"Os dias mais intensos", por Rosangela Moro

domingo, fevereiro 07, 2021 Sidney Puterman


Para alegria do lulopetismo, do bolsonarismo, do Centrão e dos políticos em geral, a Lava Jato acabou. Após seis anos e meio de operações da força-tarefa, 79 fases, 1.450 mandados de busca e apreensão, 211 conduções coercitivas, 132 mandados de prisão preventiva e 163 mandados de prisão temporária (que embasaram 130 denúncias contra 533 acusados, gerando 278 condenações sobre 174 condenados, totalizando 2.611 anos de pena), a força-tarefa foi desmontada pelo governo. A operação provocou a devolução por parte dos condenados de R$ 4,3 bilhões via acordos de colaboração e ainda R$ 15 bilhões devolvidos aos cofres públicos, oriundos de 17 acordos de leniência. As provas obtidas e compartilhadas com outros órgãos (TCU, AGU, Receita Federal etc) propiciaram a descoberta de outros crimes e ações ilícitas. A  Receita Federal, com base no apurado, realizou lançamentos tributários que ultrapassaram R$ 22 bilhões. Tudo isso agora é História.

Um dos 174 condenados (em segunda instância pelo TRF-4, que aumentou as penas aplicadas pela primeira instância), o ex-presidente Luís Inácio da Silva, principal ativo do Partido dos Trabalhadores, liderou uma ampla campanha de ataque à operação. Ele, que minimizou os crimes de inúmeros políticos pegos em flagrante, alegando que o julgamento deles cabia à Justiça, não aprovou quando esta mesma Justiça o julgou por ocultação de patrimônio. Foram duas condenações: a primeira por dissimulação da propriedade de uma cobertura de 3 andares no Guarujá e a segunda pela posse camuflada de um sítio em Atibaia, registrado em nome de laranjas.

O político, ignorando as provas, testemunhos e evidências que conduziram à sua condenação, optou por confrontar a decisão unânime dos quatro magistrados. Atacou pessoalmente quem o condenou e ainda opera para invalidar etapas do processo, tentando desqualificar não as provas, mas o juiz. Como é comum entre traficantes e mafiosos, que ameaçam (e vez por outra matam) magistrados que não se intimidam com seu poder, o ex-presidente do Brasil no período 2003-2010 voltou todas as suas baterias contra o juiz que simbolizava a operação contra a corrupção.

A artilharia se manteve ativa antes e durante as audiências, antes e depois das condenações, persistiu durante a prisão e também após sua soltura antecipada - que se deu por conta da reversão pelo STF da lei que determinava o cumprimento de prisão após a condenação em segunda instância.

Importante lembrar que a terceira instância não analisa o mérito da condenação, apenas detalhes burocráticos do processo: se os carimbos estão todos lá, se as folhas foram grampeadas em ordem etc. Assim, se valendo dos caros recursos processuais, uma banca bem remunerada de advogados pode estender o processo até que a condenação prescreva, mantendo o criminoso livre.

O ataque ao juiz responsável pela operação foi orquestrado com ofensivas coordenadas pelas redes sociais de apoio ao político, blogs chapa-branca e trendings topics artificiais insufladas por robôs, a maior parte financiada com verba desviada do dinheiro público. Este tipo de operação demanda alto investimento, mas entrega resultado. O público-alvo é cativo, engajado e repercute imediatamente as informações recebidas. Com isso, o ataque à reputação é uniforme, disseminado e eficaz.

A operação e a condenação, já em 2018, polarizaram o país. O lulopetismo, que tinha o monopólio das manifestações de rua e do ativismo agressivo no universo virtual, começou a sofrer a concorrência de grupos que adotaram armas semelhantes. Os movimentos de resistência à hegemonia lulopetista no Planalto, vitoriosa nas quatro eleições presidenciais acontecidas no Brasil no terceiro milênio, eram inspirados pelo juiz de Curitiba - ou, ao menos, se valiam da sua imagem.

Este mesmo juiz foi convidado por Jair Bolsonaro (que, esfaqueado ao vivo, venceu na última eleição o candidato de Lula) a assumir o Ministério da Justiça. Mal seu mandato começou, entrou em rota de colisão com o novo presidente, por se recusar a envolver o Ministério e a Polícia Federal na blindagem de um esquema de rachadinhas - esquema que em um passado recente teria sido comandado pelo então deputado Flávio Bolsonaro. De acordo com o inquérito em andamento, o filho do presidente lavava o dinheiro desviado na compra e venda de imóveis e também na sua franquia da Kopenhagen (vendida semana passada, de acordo com o noticiário).

Noves fora outras miudezas e atritos, o ministro e ex-juiz deu um basta definitivo quando da imposição goela abaixo de um novo diretor da Polícia Federal. O cargo era prerrogativa do titular do ministério, mas o presidente anunciou que iria realizar o seu desejo antigo e nomear alguém para quem pudesse telefonar e que não perseguisse os seus filhos e os seus amigos.

O ex-juiz se demitiu do cargo, já em meio a uma avalanche de ataques coordenados pelas redes sociais bolsonaristas, blogs chapa-branca e trendings topics artificiais insufladas por robôs, tudo isso com farto uso de verba desviada do dinheiro público. Repetindo timtim-por-timtim o que disse acima, o público-alvo é cativo, engajado e repercute imediatamente as informações recebidas. Com isso, o ataque à reputação é uniforme, disseminado e eficaz.

Vale um parêntesis. O cidadão brasileiro conectado às redes sociais reflete pouco sobre as mensagens que retransmite. Ele se imbui do sentimento de ser um soldado virtual do carismático da sua simpatia (no caso, Lula ou Bolsonaro), e ataca o rival eleitoral do seu ídolo. Por isso, as ofensivas cibernéticas são um investimento bastante rentável, ainda que duplamente ilegais - primeiro, por se valerem de mentiras e calúnias disfarçadas de fatos reais (as chamadas fake news) e, segundo, por serem financiadas por dinheiro público desviado.

Ao fim, no sepultamento da Lava-Jato o mérito foi para Jair Bolsonaro. Embora o ex-presidente Lula tenha concentrado toda a força do partido e da militância no projeto Lula Livre, apoiado em hashtags e centenas de chicanas jurídicas, o político bem-sucedido na articulação de desmonte da operação Lava-Jato foi o atual ocupante do poder, em uma ação coordenada que envolveu o Supremo, a Procuradoria Geral da República e o Congresso (como amplamente divulgado pela mídia).

O PGR indicado por Bolsonaro, Augusto Aras, que mesmo antes da sua indicação (inusitada, pois foi a primeira vez nas últimas décadas que um presidente escolheu um nome fora da lista tríplice, optando por um procurador da sua simpatia pessoal) já dava entrevistas questionando a Lava-Jato, abriu inquérito para investigar o ex-ministro assim que este desembarcou do governo.

Em resumo, Sergio Moro, o alvo de ataques dos dois atuais peso-pesados eleitorais, em pouco mais de seis anos enfrentou três presidentes. Prendeu o primeiro, expôs a segunda e denunciou o terceiro. Casado e com dois filhos, sua esposa, a advogada Rosangela Moro, lançou um livro após o marido estar oficialmente desempregado, cumprindo quarentena pandêmica e governêmica - data venia mestre Odorico Paraguaçu.

Chegou às livrarias no fim do ano passado e já o li - e posso dizer que é mais um manifesto do que um livro. É uma tomada de posição, um registro público sobre algumas circunstâncias políticas em que o ex-juiz de Curitiba esteve presente. É sobretudo uma declaração de princípios.

Rosangela se vale do livro para pontuar passagens da carreira de Moro, sua formação e seu caráter. Dá mostras da proverbial intransigência rude do ex-juiz, como quando ela, por conta de um lançamento errado no controle de frequência que a deixava a uma falta da reprovação, foi explicar a questão ao professor interino, um tal de Moro. Recebeu na lata: "Prezada, é só não faltar mais".


Se refere a fatos já bastante conhecidos da trajetória profissional de Sergio Moro, como quando da conversão da Vara Federal de Curitiba em uma vara especializada em crimes contra o sistema financeiro nacional e em lavagem de dinheiro - e o julgamento do caso das contas CC5 do Banestado. Este processo - e como ele dez anos depois iria desaguar no Range Rover Evoque dado pelo doleiro Alberto Youssef ao diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa - é narrado em minúcias no livro "Lava Jato", do jornalista Vladimir Neto, que você encontra aqui no blog. 

Como esperado, ela não se furta a falar diretamente da Lava Jato: "Iniciada em março de 2014 para investigar movimentações de doleiros, acabou revelando o grande esquema de corrupção que causou prejuízo bilionário a uma empresa estatal que, soube-se mais tarde, estava toda aparelhada por dirigentes partidários, parlamentares e ex-ministros, com o envolvimento de executivos de empreiteiras de grande porte". Ela não menciona o nome da estatal, mas a ação criminosa é (também) detalhadamente descrita em "Petrobras, orgulho e vergonha", da jornalista Roberta Paduan. E você (também) encontra o livro aqui no blog.

Rosangela descreve o padrão de relacionamento dentro das esferas de poder em Brasília: "A velha política usa a sua própria régua para medir os demais, e mede errado quando o faz em relação às pessoas alheias a tudo isso. A Brasília ligada aos poderes parece viver em uma 'bolha' na qual as pessoas são avaliadas pela sua própria verdade". Ela lamenta que as melhores pessoas que poderiam estar na política "não se dispõem a sair de suas zonas de conforto para tentar mudar 'o mecanismo".

Ao "O mecanismo" propriamente dito, a série de José Padilha, ela também se refere, e ainda comenta o filme "Polícia Federal: a lei é para todos", ambas obras de ficção em que há personagens inspirados em Sergio Moro. Assente com uma cena do longa em que Moro despacha processos do seu tablet, na cama, a altas horas da noite, enquanto Rosangela dorme: "Muitas noites ele passou em claro". Já "O mecanismo" ela assistiu só até o terceiro episódio: "Achei tudo fantasioso".

Fala também dos ataques pessoais que sofreu por conta do seu trabalho para a Apae - mais precisamente, para a Federação das Apaes do Estado do Paraná, para quem começou a trabalhar em 2009. Das ameaças físicas que impuseram que a família se locomovesse somente sob a proteção de escolta e também das incessantes pressões virtuais: "As ofensas e ataques vêm de forma direta ou por intermédio de interlocutores. Geralmente, são pessoas escondidas em perfis com pseudônimos ou jornalistas excomungados de veículos de imprensa, mas ainda na ativa em seus blogs de conteúdo e financiamento duvidosos".

Não há no livro, entretanto, confidências nem ataques - até porque é sobretudo um livro de defesa. Dos valores, dos princípios e das crenças dos Moro.

Vale ainda revelar que Rosangela Moro, na maior parte do tempo sisuda, às vezes libera um certo perfil "leoa", com garras afiadas na direção dos detratores do marido. Se houve um momento em que ela perdeu a compostura foi quando, sem citar nomes, ironiza Lula - "[Em Curitiba] tratamos bem os visitantes, todos, mesmo os encarcerados" - e Gilmar Mendes - "Moro raramente dava entrevistas. Diferentemente de outras autoridades, que se dizem imparciais, Moro falava nos autos".

Fora isso, ela apenas reafirma que a política não interessa ao marido. Compreensível. Em recíproca, parece que a maioria dos brasileiros não tem mais interesse em Sergio Moro - ainda que "maiorias" não sejam necessariamente capazes de fazer a avaliação mais sagaz. Quase nunca, aliás.

Em agosto de 1934, o idolatrado chanceler Adolf Hitler, há um ano e meio no poder, promoveu um plebiscito que o elevaria a Führer e ampliaria seus poderes à frente do Estado. Recebeu 39,5 milhões de votos favoráveis e apenas 4,3 milhões de votos contrários. Nos anos seguintes lançaria a nação em uma guerra que mataria milhões de alemães, conduziria um genocídio, arruinaria o país, se suicidaria e deixaria metade da Alemanha sob domínio soviético por meio século.

E você? Se não soubesse o futuro e fosse alemão em 1934, escutando os discursos megalomaníacos de Hitler, estaria com a maioria dos 90% ou com a minoria dos 10%?

Editora Planeta, 143 páginas

Obs.: Nos próximos dias, a Segunda Turma do Supremo pode vir a anular a condenação de Lula, em decisão que, por extensão, invalidará todas as condenações da Lava-Jato. O voto desempate caberá ao juiz do Bolsonaro, a quem ele chama "nosso Kassio". E aí vem outra pergunta, não retórica, mas real - se são todos inocentes, o governo deverá depositar os R$ 4,3 bilhões já devolvidos na conta dos corruptos?

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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