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"O ouvidor do Brasil", por Ruy Castro


O livro reúne 99 crônicas escritas por Ruy Castro sobre Antônio Carlos Jobim. Noventa delas já foram publicadas em jornal - ele só as releu e adaptou. Outras nove ele escreveu especialmente para o livro.

Entre as noventa e nove, só pérolas. A fina flor da música. Não só a brasileira, não só a tocada pelos músicos. Porque, ao fim das contas, quem também fazia música de verdade eram os produtores. Eles é quem concebiam, investiam e lançavam os discos (e ficavam donos dos lucros, também).

A crônica sessenta e oito conta a história do maior disco de bossa nova produzido nos EUA - o icônico Getz/Gilberto. Quem os reuniu foi Creed Taylor, um americano de 33 anos que lançou diversos selos de jazz. O LP, além do cantor e do saxofonista título, tinha Tom Jobim ao piano (e autor de seis das oito músicas do álbum) e Astrud Gilberto, mulher do João. 

A propósito, ninguém sabia que madame Gilberto cantava. Por sugestão do marido, aproveitaram que ela tava ali de bobeira e a puseram para cantar "Girl from Ipanema". O resto é história. Se tornou uma das gravações mais tocadas de todos os tempos. Com o sucesso e sem João, Astrud se radicou nos EUA.

Mais rico que o produtor, diga-se de passagem, ficou o letrista da versão em inglês, o desconhecido (para nós) Norman Gimbel. Ruy nos fala dele na crônica setenta. Cada vez que a canção do Tom e do Vinícius foi tocada ou reimpressa mundo afora, ele faturava. Se apegou tanto à música, conta Castro, que a registrou como sua propriedade exclusiva, quando Tom morreu.

Tom ficou rico assim mesmo. Também, pudera. É o mais bem-sucedido compositor que o Brasil já produziu (ainda que sem o boom planetário do Michel Teló... by the way, alguém sabe dele?). Se era visto pela mídia tupiniquim como persona non grata (!) na virada dos 60 pros 70, nos anos 80 Tom Jobim se tornou unanimidade no país. Até garoto-propaganda da Brahma o ex-filho ingrato virou.

Na crônica trinta e quatro, Ruy nos conta que, de tão requisitado para opinar, ouvir, comparecer etc, Tom teria sussurrado a um amigo: "Olha, estou cobrando 100 mil para fazer um show. E 200 mil para assistir". O autor esclarece que não era soberba. E sim a incrível sensibilidade do ouvido do Tom. 

O maestro era capaz de identificar o pio de mais de uma centena de pássaros. A nona crônica nos revela que Tom piava (usando pios artesanais, de ipê ou bambu, fabricados em Cachoeiro do Itapemirim). E metia os pios na música. No álbum "Urubu", de 1975, a faixa "O boto" é, diz Castro, "uma sinfonia de pios". A relação era recíproca. Afirma Ruy que "os tico-ticos, jerebas e patos-pretos o entendiam". Não duvido nada.

"O ouvidor do Brasil" é um livro delicioso, uma pequena obra-prima. Quisera eu fossem duzentas, trezentas, mil estórias escritas pelo Ruy que falassem do Tom. Mas são só noventa e nove. Ops, cem.

É que uma última, a centésima, fui eu mesmo que escrevi. São os últimos parágrafos deste post. Você pode achar uma heresia, eu me meter entre dois monstros. Um da música, outro do texto. Você está certo. Mas a minha crônica é exatamente sobre isso. Eu no meio dos monstros.

Como música de fundo, "Tema de amor de Gabriela". 

Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Maestro, recebeu a incumbência de fazer a trilha-sonora do filme "Gabriela". Aquele com Marcello Mastroianni no papel do Nacib. Você já deve ter visto - e ouvido. Mas antes que você ou qualquer outro mortal no planeta tivesse a chance de escutar, Tom saiu pra jantar e pôs no bolso do paletó uma fita K-7. Nela estava a versão caseira na qual gravara, ao piano, a canção principal.

Era uma noite qualquer no início dos anos 80 no restaurante Plataforma, na fronteira entre Gávea e Leblon. O térreo era uma churrascaria sem charme e barulhenta. Na parte superior rolava o espetáculo de mulatas, típico engana-turista. Estávamos, Tom, eu e muitos outros, sentados à mesa, bebendo, depois de um lauto jantar que começara com o inigualável pão de queijo da casa (que eu, um moleque peladeiro esfomeado e duro, sempre comia às dezenas) e uma sucessão de lâminas rosadas de maminha, úmidas, fatiadas em bandejas de inox.

O maître era o Garrincha, uma versão miniatura da efígie do maior ponta-direita de todos os tempos. O dono era o Alberico Campana (que também ganhou uma crônica no livro), um italiano que chegou ao Rio em 1952 e se apaixonou por Dolores Duran - de quem se tornou amigo, sem jamais se declarar à baixinha.

O papo era descontraído, baboseiras aleatórias. Eu mal abria a boca, a não ser para comer (nisso eu superava todos os outros, com sobras). Estes jantares etílicos, regados a pipocas (como Tom pedia os chopes, em taças pequenas), tendiam a ser um Clube do Bolinha - mas vez por outra rolava uma Kate Lyra ou uma Lucinha Lins.

Eu adorava. Não era para menos. Como bem disse o Ruy, na sua crônica noventa e seis, "quem, vivo ou morto, não gostaria de conversar com o Tom?"

Nessa noite, Tom, já alguns graus acima, nos intimou a subir para o salão de shows. As mulatas já tinham ido embora (pena) e a passarela estava às escuras. O maestro mandou colocar no sistema de som da casa a fita com a trilha original. Em seguida, subiu, ele próprio, na pista suspensa, onde regeu a música e dançou, sozinho, para delírio da nossa plateia seleta, no lugar das passistas.

Tom rodopiava e fazia coro com a fita: "Gabrié-é-la... Gabrié-é-la..."

Há quem diga que ele estava bêbado e quase caiu. Calúnia. Finda a avant-premiére, descemos todos e fomos para a rua. Não tínhamos lá muita intimidade. Eu não era nem músico, nem artista, nem sequer contemporâneo. Eu era um intruso, amigo dos amigos dele. Mas dava para ele perceber meu fascínio de garoto, embasbacado, assistindo, em sessão privada, a canja da década.

Na calçada, já duas e tal da matina, Tom, ao se despedir de mim, me sapecou um beijo na bochecha.

Um dia eu tinha que contar. Pois é. Perdão, Mestre, mas "O beijo" é a centésima crônica. 

Companhia das Letras, 229 páginas  |  1a edição, 2024

"Resenha esportiva", por Nelson Motta


Nelson Motta lançou este seu bem-humorado almanaque em 2014. A capa chamava para as setes Copas do Mundo que assistiu in loco. Mas foram mais. E ainda rolaram umas duas olimpíadas.

O lançamento foi momentoso, véspera da Copa no Brasil. Eu só vim a lê-lo agora, na véspera de uma outra Copa, a do Qatar. De lá para cá, muito camelo atravessou o deserto. Seu texto, porém, é tão atual quanto o jornal que entregaram aqui em casa hoje de manhã.

Grande Nelsinho. Foi a todas, escutou de tudo e escreve muito.

Eu não fui a nenhuma e, pior, estou no estaleiro. Mas não reclamo. Desfruto da companhia (metafórica) de grandes craques lesionados, como Pogba, Lo Celso, Benzema e agora o Neymar.

Assim, de molho, me restam (oba!), ler e assistir (todos) os jogos da Copa. Que chato, ehm?

Como o prazer do ócio não se resume à telinha, pincei - entre outros livros para ler com a mão esquerda - este "Resenha". Boa escolha. Acompanhando as aventuras do jornalista desde 1966, na Copa da Inglaterra, ampliei minhas memórias músico-boêmio-esportivas e matei a saudade de jogos que vi, jogados em estádios em que não fui.

Já o Nelsinho estava lá, bebeu todas e comeu bem, ainda que quanto ao próprio cardápio ele se mantenha reservado. Mas deixa escapar estrepulias doutrém.

"Após a final consagradora", segreda Nelsinho sobre o tri, "numa festa de celebração da vitória na suíte presidencial de um dos hotéis mais chiques da Ciudad del Mexico, vi várias grã-finas cariocas disputando para ver quem dava para Jairzinho e Paulo Cézar Caju".

Dá-lhe Furacão. O tricolor, órfão de craques antológicos, se rendeu ao poder de fogo do ataque botafoguense. Mas parou por aí. "Não se sabe quem comeu quem", escanteia. Não tinha VAR.

Dezesseis anos depois, mais uma vez no México, Nelsinho testemunhou outra grande sacanagem à brasileira. No jogo Brasil x Espanha, o árbitro anulou um gol legítimo dos espanhóis e validou um gol ilegal do Brasil. O latrocínio foi para a primeira página dos jornais de Madri.

"Árbitro derrotou a Espanha - Havelange, o jogador número 12". Jean-Marie Faustin Goedefroid Havelange, o único sujeito que eu conheço que é ex-nome de estádio.

Os brazucas foram celebrar a vitória injusta bebendo. Para você fazer ideia de quanto os bares mexicanos demoravam para atender a clientela, o escritor João Ubaldo subiu na mesa e propôs a importação de garçons baianos.

Segundo o Nelsinho, lá, quando o garçom respondia "ahorita", era coisa de 45 minutos.

A putaria tupiniquim na Copa era federada. "A cartolagem brasileira, presente com suas acompanhantes", revelava o jornalista, "é tida como a nata do lixo nacional".

Sexo e futebol foram pauta também na Copa seguinte, na Itália. Motta registrou o texto da escritora Mariella Alberni, no La Notte:

"Se o blecaute de Nova York fez explodir o número de bebês nascidos nove meses depois, a Copa do Mundo seguramente incrementa de modo notável a quantidade de cornuti entre os esportivíssimos maridos e namorados italianos".

Eu, ehm. Que autora desabrida.

Nelson admite que o jornalista na Copa é um torcedor disfarçado de bóia fria. "A verdade é que viemos aqui para torcer e nossos textos são pretextos, apenas um preço que se paga pelo privilégio do testemunho".

Um trabalho sofrido. "Na manhã da partida decisiva, depois de uma noite mal dormida, enfrento o suplício dos suplícios, compartilhado por tantos colegas desesperados de ânsia e desinteressados de tudo que não seja o jogo: escrever minha crônica dos ansiados acontecimentos". Nelsinho gemia e balbuciava: "Pobres leitores."

Nesta Copa de 90, o pesadelo finalizou com o passe de Maradona para o arremate de Caniggia.

O jornalista criou um alter ego, um colega italiano comuna, pela boca de quem fez uma releitura da nossa epopéia recente.

"O velho comuna acha, com razão e sem gozação, que pelo menos tudo foi muito coerente em nossa derrocada. E fez a crônica da derrota anunciada: a  moratória, o cruzado, o fisiologismo desvairado da era sarneysiana, a desmoralização das instituições, o desvario collorido."

Reproduzi o trecho para a gente constatar, no presente, que, no passado, o Brasil já era isso que se vê agora. A diferença é que as novas gerações aprimoraram o que já era muito ruim. Aí ficou pior.

Melhor é que ganhamos a Copa seguinte, nos Estados Unidos, em 1994. Aos trancos e barrancos, segundo o jornalista, e brilhantemente, segundo a mídia mundial. Após a magra vitória de 1x0 sobre os norte-americanos, Motta se queixa.

"Ganhamos o jogo, tá tudo muito bom, tá tudo muito bem, mas venhamos e convenhamos, tem alguma coisa esquisita, muito esquisita nessas duas seleções brasileiras: a que a gente vê jogar e a que o resto do mundo diz que está jogando."

Nestas horas todo brasileiro é botafoguense. Geral mergulha na nostalgia dos craques do passado, das conquistas das copas de 1958, 1962 e 1970. Mas quem vive de passado é museu.

"A que a gente vê não empolga, não emociona, é defensiva, amarrada, medíocre e, não fosse pelos gols de vitoriosos e alguns brilhos individuais de Romário e Bebeto, quase nunca desperta orgulho e paixão". Nelson contrapõe que "essa outra seleção que os estrangeiros vêem jogar é considerada a melhor da Copa".

Motta deu os números. "Entre 50 jornalistas estrangeiros de primeiro time, nada menos que 46 acham o Brasil o melhor time". Segundo o jornalista, os gringos chamavam aquela seleção do Parreira de "dream team".

Bem, vendo pelo lado positivo, em 2022 não difere tanto assim. Somos os favoritos da mídia. Vamos ver se vai dar bom.

Sem dúvida, deu bom na épica trajetória do Nelsinho Motta copas afora. Se em Sevilha, na Copa da Espanha, ele e Fagner rodaram madrugada afora atrás de Paco de Lucia e Camarón de la Isla (em vão), em Londres botou os pulmões pra fora do peito, e cantou com a brasileirada dentro do tube, o metrô londrino.

"Tristeza, por favor vá embora, minha alma que chora..."

Sem contar que fez coro com a torcida canarinho em Mendoza, na Copa da Argentina, entoando "hei, hei, hei, Jorge Mendonça é o nosso rei". O que, convenhamos, não dá pra orgulhar ninguém.

Escapou desta copa de agora, dos sheiks e petrodólares, sem mulheres nem bebidas, mas ainda assim trouxe à tona uma viagem do passado à região desértica.

"Durante uma excursão da seleção brasileira pela Europa, depois de 10 dias áridos na Arábia Saudita, o time e mais de 100 jornalistas desembarcaram felizes em Hamburgo", se assanhou o escritor. "Álcool, mulheres e música - exatamente tudo que não havia em Jidá".

O relato não parou por aí. "Porno shops, cinemas, mulheres na vitrine, o pessoal foi endoidando. Sauna mista. Todo mundo nu". Atente que estávamos na década de 70. "Na sauna, entre belas louras e alguns companheiros, o intrépido radialista Beltrão Júnior procurava aparentar naturalidade".

"Era uma sauna família", explica o Nelson, "com casais, pais, liberais, nus e naturais". Certo momento, "uma simpática avozinha pede a Beltrão que lhe passe um creme hidratante nas costas". O gentil radialista "percorre com a mão durante alguns segundos aquela superfície alva e roliça e de repente ejacula incontrolavelmente nas costas da frau".

Eu não consigo nem imaginar este momento assaz viril do nosso jornalismo. Diz Nelsinho que Beltrão ganhou a alcunha de "O Monstro de Hamburgo". Se non é vero, e ben trovato.

Em todo lugar jornalista, Nelsinho escreveu. Nem sempre é fácil como parece.

"Sozinho de novo no quarto, retomo a escrita", diz, confessando que "leio e releio varias vezes, à procura de passagens que possam me comprometer e envergonhar depois". Agonia solitária de quem escreve, seja para um milhão, seja para si mesmo.

Via de regra, o euzinho mesmo é mais crítico do que os outros 999.999.

Não obstante, graças ao que pôs no papel, pôde fazer esse copia-e-cola d'antanho pra faturar um qualquer no mercado editorial do terceiro milênio. Justo e meritório. Um bom registro.

Bem, "bom registro" é pouco. Porque, de boa, que vida teve esse Nelsinho Motta. Coadjuvante do auge de talentos siderais de um dos países mais musicais do mundo, o cara se divertiu em quase uma dúzia de Copas do Mundo e foi escriba de todas elas. Que dizer? Mermão, tirou onda.

"Como uma onda no mar", cantarolou. Mas aí já são outros mares.

Editora Benvirá, 215 páginas  |  1a edição, 2a tiragem  |  Copyright 2014

"O negro no futebol brasileiro", por Mario Filho


"O negro no futebol brasileiro" é um título lendário. Pedra fundamental do edifício da memória, num país desmemoriado. Proporciona ao leitor um mergulho arqueológico na história do futebol carioca e, por extensão, do esporte nacional. Um verdadeiro tesouro.

Sua primeira edição é de 1947 (com acréscimos, ressalto, onde o derradeiro deles data de 1963) e foi originalmente publicado em jornal. Assim, neste primeiro formato, as colunas se estenderam por meses. A concepção, adequada para a época, se caracterizava pelos parágrafos curtos. A prosódia tendia para um certo lirismo, consoante com o que de melhor se fazia então. Avançando pelos capítulos, hoje a gente estranha. Mas são cacoetes do tempo.

Antecipo que o estilo implicou em uma onipresente carga de redundância, recurso que soa anacrônico quando se consome uma narrativa histórica. Tudo que é dito uma vez, é dito novamente, e talvez uma terceira. Por isso, a mim pareceu que os blocos de texto dispõem o conteúdo em espiral, sempre revisitando o tema-base à medida em que se apresentam. É uma combinação que deixa a leitura meio que um guaraná Jesus: icônica, mas enjoada.

Ou, sei lá, talvez o enjoado seja eu, que ouso achar defeitos em um sarcófago literário.

A edição que comprei veio em 330 páginas e cada uma delas traz, em média, quatro a seis parágrafos, quando não sete, ou oito. Uma disposição arquitetada para atender tanto ao leitor bissexto, como aquele mais comprometido com a sequência de artigos.

A estrutura provoca uma linha narrativa encaroçada quando reproduzida no formato livro. É que ingerir 2.500 parágrafos sintéticos, em sequência, sobre temas extensos, gera o efeito contrário do que você lê aqui (copyright Ana Verçoza & Vitor Sznejder, eles vão entender).

Os mais velhos, que chegaram a escutar o "Você sabia?", da Rádio Relógio (ehm??? vai no Google, garotada!), podem fazer uma ideia desta longa história contada aos soluços. Pois é. Com isto, esta pérola da literatura esportiva brasileira às vezes dá uma engasgada. O ranzinza aqui acha que, por força do formato, o denso ganha um contorno superficial, anedótico.

Mas a essência, ressalto, é poderosa. Vamos a ela.

Antes de mais nada, vale destacar que o "negro" que encabeça o título é participante ativo do relato, mas nem sempre é o protagonista do conteúdo. A estrela do livro é o surgimento e o crescimento do futebol como entretenimento popular, onde o negro foi ganhando participação maior à medida em que os anos avançaram - e a prática do jogo de bola, no início restrito aos estrangeiros e à elite branca, pouco a pouco foi se disseminando pela população como um todo.

Na prática, o título fornece um verniz acadêmico à leitura, que entrega sua matéria-prima diluída entre a narrativa do jogo, dos clubes e dos campeonatos. E faz, com maestria, uma saborosa crônica de costumes do Rio de Janeiro do início do século 20.

Quanto à abordagem das questões raciais que envolviam a participação do atleta negro no universo futebolístico, muitas das observações do livro sobre o racismo da época seriam elas mesmas consideradas racistas, hoje - o que prova como o tema é sensível ao contexto da ocasião. A partir desta premissa, um grande número de frases de Mario Filho sobre a resistência da aceitação social do negro teriam que ser reescritas.

Quando Leônidas da Silva - o "inventor" da bicicleta, o Diamante Negro, o primeiro grande craque brasileiro midiático - refugou a ida para o América, em 1931, após ter assinado a ficha de inscrição no novo clube, a diretoria "da instituição" não economizou na retaliação:

"Aquele moleque, aquele preto sem-vergonha, aquele negro sujo. Negro quando não caga na entrada, caga na saída."

O próprio jogador, ainda uma revelação promissora, contemporizou, na resposta ao repórter de O Globo: "Qual o jogador de cor que vindo de fora brilhou no América? O elemento de cor que entra num grande clube nunca é bem recebido."

Mas a torcida do clube da Tijuca não deixou por menos e preferiu ecoar as palavras do dirigente. No primeiro jogo em que enfrentou Leônidas, que jogava pelo Bonsucesso, o torcedor berrava no alambrado: "Moleque, preto sem-vergonha, negro sujo".

Sabemos que foi assim, e que era assim, há até bem pouco tempo. Mas, por mais relevante que seja não podar o registro histórico, a reprodução crua desce queimando a garganta.

Mario Filho vai aos primórdios para contar sua história: "Futebol era jogo de branco. Nenhum clube com um mulato, um preto no time, tinha sido campeão de 6 a 22. Só o escrete brasileiro, com Friedenreich. Friedenreich, porém, tinha pai alemão, não queria ser mulato."

Não que já não se percebesse o talento natural do negro para a prática do futebol. Mas o esporte ainda era uma prática da elite. "O mulato e o preto eram, aos olhos dos clubes finos, uma arma proibida", explica o jornalista. "Se nenhum grande clube puxasse a navalha, os outros podiam continuar lutando de florete."

Grandes, então, eram o Botafogo, o Fluminense, o Flamengo e o América. O Vasco, recém chegado da segunda divisão, não estava entre eles; e, portanto, tinha pretos. "O clube da colônia seguia a boa tradição portuguesa da mistura", explica Mario. Mas ressalta que "o Vasco não fazia pretos: para o preto entrar no Vasco tinha que já ser bom jogador. Entre um branco e um preto, os dois jogando a mesma coisa, o Vasco ficava com o branco. O preto era para a necessidade, para ajudar o Vasco a vencer."

O Vasco, pragmático, furou o monopólio dos tais grandes ao bancar que seus jogadores - de origem mais humilde - vivessem em função do futebol. A portuguesada queria ganhar, financiava seu elenco e fazia deles atletas, ou o mais próximo disso. Concentração, comida regrada, treinos físicos. Já os dândis dos clubes grandes viviam na noite, jantavam bifes no Lamas às três da manhã.

A torcida rubro-negra não gostava de ver seu time de pele clara ser confrontado por um bando de sujeitos sem origem e de cabelo ruim. Disputar, tudo bem, mas perder era uma afronta a ser resolvida na porrada. Se hoje há quem ache o futebol violento, ia se espantar com o equipamento dos remadores do Flamengo na arquibancada, torcendo pelo time de futebol. "Os remadores segurando as pás de remo", segundo o autor, "a ordem era só meter pá de remo na cabeça de português depois que o jogo começasse".

Ah, a candura da velha guarda.

Volta e meia o autor nos lembra que nestes tempos d'antanho o buraco era mais embaixo. Ir torcer nos estádios dos subúrbios cariocas era uma experiência marcante. "Quando um Fluminense, um Flamengo, um Botafogo ou até mesmo um Vasco tinha de ir a Figueira de Melo", esclarece Mario Filho, "preparava-se como se fosse jogar em Bangu. O torcedor lá de cima esperava que o torcedor da cidade tomasse o trem para atirar a primeira pedra. Havia o recurso de deitar-se no vagão, de cobrir a cabeça com as mãos. Quem entrava lá tinha de sair pelo corredor, os torcedores do São Cristóvão de um lado e de outro, brandindo bengalas e pedaços de pau."

Voltando, porém, ao tal jogo em questão, o Flamengo vencia por 3x2 quando um chute pareceu ter cruzado a linha. Para muitos, a bola do empate teria entrado, mas o VAR da época era o olhômetro e o juiz não marcou o gol do Vasco. "Aí os vascaínos da arquibancada não quiseram saber de mais nada, de pá de remo na cabeça, fosse o que fosse. Sururus explodiam, aqui e ali, como pipocas. Soldados corriam de sabre desembainhado, a cavalaria invadiu o campo. Não adiantava brigar, o Flamengo tinha que vencer, custasse o que custasse."

E há quem pense que pancadaria no futebol é invenção moderna.

A verdade é que um time de brancos não poderia perder para um time de pretos. A ascensão vascaína desaguou em um novo contexto político - nada que um bom tapetão não resolvesse. Para erigir uma cerca separando brancos e pretos, foi fundada a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos, com Fluminense, América, Flamengo, Botafogo e Bangu (todos com seu campo próprio, de medidas internacionais; os dois primeiros, com arquibancadas de cimento, os outros três com arquibancadas de madeira).

A divisão entre brancos bem-nascidos e a corja subvencionada não estava na regra, mas a regra cuidava para que a divisão existisse. Houve época em que, para entrar em campo, o jogador tinha que assinar o nome na súmula. Donde que analfabeto não jogava.

 "Na hora de assinar a súmula via-se logo a diferença. Os acadêmicos de medicina do Flamengo, escrevendo o nome depressa, os operários do Carioca levando toda a vida para garatujar o nome."

Se o jogador errasse na assinatura o time era desclassificado e perdia os pontos do jogo. Daí o pânico. "Cada clube pequeno arranjava um professor. Só para isso, para ensinar jogador de futebol a assinar o nome." Havia o medo da humilhação pública: "A Liga era capaz de chamar o jogador para um examezinho. Dando uma cartilha para ele ler."

Na hora da súmula, dava tremedeira, o craque desistia do jogo e muito reserva ganhava a vaga na caligrafia. Como o Pascal Silva, do Vasco, que chegou à Seleção. Nunca foi Silva: nasceu Pascoal Cinelli, mas se enrolava com o "l" dobrado. O técnico mandou ele assinar "Silva" e deu certo. Depois de encerrar a carreira, Silva abriu a "Tinturaria Globo", que ficou famosa no Rio. A razão social ostentava o nome de batismo: "Pascoal Cinelli & Cia".

Como diz Mario Filho, "o bom tempo do amadorismo. O amadorismo, o esporte pelo esporte, era para quem estava por cima. Enquanto houvesse amadorismo, os brancos seriam superiores aos pretos, os ricos aos pobres."

Já dizia Giuseppe Tomasi di Lampedusa em seu clássico I Leopardi: "Algo deve mudar para que tudo continue como está". Foi o que os cartolas cariocas fizeram.

Por falar nos italianos, eles importaram dezenas de jogadores argentinos, uruguaios e brasileiros - desde que fossem brancos e tivessem nomes oriundi. Foi o pote no fim do arco-íris para os amadores. É que lá na Bota o futebol era política de Estado. Mussolini queria fazer da Itália o país do futebol.  "Um craque podia ficar rico em pouco tempo", revela o autor. "Era a visão do El Dorado que se abria para os jogadores brasileiros. Com nome italiano, bem entendido."

A política do Duce custou caro para o futebol platino e para o futebol paulista. A tal ponto, que em Buenos Aires e Montevidéu implantou-se o profissionalismo. O Rio não sofreu nenhuma sangria de monta. Um Benedito que era Oliveira adotou o nome do pai da mulher e virou Zacconi. E só.

O jogador, ao menos, tinha a esperança de, com a fama e com a aceitação dissimulada do clube, deixar de ser preto. Era como se via o Robson, "um jogador preto, desse tamanhinho, do Fluminense", que, no dizer do autor, era "um tico de gente" e batia ponto na Imprensa Nacional (e que era também alfaiate, função na qual não tomava a medida de ninguém: "eu tiro a medida no golpe de vista").

Pois uma bela noite o Robson estava de carona com outro jogador tricolor, o Orlando Pingo de Ouro, no Cadillac de um amigo comum. Súbito, "um casal de pretos, de roupas escuras, surgiu diante do carro. O preto e a preta, enlaçados, estavam bêbados. O motorista enterrou o pé no freio, até o fundo, e o Cadillac parou de estalo; mas Orlando foi projetado fora do banco, bateu com a cabeça no pára-brisa."

Mario Filho informa que "o mínimo que o craque do Fluminense gritou para o casal de pretos foi: 'Seus pretos sujos!" Robson, no banco de trás, foi quem acalmou Orlando: "Não faz, Orlando. Eu já fui preto e sei o que é isso."

Já no cargo de técnico, não tinha escapatória. Se era preto, não branqueava, não importava quantos títulos conquistasse. Quando Gentil Cardoso foi campeão no comando do Vasco ("por antecedência, num jogo em São Januário contra o Olaria, não resistiu e entrou em campo e fez a volta olímpica"), ao cruzar a porta do vestiário foi desacatado por um dirigente vascaíno, Artur Soares, que, indignado com a pretensão do treinador, pôs dedo na cara: "O senhor é um simples empregado do clube!"

Gentil devolveu o gesto e acabou demitido. Para ele, "aquilo era mais uma prova de racismo". Não só esta demissão o técnico atribuiu à própria cor. O desligamento nas Laranjeiras também, segundo Mario Filho: "Se fosse branco não teria sido demitido do Fluminense."

Se o fato de ser preto importava, o quão de preto o sujeito era influenciava também. Veludo, goleiro do Fluminense, engoliu um gol de longe e o dirigente viu nisso uma prova de que ele estava vendido. Foi dispensado do clube e nunca mais parou em time nenhum, sempre sob a suspeita de ter levado dinheiro para aceitar um gol. Talvez a cor, ou o excesso dela, tivesse peso na condenação:

"Você não acha que Veludo é preto demais?"

O próprio Robson, o que tinha deixado de ser preto, quando companheiro de time de Veludo troçava do preto "vestido em tropical inglês e com os olhos injetados de cachaça por trás do óculos ray-ban": 

"Casa de sapê com janela envidraçada."

Acusações de suborno, lesões incuráveis, a miséria pós-carreira. Eram tempos em que a vida sem recursos de um craque do passado podia acabar em tragédia. Como Maneco, o "Saci do Tico-Tico no Fubá". Ex-jogador no ocaso, sem dinheiro para custear o aluguel, "tomou formicida para adiar, por um dia, o despejo que lhe rondava a casa", romanceia o autor. Os oficiais de justiça, ao chegarem na residência, encontraram o preto morto. Adiaram o despejo.

Bom que, à guisa de situar o preto no branco, o texto joga luz em fatos e expressões que se tornaram lendárias. Uma delas é o Fla-Flu, que o irmão de Mario Filho, Nelson Rodrigues, afirmou ter começado 40  minutos antes do nada. A frase do Nelson é ótima e o termo Fla-Flu melhor ainda. Mas o jogo de sílabas não surgiu para identificar o clássico de futebol. Explica Mario Filho:

"O Flamengo podia ter um preto no atletismo, no basquete, no water-polo, no remo. Assistia-se a uma regata de longe, do pavilhão da Praia de Botafogo, da amurada da Avenida Beira-Mar, de uma barca. Não se via direito o remador, via-se o barco, os remos. Os remadores, numa regata, viravam um barco, uns remos."

"Num match de futebol, via-se o jogador em close-up. O Flamengo não podia ter nenhum preto em futebol. Em futebol precisa ser branco, tão branco como o Fluminense. Não era de admirar, portanto, que quando gente do Flamengo e do Fluminense se juntava para formar um escrete carioca, o escrete saísse todo branco, do quíper ao extrema-esquerda."

Me estendo. Mas o trecho vale pelo que conta e como conta. Prossegue o narrador:

"Foi o escrete que passou para a história do futebol carioca como o nome de Fla-Flu. Esta expressão não tinha sido usada antes. Ninguém percebera ainda que a primeira sílaba do Flamengo e do Fluminense podiam unir-se como a legenda de um jogo", esclarece. "Os jornais não chamavam o escrete de outra coisa."

Ou seja, Fla-Flu não era o jogo entre estes times, e sim o batismo do agrupamento de jogadores dos dois times. Lógico que a sonoridade da expressão logo migrou para o jogo entre ambos - mais curto, mais agradável, ocupando menos espaço nas colunas de jornal. E se restringiu aos dois; afinal, Bota-Vasco ou Vasco-Bota não têm sonoridade ou glamour.

E o Vasco era o patinho feio dos grandes, ainda que incensado pelo autor.

Já o Botafogo não recebe atenção generosa. Aquele que talvez seja o mais importante time de futebol da história do esporte é, entre os protagonistas aos quais Mario Filho se dedica, um coadjuvante. Os títulos sucessivos da década de 30 são depreciados por conta da dissensão que levou ao profissionalismo. Carvalho Leite foi quem fora porque o pai era rico e tinha sanatório em Petrópolis. O título de 1948 foi tratado como um acaso pitoresco, com um quê de desonestidade.

Por essas e outras, o botafoguense que não espere ver o objeto de sua paixão bem aquinhoado nesta grande epopeia do futebol. O clube é o playboy mal-sucedido, um Fluminense que não deu certo. Retratado pelo autor como esnobe, é devidamente esnobado.

Mas Mario Filho está perdoado. Ele não tinha como saber que o time formado em General Severiano, na segunda metade da década de 50, iria mudar para sempre a história do Brasil e do futebol mundial. Pena que, nos acréscimos que fez em 1963 ao texto original (publicado na década de 40), com o Brasil bicampeão na Suécia e no Chile, preferiu tratar Garrincha como brasileiro, e não como alvinegro.

Sendo Mario Filho rubro-negro, entende-se.

Bacana que o texto revela que o primeiro ponta do Botafogo - justo um time que ficaria famoso pelo maior ponta do mundo -, o mulato Basílio Viana,  foi quem desenhou o escudo do time. Mas era um mulato que falava francês. E que não integrou o time de estudantes do Botafogo, campeão em 1910. 

Mario Filho conta, em ziguezague, a história de como o futebol brasileiro de branco virou mestiço, de elite virou povo e de amador virou profissional. E o quão doloroso foi para o preto toda esta transição (que, como vemos ainda hoje, em pleno século 21, ainda não terminou: na Eurocopa do mês passado, em Budapeste, no jogo Hungria v. Portugal, torcedores húngaros simulavam gestos e sons de macacos para os jogadores portugueses).

Tanto lá, como aqui, hoje e sempre. Diz que a culpa da derrota de 50 foi jogada em cima de três pretos: Barbosa, Bigode e Juvenal. "E vinham as acusações do brasileiro contra os brasileiros", diz Mario Filho. Ele reproduz o que seria o pensamento coletivo: "A verdade é que somos uma sub-raça. Uma raça de mestiços. Uma raça inferior. Na hora de aguentar o pior, a gente se borrava todo."

Ressalva ainda ele que, apesar do rótulo e do preconceito, outros pretos e mulatos ficaram de fora da "culpa": Zizinho, Bauer e Jair da Rosa Pinto. O preto seletivo.

Se em 1950 o Brasil perdeu por "culpa dos pretos", isso era tudo o que se tentou evitar em 1958.  "A preocupação de embranquecer o escrete chegou a tal ponto que na estreia contra a Áustria o único preto foi Didi", o que, como explica o autor, foi por falta de alternativa. "Era uma posição, a de Didi, em que não havia escolha. O reserva era outro preto: Moacir."

A história todo mundo sabe: Brasil campeão do mundo na Suécia. Ali começava a redenção do negro no futebol brasileiro. Não porque quiséssemos. É que os europeus nos fizeram ver assim, ao divinizarem três dos nossos pretos.

"A crônica europeia tinha escolhido Didi como o maior jogador do campeonato do mundo. Mas não como ídolo. O ídolo era Pelé, era Garrincha. Os jornais de Götemborg tinham esticado manchetes: 'Hoje tem Garrincha'. O Paris-Match chamava Pelé de 'Rei': 'Le Roi Pelé."

Depois da Copa de 58 o nosso futebol passou a ser o principal objeto de desejo dos estádios no Velho Continente, como ressalta Mario. "Qualquer time brasileiro tinha colocação no mercado europeu. Até um Bela Vista, time sem classificação, do interior de Minas, pôde dar uma volta ao mundo depois da conquista de 58. Era brasileiro e bastava."

Mais uma vez não soubemos transformar em império o manancial de dinheiro que fluía para os nossos bolsos. Nem ouro, nem borracha, nem futebol. E olha que oportunidade não faltou. "Um Santos, com Pelé, um Botafogo, com Garrincha, poderiam jogar todos os dias, se quisessem. E quase que jogavam todos os dias."

Se a narrativa ao longo de todo o livro é centrada nos clubes, ao redor dos quais orbitam os jogadores, no trecho final Pelé e Garrincha são tratados como entidades autônomas, como joias milionárias de um novo contexto clubístico e operadores funcionais do selecionado brasileiro.

Por falta de perspectiva histórica, Pelé, que, no fim e no pós-encerramento de carreira foi reiteradamente acusado de se omitir na defesa da causa negra, recebe de Mario Filho uma apologia triunfal. O autor o coloca em um pedestal ao lado da Princesa Isabel, a Redentora, a filha do Imperador que no século XIX assinou a Lei Áurea (ação política cuja discussão não cabe aqui).

"Pelé fazia questão de ser preto. Tanta questão que se tornou 'o Preto." Mario escreveu seu texto antes do do movimento black power e dos Panteras Negras ganhar o mundo (viria a ganhar também a posteridade) - e Pelé se abster. O jornalista se empolga, procurando um encerramento triunfal, e redentor, para a reedição do seu livro: "Se Pelé é preto, pode-se ser preto. Quem é preto deve ser preto. Faltava alguém assim como Pelé para completar a obra da Princesa Isabel." 

O site Geledes, defensor da causa negra e com textos institucionalmente parciais em prol da sua argumentação, lembra do apelido inicial do Rei - Gasolina - e vê de forma bem diferente a trajetória do melhor jogador de futebol de todos os tempos:

"Pelé nunca se engajou na luta antirracista". O site se refere ainda à obra "Pelé: estrela negra em campos verdes", de Angélica Basthi, que afirma que "Pelé passou a vida negando que tivesse sofrido racismo".

Contextualizando, o jogador, à época, havia comentado a reação do goleiro Aranha, em um Santos v. Grêmio, que "se ele tivesse parado todo jogo em que algum torcedor o chamasse de macaco ou crioulo teriam que ter interrompido os jogos de que (sic) ele participou". A pesquisadora considerou "um pequeno avanço esse reconhecimento do Pelé no debate sobre o racismo no futebol, ainda que o contexto utilizado por ele não contribua com a luta por igualdade racial".

O que mais uma vez evidencia que a questão racial está subordinada à circunstância sócio-cultural do momento em que é discutida - por óbvio. O que Mario Filho via como redenção do negro, o movimento negro atual vê como subordinação e sujeição. Sabe-se lá como nós, pátria mundial dos mestiços, caldeirão de todas as etnias, veremos a nós mesmos no futuro. 

Por isso, mais do que uma história do racismo no futebol e da sua superação - de 1900 a 1962 -, o livro é uma coletânea inestimável de passagens que contam melhor do que ninguém a construção da devoção ao futebol dentro da nossa sociedade.

Impagáveis as centenas de curiosidades a transbordar pelas galerias deste museu impresso. A troca das camisas de ganga pelas camisas de malha ("a camisa de ganga, larga, aberta no peito, que se enchia de ar, enfunando-se como velas ao vento"); o jogador de perna quebrada no hospital, com um prato fundo ao lado do leito para os torcedores visitantes depositarem suas moedinhas; a fidelidade do jogador ao seu time, que vinha do fato de ter que ficar quatro anos na cerca, jogando só nos aspirantes, quando trocasse de clube; o goleiro que ficava cercando o frango na área; a bola proposital para fora de Garrincha, dentro da área, na cara do gol, para Pinheiro ser atendido.

"Garrincha inventou essa jogada num Fluminense e Botafogo. Era um Gandhi do futebol".

"O negro no futebol brasileiro" é uma mina de ouro. E que requer fôlego para descer até o fim.

Editora Mauad, 343 páginas

"Trilogia suja de Havana", por Pedro Juan Gutiérrez

O cubano Pedro Juan escreveu um livro nada político sobre Cuba - mas sua prosa troglodita nos oferece uma incursão pela Cuba profunda e por aquilo que os políticos fizeram dela. Por R$ 54,32 no site do Submarino, você desfruta de uma crônica onde a Havana do Malecón, dos pretos e das putas é a grande protagonista. Ali não existe Fidel, Baía dos Porcos ou socialismo - só se trepa e só se come. O jornalista e biscateiro Pedro Juan faz nesta sua resenha semi-biográfica desbocada uma economia de cenários e motivações existenciais. Tudo se resume a uma mesma ladainha cotidiana, revezando sexo, miséria, fome e droga. Os títulos de suas dezenas de contos não dão margem à dúvida do mundo cão que é a matéria-prima da coletânea de Gutiérrez: "Dá uma punhalada nela, compadre", "Eu, revirador de merda", "Sempre tem um filha-da-puta por perto", "Bicha e suicida", "Meu cu em perigo" etc. Nada de sutileza. Ainda que vez ou outra ele alivie para um lirismo inesperado ao batizar textos com "Sabor a mi" e "Plenilúnio no terraço", a essência permanece homogênea: pobreza, desemprego e putaria. Parece ruim? Não se engane. A prosa desse cubano é boa pra caralho. Os personagens de Pedro Juan adoram passear no calçadão, defronte ao mar do Caribe, sempre em busca de um trampo, de um dólar, de um boquete. São os sobreviventes que colorem a cidade, em diversos tons de negritude. São os cubanos. Cada um com sua estória. São uns fodidos. Como Baldomero, que chegou do interior e logo arrumou dinheiro para o rum vendendo fígados. No livro você vai descobrir de quem. Haja fome. Ou a matilha de oito negros magros querendo retalhar um cavalo morto. Talvez a expressão soe racista - mas rascismo em Cuba, como aprendi no fenomenal "Pichón", de Carlos Moore (publicado aqui no blog há coisa de dois anos), é mato. Como em "Abandonando os bons costumes", a namorada Miriam "gostava de pretos bem pretos, pra se sentir superior. Sempre me dizia: 'São grosseiros, mas eu digo a eles: nego, sai pra lá! e fico por cima porque sou clarinha feito canela." A gente vê a Cuba potência olímpica toda negra e imagina que lá é bem diferente daqui. Vai nessa. Em "Grandes seres espirituais", parece que estamos num bairro qualquer do Rio: "A polícia pede o documento aos negros vinte vezes por dia". Não pense que parece nisso, como narra Pedro Juan: "De vez em quando um policial 'confiscava' um saco de pizzas ou de hamburgueres e ainda levava todo o dinheiro do vendedor. O sujeito entregava apavorado o que tinha, porque senão vinham as multas, o processo e os antecedentes penais. O que há de mais parecido com um delinquente é um policial. Os extremos se tocam." De extremos o autor entende bem. Pedro Juan trabalhou de tudo. Gari, pescador, muambeiro, faxineiro, garoto de programa, gigolô, carregador, traficante, açougueiro e até repórter free-lancer. Um dia foi cobrir um seminário de cinema nos subúrbios de Havana, onde conheceu Rita de Cássia, "uma brasileira de pele dourada que queria ganhar muita grana escrevendo roteiros de novelas e tinha umas belas pernas e queria tomar distância do seu divórcio recente". Os dois foram bater papo no "bosquezinho" da escola de cinema. "Havia gente, porque naquele lugar os alunos são rapazes muito promíscuos, como é lógico. Perto de nós, dois garotos se beijavam desbragadamente e um instante depois abriram o fecho das calças, botaram os..." Você imagina o que eles botaram. O nível de obscenidade do livro fica muitos furos acima do limite tolerado aqui no blog. Pela concorrência de espaço, Rita e Juan desistiram do bosque e foram para o apartamento alugado pela brasileira. O cubano chamou de "paraíso" o Festival de Cinema Latino-americano ("muito sexo, muito rum e muita comida"). Pedro Juan idealizava um Brasil podre de rico. Ele lembra: "Em Cuba já estava começando a escassez mais séria da sua história. Acho que foi em 91. Ninguém imaginava toda a fome e a crise que viria depois. Eu também não. Só estava preocupado em dar um jeito de comer, porque nesse mesmo ano, em poucos meses, tinha emagrecido dezoito quilos, por falta de comida". Gutiérrez conta que disputou as atenções de Rita com uma outra roteirista brasileira gay, mas Rita lhe permaneceu fiel e "pagava tudo porque eu não tinha um dólar no bolso e eu aceitei tranquilamente que ela pagasse sempre". No último dia juntos ele pegou tudo que ela estava deixando para trás: "umas sandálias de borracha usadas, meio vidro de xampu, geléias, bloquinhos de notas, pedaços de sabonetes, um barbeador descartável". O saldo foi positivo. "Nunca mais nos veríamos. Ela já tinha me falado que lhe doía muito ver tanta miséria e tanta comédia política para disfarçar as coisas. Por isso não queria voltar mais." Por falar em miséria, um capítulo à parte (na verdade, é pano de fundo em diversos capítulos) são os banheiros, geralmente coletivos, em espigões em ruínas onde dezenas de famílias vivem como num cupinzeiro: "O banheiro mais nojento do mundo, compartilhado por cinquenta moradores, que se multiplicam, porque a maioria é do Leste. Vêm para Havana aos bandos, fugindo da miséria (...) e trazem junto a família inteira. E se viram para morar todos num quarto de quatro metros por quatro. Não sei como. Mas conseguem. E no banheiro a merda chega até o teto. Nesse banheiro cagam, mijam e tomam banho diariamente nada menos que duzentas pessoas. Sempre tem fila. Mesmo que você esteja se cagando, tem que entrar na fila. Muita gente, eu entre eles, nunca entra na fila: cago num papel e jogo o pacote de merda no terraço do edifício ao lado, que é mais baixo. Ou na rua. Tanto faz." Abro aqui um espaço para uma dica turística: em indo à Havana, reserve um Airbnb em um prédio mais alto que o dos vizinhos, por precaução. E privilegie as ruas com marquises. Pedro Juan, justiça seja feita, se coloca nos dois lados da questão, quando o assunto é "se cagando". Em "Um dia eu estava esgotado", ele era o cara dentro do banheiro, puto com quem se borrava do lado de fora: "Fui ao banheiro. Gosto de cagar confortavelmente, sem pressa. Mas lá onde eu moro não é possível. Temos um banheiro usado por todos os moradores do terraço, e isso é uma desgraça porque tem sempre alguém cagando nas calças que bate na porta e grita para você andar rápido e sair." Ou seja, mesmo em um mundo marrom, a grama do vizinho sempre é mais verde. E isso para não falar na descarga: "Tínhamos problema com a água e era preciso trazê-la em baldes da cisterna, no porão do edifício, nove andares sem elevador." OK, Gutiérrez. Com falta dágua aqui no Rio você não vai comover ninguém. Muitas vezes o problema não se restringe ao banheiro - é como se o bairro todo fosse uma latrina. "Nós dois somos do mesmo bairro: El Palenque. Faz anos que saí de lá. É um aglomerado de casas de lata, madeira podre e pedaços de plástico. Ao lado do rio Quibú, que tem cheiro de merda desde que Deus o fez. Quando eu era criança estava convicto de que todos os rios são de merda. Quando vi um de água fiquei assombrado." Em meio à inevitável imundície, ganhar a vida em Havana é preocupação diária. Suja e sem floreios. O amigo lhe sugeriu tomar conta de "algum velho": "Ali na esquina tem um velho inválido que mora sozinho. A mulher dele morreu há dois meses, e o cara vai morrer de fome e pestilência. Entra lá, cuida dele, limpa a sujeira e arranja um pouco de comida, e quando ele morrer você fica com a casa." Para falar da fome o autor me faz lembrar que os cubanos já foram fazer a guerra na África, no tempo do imperialismo soviético. Bons tempos, para eles. Seu mundo mudou com a queda do muro. "Nós achávamos os angolanos selvagens porque comiam rato assado. E os da Etiópia comendo as tripas podres das vacas. Agora é a nossa vez. Aqui já não tem nem gato, o povo comeu tudo." Não são uns poucos. "As pessoas andam sujas, malvestidas, com fome, e ninguém fala. O caso de cada um é arranjar dinheiro e comida e sobreviver." Entre os de Havana, obesidade dá status e vira assunto entre o escritor e a vizinha Zulema, que se gaba do sobrinho: "Como ele está gordo! Diz que come um bife por dia." Quem não arruma trabalho pode esmolar. "Estendi o braço e comecei a pedir esmola a todos os que passavam ao meu lado. Eu só balbuciava. Quando você vai pedir esmolas não pode falar claro, nem raciocinar nem nada. Você é um animal miserável, um micróbio pedindo umas moedas pelo amor de Deus. Um fedorento. Sempre foi assim desde que o mundo é mundo. É uma verdadeira arte pedir esmolas e aparentar imbecilidade, cretinismo, bebedeira crônica, estupidez. Só um imbecil pede esmola. Se você estiver um pouquinho acima da imbecilidade você pode fazer qualquer outra coisa." Gutiérrez entende do assunto e parece até que descreve um magricela com cara de ameba que cresceu aqui na Dezesseis pedindo esmola, com uma caixa de paçoca na mão. Garanto que o sujeito tem o physique-du-role descrito pelo autor. Há, do lado oposto, os que podem contornar os cartões de racionamento. "Quem tem dinheiro não pode dar mole fazendo duas horas de fila por uma garrafa de rum com a caderneta de racionamento na mão. Nem pensar. Pago o dobro e resolvo num minuto. Logo os velhos começaram a reclamar com sua matraca: 'O que é isso, tem que ser igual pra todo mundo, é com a caderneta'. Ficam putos quando chega gente com dinheiro e passa a perna neles. Eu me afastei um pouco e gritei: 'Igual merda nenhuma. Bando de derrotados! Vão à puta que os pariu." Embora o tema do autor seja as necessidades básicas da população cubana, não pense você que Pedro Juan era um alienado. Ainda que evite o interesse pela política, o autor sabe da existência da censura e o peso da ignorância: "Se você não tiver toda a informação, não pode pensar, nem decidir, nem opinar. Acaba se transformando num idiota capaz de acreditar em qualquer coisa." Conheço bem esses tipos. Gutiérrez tem uma ideia própria do seu distanciamento: "Eu já não dou conta de mim, imagina se vou me meter com os políticos, que são uns filhas-da-puta e no final fazem o que bem entendem. É assim em todo lugar. A política é a arte de enganar bem." Nada a acrescentar. Ele sabe que não tem alternativas - não sem uma exagerada dose de risco. Um dos assuntos recorrentes sobre os cubanos, até os anos 90, eram os emigrantes que chegavam à Flórida de balsa, fugindo do regime comunista. "Podia ter ido embora numa balsa. Tive muitas oportunidades de ir nas balsas que meus amigos fizeram. Mas não. Já naveguei muito no golfo e sei como é o Caribe. Tenho medo de balsa. Às vezes não é bom saber muito. Os ignorantes são felizes. O pessoal acha que é valente porque se aventura até Miami flutuando num pneu de caminhão. Mas não são valentes, são camicases." Pedro Juan Gutiérrez caçoa dos moralistas ("pessoas hipócritas no sexo geralmente fazem muita sacanagem quando estão vestidas") e zomba de quem procura qualquer coisa mais profunda que comida. Recrimina a busca da ex-mulher por "paz interior": "Para viver em paz interior você tem que ser muito imbecil." Gutiérrez ignora essas frivolidades. Quer beber, comer, cagar, foder. Não sobra nada além disso. Seus horizontes - irônico para quem vive numa ilha - são estreitos. La Habana não é para os fracos.

Editora Alfaguara, 348 páginas

"Vai, Brasil", por Alexandra Lucas Coelho

O livro é uma compilação de crônicas sobre o Brasil, publicadas em um jornal português, por uma jornalista lisboeta que veio a morar no Rio. O desconcerto da sua prosa nos lembra como o português pode ser bem escrito. O tempo das crônicas é remoto, o livro é antigo: fala de um Brasil babilônico, onde a única pandemia era de auto-confiança. Estávamos no início do governo Dilma, com números estratosféricos da inflada economia brasileira. A autora - de simpatias à esquerda -, mesmo evitando a mera rasgação de seda, capitula às promessas daquele tempo. Pensava que vivíamos uma nova aurora. O mundo de então estava na contramão, eram os de lá que queriam vir para cá ("O meu sonhador senhorio no Rio pensa em comprar um apartamento em Lisboa. Eu temo não conseguir alugar o meu para continuar a viver na casa dele."), porque não se resignavam a ganhar 500 euros por mês. Mesmo os desconhecidos lhe mandavam mensagens: "Portugueses que não conheço escrevem-me a perguntar o que fazer para emigrar para o Brasil, e não é um nem são dois". Gostaria eu de dizer que eram bons tempos, mas eram apenas tempos enganosos. A ideia grandiloquente de "sexta economia do mundo" nos agradava. Humpf. Deixemos de lado esse rame-rame de política e economia, que estes não são os temas de Alexandra (ainda que escavuque assombrações, "houve aquele dia que a Zélia apareceu na televisão para confiscar o dinheiro dos brasileiros"). Não é esta a sua praia. Seus protagonistas são o Rio, perante o qual ela se desmancha, o Brasil, que lhe fascina, e a cultura, que lhe apaixona. Seu olhar é delicado e ela nos faz parecer melhores. Descreve nuances: "Um paulista disse-me uma coisa duplamente cruel. O Rio é preguiçoso, esbanjador, decadente: ainda vive na corte de D. João VI." Ela mesma contrapõe: "Quem tenha experiência com cariocas no que respeita a combinações já terá dito coisa pior, depois de esperar horas por alguém, ou dias por um telefonema, ou toda a vida por um pedido de desculpas. Até perceber que para o carioca aquilo não tem desculpa porque não tem culpa." Nos faz gentilezas: "Os paulistas podem dizer coisas cruéis dos cariocas. Já é mais difícil imaginar os cariocas a dizerem coisas cruéis dos paulistas." Ao fim, suspeito que a autora tenha convivido com uma tribo bem seleta de cariocas, pela afirmação "conto pelos dedos das mãos os cariocas que conheço que não fumam maconha." Vou pular essa. Carioca, meu passado me condena. Alexandra é uma europeia assustada com as jacas ("parecem uns pandas verdes e cegos, pendurados por um fio") e com o funk no Buraco Quente: "Já vi massas com arma de fogo, mas nunca tinha visto armas de fogo no meio de uma massa que rebola os quadris, flecte os joelhos e vai baixando o bumbum como quem senta, ao som de um refrão contínuo que diz: 'Senta-senta-senta na piroca." Ela esclarece: "Piroca é aquilo a que todo brasileiro chama pau." Embora condene ("menina de 10 anos já está transando"), ela, na matéria, não se acanha. Tanto, que, noutra crônica, disserta: "nabo, rola, jeba, bilau, neca, piupiu, pilinha, pirulito, piça, pemba, pingolim e o 'caralhaquatro". Pilinha? Neca?? Boiei. Conheço o bem mais inocente "necas de pitiribas", que quer dizer... nada. Mais estarrecida ela ficou com a força das chuvas que abateram Teresópolis e inundaram Itaipava ("numa noite choveu um mês e quase 300 pessoas morreram disso"). Atualizou o número numa palestra que fez, dizendo que "o Brasil é o escândalo das 850 mortes numa noite de chuva e um país inteiro a ajudar". Admoestada pelo elogio, corrigiu: "minha visão idílica do Brasil tem a ver com a culpa do colonizador". Críticas, elogios, em todo lugar há os insatisfeitos. "Os leitores zangados por eu nunca achar coisas boas no Brasil alternam com os leitores zangados por eu só achar coisas boas no Brasil. Há ainda os leitores zangados por eu ceder aos interesses do Acordo Ortográfico e os leitores zangados por eu não ceder aos interesses do Acordo Ortográfico." Ranzinzices. Numa outra feita, desenrola: "O que separa Portugal e o Brasil não é a ortografia - é a sintaxe, a fonética, o vocabulário, o clima, a paisagem, o temperamento, acima de tudo a história. A ortografia é o menor dos nossos desacordos." As palavras dela que não existem aqui são pequenas joias. De muitas, a que peguei para mim foi desarrincanço, mesmo que nunca vá saber usar. Conhecer a terra do outro remove segredos. Alexandra cruzou a Amazônia no início da década. Um jornalista underground de Belém lhe alertou: "Quinze por cento da floresta já foi destruída. Nunca o homem derrubou tantas árvores. A Amazônia era a última esperança de uma civilização florestal." O barqueiro Odaílso, em Alter do Chão, concorda: "Estão desmatando e não plantam nem uma árvore no lugar". Engajada, a indígena Ludineia denunciou os empreendimentos do governo: "Isso aqui vai sumir (...) Não tem precisão de fazer essas barragens. Essa energia é pra mandar pra fora, não é para cá, para a Amazônia. Desvia o rio, e os peixes como vão ficar? Como é que o povo caboclo e indio vai viver?" Coelho conversou também com José Batista, advogado da Comissão Pastoral da Terra. "Uma região habitada há milhares de anos por populações tradicionais, indígenas, pescadores, extrativistas, transformou-se na campeã do trabalho escravo". Segundo ele, o estado "criou todas as condições para a exploração". Comentando a sequência de assassinatos dos líderes locais, afirma: "O problema não é a ausência do estado, é a presença do estado sempre do outro lado". Alexandra não se contentou com as viagens fáceis. Extenuada de tanta água, citou "a imensa aranha hidrográfica" referida pelo português Ferreira de Castro, em seu "A Selva": "Águas em amplitudes de pasmar a quem não concebesse que nos oceanos pudesse também crescer bosques intermináveis". Também me pareceu quando enfurustei pelos igarapés. Mas cortei os silenciosos, defronte à Ilha dos Papagaios, no Pará. Não os superpovoados de Manaus, que são o habitat de uma favela de palafitas. Alexandra também esteve lá. "O ar cheira a esgoto. A água está atulhada de lixo, uma ponte de tábuas partidas leva às palafitas: barracos tortos, com os pés enfiados numa pasta podre, tanto que em muitos pontos não se vê a água". Ela pergunta à Ednaldo, de Santarém, à porta da sua barraca-drogaria. "Tem sempre todo esse lixo?" "Sempre. Uns jogam fora, outros não." Eliete se queixa de um outro crime: "Tem um bocado de tráfico, para os nossos filhos fica ruim." Eduardo confirma: "À noite não dá pra descer. Quem manda aqui é o tráfico". Perguntado se o crime é organizado, diz: "Em Manaus, os traficantes organizados são todos policiais". Os insetos perturbam Elaine, que, mesmo assim, convida: "Os mosquitos mordem a gente, não pode abrir a boca que eles enchem, é só a senhora vir aqui às seis da tarde". Não vou não. Alessandra, uma vizinha quase homônima, vê a equipe de limpeza do governo e revela: "Limpam, mas não adianta, porque os moradores são os primeiros a sujar." Já Alexandra fuça tanto os rincões da Amazônia que acha até índio que fala inglês. Xuriman, cheio de estórias. A jornalista conta também de amenidades, guloseimas, de todas as artes. Quando eu estive em Lisboa, há três anos, além do fado na tasca, me deixei seduzir pelos pães de lá, os vianinhas, os bolas dágua e outros mais. Blasfemo, cheguei a achá-los melhores do que os da Cidade Luz. Alexandra desdenha do pão do Brasil: "O pão que só não é o pior do mundo porque existe a Espanha". Não questiono, o pão daqui é fraco. Outra canelada dela aponta o dedo para a nossa má arquitetura. De acordo, sem mais. Bonita, observadora, descolada, a escritora se sente em casa no mundo que é dela, o dos talentosos. É amiga deles todos. O Moraes de "Pornopopeia", o Assis da "Febre do Rato", o Scott de "Habitante Irreal", a Bethânia de Carcará, o Caetano de Bethânia e o Chico que ela pensa que é absoluto. Pensa certa, porque ele era, no tempo longo que ele foi. Apesar do Brasil não ter ido (se é que um dia vai), a jornada literária país afora com Alexandra Lucas Coelho é doce, sem ser piegas. Parece daqui, sendo gringa. Voltou para a Europa, onde ainda vive o Brasil que atolou: publicou uma ficção passada no Rio e há pouco lançou um livro dedicado à Bahia, ambos pela Bazar do Tempo. Já este de capa verde que manuseio foi editado pela Tintas da China, cuja encadernação é o que há, deixando o livrinho ainda mais gostoso de ler. Há quem prefira os tabletes de leitura, eu não. Quero curvas, quero texturas. Minhas mãos lêem comigo. Tenho mil carências. Mas não sou maneta.

Editora Tintas da China, 315 páginas

"Sete anos", por Fernanda Torres

Mamãe recortou a dedicatória de Natal escrita pela nora no papel de presente e colou com durex na primeira página do livro, aquela sem nada impresso. Minto, não era um papel de presente, era um santinho natalino. Trazia um ancião com um cajado, ao lado de uma mulher sentada numa pedra, com um bebê nos braços. Imagino que a mulher seja Nossa Senhora, com Jesus no colo, e o ancião fosse José. Que tinha a cara de Jesus, a confiar na ilustração. Sobreposto, em negro sobre a imagem esvanecida, o texto começava com "Que os sinos de Natal...". Na parte superior deste cartão pregado com durex Aninha havia escrito "Marieta". Na parte de baixo, ela assinou "Sidney e família". Olhando assim, parece impessoal demais. Poderia ser para o porteiro. Não parece condizente este cartão, pretensamente de mim, mas na meiga caligrafia da minha mulher, para a pessoa que mais amei no mundo. Não sei se Mamãe sofreu com esta impessoalidade, ou sequer a percebeu ou cogitou. Mães e pais se contentam com migalhas. Olhamos os filhos com o embevecimento aparvalhado de quem vê leões marinhos fazendo piruetas num aquário gigante. Tudo agradecemos, quase tudo perdoamos, relativizamos o que não convém reparar. Filhos não entendem o sentimento dos pais. Pelo menos, não a tempo. Pela data da impressão do livro, deve ter sido meu último presente de Natal para ela. Acho que ela não leu. Herdei o título. Herdar livros é fácil, tenho uma ótima razão para nunca me desfazer deles. São livros. O pior são as caixas e caixas de documentos de Mamãe, boletos, agendas, bilhetes, papeizinhos, que não consigo tocar - com trinta segundos já dano a chorar como se fosse um bezerro desmamado. Estou cheio das caixas dela aqui no meu escritório. Tem grande chance de eu morrer e deixar o serviço pro próximo. Mas a resenha aqui é sobre o livro da Fernanda Torres, o tal que dei de presente para ela no último Natal e onde ela colou a dedicatória com durex, com mais amor na colagem do que eu na letra que não escrevi. Então, o livro é um apanhado de artigos. Publicados entre 2008 e 2014. Políticos, eruditos, pessoais. Tem de um tudo. São bons. Fernanda escreve bem. Discordo de algumas posições políticas dela, o que, aqui, não tem a menor relevância. Mentira. Tem alguma. Li uma pesquisa americana esta semana que fala da convivência entre room-mates. O maior grau de intolerância é justamente o que diz respeito às convicções políticas. Os democratas não toleram os republicanos e vice-versa. Compreensível. Mas acho que eu e Fernanda temos convicções parecidas, só acreditamos em soluções diferentes. Não importa. Difícil engolir as palavras com que enaltece a Dilma, sujeita de quem guardei uma péssima impressão. O PT, em si, ela morde e assopra. Mas não dá pra chegar a uma conclusão sobre as opiniões políticas dela por esse catadão: ralo, no volume, e disperso, no tempo. Dá é pra ver que ela é boa. Ainda sobre política, ela se enganou com o Cabral, que, na verdade, enganou muita gente. Já o texto dela com o Dirceu não me desceu bem, embora deva soar como música para quem se deixa fascinar pelo magnata sedutor. Mas nada supera os ensaios em que ela fala de cinema, teatro (incluindo a zoação do slogan dos Cassetas: "Vá ao teatro mas não me chame"), pinturas, cena cultural. Artista falando de arte é muito bom. Mas não é só comentando o próprio métier que ela manda bem. Fernanda se sai tão bem ou melhor em seus textos mais pessoais, ao falar dos filhos, da mãe, do pai. Ela falando do pai (o dela) dá mais razão ainda para eu falar da mãe (a minha). É gente que a gente ama demais, e quando eles vão embora a gente descobre que ainda amava muito mais do que pensava que amava. E os pais dela? A dupla de pai e mãe que pariu Fernanda é covardia, não tinha como não dar certo. Talentosa, gaiata, zoiuda, a filha da Dona Arlete sempre me chamou a atenção. Fernanda, roliça, estava uma delícia em "A marvada carne". Só não sabia que (cheguei beeem atrasado) Fernanda escrevia bem. Parágrafos curtos, ideias inteligentes e um quê de erudição. No mais, foda-se o esquerdismo. No Brasil, onde a esquerda festiva é um patrimônio, artista não-engajado é que nem churrasco vegetariano. Além de insosso, soa falso.

Companhia das Letras, 186 páginas

P.S.: E a foto? Mamãe de chapéuzinho, short e maiô, toda risonha num orelhão-arara, toda serelepe nalgum fim-de-mundo desse Brasilzão, hospedada em algum albergue da juventude? Nada mais Mamãe.