atuassem em conjunto e subordinadas a um mesmo plano de ação. A única maneira dos comandantes de um lado saberem o que o outro planejava era por intermédio de um contato pessoal e com identificação garantida.

"Garantida" significando seguramente verificada. Porque não faltavam agentes alemães e poloneses a serviço da Alemanha se infiltrando na resistência polonesa, para abortar seus planos e prender seus integrantes. Com isso, o momento do contato pessoal entre o correio e seu destinatário era sempre tenso e repleto de subterfúgios. Apesar das senhas e contrassenhas, da checagem de cada detalhe do emissário, um passo em falso significava tortura seguida de morte.

Na sua primeira missão, onde deveria se encontrar com dois líderes poloneses, um deles o recebeu, recalcitrante, e negou que fosse quem era. Karski não teve como lhe entregar as orientações, visto que seu interlocutor se recusava a admitir que fizesse parte do movimento contra os alemães. 

Era parte do jogo.

Após missões que o levaram a Lódz, Lviv, Vilnius e Cracóvia, sua mais importante tarefa foi uma aventura bem maior: foi encarregado de levar (e trazer) mensagens da Resistência para o governo polonês na França (a esta altura, ainda "fora" da guerra, pois estavam no período da "guerra de mentira", antes da França ser invadida; tudo corria quase normal no país).

A viagem foi praticamente um feito esportivo: numa empreitada que exigiu diversos dias, fez a travessia dos Cárpatos esquiando. Da Hungria seguiu para Paris, onde se encontrou pessoalmente com o primeiro-ministro do governo no exílio, o lendário general Sikorski. Antes, se reuniu com o polêmico Stanislaw Kot, de quem recebeu a orientação para a redação de um relatório - que passou para a história como o Relatório Karski.

Durante seis dias, Karski ficou confinado em um quarto de hotel, com uma secretária e uma máquina de escrever, a quem ditou seu célebre relatório, que tratava de quatro questões: 1) O itinerário clandestino seguido por Karski e sua organização; 2) As condições de vida criadas pelo ocupante nazista; 3) A evolução das opiniões políticas na Polônia ocupada; 4) A condição dos judeus sob ocupação nazista e soviética.

Foi a primeira denúncia da violência a que vinha sendo submetida a população judaica sob o regime nazista. É um documento de tal importância que seu original é conservado no Instituto Hoover, na Califórnia, entre os arquivos do governo polonês no exílio. Na sua capa, à mão, está escrito "Uwaga!" ("Atenção!"), na caligrafia de Jan Karski. 

Karski retornou à Polônia, levando novas mensagens, e logo se tornou um importante elemento de ligação na sustentação do Estado clandestino, o "Estado Secreto" do título. Apesar da juventude, era um interlocutor competente e confiável. Em uma nova ida à França, fazendo a mesma rigorosa e arriscada travessia, entretanto, o cauteloso agente Jan Karski foi preso e torturado pela Gestapo.

Após sucessivos e violentos interrogatórios, incluindo uma tentativa de cooptação para que se tornasse um agente duplo, Karski tentou se matar. A tentativa foi frustrada e ele acabou provisoriamente em um hospital, para que se recuperasse e fosse então reintroduzido em novas sessões de tortura. Os alemães permaneciam obstinados em retirar informações daquele que já sabiam ser um importante correio da Resistência.

Internado em um hospital eslovaco, sob vigilância alemã, Karski soube que a França capitulara. Para sua surpresa, a "forte" França havia desmoronado diante dos alemães. O marechal Pétain assinara um acordo de colaboração com os invasores. Não só por ser a sede do governo polonês no exílio, mas pelos históricos vínculos com a Polônia, a notícia deixou Karski consternado.

"Durante séculos, fomos ligados à França por laços históricos e culturais. Para nós, poloneses, a França era quase uma segunda pátria. Nós a amávamos com aquele amor profundo, irracional que dedicávamos à Polônia", declara o autor, para então afirmar que "além do mais, toda a nossa esperança de libertar a Polônia repousava sobre a vitória da França".

Sentimentos quase que opostos ligavam o agente à Inglaterra, onde morara entre 1937 e 1938. "Havia algumas coisas que não me agradavam no caráter nacional dos ingleses. Eram secos e afetados", considera. "Muitos deles não compreendiam a Europa continental e nem mesmo se importavam com ela. Mas eram obstinados, fortes e realistas. Um francês ou um polonês, com seu amor exagerado pelos grandes gestos, poderia se suicidar diante de um fracasso, mas nunca um inglês."

A passagem de Karski pelas celas da Gestapo são o momento de maior tensão do livro, que ganha ares de thriller. Como praticamente todos os eslovacos do hospital tinham simpatia pelo agente polonês e ódio à presença alemã, não foi difícil para a Resistência polonesa tramar o resgate do seu emissário.

Que foi bem-sucedido, mas com altos custos. Como sabido posteriormente, quase todos os integrantes da Resistência que auxiliaram Karski na fuga foram mortos: além de Tadeuz Szafran, fuzilado, foram presos e deportados para Auschwitz Karol Glód, Feliks Widel e Jozef Jenet. Somente quarenta anos depois Karski soube o que aconteceu com seus salvadores.

Após a fuga, Jan ficou alguns meses escondido no solar de Katy, em Brzesko, arredores de Cracóvia, esperando a poeira baixar e a Gestapo encerrar as buscas. Se dedicou ao serviço de disseminar contra-propaganda. Lá, foi acolhido por uma família também a serviço da Resistência: Danuta Slawik, seu irmão, tenente da Armja Krajova Lucjan Slawic, e sua mãe. Pelas atividades clandestinas, todos da família foram presos no ano seguinte. Danuta foi fuzilada.

Em Cracóvia, seu conhecimento de idiomas foi utilizado para escutar rádios estrangeiras, traduzi-las e entregá-las em forma de relatório, para que o comando da Resistência determinasse a conveniência da sua divulgação e publicação. Embora simples, era uma atividade perigosa: qualquer cidadão polonês flagrado de posse de um rádio era sumariamente executado.

Neste instante do texto, Karski faz uma grande reflexão sobre os problemas da resistência polonesa, que vinha sendo desmontada pela Gestapo. Relata que os diversos grupos agiam isoladamente, sem subordinação a um controle central, privilegiando o máximo de ação (e confusão), na tentativa de desestabilizar o invasor. 

Seria uma estratégia adequada para uma guerra curta, que era a expectativa inicial da Polônia. Mas, com a rendição francesa e o prolongamento da guerra, as células estavam desarticuladas e vulneráveis. Aí se segue uma longa exposição da estruturação polonesa e também da impressão de jornais e disseminação de notícias.

Nesta passagem o livro tem uma queda em seu élan e assume contornos panfletários - circunstância compreensível, pois a obra em si era uma ferramenta política em um mundo em guerra. Mais que tudo, visava denunciar a condução criminosa dos nazistas nos países ocupados.

Sob este prisma, um aspecto interessante é o detalhamento das atividades e da constituição do governo paralelo. O povo era orientado a ignorar as ordens da ocupação alemã e devia responder ao governo clandestino. A punição para quem era flagrado colaborando com os alemães era a morte.

Karski nos revela como as mulheres tiveram enorme importância nas ações da Resistência, seja na linha de frente, na retaguarda ou como elementos de ligação. Muitas delas, como a célebre escritora polonesa Zofia Kossak (pseudônimos "Weronika" e "Ciotka"), se destacaram pela coragem. Zofia foi responsável pelos primeiros jornais clandestinos (Polska zyje! e Orlta) e dirigiu seu próprio jornal clandestino (Prawda). 

Kossak foi além e denunciou a tragédia que se abatia sobre o povo judeu. Não só: ela mesma atuou em instituições de socorro para crianças judias. Seu texto mais conhecido do período é o Protest, publicado em 10 de agosto de 1942, com uma tiragem de 5 mil exemplares. Ela o redigiu em nome dos católicos poloneses, "denunciando o massacre e a deportação dos judeus do gueto de Varsóvia para os campos da morte".

"Os judeus morrem aos milhares cercados por Pôncio Pilatos que lavam as mãos", acusou. "O mundo olha e cala. Não é mais possível tolerar este silêncio. Não temos o direito de permanecer passivos diante do crime. Quem quer que silencie diante de um assassinato torna-se cúmplice do assassino. Quem não condena consente."

O texto foi posteriormente microfilmado e levado a Londres pelo emissário Karski, onde chegou ao conhecimento das autoridades aliadas. Zofia Kossak, nascida em 1890, morreu em 1968. Seu nome foi inscrito em 1985 na aleia dos Justos, em Yad Vashem.

Esta segunda viagem de Karski a Londres é o momento historicamente mais conhecido do emissário "Witold". Sua missão oficial incluía também denunciar o extermínio da população judaica. Para que sua mensagem tivesse ainda mais credibilidade, ele foi não somente como porta-voz, mas também como testemunha.

Para obter esta legitimidade, Jan se reuniu com os dois principais representantes em território polonês do povo judeu: Léon Feiner, pelo Bund, o partido socialista judaico, e Monachem Kirszenbaum, do grupo Al Hamisznar, dos sionistas liberais.

Vou me estender "um pouquinho" na transcrição do que foi dito nesta reunião. Mais uma vez devemos nos lembrar que, quando da publicação do livro, o mundo estava no auge da guerra, e o que acontecia com os judeus era sabido por muito poucos fora da Europa. Jan estava revelando ao mundo um genocídio encoberto.

"A primeira coisa que ficou evidente para mim foi o caráter desesperado, absolutamente desesperado, de sua situação", disse Karski, ressaltando que "para nós, poloneses, era a guerra e a ocupação. Para eles, judeus poloneses, era o fim do mundo. Não havia fuga possível, nem para eles, nem para seus companheiros".

"Não tinham medo da morte em si, aceitavam-na como algo quase inevitável, mas a ela se juntava a amarga certeza de que, nesta guerra, não podiam esperar nenhum tipo de vitória", concluiu. Em seguida, deu voz às palavras do dirigente sionista:

"Vocês, poloneses, têm muita sorte. Muitos de vocês sofrem; muitos morrem, mas a nação polonesa viverá apesar disso. Depois da guerra, a Polônia voltará a existir", desabafou. "Só nós, os judeus, não estaremos lá. Nosso povo inteiro terá desaparecido. Hitler perderá sua guerra contra a humanidade, contra o bem e a justiça, mas a nós ele terá vencido, terá massacrado".

Karski perguntou o que eles queriam que fosse dito no Reino Unido, em nome dos judeus.

"Queremos que o governo polonês em Londres e os governos aliados compreendam que estamos indefesos diante do que os nazistas estão fazendo conosco", bradou. "Os alemães não pretendem nos transformar em escravos, como fazem com os poloneses e outros povos conquistados. O que eles pretendem é exterminar todos os judeus."

Parte do que viria realmente a acontecer já estava nítido para aqueles homens, agrupados em uma reunião clandestina em uma casa em ruínas em uma rua remota na periferia de Varsóvia. 

"Todos nós vamos desaparecer", continuou o bundista. "Talvez um pequeno número sobreviva, mas 3 milhões de judeus poloneses estão condenados ao extermínio, assim como outros mais, vindos de toda a Europa." 

Karski assume a responsabilidade de levar a mensagem à Inglaterra. Como base em relatórios da resistência, sabia naquele instante que os nazistas já tinham assassinado mais de um milhão e oitocentos mil judeus poloneses.

Em seguida os três homens deliberaram sobre sua ida clandestina ao gueto, para que Karski pudesse adicionar o testemunho visual a tudo aquilo que já lhe fora dito. Estavam na segunda quinzena de agosto de 1942. Algumas semanas antes, começara a Grande Deportação. Dez mil judeus eram embarcados todos os dias em direção a Treblinka, a pretexto de seguirem para campos de "trabalho".

Como todos sabemos, estavam indo para serem mortos nas câmaras de gás. Àquela altura, Karski estimou que mais de trezentos mil judeus já tivessem sido deportados. Seu relato da visita ao gueto (onde foi duas vezes, nos dias seguintes) pode ser resumido em um ou dois dos muitos parágrafos com os quais o descreveu.

"Tratava-se de um cemitério? Não, pois aqueles corpos ainda se moviam, muitas vezes tomados por uma agitação violenta; não, ainda estavam vivos, mas tirando a pele que cobria seus corpos, os olhos e a voz, não havia nada de humano naquelas formas palpitantes. Por todo lado, era a fome, o sofrimento, o cheiro nauseabundo dos cadáveres em decomposição, os lamentos dilacerantes das crianças em agonia, os gritos de desespero de um povo que se debatia numa luta monstruosamente desigual."

Jan testemunhou a caçada - à guisa de diversão - que jovens soldados da Juventude Hitlerista faziam pelas ruas do gueto, atirando na população, que tentava escapar da mira dos "caçadores" nazistas. Apesar do impacto que a primeira ida ao gueto lhe causou, ele achou crucial retornar.

"Retornei dois dias depois e durante três horas percorri mais uma vez as ruas daquele inferno, a fim de memorizar tudo. Vi uma criança morrer diante dos meus olhos, um velho agonizar, policiais judeus espancarem uma velha senhora com cassetetes".

Vale aqui "antecipar" que estas excursões não foram em vão. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, além do relatado em suas missões oficiais, Karski narrou o que tinha visto no gueto a alguns dos maiores escritores do mundo - entre eles H.G. Wells e Arthur Koestler, entre os mais célebres da época.

O relato do seu testemunho pessoal das atrocidades não se restringiu ao que ele viu no Gueto de Varsóvia. Infinitamente pior foi o que ele assistiu no campo de Izbica Lubelzka. A resistência subornou alguns guardas ucranianos, para que Karski entrasse no campo como se fosse um deles. O que ele viu e relata surpreende inclusive o leitor habituado aos depoimentos sobre o Holocausto. Não era o procedimento padrão de assassinato por gás ou fuzilamento. Era muito pior.

Ele descreve a situação infernal em que os judeus eram mantidos no campo, aos milhares, nus e sem alimentação, por vários dias. Os barracões comportavam dois a três mil prisioneiros, mas havia mais de cinco mil em Lubelzka. Muitos mortos e agonizantes pelo chão. Gritos dilacerantes. O comportamento das vítimas há muito já não era humano.

A uma ordem dos alemães, aquela massa de prisioneiros tinha que se deslocar para dentro dos vagões. Um segundo de imobilidade e os alemães atiravam a esmo na massa. Mas se a movimentação fosse excessivamente rápida os alemães atiravam na cara dos judeus que vinham à frente, como uma espécie criminosa - e sádica - de freio.

 Segundo Karski, em um vagão onde caberiam quarenta pessoas, havia cento e trinta. Subiam uns pelos ombros dos outros. "Quando não havia mais lugar nem para uma agulha", conta Karski, "os guardas puxaram as portas e fecharam hermeticamente aquele carregamento de carne humana com barras de ferro. Mas isso não foi tudo", esclarece. "Sei que muita gente não vai acreditar. No entanto, juro que vi todas as coisas que acabei de descrever. Não tenho provas, nenhuma fotografia, mas tudo o que digo é verdade."

A ênfase era necessária diante da incredulidade coletiva. O livro "O Estado secreto", denunciando o genocídio, foi publicado em 1944. A carnificina da população judaica europeia estava em curso e o mundo ignorava - ou fingia ignorar, já que os relatos vinham se acumulando. Mas nenhum deles como o de Jan Karski. Que continua:

"O pavimento do trem era coberto por uma espessa camada de pó branco: era cal viva. Todo mundo sabe o que acontece quando se joga água na cal: a mistura torna-se efervescente e desprende um calor intenso", explica. "Nesse caso, os alemães empregavam a cal com o duplo objetivo de economia e crueldade. A carne úmida em contato com a cal desidrata rapidamente e queima. Os passageiros daquele trem queimariam lentamente até o osso."

Este meio bárbaro de assassinato confesso não me lembro de ter lido. "O processo era simples, eficiente e pouco custoso", calcula. "O trem levou três horas para ficar completamente cheio. O comboio, com seu carregamento de carne torturada, vibrava e urrava como se estivesse enfeitiçado. O trem seguiria em frente por uma centena de quilômetros e pararia no meio dos campos, onde ficaria esperando, imóvel, por três, talvez quatro dias, até que a morte penetrasse completamente em todos os meandros de cada vagão".

Jan saiu do campo absolutamente atordoado. Na manhã seguinte, ao acordar na casa onde havia se hospedado, teve violentas ânsias de vômito, e chegou a vomitar sangue. Dormiu por 36 horas. A psicologia moderna certamente diria que era um processo de fuga à realidade. Provável. 

"As visões do campo da morte hão de me perseguir para sempre. Jamais consegui me livrar delas, e a simples lembrança me provoca náuseas. Mais ainda do que as imagens, queria me livrar do pensamento de que uma coisa daquelas havia realmente acontecido".

Pior é que, quando da denúncia e da publicação do livro, esta coisa continuava acontecendo. O genocídio dos judeus húngaros e italianos em Auschwitz estava somente tendo início. Somente estes seriam mais de meio milhão de seres humanos torturados e assassinados.

Cumprida esta última etapa, Jan Karski iniciou os preparativos para a entrega do seu relatório, em Londres. Se computarmos exclusivamente o percurso de 21 dias que ele iria fazer para chegar lá, a narrativa já constituiria todo um livro de aventuras. 

Com um passaporte francês falso, foi de trem de Varsóvia a Berlim, onde arriscou-se encontrando um antigo amigo alemão, que, lá, descobriu ter se tornado nazista até a alma. Imprudência. De Berlim prosseguiu de trem para Bruxelas e de lá seguiu para Paris, desembarcando na Gare du Nord, onde, em uma confeitaria nos arredores da estação, recebeu novos documentos.

De Paris foi de trem para Lyon e dali foi para Perpignan, já próximo à fronteira com a Espanha, onde se encontrou com um casal espanhol que havia lutado contra Franco - que, por sua vez, o apresentou a um guia, de nome Fernando, que o levaria até o sopé dos Pireneus. Meros cinquenta quilômetros numa bike velha, à noite, no escuro,

Chegando lá, teve que esperar, escondido e imóvel, por 48 horas, no fundo de um bote. Com um novo guia, seguiu por uma trilha secundária cortando os contrafortes dos Pireneus. O sujeito não falava francês e Karski não falava espanhol. Passaram três dias no mato, mudos. Ao descerem a montanha, pernoitaram na casa da um catalão francês, que tinha um plano, arriscado, para levá-los até Barcelona.

Deu certo. Separaram-se nos arredores da cidade, no cair da noite. Karski ainda precisou andar algumas horas até chegar aos subúrbios de Barcelona. Tinha o endereço de um açougue como ponto de encontro. Comeu, dormiu sobre um pequeno banco e, no dia seguinte, se dirigiu ao consulado inglês. 

Lá recebeu novos documentos e roupas limpas. Viajou oito horas de carro até chegar em Madri, onde ficou por três dias e ganhou nova documentação, desta vez como espanhol. Como não falava o idioma, o risco de ser abordado por policiais e ser preso era enorme. Não houve problemas, porém, e ele desembarcou no porto de Algeciras, onde se escondeu numa pequena casa de subúrbio.

Na noite chuvosa, Karski entrou em um barco de pesca, que o levou até uma lancha inglesa, distante da costa. Aportaram em Gibraltar e lá, depois de umas doses de uísque, o emissário seguiu em um vôo de oito horas até a Inglaterra. Um capítulo banal para Jan, mas que dava um livro para a grande maioria das pessoas normais. 

Mas de normal Jan Karski não tinha nada.

Chegando em Londres, foi interrogado pela inteligência britânica, que não queria liberá-lo antes de arrancar alguns segredos. Não conseguiu nada e ele foi "sequestrado" pelos poloneses. Se encontrou com o general Sikorski, primeiro-ministro do governo polonês no exílio, de quem recebeu a medalha da Ordem Virtuti Militari.

Em seguida foi recebido por Anthony Eden, ministro dos Negócios Estrangeiros e futuro primeiro-ministro inglês. "Tudo que podia acontecer a um homem no curso dessa guerra aconteceu com o senhor, exceto uma coisa: os alemães não conseguiram matá-lo", disse Eden, complementando que "encontrá-lo foi uma honra para mim".

Meses depois, Karski teve uma entrevista pessoal com o presidente norte-americano, Franklin Roosevelt, na Casa Branca. O que aconteceu a partir daí foi o que eu disse no início desta longa digressão. Espero que tenha valido a pena para você que perseverantemente me leu até aqui.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a Polônia tendo ficado sob o controle da União Soviética, situação que se estendeu pelo meio século seguinte, a Karski não foi possível voltar para sua terra natal. Assim, optou por residir e lecionar nos Estados Unidos.

Seu irmão, herói da Primeira Guerra Mundial, e que, como comandante de polícia de Varsóvia, resistiu à invasão alemã e depois assumiu o comando da Segurança Nacional do Estado Clandestino, emigrou para o Canadá, onde trabalhou em uma fazenda, e depois foi morar em Washington, D.C., onde conseguiu emprego como vigia noturno. Marian Kozielewski se matou em 1964.

Uma era havia se encerrado. Foi um curto período de tempo, que marcaria todo o século, e no qual Jan foi um protagonista quase anônimo - se é que me permitem a contradição.

A Guerra Fria cobriu o passado recente como uma névoa. Os Estados Unidos assumiram, pela primeira vez, a liderança mundial e financiaram a reconstrução de uma Europa em escombros. A União Soviética engoliu diversos países por trás da Cortina de Ferro e se tornou a antagonista do Ocidente.

O emissário Witold, nome pelo qual Karski era conhecido na Resistência, se recolheu à vida civil e se recusou a dar qualquer declaração durante mais de 35 anos. O patriota visceral se tornou um estrangeiro sem passado. 

Muitos anos depois da guerra, em 1981, Jan Karski foi convidado para participar da Conferência Internacional dos Libertadores dos Campos de Concentração. Aceitou. Desde 1945 ele não se expunha em público.

Sua palestra foi incisiva e não se deteve em reminiscências. Indagava da História três grandes questões, todas elas relativas ao Holocausto. 1) O que e quando os dirigentes e a opinião ocidentais ficaram sabendo? 2) Como as informações chegaram a eles? 3) Qual foi sua reação?

Não sei qual foi a resposta da plateia. Mas, como tivemos a oportunidade de ver agora, constatamos que os dirigentes

1) Ficaram sabendo porque ele, Jan Karski, viu e contou;

2) Porque ele, Jan Karski, se infiltrou no Gueto de Varsóvia e em um campo de concentração nazista, testemunhou sua rotina e viajou clandestinamente para a Inglaterra e os EUA, onde denunciou, pessoalmente e por escrito, as atrocidades;

3) E que os países ocidentais contemporizaram e não detiveram a tragédia e o genocídio judeu. 

Jan Karski encerrou a conferência histórica com um depoimento pessoal. Transcrevo.

"Quando a guerra chegou ao fim, entendi que nem os governos, nem os líderes, nem os intelectuais, nem os escritores sabiam o que tinha acontecido com os judeus. Eles se mostraram surpresos. O assassinato de 6 milhões de seres inocentes era um segredo", disse.

"Nesse dia, me tornei judeu, como a família de minha mulher, presente aqui nesta sala. Sou um judeu cristão. Um católico praticante. E, embora não seja um herege, acredito que a humanidade cometeu um segundo pecado original: cumprindo ordens, por negligência, por ignorância auto-imposta ou por insensibilidade, por egoísmo ou por hipocrisia ou, ainda, por frieza calculista."

"Este pecado assombrará a humanidade até o fim do mundo. Esse pecado me assombra", confessou, antes de concluir: "E quero que seja assim."

Se você ainda não o conhecia, nem nunca ouviu falar, agora já sabe. Este foi Jan Karski.

Editora Objetiva, 439 páginas (1a edição) 2015 | Tradução Eliana Aguiar | Copyright 2010

Título original: "Mon témoignage devant le monde: Souvenirs 1939-1943"

Obs.: Por mais extenso que eu tenha sido nas minhas referências ao livro, não se contente com o que você leu aqui. Leia o livro. No fim o Editor traz centenas de notas revelando o que Karski não pôde dizer à época e atualiza também muitas das informações. Jan, nascido em 1914, faleceu no ano 2000.


"O mundo de ontem", por Stefan Zweig


Duas Pontes, Petrópolis. 22 de fevereiro de 1942. Faz hoje 80 anos que o apátrida Stefan Zweig tomou uma dose de veneno e se deitou em sua estreita cama de ferro, numa casa branca na encosta da Rua Gonçalves Dias. Em seguida, sua esposa, Lotte, que o assistiu na morte, também se matou.

Ninguém esperava. Cinco meses antes, o casal se instalara na bucólica cidade imperial brasileira, cheio de planos. Nada do luxo d'outrora: era uma residência modesta, debruçada sobre uma pequena colina. A vista, ainda que peculiar, não rivalizava com a do seu castelinho em Salzburg.

Daqui das Duas Pontes, sua paisagem eram as montanhas da serra fluminense, além de um pequeno comércio provinciano (mercearia, açougue, barbearia etc) e um trecho acanhado do rio Quitandinha. Já na sua remota ex-cidade austríaca, fronteiriça com o Reich, ele via ao longe os picos nevados de Obersalzberg. Era lá que ficava o Berghof, a casa de campo de Hitler.

Na villa o Führer descansava da tarefa que se incumbiu. Impor o domínio nazista sobre toda a Europa, instaurar um regime colonial sobre a Rússia, a Ásia e a África, saquear seu povo e suas cidades, escravizar ou matar o maior número possível de não-alemães e matar todos os judeus.

O contexto era um cenário de barbárie absolutamente oposto ao ambiente de excelência científica e cultural que havia imperado na Europa, de meados do século XIX à eclosão da Guerra Mundial, depois denominada "Primeira". Como conta Zweig, um estilo de vida que, de certa forma, havia sobrevivido ao combate sangrento e até -  paradoxalmente - se depurado ao longo da década de 20.

Stefan Zweig era um dos ícones desta Europa cosmopolita. Era publicado em dezenas de idiomas, respeitado por artistas e políticos e íntimo dos principais nomes da cultura do seu tempo. Na verdade, ele era a síntese do clichê cidadão do mundo; mas é que seu nome realmente transcendia fronteiras. Ele próprio se surpreendia ao constatar que era aclamado onde quer que fosse - perambulasse pela Índia ou aportasse pela primeira vez em Nova Iorque. 

Mas, pena, essa doce receptividade à sua talentosa pessoa não duraria muito. No início da década de 30, seu mundo, antes sólido, derreteu. Primeiro a Alemanha, depois a Áustria e aí a Tchecoslováquia; em seguida, toda a Europa. A Werhmatch e a SS se espraiaram como um câncer e esmagaram, sob a esteira dos tanques, uma sociedade milenar. A selvageria do regime nazista destruiu tudo o que viu pela frente (exceto o que roubou). O continente sucumbiu.

Sessenta milhões de pessoas morreram ao longo do conflito. Entre eles, seis milhões de judeus.

Foram poucos os que conseguiram fugir da sanha assassina do exército alemão. O autor da biografia à qual nos dedicamos aqui, Stefan Zweig, foi um desses poucos. E veio para cá.

Vir se matar em Petrópolis não era o ponto final planejado em seu roteiro. Mas foi a consequência natural de uma sucessão de fugas.

Já destituído da sua cidadania austríaca, e escapulindo da ameaça nazista, Stefan mudou-se para o Reino Unido, onde começou a escrever suas memórias. Com a invasão da Polônia e a declaração de guerra dos ingleses à Alemanha, o apátrida Zweig, que não era mais reconhecido na Áustria como cidadão austríaco, era, não obstante, um estrangeiro de língua alemã e, portanto, inimigo da Inglaterra, onde não pôde mais permanecer. Sob o peso da débâcle do continente, dali foi para os Estados Unidos, onde terminou sua biografia de uma Europa desaparecida. De lá veio para seu último refúgio, a América do Sul.

Mais especificamente, veio para o Brasil, ao qual dedicou um livro cujo título se tornou slogan. "Brasil, o país do futuro". No país tropical, escolheu Petrópolis, a mais europeia das nossas cidades. Seu último endereço foi aqui, a curtos quinze minutos de caminhada de onde escrevo agora. Legou ao mundo uma vasta obra, onde este seu "O mundo de ontem" pontifica. 

Um livro que nos permite entender, sob o ponto de vista do ser humano impotente, a criminosa transformação do planeta. Ele é o manifesto da ignorância de um homem culto e político. Ilhado pela guerra onde quer que fosse, seu texto revela como o cidadão comum era vítima do desconhecimento e da desinformação. Não sabendo nada, lhe restava desacreditar de tudo.

A informação tinha impressão e transmissão proibidas. Nos países sob o jugo do nacional-socialismo, sintonizar em uma rádio aliada (geralmente a BBC de Londres, que tinha programas em alemão) era garantia de prisão, ou, pior, de execução imediata. Os jornais permitidos eram somente os do partido nazista - circunstância que veremos em detalhes em LTI, a linguagem do III Reich, do filólogo de Dresden Victor Klemperer (que, curiosamente, tem parentes residindo aqui em Petrópolis).

Ou seja, Stefan Zweig não sabia nada - tonto em meio aos discursos e ameaças, vindos de todos os lados envolvidos na guerra. Blefes, é verdade, que na grande maioria das vezes davam em coisa alguma (lembram de um presidente brasileiro que ameaçou extraditar um repórter - Larry Rother - que disse que ele gostava de umas cachaças? ou de outro que prometeu resolver na pólvora, o mal-estar com os EUA? pois é).

Mas naquele momento o buraco era mais embaixo. Os jogadores eram mais poderosos e, principal, Stefan não tinha o privilégio, que temos hoje, de ver a catástrofe em retrospectiva, alicerçados que estamos em toneladas de História, já decupadas e distribuídas. O célebre escritor só fugia.

Nem sempre fora assim. Na Primeira Guerra Mundial, Zweig foi interlocutor privilegiado de líderes beligerantes e autores pacifistas. Com base em suas entrevistas, a análise que faz dos movimentos que levaram ao vínculo entre Alemanha e Áustria em 1914 revela a reticência dos Habsburgo, símbolo-mor da pátria do autor. Mesmo que um pouco fora do nosso enfoque, aqui, vale para contextualizar o momento histórico e a inserção de Zweig neste ambiente nacionalista.

E, mais que tudo, do contencioso entre os dois grandes aliados de língua alemã, Alemanha e Áustria.

"Com o novo imperador Carlos, iniciara-se um movimento silencioso nos círculos mais elevados do governo para se separar da ditadura do exército alemão, que continuava arrastando brutalmente a Áustria, contra a vontade do país, no rastro do seu anexionismo selvagem", diz Zweig, concluindo que "no nosso estado-maior, os oficiais detestavam o autoritarismo brutal de Ludendorff".

Stefan se viu inclusive no meio de um anúncio separatista, quando, em reunião com o jurista Heinrich Lammasch, que viria a ser ministro-presidente austríaco por curto período, recebeu a revelação de que o governo austríaco iria se separar da aliança com os alemães: "Desde que a Rússia fora afastada militarmente, não havia nenhum verdadeiro obstáculo para a paz, nem para a Alemanha, nem para a Áustria", relata Zweig, acrescentando que "se o grupo pangermânico na Alemanha continuasse a  se opor às negociações, a Áustria teria de assumir a liderança e agir com autonomia".

Tal movimento, contudo, nunca aconteceu. Zweig reputa o recuo à indecisão do imperador Carlos, e lamenta, porque crê que uma chance valiosa foi perdida. Lammasch só chegou ao governo quando os Habsburgo já haviam caído e a derrota austro-alemã na Primeira Guerra já era favas contadas.

"O imperador Carlos não teve a coragem de assumir sua convicção em público", opina o escritor, ressalvando que "afirmam alguns que a Alemanha ameaçou a Áustria com uma invasão militar". Aposta que Lammasch teria resolvido satisfatoriamente a questão, pois "Lammasch não apenas teria salvado a existência da Áustria como também a Alemanha do que mais a ameaçava em seu interior: a sua desmedida ambição de anexar".

Passagem importante, ainda que se referindo a um cenário de mais de um século atrás; mas, houvesse a Áustria imposto suas condições de país soberano ao aliado, a Alemanha, e talvez não houvesse combustível político para incendiar o povo alemão e produzir a Segunda Guerra Mundial. Vá saber.

As críticas, sempre polidas, de Zweig iam da direita à esquerda, como quando fala da esterilidade das eternas discussões políticas, apontando o "tipo eterno do revolucionário profissional que se sente elevado em sua insignificância pelo mero fato de fazer oposição e que se agarra ao dogma porque não dispõe de firmeza dentro de si próprio".

Em miúdos, Zweig detonava aquilo que aqui resumimos, na década de 70, como "esquerda festiva".

Mas, se sabia tanto da política na década de 20, em 1940 Zweig não sabia o que se passava no front, muito menos nos gabinetes palacianos de Hitler, Churchill, Roosevelt e Stalin. Era, ao fim da vida, um mero fugitivo, ignorante das circunstâncias em que se via desgraçadamente envolvido. Como afirma o celebrado historiador Max Hastings, no preâmbulo do seu Inferno: somente um número ínfimo de líderes e comandantes nacionais sabia o que se passava fora do seu campo de visão. "Os civis viviam numa espessa névoa de propaganda e incertezas, um pouco menos densa na Grã Bretanha e nos Estados Unidos".

Assim, razoavelmente perdido, o homem recebido por presidentes e lido por imperadores sofria com o desmoronamento do mundo e comungava com a reação incrédula e vulnerável do povo. Só lhe restava ler as notícias locais - dramáticas, ou ufanistas, mas certamente tendenciosas - e tomar decisões desesperadas apoiado no que lia. Sorte que, ao menos, dinheiro nunca lhe faltou. O que acabou, bem antes, foi sua esperança de sobreviver ao cataclisma.

Porém, antecedendo sua decisão de partir desta vida, nos deixou o registro do mundo que conheceu. Um mundo previsível e de saborosa estabilidade, como nos descreve o próprio Zweig:

"Ao tentar encontrar uma definição prática para o tempo antes da Primeira Guerra Mundial, no qual me criei, espero acertar dizendo: foi a época áurea da segurança. Tudo na nossa monarquia austríaca quase milenar parecia estar fundamentado na perenidade e o próprio Estado parecia ser o avalista supremo dessa estabilidade", inicia.

Da sociedade à economia, tudo transbordava solidez, "nossa moeda, a coroa austríaca, circulava na forma de brilhantes peças de ouro, avalizando, assim, a sua imutabilidade. Cada um sabia quanto possuía ou a quanto tinha direito, o que era permitido ou proibido". O autor se estendia na rotina pessoal: "Cada família tinha seu orçamento fixo, sabia de quanto precisaria para morar e para comer, para viajar no verão e para sua vida pessoal."

Stefan abre com a mesmice do equilíbrio e envereda por uma ponderada visão global: "Ninguém acreditava em guerras, revoluções ou quedas. Tudo o que era radical ou violento já parecia impossível numa era da razão", concluindo mais à frente que "o ódio entre um país e outro, entre um povo e outro, entre uma mesa e outra ainda não nos assaltava todos os dias a partir da manchetes dos jornais, ainda não separava as pessoas das pessoas e as nações das nações."

Epa! o ódio entre um e outro, entre uma mesa e outra ainda não separava as pessoas das pessoas? Acho que isso me soa familiar...

Neste autêntico "Show de Truman", os vizinhos alemães eram mais ranzinzas do que ameaçadores. "Os alemães do norte olhavam um pouco zangados e desdenhosos para nós, para os vizinhos às margens do Danúbio, que, em vez de serem 'eficientes' e manterem uma ordem rigorosa, viviam bem, comiam bem, deleitavam-se com festividades e teatros e, ainda por cima, faziam música excelente". Conclui o comparativo dizendo que "viver e deixar viver' era o célebre princípio vienense".

Tudo isto antes da primeira das duas guerras. Ele viria a contemporizar com a primeira e ser esculhambado pela segunda. Porque, lembrando, a guerra de Hitler foi tipo a segunda temporada da série "O mundo em guerra", só que desta vez com bombas, submarinos, caçadas humanas e campos de extermínio. Mas o que havia antes delas era uma Europa dominada pela placidez, principalmente para um cidadão cosmopolita do rico império austríaco.

Zweig foi sempre aquinhoado. Filho de uma família amorosa e bem estabelecida, Stefan vivia em um círculo de amigos estudantes onde o teatro, a ópera e a literatura eram os prazeres e as ambições. Virtuoso, teve seu texto aceito pelos jornais da capital enquanto ainda era um garoto. Inesperadamente, escritores que idolatrava elogiaram seu primeiro romance. Seu trabalho era dia a dia valorizado - músicos pediam que escrevesse peças para eles, atores lhe pediam personagens. Da noite para o dia, o jovem Stefan se tornou uma celebridade em Viena.

E, em muito pouco, também em Paris e Berlim. Nestas, que eram então as principais capitais do continente, Zweig desfrutava da admiração e da amizade dos principais artistas e intelectuais da época. Peter Hille, Émile Verhaeren, Raine Maria Rilke, Roman Rolland, Auguste Rodin e tantos mais.

O editor do Neue Freie Press, Thedor Herzl, foi um dos interlocutores mais marcantes de Zweig. Herzl foi jornalista correspondente no julgamento de Alfred Dreyfus e, convicto de que sua condenação se dera exclusivamente pelo fato de ser judeu, "concebeu então o plano fantástico de acabar de uma vez por todas com o problema judaico, juntando o judaísmo com o cristianismo através de um batismo de massa voluntário", nas palavras de Zweig, que contrapõe: "Não demorou para ele reconhecer a inexequibilidade desse plano".

Atente para a dimensão histórica do próprio Zweig, circulando por fatos que o uniam a Herzl, que viria a fundar o sionismo internacional, que desembocaria na criação do estado de Israel, atados por sua vez à narrativa de Dreyfus, personagem do célebre J'accuse, de Émile Zola.

"Se a segregação é inevitável, pensou, então que seja total!", reporta Stefan o pensamento de Theodor, cuja "ideia da eterna proscrição de seu povo o perpassou como um punhal". O escritor austríaco reproduz as palavras que escutou do primeiro sionista: "Se a humilhação volta e meia se torna a nossa sina, vamos enfrentá-la com orgulho. Se sofremos pela falta de pátria, vamos construir uma própria!"

Zweig comenta a baixa receptividade que teve a brochura "O Estado dos judeus", de Thedor Herzl, que defendia a fundação de uma "nova pátria na velha pátria, a Palestina". Para sua surpresa, houve perplexidade e irritação entre os círculos judaicos burgueses em Viena. 

"Que diabos aconteceu com esse escritor habitualmente tão sensato, irônico e culto? Por que devemos ir para a Palestina? A nossa língua é o alemão, não o hebraico, a nossa pátria é a bela Áustria", rememora Stefan o que escutou nas reuniões que frequentava. A gente já sabe no que isso deu.

Nem tudo é seriedade na bio de Zweig: hilária é a sua descrição do airbnb em que se hospedou em Paris, uma pensão barata, com diversos apartamentos individuais. Se hoje entramos e saímos dos prédios parisienses digitando um código no portão, à época era na base do grito.

"Le cordon, s'il vous plaît", gritava-se, acordando o porteiro que dormia em seu quarto, para que ele puxasse da cama mesmo a cordinha, e assim abrisse a porta. Na volta, gritava-se o nome e o apartamento, e o procedimento se repetia. Pois um francês amigo do alheio se aproveitou do expediente para fingir ser quem não era e roubar a mala de Zweig. Quem quiser saber os divertidos detalhes da caça detetivesca ao ladrão, que compre o livro...

Vou me estender aqui para reproduzir o depoimento de Zweig sobre a propalada inflação no pós-guerra. Muito se fala como os alemães carregavam dinheiro no carrinho de mão para pagar o pão. O assunto me interessa diretamente, porque vivi a inflação brasileira de 1980 a 1994 e, ao contrário da juventude de hoje, sei bem o caos que a inflação provoca na economia. "Caos" é bem a palavra.

"O caos crescia a cada semana que passava, e a população ficava mais apreensiva. Pois a cada dia a desvalorização do dinheiro se tornava mais perceptível", explica o escritor. A situação foi muito além da brasileira, pois "o governo ativou ao máximo a emissão de cédulas para gerar o maior volume possível, mas não conseguiu dar cabo da inflação; assim, cada cidade, cada cidadezinha e cada aldeia começaram a emitir 'dinheiro de emergência', que na aldeia vizinha já era recusado e, na maioria das vezes acabava simplesmente sendo jogado fora".

"Tenho a impressão", diz Zweig, "de que um economista que soubesse descrever plasticamente todas essas fases, a inflação primeiro na Áustria, depois na Alemanha, poderia superar em suspense qualquer romance, pois o caos assumia formas cada vez mais fantásticas". "Em pouco tempo, ninguém mais sabia quanto custava alguma coisa", o que era exatamente a realidade brasileira no fim da década de 80. "Os preços variavam à vontade, uma caixa de fósforos podia custar vinte vezes mais em uma loja do que em outra", onde, explica, alguém "sem malícia ainda vendia sua mercadoria pelo preço da véspera".

Falando de moradia e alimentação, Stefan comenta que "o aluguel de um apartamento de tamanho médio na Áustria custava por ano menos do que o preço de um almoço", e que durante cinco ou dez anos a Áustria inteira morou de graça. E, pior, "quem respeitava corretamente o racionamento de alimentos morria de fome".

Pronto. Chega de inflação. Mas recorri a ela para dar o depoimento pessoal de um fato histórico super repercutido e mostrar também as preocupações mundanas do escritor. 

Este depoimento pessoal, porém, esconde a dimensão literária que Stefan Zweig atingiu nos anos 30. Era simplesmente o maior vendedor de best-sellers da Europa. Mas seu apogeu foi ceifado pela ascensão nazista, quando os autores judeus foram expurgados e proibidos. Segundo o escritor, "das centenas de milhares e até milhões de exemplares de meus livros, não se encontra mais um único à venda na Alemanha hoje; quem ainda possui um exemplar mantém-no cuidadosamente escondido, e nas bibliotecas públicas eles se encontram ocultos em armários especiais".

O veto não se restringia à Alemanha. "Também na França, na Itália, em todos os países hoje escravizados, os meus livros antes entre os mais lidos hoje também são proibidos por ordem de Hitler". A fuga de Zweig Europa afora trazia também o terror de ser um escritor condenado à exclusão: "Como escritor sou hoje alguém que segue vivo atrás do próprio cadáver".

Poderia falar, ou escrever, horas a fio sobre a tragédia que se abateu sobre os lares de milhões de europeus, asiáticos e africanos e que Zweig, em fuga, simbolizou pessoalmente para nós. Mas ele foi bem além disso, por ser também um dos principais narradores do mundo que existia antes. O mundo de ontem ao qual se refere Stefan Zweig é o mundo que se dissolveu há um século atrás e dentro do qual a gente boia até hoje.

Não à toa, o título original é revelador: "O mundo que eu vi: memórias de um europeu".

Então conhecer e entender esse tal mundo de ontem pode ser uma mão na roda.

E Stefan Zweig é um bom cicerone. Impressiona como este autor austríaco, morto há exatas oito décadas, continua sendo referência entre estudiosos e historiadores quando querem se referir ao mundo da primeira metade do século XX. Parece até que combinaram entre si incluir uma ou mais citações a Zweig em seus livros de história - ele está em todos eles.

"Em Viena, Stefan Zweig vibrou por ser parte de uma multidão patriótica", relata o historiador Niall Ferguson em seu O horror da guerra, descrevendo o entusiasmo de Zweig diante da proclamação da guerra de 1914 (verdade apenas em parte: mesmo pacifista, se julgou a principio emocionalmente traidor da pátria caso não comungasse com o sentimento patriótico dos seus concidadãos).

Christopher Clark, em seu seminal Os sonâmbulos, que descreve o fluxo de ações que desembocaram na Primeira Guerra Mundial, conta como Stefan, que desfrutava de férias em Baden, lendo um ensaio sobre Tolstói e Dostoievski, percebeu algo de anormal na multidão. "O assassínio anunciou-se a Stefan Zweig sob a forma de uma interrupção no ritmo da existência".

Quando o historiador Max Hastings, em seu Europa 1939-1945 (o subtítulo do Inferno que já mencionei acima) quis exemplificar a diferença no engajamento popular com cada uma das duas guerras, ele se valeu também de Zweig, pois, segundo "O escritor austríaco Stefan Zweig (...), as pessoas não sentiam o mesmo porque o mundo em 1939 não era tão puerilmente ingênuo e crédulo como em 1914".

Hastings recorre novamente a Zweig para dar tintas vívidas à invasão de Paris pelos nazistas. "A queda da capital levou o escritor austríaco Stefan Zweig, um judeu agora em exílio alhures, a escrever", diz ele, abrindo aspas para Zweig: "Poucas desgraças pessoais me consternaram e me encheram de desespero como a humilhação de Paris, uma cidade abençoada, como nenhuma outra, pela capacidade de fazer feliz qualquer um que a visite".

Embora não fosse nenhuma ameaça, Stefan estava em risco. "Se os nazistas tivessem conquistado a Grã-Bretanha, a Gestapo teria prendido não apenas Winston Churchill e o líder do partido trabalhista, Clement Attlee, mas também pacificistas como Norman Angell, escritores como H.G.Wells e emigrados alemães como o romancista Stefan Zweig", diz o professor de história moderna Robert Gerwarth, em seu O carrasco de Hitler: a vida de Reinhard Heydrich.

A afirmação consta literalmente em O império de Hitler, do professor de história Mark Mazower, uma descrição minuciosa de como os nazistas administraram (ou tentaram administrar) a Europa ocupada. Havia uma relação de sujeitos a serem caçados na Inglaterra, em caso de ocupação, intitulada Sonderfahndungsliste GB, ou seja, "Lista dos mais procurados da Grã Bretanha", que incluía diversos judeus emigrados, entre outros Sigmund Freud (que já tinha morrido, mas que não tinha sido retirado da lista).

"Alguns desses temiam tanto uma invasão", diz Mazower sobre um eventual desembarque alemão no Reino Unido, "que fugiram para o outro lado do Atlântico: o escritor Stefan Zweig foi para os Estados Unidos e dali para o Brasil, onde se suicidou em 1942, depois de concluir seu comovente lamento por uma Europa que considerava irremediavelmente perdida, O mundo que eu vi".

Um dos mais citados escritores do mundo, mas quase desconhecido na própria cidade em que viveu seus últimos meses de vida, este escritor ímpar merecia ao menos um verbete público. Algo pelas esquinas da cidade. Um texto que pudesse ser decorado pelas crianças e adolescentes. Qualquer coisa modesta, com menos de dez linhas. Sem excessos ou apologia. Talvez com alguma ironia.

O famoso escritor europeu Stefan Zweig escreveu sua autobiografia pouco antes de se exilar, em 1942, em uma pequena cidade sul-americana, na mata atlântica fluminense. Batizada um século antes como Petrópolis, a “Cidade de Pedro”, ela devia seu nome a um imperador tropical, descendente de uma dinastia austríaca, filho de uma Habsburgo. Um austríaco desterrado, escrevendo - na cidade do filho da austríaca - sobre a Europa do passado.

No município seu nome batiza uma escola, uma pracinha extinta e uma rua no fim do mundo. Graças ao esforço do jornalista Alberto Dines, resgataram sua casa esquecida e criaram nela um museu delicado. Sabe-se lá até quando. Porque aqui neste país tropical fizeram uma gambiarra no frigobar do diretor e queimaram o Palácio da Quinta da Boa Vista.

Editora Zahar, 399 páginas (1a edição) 2014 | Tradução Kristina Michahelles | Copyright 1942

Título original: "Die Welt von gestern: Erinnerungen eines Europäers"

"Respire", por Rickson Gracie


Narrativa franca e despojada de um atleta de exceção. Rickson Gracie talvez seja o mais lendário expoente de uma família lendária. É bastante coisa. Entre os fãs e praticantes da arte suave, a percepção de Rickson como o lutador mais dominante do clã é quase que unânime.

Não só no Brasil, mas também do outro lado do planeta, onde ele atingiu o ápice da sua carreira. Um artista marcial completo e, sob a ótica japonesa, um autêntico samurai - com aguda superioridade em todas as áreas onde a luta acontece: técnica, física, mental, emocional e espiritual.

Vale lembrar que este conjunto poderoso de competências não se deu por acaso. A leitura do depoimento de Rickson Gracie a Peter Maguire revela que ele foi preparado desde a mais tenra idade em direção ao topo. Não só ele, é verdade: muitos outros da família o foram também, e atingiram patamares altíssimos de execução e reconhecimento. Mas talvez nenhum outro Gracie tenha alcançado o nível de controle da luta atingido por Rickson.

E some-se a todas estas valências seu poder da superação. De certa forma, este é o tema do livro. Que não se restringe ao jiu-jitsu, a valiosa commodity da família Gracie. A narrativa avança além do combate e do lutador; se debruça sobre estágios mais elevados de entendimento, não só da própria performance como a do adversário. E, melhor, Rickson fala disso sem papas na língua.

A convicção com que se expressa não se reveste de agressividade. Suas palavras são calculadas e respeitosas; mas também afiadas. Ele assume de forma incisiva, porém sem arrogância, sua posição de melhor lutador da família Gracie. Declara as principais influências que o construíram como atleta, homem e lutador: o pai, Hélio Gracie; o primo criado como irmão, Rolls Gracie; o responsável pelo que podemos chamar de seu patamar superior de consciência córporea, Orlando Cani.

Mas o jiu-jitsu é inevitavelmente o tema recorrente da publicação. Tudo acaba remetendo ao tatame. Rickson se vale dele como referência e medida; e através dele faz comentários, curtos, sobre os seus mais conhecidos protagonistas. Não fica em cima do muro ao opinar sobre os nomes de maior repercussão da família: Carlos, Carlson, Rorion, Royce, Renzo.

Um espaço maior é dedicado a Rorion, enaltecendo suas habilidades de marketing ("eu podia ser o melhor lutador da família, mas Rorion era de longe o melhor promotor do jiu-jitsu Gracie"). Rickson detalha como o irmão divulgou o jiu-jitsu nos Estados Unidos, em uma era pré-internet. Uma fita VHS intitulada Gracie in Action virou coqueluche e era encaminhada aos compradores pelo correio. A ação ajudou o clã a se estabelecer nos EUA.

Desavenças comerciais, entretanto, levaram ao rompimento entre os principais nomes da linhagem, culminando com a proibição, por parte de Rorion, do uso do nome Gracie.

"Além de ser faixa-preta, Rorion era também formado em Direito, e geralmente usava seus conhecimentos para conseguir vantagens em negociações", explica Rickson. "Depois que ameaçou processar outros membros da família (...) por usarem o sobrenome Gracie, alguns se renderam. Jiu-jitsu Gracie virou Brazilian jiu-jitsu", detalhou, mas sem concordar. "Acho que se Rorion tivesse deixado que todos usassem o sobrenome, nossa arte marcial ainda seria conhecida como Jiu-jitsu Gracie e, talvez, fosse ainda maior do que é".

Ao falar de Rorion, naturalmente o tema UFC vem à tona. Muito se questiona o porquê de não ter sido Rickson, e sim Royce, o Gracie escolhido para participar da primeira edição do evento. A possibilidade de representar a família entusiasmou Rickson ("finalmente uma oportunidade de fazer meu nome lutando nos Estados Unidos, era a chance que buscava quando me mudei"), mas as coisas não seguiram o curso esperado.

"Quando Rorion afirmou que queria que nosso irmão mais novo, Royce, competisse no primeiro campeonato, me deixando de backup caso ele perdesse, fiquei desapontado", revela. Na verdade, importa destacar, uma parcela expressiva dos admiradores do esporte também se surpreendeu. Rickson esclarece que "apesar de parecer uma decisão sensata, ele tinha outras razões para isso. Por não estarmos nos dando bem na época do primeiro UFC, não queria arriscar que eu me tornasse uma estrela e o ofuscasse". 

Hoje se sabe o impacto duradouro deste primeiro torneio. As vitórias que acumulou no evento fizeram de Royce Gracie uma lenda - ainda que até então ele fosse praticamente um desconhecido. "Royce era um garoto despreocupado que nunca vencera um título importante no jiu-jitsu, quanto mais uma partida de vale-tudo. No entanto, era o Gracie mais fácil de lidar", esmiuça Rickson, que assumiu a tarefa de treinar o irmão mais novo para a disputa, física e mentalmente.

"Eu gostava de Royce e queria vê-lo fazendo sucesso (...). Durante o verão, Royce e eu nos encontrávamos sempre na academia de Pico Boulevard. Ele não era páreo para mim, então pude forçá-lo até o limite e além". As edições iniciais do evento são hoje cultuadas e o resto é história. Os fãs do esporte - e de ambos - poderão saber muito mais do que se passou lendo o livro.

Elogia o primo Renzo ("um lutador de berço que, em vez de ficar com medo em situações assustadoras, era focado") e ressalta que ele se tornou um dos professores de maior prestígio nos EUA. Rickson reproduz um comentário sobre como era a experiência na academia de Renzo em Nova York, feito por um atleta que era aluno tanto dele como do primo:

"É um aprendizado difícil. Imagine pegar dez bebês e jogá-los na parte funda de uma piscina. Nove deles provavelmente vão se afogar, mas o sobrevivente se tornará um nadador olímpico."

O estilo da sua prosa remete ao estilo das suas lutas. Sem firulas - apenas objetividade. Os temas são muitos. Aprendeu cedo com o pai o lugar da política. 

"Não temos controle sobre essa gente. Eles fazem o que querem. Tem filho da puta na direita e filho da puta na esquerda. Política não é pra gente."

O controle das próprias emoções é uma prioridade, inclusive lidar com o medo. "Minha curiosidade sempre superou meu medo, mas o medo também era um bom amigo. Pessoas que dizem não ter medo de nada são estúpidas ou loucas. Medo é uma emoção que serve para proteger você, mesmo que às vezes não precise de proteção."

E o medo é um tema que leva ao título do livro. Rickson detalha como empregar a respiração para dosar a emoção. "Se quero dominar a adrenalina quando estou nervoso, respiro devagar até que as emoções estejam sob controle. Se quero aumentar meu ritmo, não uso minha mente para dizer isso ao corpo, só respiro mais fundo e rápido." E explica que "durante momentos de grande esforço, expirar se torna mais importante que inspirar".

Rickson é taxativo quanto à importância de controlarmos nossa respiração: "Não saber como respirar é como ter uma mão e não saber usar os dedos."

Um aprendizado que veio a se somar a tantos outros atributos que fizeram dele o lutador imbatível que se tornou (Rickson jamais foi vencido), como destreza, vocação, raciocínio e coragem. O jiu-jitsu, neste caso - como já disse, a commodity da família -, vem do berço.

Mas, como eu já frisei, o depoimento de Rickson vai muito além dos limites da luta. Seu relacionamento com os filhos - principalmente com Rockson, seu primogênito, que partiu jovem - é um exemplo de franqueza e amor. 

Logo após o lançamento do livro no Brasil, o autor foi entrevistado por Pedro Bial, onde o principal assunto abordado foi a perda do filho (esta edição do "Conversa com Bial" é facilmente achada na rede). A emoção de Rickson impacta qualquer um que seja pai. No livro entendemos mais profundamente como ele lidou com esta perda insubstituível.

Rickson, despojado, abre o jogo e fala dos primórdios do esporte e dos valores da família. Fala de Brasil, Japão e Estados Unidos. Fala da Yazuka e das gangues do Rio. Fala de roubos, brigas e drogas. Fala da sua comunhão com a natureza e a espiritualidade.

Como dizem os americanos, um statement. Seu livro é uma declaração pública da sua primazia e do seu legado. Nunca haverá um outro Pelé, nem nunca haverá um outro Ayrton Senna ou um outro Gustavo Kuerten. Provável que nunca mais haja um outro Rickson Gracie.

Harper Collins, 254 páginas

P.S.: Quem não merece a faixa-preta é a revisão do texto. Um número muito alto de deslizes, que só posso reputar à pressa nos preparativos pré-impressão. "Cada" em vez de "cara (pg 79), "soltados" em vez de "soldados" (pg 144), "Rorion" em vez de "Royce" (como vencedor do UFC 4, pg 179), "UCF" em vez de "UFC" (pg 180), etc. A avalanche de typings não deslustra o conteúdo, mas desabona a editora.

"Quarto de despejo", por Carolina Maria de Jesus


Com o subtítulo "Diário de uma favelada", o documento, publicado em 1960, oferece uma narrativa visceral. Traz o registro cru da rotina de um ano e meio do cotidiano de uma mulher negra, mãe solteira de três crianças, catadora de papel, inquilina de um barraco na favela do Canindé, em São Paulo. 

Apesar das centenas de dias enfileirados, é uma tragédia em um ato.

Os atores se foram, o palco já foi desmontado, mas o roteiro permanece em cartaz. Ainda que em outros endereços; lá, sobre o terreno do que um dia foi favela, há muito se ergueu a arena da Portuguesa de Desportos. Que dê pistas do passado, só o nome: Estádio do Canindé.

Já o script dos personagens maltrapilhos, protagonistas do drama de Carolina, foi além e manteve as falas. É que as meras atualizações de costumes (celulares, gatonet, tv de plasma etc) não alteraram, na essência, a vida dos desprovidos. Como antes, ainda não têm estudo, nem esgoto. 

Do Canindé, para quem não faz bem ideia das favelas d'antanho (de moradias mais espaçadas), sobraram algumas escassas imagens dos barracos, seja nas fotografias feitas após o lançamento do diário (fáceis de encontrar no google) ou nas externas do filme "Cidade ameaçada", longa-metragem de lançamento do diretor Roberto Farias (você acha as cenas no youtube). Atores que integrariam a nata da dramaturgia nacional têm papel de destaque na película: Eva Vilma, Jardel Filho, Milton Gonçalves e Reginaldo Farias, entre outros.

Carolina registra a movimentação do elenco no seu diário.

"Quando os artistas foram almoçar os favelados queriam invadir e tomar as comidas dos artistas. Pudera! Frangos, empadinhas, carne assada, cervejas", relata a autora, salivando. "Permaneceram o dia todo na favela. A favela superlotou-se. E os visinhos de alvenaria ficaram comentando que os intelectuais dão preferência aos favelados."

Mais da metade dos parágrafos têm um tema recorrente: o que comer naquele dia. Diferentemente do cardápio das estrelas, a escritora alternava suas refeições entre restos catados no lixo, ossos e pelancas doados pelo açougue, ou um prato dado por uma alma caridosa, e o que mais desse para comprar na mercearia, às custas do papelão e do cobre catado nas ruas e vendido no ferro-velho.

"Eu já estou tão habituada com as latas de lixo, que não sei passar por elas sem ver o que há dentro."

Muitas vezes nada disso funcionava e ela e as crianças dormiam sem comer, sonhando com comida.

O livro e o diário terminam em 1o de janeiro de 1960. A descrição é todo o tempo monocórdia: fome, miséria, opressão, imundície. A única variação é o estado de humor de Carolina. Pela janela do barraco se vê a vida da comunidade, através da prosa seca e ressentida da escritora favelada.

Se pôs no papel os entreveros diários dos despossuídos de alimento, educação e cidadania, não se restringiu ao seu próprio habitat; a agudeza desesperançada de Carolina via além da lama. Via com rudeza e inconformidade os palácios, as autoridades, a polícia, o governo.

"... As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo."

Sentia na carne também a situação de eterna rivalidade na favela, uma vizinhança belicosa que caçoava, mentia, roubava e esfaqueava.

Carolina fala ainda dos seus amantes, de pouco romance: o pai da filha, que tinha dinheiro, mas não sustentava a menina; um cigano de passagem, que se aboletou no seu barraco; um português mais idoso, que a queria com carinho, mas a quem ela não queria.

Escreve no escuro do barraco, após a labuta do dia. Suas reflexões esvoaçam no mundo ao redor, perto e longe, no gume da sua realidade áspera.

"Hoje é o dia da pascoa de Moysés. O Deus dos judeus. Que libertou os judeus até hoje. O preto é perseguido porque a sua pele é da cor da noite. E o judeu porque é inteligente. Moysés quando viu os judeus descalços e rotos orava pedindo a Deus para dar-lhe conforto e riquesas. É por isso que os judeus quase todos são ricos. Já nós os pretos não tivemos um profeta para orar por nós."

Interessante constatar que o diário traz inclusive os comentários de Carolina sobre a preparação do livro, do jornalista que a descobriu, e até mesmo da matéria sobre ela publicada nos jornais. 

"Depois fomos na redação e fotografaram-me. Prometeram-me que eu vou sair no Diário da Noite amanhã. Eu estou tão alegre! Parece que a minha vida estava suja e agora estão lavando."

O responsável pela versão final, que fez a edição dos textos do diário, manteve os muitos erros de gramática e ortografia. Longe de reduzir o valor da obra pela prosódia prejudicada da autora, surpreende pela lacuna ter sido fecundada por seu talento abissal.

"A purtuguesa perguntou-me: 'O que a senhora faz?' Eu disse: 'Eu cato papel, ferro, e nas horas vagas escrevo."

O projeto gráfico do miolo, a cargo do ilustrador Vinicius Rossignol, é estupendo. O emprego do vermelho como plataforma das imagens em preto & branco choca e transpõe. O casario brejeiro fincado num chão de sangue. Carolina, de cenho franzido, iria aprovar.

"Há de existir alguem que lendo o que escrevo dirá... isto é mentira! Mas as miserias são reais."

A obra se tornou um clássico e a autora se tornou um ícone. Em vida, a fama não foi capaz de transcender a própria era; Carolina voltou à miséria. Hoje, relida, sua memória é exemplo de afirmação e possibilita múltiplos aproveitamentos. Ainda que jamais tenha mudado, ela é hoje o que não foi nunca.

"Dizem que o Brasil já foi bom. Mas eu não sou da época do Brasil bom."

O Brasil não se tornou o que é agora. Autores como Carolina Maria de Jesus estão aí para provar que isso aqui sempre foi assim. Nada indica que vá mudar.


Editora Ática, 197 páginas

Obs.: Hoje celebram-se 133 anos da proclamação da Lei Áurea. Coube à uma vizinha minha (vivesse eu aqui naquele tempo) a ansiada assinatura do documento. Porém, olhando as carolinas e os jacarezinhos, constata-se que a libertação dos escravos foi bem meia boca. Como quase tudo por aqui, aliás.

"O consentimento", por Vanessa Springora


O escritor francês Gabriel Matzneff  é o objeto do livro, que foi tema de ampla reportagem do "Fantástico" desse último domingo. Ele é o tal "escritor consagrado" que teve os abusos expostos, como afirmado na capa da edição em português (a versão francesa, por desnecessário, foi menos sensacionalista). O dito cujo pode ser visto, duplamente, na imagem do post, acima. Tipo antes e depois, com quarenta anos transcorridos entre uma foto e outra.

Até então desconhecido no Brasil, o autor sempre desfrutou de prestígio na França. Polêmico, chegou a ser considerado, nos idos dos anos 70 e 80, o nome mais promissor da (então) nova literatura francesa. Um queridinho dos cadernos de cultura. Seu tema predileto eram as relações amorosas.

No caso, entre ele e algumas menininhas. De idades não ultrapassando os dezesseis anos. 

Soa a pedofilia, né? É, mas nem sempre; nem em todo lugar. Um ensaio publicado por ele em 1974, intitulado "Les moins de seize ans" (Os menores de dezesseis anos), fez dele um autor lido e discutido. A obra, noves fora o lirismo barato, era uma apologia em favor da liberdade sexual de menores. A tese suscitou debates nos jornais e nos círculos intelectuais. Provocou uma morna contestação, com uma absorção maliciosa por parte da elite. O escândalo foi bem digerido e bem capitalizado.

Parênteses para quem só conhece os tempos do politicamente correto. Isso foi há muito tempo. Já era errado, mas um certo tipo de "coisas erradas" era tolerado, principalmente no campo do comportamento. Vivia-se numa época dada ao liberalismo amoroso e à sua exaltação - a sociedade francesa, talvez, mais que outras. Havia uma compulsão pela derrubada de tabus. A liberdade individual, elevada à máxima potência, mais do que permitida, era incensada. Como sói acontecer, o universo que concentrava esta ansiedade social por uma atitude revolucionária era o sexo.

Neste cenário, talvez um tanto permissivo, o auto-denominado sedutor profissional, Gabriel Matzneff, se tornou uma celebridade. Ninguém dava a mínima para o fato dele fazer turismo sexual na Ásia, seviciando meninos de onze anos. Em off, ele considerava os encontros pagos como experiências recíprocas, ainda que fizesse sigilo das viagens hedonistas. Pleno de charme e vazio de pudor, narrava detalhadamente suas conquistas em edições disputadas nas livrarias. Ao lê-las, ninguém se incomodava com a idade das amantes. Digamos assim: Gabriel ostensivamente se gabava de comê-las.

Vanessa S. era uma delas. Como sabemos agora, a menina tinha quatorze anos quando foi desvirginada pelo escritor (a consumação teve algumas particularidades - deixo as minúcias reservadas para quem se aventurar a ler o livro, que é bom e pudico). O insinuante Don Juan tinha então cinquenta anos. Insegura, como a grande maioria das adolescentes nesta idade, Vanessa se apaixonou pela celebridade literária, com foros de garanhão delicado, que a tratava como princesa.

A autora, no fim do livro, contextualiza a época em que tudo se deu. Reproduzo aqui um trecho.

"Por volta dos anos 70, um grande número de jornais e de intelectuais de esquerda tomou publicamente a defesa de adultos acusados de terem relações 'culpadas' com adolescentes. Em 1977, uma carta aberta em favor da descriminalização das relações sexuais entre menores e adultos, intitulada "A respeito de um processo", foi publicada no Le Monde, assinada e apoiada por eminentes intelectuais, psicanalistas e filósofos de renome, escritores no alto de sua glória, a maioria de esquerda. Entre outros, encontramos os nomes de Roland Barthes, Gilles Deleuze, Simone de Beauvoir, Jean Paul Sartre... Esse texto se manifesta contra a prisão de três homens que aguardam o processo por terem tido (e fotografado) relações sexuais com menores de 13 e 14 anos."

Um manifesto, assinado pela intelectualidade célebre, a favor da liberdade sexual entre adultos e crianças, não é pouca coisa. Hoje, é de cair o queixo; mas cada tempo com suas idiossincrasias. Resvalar para o moralismo comezinho é fácil. A questão é mais complexa que isso, como as consequências que se estenderam por toda a vida da vítima demonstram. Voltemos a ela.

Após um ano e pouco de relacionamento, basicamente acontecido em um discreto estúdio que o autor alugava no sótão de um prédio antigo, Vanessa S. foi "promovida" a personagem dos livros de Gabriel M. Por este tempo, o caso entre eles já havia perdido parte do élan. Vanessa descobriu que foi traída pela concorrência oferecida por outras adolescentes. Confrontou o escritor, que negou e mentiu. E foi enganada também pela exploração da própria intimidade. Sem que ela soubesse, e naturalmente sem que autorizasse, as páginas do novo livro de Matzneff estavam repletas de descrições da nova ninfeta seduzida - ela. 

Para quem a conhecia e leu o livro, a identidade da menina não tinha nada de secreta, era até mesmo óbvia. Mas a menina propriamente dita veio tardiamente a saber, por outros, do seu novo status de personagem do autor aclamado. Ela tinha sido eternizada pelo escritor como "Vanessa S." Vida afora se sentiria reduzida a uma mera inicial, confinada a uma idade imutável. Pesquei numa entrevista recente que ela deu ao Le Figaro ("Affaire Matzneff", fácil de achar no site do jornalão):

"Cette initiale résume désormais mon identité. J'aurais quatorze ans pour la vie. C'est écrit."

Quatro décadas depois, geral passou a saber. Vanessa S. se chamava Vanessa Springora. Em 2020 se converteu em escritora e lançou o livro em que conta a sua história. De caça, se tornou caçadora. Suas páginas revelam os truques de sedução e dominação que o glamouroso cinquentão Matzneff empregava em meninas de 14 anos. Ela era uma dessas meninas e descreve como tudo se deu.

Uma bomba. Passado quase meio século, a denúncia sobre o velho deflorador de crianças estourou, em um mundo agora longe de ser concessivo para comportamentos do tipo. Uma cultura reformulada, onde pedofilia passou a ser chamada pelo nome. Diante da repaginação do escândalo, a França atual lançou um novo olhar sobre o Gabriel de outrora, hoje um octagenário recluso.

O assunto ganhou as manchetes e influenciou no texto de uma nova lei. Se antes o crime de sedução de menores expirava em dez anos, agora passou a prescrever somente após trinta anos. Como disse Springora aos jornais e na tevê, "uma jovem de 24 anos ainda não é capaz de entender bem a repercussão do que aconteceu em sua vida quando tinha apenas 14".

Embora Matzneff negue que ela fosse tão jovem, em um dos capítulos Vanessa tem a oportunidade de ser enfática quanto ao teor da lei à época. Relata que, quando a Brigada de Proteção aos Menores (um equivalente francês do nosso Juizado da Infância) procurou o autor, baseada em uma denúncia anônima, ela sabia então a ameaça que pesava sobre ele: "A lei fixa a maioridade sexual aos quinze anos. E estou longe de ter completado esta idade."

Em decorrência de toda a repercussão negativa, hoje os livros de Gabriel Matzneff não são mais publicados pelas três editoras que têm o direito da sua obra. Nem o que já tinha sido impresso teve mais saída. Encalharam. As livrarias francesas pararam de vendê-los, os exemplares já não estão disponíveis nas prateleiras. Matzneff foi cancelado. Ao mesmo tempo,  "O consentimento", de Vanessa Springora, é um best-seller exposto em todas as vitrines.

Como já diz o nome do livro, a autora refuta que uma adolescente possa consentir em uma relação sexual com homem maduro. Nesta entrevista ao Le Figaro que citei acima, confessa também que o logro não foi o amor do literato, e sim ter feito dela apenas uma a mais de sua série de conquistas.

"Notre passion extraordinaire aurait été sublime, c'est vrai, si j'avais été celle qui l'avait poussé à enfreindre la loi pour amour, si au lieu de cela, G. n'avait pas rejoué cette histoire cent fois tout au long de sa vie..."

Certamente toda a circunstância, envolta em nuances, suscita questões. Não tenho respostas. 

Por fim, se o pano de fundo da obra de Springora desperta o interesse por este conflito de épocas e atitudes, logo nas primeiras páginas fica patente que o texto vai muito além de um depoimento-denúncia. A autora escreve bem. Na sua curta narrativa, Vanessa conduz o leitor com suavidade pelas ausências da sua infância e do seu primeiro encontro com o escritor. 

Falando da edição, as páginas, a propósito, são poucas, as letras são grandes e o texto é espaçado. A capa é um equívoco. Em uma hora e meia, tempo de ver um filme, o livro é lido. Vanessa sai dele digna. Matzneff sai do tamanho que merece.

Não seria justo deixar passar que, no início dos anos 90, em um programa televisivo em que o autor compareceu para ser celebrado pelos participantes, a romancista canadense Denise Bombardier fez jus ao nome e atacou Matzneff com toda a virulência de que foi capaz, ao vivo e em cores. Disse, com todas as letras, que literatura não era salvo-conduto para ele se jactar de deflorar adolescentes. O autor, cheio de melindres, saiu pela tangente.

(Você encontra um trecho do vídeo em https://www.ina.fr/video/I19358012/polemique-sur-le-comportement-de-gabriel-matzneff-vis-a-vis-des-jeunes-filles-video.html e também um trecho menor no twitter do Ina.)

G. privou V. da inocência da adolescência. V., ao descortinar o passado, privou G. da posteridade.

Verus Editora, 191 páginas

"Os dias mais intensos", por Rosangela Moro


Para alegria do lulopetismo, do bolsonarismo, do Centrão e dos políticos em geral, a Lava Jato acabou. Após seis anos e meio de operações da força-tarefa, 79 fases, 1.450 mandados de busca e apreensão, 211 conduções coercitivas, 132 mandados de prisão preventiva e 163 mandados de prisão temporária (que embasaram 130 denúncias contra 533 acusados, gerando 278 condenações sobre 174 condenados, totalizando 2.611 anos de pena), a força-tarefa foi desmontada pelo governo. A operação provocou a devolução por parte dos condenados de R$ 4,3 bilhões via acordos de colaboração e ainda R$ 15 bilhões devolvidos aos cofres públicos, oriundos de 17 acordos de leniência. As provas obtidas e compartilhadas com outros órgãos (TCU, AGU, Receita Federal etc) propiciaram a descoberta de outros crimes e ações ilícitas. A  Receita Federal, com base no apurado, realizou lançamentos tributários que ultrapassaram R$ 22 bilhões. Tudo isso agora é História.

Um dos 174 condenados (em segunda instância pelo TRF-4, que aumentou as penas aplicadas pela primeira instância), o ex-presidente Luís Inácio da Silva, principal ativo do Partido dos Trabalhadores, liderou uma ampla campanha de ataque à operação. Ele, que minimizou os crimes de inúmeros políticos pegos em flagrante, alegando que o julgamento deles cabia à Justiça, não aprovou quando esta mesma Justiça o julgou por ocultação de patrimônio. Foram duas condenações: a primeira por dissimulação da propriedade de uma cobertura de 3 andares no Guarujá e a segunda pela posse camuflada de um sítio em Atibaia, registrado em nome de laranjas.

O político, ignorando as provas, testemunhos e evidências que conduziram à sua condenação, optou por confrontar a decisão unânime dos quatro magistrados. Atacou pessoalmente quem o condenou e ainda opera para invalidar etapas do processo, tentando desqualificar não as provas, mas o juiz. Como é comum entre traficantes e mafiosos, que ameaçam (e vez por outra matam) magistrados que não se intimidam com seu poder, o ex-presidente do Brasil no período 2003-2010 voltou todas as suas baterias contra o juiz que simbolizava a operação contra a corrupção.

A artilharia se manteve ativa antes e durante as audiências, antes e depois das condenações, persistiu durante a prisão e também após sua soltura antecipada - que se deu por conta da reversão pelo STF da lei que determinava o cumprimento de prisão após a condenação em segunda instância.

Importante lembrar que a terceira instância não analisa o mérito da condenação, apenas detalhes burocráticos do processo: se os carimbos estão todos lá, se as folhas foram grampeadas em ordem etc. Assim, se valendo dos caros recursos processuais, uma banca bem remunerada de advogados pode estender o processo até que a condenação prescreva, mantendo o criminoso livre.

O ataque ao juiz responsável pela operação foi orquestrado com ofensivas coordenadas pelas redes sociais de apoio ao político, blogs chapa-branca e trendings topics artificiais insufladas por robôs, a maior parte financiada com verba desviada do dinheiro público. Este tipo de operação demanda alto investimento, mas entrega resultado. O público-alvo é cativo, engajado e repercute imediatamente as informações recebidas. Com isso, o ataque à reputação é uniforme, disseminado e eficaz.

A operação e a condenação, já em 2018, polarizaram o país. O lulopetismo, que tinha o monopólio das manifestações de rua e do ativismo agressivo no universo virtual, começou a sofrer a concorrência de grupos que adotaram armas semelhantes. Os movimentos de resistência à hegemonia lulopetista no Planalto, vitoriosa nas quatro eleições presidenciais acontecidas no Brasil no terceiro milênio, eram inspirados pelo juiz de Curitiba - ou, ao menos, se valiam da sua imagem.

Este mesmo juiz foi convidado por Jair Bolsonaro (que, esfaqueado ao vivo, venceu na última eleição o candidato de Lula) a assumir o Ministério da Justiça. Mal seu mandato começou, entrou em rota de colisão com o novo presidente, por se recusar a envolver o Ministério e a Polícia Federal na blindagem de um esquema de rachadinhas - esquema que em um passado recente teria sido comandado pelo então deputado Flávio Bolsonaro. De acordo com o inquérito em andamento, o filho do presidente lavava o dinheiro desviado na compra e venda de imóveis e também na sua franquia da Kopenhagen (vendida semana passada, de acordo com o noticiário).

Noves fora outras miudezas e atritos, o ministro e ex-juiz deu um basta definitivo quando da imposição goela abaixo de um novo diretor da Polícia Federal. O cargo era prerrogativa do titular do ministério, mas o presidente anunciou que iria realizar o seu desejo antigo e nomear alguém para quem pudesse telefonar e que não perseguisse os seus filhos e os seus amigos.

O ex-juiz se demitiu do cargo, já em meio a uma avalanche de ataques coordenados pelas redes sociais bolsonaristas, blogs chapa-branca e trendings topics artificiais insufladas por robôs, tudo isso com farto uso de verba desviada do dinheiro público. Repetindo timtim-por-timtim o que disse acima, o público-alvo é cativo, engajado e repercute imediatamente as informações recebidas. Com isso, o ataque à reputação é uniforme, disseminado e eficaz.

Vale um parêntesis. O cidadão brasileiro conectado às redes sociais reflete pouco sobre as mensagens que retransmite. Ele se imbui do sentimento de ser um soldado virtual do carismático da sua simpatia (no caso, Lula ou Bolsonaro), e ataca o rival eleitoral do seu ídolo. Por isso, as ofensivas cibernéticas são um investimento bastante rentável, ainda que duplamente ilegais - primeiro, por se valerem de mentiras e calúnias disfarçadas de fatos reais (as chamadas fake news) e, segundo, por serem financiadas por dinheiro público desviado.

Ao fim, no sepultamento da Lava-Jato o mérito foi para Jair Bolsonaro. Embora o ex-presidente Lula tenha concentrado toda a força do partido e da militância no projeto Lula Livre, apoiado em hashtags e centenas de chicanas jurídicas, o político bem-sucedido na articulação de desmonte da operação Lava-Jato foi o atual ocupante do poder, em uma ação coordenada que envolveu o Supremo, a Procuradoria Geral da República e o Congresso (como amplamente divulgado pela mídia).

O PGR indicado por Bolsonaro, Augusto Aras, que mesmo antes da sua indicação (inusitada, pois foi a primeira vez nas últimas décadas que um presidente escolheu um nome fora da lista tríplice, optando por um procurador da sua simpatia pessoal) já dava entrevistas questionando a Lava-Jato, abriu inquérito para investigar o ex-ministro assim que este desembarcou do governo.

Em resumo, Sergio Moro, o alvo de ataques dos dois atuais peso-pesados eleitorais, em pouco mais de seis anos enfrentou três presidentes. Prendeu o primeiro, expôs a segunda e denunciou o terceiro. Casado e com dois filhos, sua esposa, a advogada Rosangela Moro, lançou um livro após o marido estar oficialmente desempregado, cumprindo quarentena pandêmica e governêmica - data venia mestre Odorico Paraguaçu.

Chegou às livrarias no fim do ano passado e já o li - e posso dizer que é mais um manifesto do que um livro. É uma tomada de posição, um registro público sobre algumas circunstâncias políticas em que o ex-juiz de Curitiba esteve presente. É sobretudo uma declaração de princípios.

Rosangela se vale do livro para pontuar passagens da carreira de Moro, sua formação e seu caráter. Dá mostras da proverbial intransigência rude do ex-juiz, como quando ela, por conta de um lançamento errado no controle de frequência que a deixava a uma falta da reprovação, foi explicar a questão ao professor interino, um tal de Moro. Recebeu na lata: "Prezada, é só não faltar mais".


Se refere a fatos já bastante conhecidos da trajetória profissional de Sergio Moro, como quando da conversão da Vara Federal de Curitiba em uma vara especializada em crimes contra o sistema financeiro nacional e em lavagem de dinheiro - e o julgamento do caso das contas CC5 do Banestado. Este processo - e como ele dez anos depois iria desaguar no Range Rover Evoque dado pelo doleiro Alberto Youssef ao diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa - é narrado em minúcias no livro "Lava Jato", do jornalista Vladimir Neto, que você encontra aqui no blog. 

Como esperado, ela não se furta a falar diretamente da Lava Jato: "Iniciada em março de 2014 para investigar movimentações de doleiros, acabou revelando o grande esquema de corrupção que causou prejuízo bilionário a uma empresa estatal que, soube-se mais tarde, estava toda aparelhada por dirigentes partidários, parlamentares e ex-ministros, com o envolvimento de executivos de empreiteiras de grande porte". Ela não menciona o nome da estatal, mas a ação criminosa é (também) detalhadamente descrita em "Petrobras, orgulho e vergonha", da jornalista Roberta Paduan. E você (também) encontra o livro aqui no blog.

Rosangela descreve o padrão de relacionamento dentro das esferas de poder em Brasília: "A velha política usa a sua própria régua para medir os demais, e mede errado quando o faz em relação às pessoas alheias a tudo isso. A Brasília ligada aos poderes parece viver em uma 'bolha' na qual as pessoas são avaliadas pela sua própria verdade". Ela lamenta que as melhores pessoas que poderiam estar na política "não se dispõem a sair de suas zonas de conforto para tentar mudar 'o mecanismo".

Ao "O mecanismo" propriamente dito, a série de José Padilha, ela também se refere, e ainda comenta o filme "Polícia Federal: a lei é para todos", ambas obras de ficção em que há personagens inspirados em Sergio Moro. Assente com uma cena do longa em que Moro despacha processos do seu tablet, na cama, a altas horas da noite, enquanto Rosangela dorme: "Muitas noites ele passou em claro". Já "O mecanismo" ela assistiu só até o terceiro episódio: "Achei tudo fantasioso".

Fala também dos ataques pessoais que sofreu por conta do seu trabalho para a Apae - mais precisamente, para a Federação das Apaes do Estado do Paraná, para quem começou a trabalhar em 2009. Das ameaças físicas que impuseram que a família se locomovesse somente sob a proteção de escolta e também das incessantes pressões virtuais: "As ofensas e ataques vêm de forma direta ou por intermédio de interlocutores. Geralmente, são pessoas escondidas em perfis com pseudônimos ou jornalistas excomungados de veículos de imprensa, mas ainda na ativa em seus blogs de conteúdo e financiamento duvidosos".

Não há no livro, entretanto, confidências nem ataques - até porque é sobretudo um livro de defesa. Dos valores, dos princípios e das crenças dos Moro.

Vale ainda revelar que Rosangela Moro, na maior parte do tempo sisuda, às vezes libera um certo perfil "leoa", com garras afiadas na direção dos detratores do marido. Se houve um momento em que ela perdeu a compostura foi quando, sem citar nomes, ironiza Lula - "[Em Curitiba] tratamos bem os visitantes, todos, mesmo os encarcerados" - e Gilmar Mendes - "Moro raramente dava entrevistas. Diferentemente de outras autoridades, que se dizem imparciais, Moro falava nos autos".

Fora isso, ela apenas reafirma que a política não interessa ao marido. Compreensível. Em recíproca, parece que a maioria dos brasileiros não tem mais interesse em Sergio Moro - ainda que "maiorias" não sejam necessariamente capazes de fazer a avaliação mais sagaz. Quase nunca, aliás.

Em agosto de 1934, o idolatrado chanceler Adolf Hitler, há um ano e meio no poder, promoveu um plebiscito que o elevaria a Führer e ampliaria seus poderes à frente do Estado. Recebeu 39,5 milhões de votos favoráveis e apenas 4,3 milhões de votos contrários. Nos anos seguintes lançaria a nação em uma guerra que mataria milhões de alemães, conduziria um genocídio, arruinaria o país, se suicidaria e deixaria metade da Alemanha sob domínio soviético por meio século.

E você? Se não soubesse o futuro e fosse alemão em 1934, escutando os discursos megalomaníacos de Hitler, estaria com a maioria dos 90% ou com a minoria dos 10%?

Editora Planeta, 143 páginas

Obs.: Nos próximos dias, a Segunda Turma do Supremo pode vir a anular a condenação de Lula, em decisão que, por extensão, invalidará todas as condenações da Lava-Jato. O voto desempate caberá ao juiz do Bolsonaro, a quem ele chama "nosso Kassio". E aí vem outra pergunta, não retórica, mas real - se são todos inocentes, o governo deverá depositar os R$ 4,3 bilhões já devolvidos na conta dos corruptos?