"O negro no futebol brasileiro", por Mario Filho

sábado, agosto 14, 2021 Sidney Puterman


"O negro no futebol brasileiro" é um título lendário. Pedra fundamental do edifício da memória, num país desmemoriado. Proporciona ao leitor um mergulho arqueológico na história do futebol carioca e, por extensão, do esporte nacional. Um verdadeiro tesouro.

Sua primeira edição é de 1947 (com acréscimos, ressalto, onde o derradeiro deles data de 1963) e foi originalmente publicado em jornal. Assim, neste primeiro formato, as colunas se estenderam por meses. A concepção, adequada para a época, se caracterizava pelos parágrafos curtos. A prosódia tendia para um certo lirismo, consoante com o que de melhor se fazia então. Avançando pelos capítulos, hoje a gente estranha. Mas são cacoetes do tempo.

Antecipo que o estilo implicou em uma onipresente carga de redundância, recurso que soa anacrônico quando se consome uma narrativa histórica. Tudo que é dito uma vez, é dito novamente, e talvez uma terceira. Por isso, a mim pareceu que os blocos de texto dispõem o conteúdo em espiral, sempre revisitando o tema-base à medida em que se apresentam. É uma combinação que deixa a leitura meio que um guaraná Jesus: icônica, mas enjoada.

Ou, sei lá, talvez o enjoado seja eu, que ouso achar defeitos em um sarcófago literário.

A edição que comprei veio em 330 páginas e cada uma delas traz, em média, quatro a seis parágrafos, quando não sete, ou oito. Uma disposição arquitetada para atender tanto ao leitor bissexto, como aquele mais comprometido com a sequência de artigos.

A estrutura provoca uma linha narrativa encaroçada quando reproduzida no formato livro. É que ingerir 2.500 parágrafos sintéticos, em sequência, sobre temas extensos, gera o efeito contrário do que você lê aqui (copyright Ana Verçoza & Vitor Sznejder, eles vão entender).

Os mais velhos, que chegaram a escutar o "Você sabia?", da Rádio Relógio (ehm??? vai no Google, garotada!), podem fazer uma ideia desta longa história contada aos soluços. Pois é. Com isto, esta pérola da literatura esportiva brasileira às vezes dá uma engasgada. O ranzinza aqui acha que, por força do formato, o denso ganha um contorno superficial, anedótico.

Mas a essência, ressalto, é poderosa. Vamos a ela.

Antes de mais nada, vale destacar que o "negro" que encabeça o título é participante ativo do relato, mas nem sempre é o protagonista do conteúdo. A estrela do livro é o surgimento e o crescimento do futebol como entretenimento popular, onde o negro foi ganhando participação maior à medida em que os anos avançaram - e a prática do jogo de bola, no início restrito aos estrangeiros e à elite branca, pouco a pouco foi se disseminando pela população como um todo.

Na prática, o título fornece um verniz acadêmico à leitura, que entrega sua matéria-prima diluída entre a narrativa do jogo, dos clubes e dos campeonatos. E faz, com maestria, uma saborosa crônica de costumes do Rio de Janeiro do início do século 20.

Quanto à abordagem das questões raciais que envolviam a participação do atleta negro no universo futebolístico, muitas das observações do livro sobre o racismo da época seriam elas mesmas consideradas racistas, hoje - o que prova como o tema é sensível ao contexto da ocasião. A partir desta premissa, um grande número de frases de Mario Filho sobre a resistência da aceitação social do negro teriam que ser reescritas.

Quando Leônidas da Silva - o "inventor" da bicicleta, o Diamante Negro, o primeiro grande craque brasileiro midiático - refugou a ida para o América, em 1931, após ter assinado a ficha de inscrição no novo clube, a diretoria "da instituição" não economizou na retaliação:

"Aquele moleque, aquele preto sem-vergonha, aquele negro sujo. Negro quando não caga na entrada, caga na saída."

O próprio jogador, ainda uma revelação promissora, contemporizou, na resposta ao repórter de O Globo: "Qual o jogador de cor que vindo de fora brilhou no América? O elemento de cor que entra num grande clube nunca é bem recebido."

Mas a torcida do clube da Tijuca não deixou por menos e preferiu ecoar as palavras do dirigente. No primeiro jogo em que enfrentou Leônidas, que jogava pelo Bonsucesso, o torcedor berrava no alambrado: "Moleque, preto sem-vergonha, negro sujo".

Sabemos que foi assim, e que era assim, há até bem pouco tempo. Mas, por mais relevante que seja não podar o registro histórico, a reprodução crua desce queimando a garganta.

Mario Filho vai aos primórdios para contar sua história: "Futebol era jogo de branco. Nenhum clube com um mulato, um preto no time, tinha sido campeão de 6 a 22. Só o escrete brasileiro, com Friedenreich. Friedenreich, porém, tinha pai alemão, não queria ser mulato."

Não que já não se percebesse o talento natural do negro para a prática do futebol. Mas o esporte ainda era uma prática da elite. "O mulato e o preto eram, aos olhos dos clubes finos, uma arma proibida", explica o jornalista. "Se nenhum grande clube puxasse a navalha, os outros podiam continuar lutando de florete."

Grandes, então, eram o Botafogo, o Fluminense, o Flamengo e o América. O Vasco, recém chegado da segunda divisão, não estava entre eles; e, portanto, tinha pretos. "O clube da colônia seguia a boa tradição portuguesa da mistura", explica Mario. Mas ressalta que "o Vasco não fazia pretos: para o preto entrar no Vasco tinha que já ser bom jogador. Entre um branco e um preto, os dois jogando a mesma coisa, o Vasco ficava com o branco. O preto era para a necessidade, para ajudar o Vasco a vencer."

O Vasco, pragmático, furou o monopólio dos tais grandes ao bancar que seus jogadores - de origem mais humilde - vivessem em função do futebol. A portuguesada queria ganhar, financiava seu elenco e fazia deles atletas, ou o mais próximo disso. Concentração, comida regrada, treinos físicos. Já os dândis dos clubes grandes viviam na noite, jantavam bifes no Lamas às três da manhã.

A torcida rubro-negra não gostava de ver seu time de pele clara ser confrontado por um bando de sujeitos sem origem e de cabelo ruim. Disputar, tudo bem, mas perder era uma afronta a ser resolvida na porrada. Se hoje há quem ache o futebol violento, ia se espantar com o equipamento dos remadores do Flamengo na arquibancada, torcendo pelo time de futebol. "Os remadores segurando as pás de remo", segundo o autor, "a ordem era só meter pá de remo na cabeça de português depois que o jogo começasse".

Ah, a candura da velha guarda.

Volta e meia o autor nos lembra que nestes tempos d'antanho o buraco era mais embaixo. Ir torcer nos estádios dos subúrbios cariocas era uma experiência marcante. "Quando um Fluminense, um Flamengo, um Botafogo ou até mesmo um Vasco tinha de ir a Figueira de Melo", esclarece Mario Filho, "preparava-se como se fosse jogar em Bangu. O torcedor lá de cima esperava que o torcedor da cidade tomasse o trem para atirar a primeira pedra. Havia o recurso de deitar-se no vagão, de cobrir a cabeça com as mãos. Quem entrava lá tinha de sair pelo corredor, os torcedores do São Cristóvão de um lado e de outro, brandindo bengalas e pedaços de pau."

Voltando, porém, ao tal jogo em questão, o Flamengo vencia por 3x2 quando um chute pareceu ter cruzado a linha. Para muitos, a bola do empate teria entrado, mas o VAR da época era o olhômetro e o juiz não marcou o gol do Vasco. "Aí os vascaínos da arquibancada não quiseram saber de mais nada, de pá de remo na cabeça, fosse o que fosse. Sururus explodiam, aqui e ali, como pipocas. Soldados corriam de sabre desembainhado, a cavalaria invadiu o campo. Não adiantava brigar, o Flamengo tinha que vencer, custasse o que custasse."

E há quem pense que pancadaria no futebol é invenção moderna.

A verdade é que um time de brancos não poderia perder para um time de pretos. A ascensão vascaína desaguou em um novo contexto político - nada que um bom tapetão não resolvesse. Para erigir uma cerca separando brancos e pretos, foi fundada a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos, com Fluminense, América, Flamengo, Botafogo e Bangu (todos com seu campo próprio, de medidas internacionais; os dois primeiros, com arquibancadas de cimento, os outros três com arquibancadas de madeira).

A divisão entre brancos bem-nascidos e a corja subvencionada não estava na regra, mas a regra cuidava para que a divisão existisse. Houve época em que, para entrar em campo, o jogador tinha que assinar o nome na súmula. Donde que analfabeto não jogava.

 "Na hora de assinar a súmula via-se logo a diferença. Os acadêmicos de medicina do Flamengo, escrevendo o nome depressa, os operários do Carioca levando toda a vida para garatujar o nome."

Se o jogador errasse na assinatura o time era desclassificado e perdia os pontos do jogo. Daí o pânico. "Cada clube pequeno arranjava um professor. Só para isso, para ensinar jogador de futebol a assinar o nome." Havia o medo da humilhação pública: "A Liga era capaz de chamar o jogador para um examezinho. Dando uma cartilha para ele ler."

Na hora da súmula, dava tremedeira, o craque desistia do jogo e muito reserva ganhava a vaga na caligrafia. Como o Pascal Silva, do Vasco, que chegou à Seleção. Nunca foi Silva: nasceu Pascoal Cinelli, mas se enrolava com o "l" dobrado. O técnico mandou ele assinar "Silva" e deu certo. Depois de encerrar a carreira, Silva abriu a "Tinturaria Globo", que ficou famosa no Rio. A razão social ostentava o nome de batismo: "Pascoal Cinelli & Cia".

Como diz Mario Filho, "o bom tempo do amadorismo. O amadorismo, o esporte pelo esporte, era para quem estava por cima. Enquanto houvesse amadorismo, os brancos seriam superiores aos pretos, os ricos aos pobres."

Já dizia Giuseppe Tomasi di Lampedusa em seu clássico I Leopardi: "Algo deve mudar para que tudo continue como está". Foi o que os cartolas cariocas fizeram.

Por falar nos italianos, eles importaram dezenas de jogadores argentinos, uruguaios e brasileiros - desde que fossem brancos e tivessem nomes oriundi. Foi o pote no fim do arco-íris para os amadores. É que lá na Bota o futebol era política de Estado. Mussolini queria fazer da Itália o país do futebol.  "Um craque podia ficar rico em pouco tempo", revela o autor. "Era a visão do El Dorado que se abria para os jogadores brasileiros. Com nome italiano, bem entendido."

A política do Duce custou caro para o futebol platino e para o futebol paulista. A tal ponto, que em Buenos Aires e Montevidéu implantou-se o profissionalismo. O Rio não sofreu nenhuma sangria de monta. Um Benedito que era Oliveira adotou o nome do pai da mulher e virou Zacconi. E só.

O jogador, ao menos, tinha a esperança de, com a fama e com a aceitação dissimulada do clube, deixar de ser preto. Era como se via o Robson, "um jogador preto, desse tamanhinho, do Fluminense", que, no dizer do autor, era "um tico de gente" e batia ponto na Imprensa Nacional (e que era também alfaiate, função na qual não tomava a medida de ninguém: "eu tiro a medida no golpe de vista").

Pois uma bela noite o Robson estava de carona com outro jogador tricolor, o Orlando Pingo de Ouro, no Cadillac de um amigo comum. Súbito, "um casal de pretos, de roupas escuras, surgiu diante do carro. O preto e a preta, enlaçados, estavam bêbados. O motorista enterrou o pé no freio, até o fundo, e o Cadillac parou de estalo; mas Orlando foi projetado fora do banco, bateu com a cabeça no pára-brisa."

Mario Filho informa que "o mínimo que o craque do Fluminense gritou para o casal de pretos foi: 'Seus pretos sujos!" Robson, no banco de trás, foi quem acalmou Orlando: "Não faz, Orlando. Eu já fui preto e sei o que é isso."

Já no cargo de técnico, não tinha escapatória. Se era preto, não branqueava, não importava quantos títulos conquistasse. Quando Gentil Cardoso foi campeão no comando do Vasco ("por antecedência, num jogo em São Januário contra o Olaria, não resistiu e entrou em campo e fez a volta olímpica"), ao cruzar a porta do vestiário foi desacatado por um dirigente vascaíno, Artur Soares, que, indignado com a pretensão do treinador, pôs dedo na cara: "O senhor é um simples empregado do clube!"

Gentil devolveu o gesto e acabou demitido. Para ele, "aquilo era mais uma prova de racismo". Não só esta demissão o técnico atribuiu à própria cor. O desligamento nas Laranjeiras também, segundo Mario Filho: "Se fosse branco não teria sido demitido do Fluminense."

Se o fato de ser preto importava, o quão de preto o sujeito era influenciava também. Veludo, goleiro do Fluminense, engoliu um gol de longe e o dirigente viu nisso uma prova de que ele estava vendido. Foi dispensado do clube e nunca mais parou em time nenhum, sempre sob a suspeita de ter levado dinheiro para aceitar um gol. Talvez a cor, ou o excesso dela, tivesse peso na condenação:

"Você não acha que Veludo é preto demais?"

O próprio Robson, o que tinha deixado de ser preto, quando companheiro de time de Veludo troçava do preto "vestido em tropical inglês e com os olhos injetados de cachaça por trás do óculos ray-ban": 

"Casa de sapê com janela envidraçada."

Acusações de suborno, lesões incuráveis, a miséria pós-carreira. Eram tempos em que a vida sem recursos de um craque do passado podia acabar em tragédia. Como Maneco, o "Saci do Tico-Tico no Fubá". Ex-jogador no ocaso, sem dinheiro para custear o aluguel, "tomou formicida para adiar, por um dia, o despejo que lhe rondava a casa", romanceia o autor. Os oficiais de justiça, ao chegarem na residência, encontraram o preto morto. Adiaram o despejo.

Bom que, à guisa de situar o preto no branco, o texto joga luz em fatos e expressões que se tornaram lendárias. Uma delas é o Fla-Flu, que o irmão de Mario Filho, Nelson Rodrigues, afirmou ter começado 40  minutos antes do nada. A frase do Nelson é ótima e o termo Fla-Flu melhor ainda. Mas o jogo de sílabas não surgiu para identificar o clássico de futebol. Explica Mario Filho:

"O Flamengo podia ter um preto no atletismo, no basquete, no water-polo, no remo. Assistia-se a uma regata de longe, do pavilhão da Praia de Botafogo, da amurada da Avenida Beira-Mar, de uma barca. Não se via direito o remador, via-se o barco, os remos. Os remadores, numa regata, viravam um barco, uns remos."

"Num match de futebol, via-se o jogador em close-up. O Flamengo não podia ter nenhum preto em futebol. Em futebol precisa ser branco, tão branco como o Fluminense. Não era de admirar, portanto, que quando gente do Flamengo e do Fluminense se juntava para formar um escrete carioca, o escrete saísse todo branco, do quíper ao extrema-esquerda."

Me estendo. Mas o trecho vale pelo que conta e como conta. Prossegue o narrador:

"Foi o escrete que passou para a história do futebol carioca como o nome de Fla-Flu. Esta expressão não tinha sido usada antes. Ninguém percebera ainda que a primeira sílaba do Flamengo e do Fluminense podiam unir-se como a legenda de um jogo", esclarece. "Os jornais não chamavam o escrete de outra coisa."

Ou seja, Fla-Flu não era o jogo entre estes times, e sim o batismo do agrupamento de jogadores dos dois times. Lógico que a sonoridade da expressão logo migrou para o jogo entre ambos - mais curto, mais agradável, ocupando menos espaço nas colunas de jornal. E se restringiu aos dois; afinal, Bota-Vasco ou Vasco-Bota não têm sonoridade ou glamour.

E o Vasco era o patinho feio dos grandes, ainda que incensado pelo autor.

Já o Botafogo não recebe atenção generosa. Aquele que talvez seja o mais importante time de futebol da história do esporte é, entre os protagonistas aos quais Mario Filho se dedica, um coadjuvante. Os títulos sucessivos da década de 30 são depreciados por conta da dissensão que levou ao profissionalismo. Carvalho Leite foi quem fora porque o pai era rico e tinha sanatório em Petrópolis. O título de 1948 foi tratado como um acaso pitoresco, com um quê de desonestidade.

Por essas e outras, o botafoguense que não espere ver o objeto de sua paixão bem aquinhoado nesta grande epopeia do futebol. O clube é o playboy mal-sucedido, um Fluminense que não deu certo. Retratado pelo autor como esnobe, é devidamente esnobado.

Mas Mario Filho está perdoado. Ele não tinha como saber que o time formado em General Severiano, na segunda metade da década de 50, iria mudar para sempre a história do Brasil e do futebol mundial. Pena que, nos acréscimos que fez em 1963 ao texto original (publicado na década de 40), com o Brasil bicampeão na Suécia e no Chile, preferiu tratar Garrincha como brasileiro, e não como alvinegro.

Sendo Mario Filho rubro-negro, entende-se.

Bacana que o texto revela que o primeiro ponta do Botafogo - justo um time que ficaria famoso pelo maior ponta do mundo -, o mulato Basílio Viana,  foi quem desenhou o escudo do time. Mas era um mulato que falava francês. E que não integrou o time de estudantes do Botafogo, campeão em 1910. 

Mario Filho conta, em ziguezague, a história de como o futebol brasileiro de branco virou mestiço, de elite virou povo e de amador virou profissional. E o quão doloroso foi para o preto toda esta transição (que, como vemos ainda hoje, em pleno século 21, ainda não terminou: na Eurocopa do mês passado, em Budapeste, no jogo Hungria v. Portugal, torcedores húngaros simulavam gestos e sons de macacos para os jogadores portugueses).

Tanto lá, como aqui, hoje e sempre. Diz que a culpa da derrota de 50 foi jogada em cima de três pretos: Barbosa, Bigode e Juvenal. "E vinham as acusações do brasileiro contra os brasileiros", diz Mario Filho. Ele reproduz o que seria o pensamento coletivo: "A verdade é que somos uma sub-raça. Uma raça de mestiços. Uma raça inferior. Na hora de aguentar o pior, a gente se borrava todo."

Ressalva ainda ele que, apesar do rótulo e do preconceito, outros pretos e mulatos ficaram de fora da "culpa": Zizinho, Bauer e Jair da Rosa Pinto. O preto seletivo.

Se em 1950 o Brasil perdeu por "culpa dos pretos", isso era tudo o que se tentou evitar em 1958.  "A preocupação de embranquecer o escrete chegou a tal ponto que na estreia contra a Áustria o único preto foi Didi", o que, como explica o autor, foi por falta de alternativa. "Era uma posição, a de Didi, em que não havia escolha. O reserva era outro preto: Moacir."

A história todo mundo sabe: Brasil campeão do mundo na Suécia. Ali começava a redenção do negro no futebol brasileiro. Não porque quiséssemos. É que os europeus nos fizeram ver assim, ao divinizarem três dos nossos pretos.

"A crônica europeia tinha escolhido Didi como o maior jogador do campeonato do mundo. Mas não como ídolo. O ídolo era Pelé, era Garrincha. Os jornais de Götemborg tinham esticado manchetes: 'Hoje tem Garrincha'. O Paris-Match chamava Pelé de 'Rei': 'Le Roi Pelé."

Depois da Copa de 58 o nosso futebol passou a ser o principal objeto de desejo dos estádios no Velho Continente, como ressalta Mario. "Qualquer time brasileiro tinha colocação no mercado europeu. Até um Bela Vista, time sem classificação, do interior de Minas, pôde dar uma volta ao mundo depois da conquista de 58. Era brasileiro e bastava."

Mais uma vez não soubemos transformar em império o manancial de dinheiro que fluía para os nossos bolsos. Nem ouro, nem borracha, nem futebol. E olha que oportunidade não faltou. "Um Santos, com Pelé, um Botafogo, com Garrincha, poderiam jogar todos os dias, se quisessem. E quase que jogavam todos os dias."

Se a narrativa ao longo de todo o livro é centrada nos clubes, ao redor dos quais orbitam os jogadores, no trecho final Pelé e Garrincha são tratados como entidades autônomas, como joias milionárias de um novo contexto clubístico e operadores funcionais do selecionado brasileiro.

Por falta de perspectiva histórica, Pelé, que, no fim e no pós-encerramento de carreira foi reiteradamente acusado de se omitir na defesa da causa negra, recebe de Mario Filho uma apologia triunfal. O autor o coloca em um pedestal ao lado da Princesa Isabel, a Redentora, a filha do Imperador que no século XIX assinou a Lei Áurea (ação política cuja discussão não cabe aqui).

"Pelé fazia questão de ser preto. Tanta questão que se tornou 'o Preto." Mario escreveu seu texto antes do do movimento black power e dos Panteras Negras ganhar o mundo (viria a ganhar também a posteridade) - e Pelé se abster. O jornalista se empolga, procurando um encerramento triunfal, e redentor, para a reedição do seu livro: "Se Pelé é preto, pode-se ser preto. Quem é preto deve ser preto. Faltava alguém assim como Pelé para completar a obra da Princesa Isabel." 

O site Geledes, defensor da causa negra e com textos institucionalmente parciais em prol da sua argumentação, lembra do apelido inicial do Rei - Gasolina - e vê de forma bem diferente a trajetória do melhor jogador de futebol de todos os tempos:

"Pelé nunca se engajou na luta antirracista". O site se refere ainda à obra "Pelé: estrela negra em campos verdes", de Angélica Basthi, que afirma que "Pelé passou a vida negando que tivesse sofrido racismo".

Contextualizando, o jogador, à época, havia comentado a reação do goleiro Aranha, em um Santos v. Grêmio, que "se ele tivesse parado todo jogo em que algum torcedor o chamasse de macaco ou crioulo teriam que ter interrompido os jogos de que (sic) ele participou". A pesquisadora considerou "um pequeno avanço esse reconhecimento do Pelé no debate sobre o racismo no futebol, ainda que o contexto utilizado por ele não contribua com a luta por igualdade racial".

O que mais uma vez evidencia que a questão racial está subordinada à circunstância sócio-cultural do momento em que é discutida - por óbvio. O que Mario Filho via como redenção do negro, o movimento negro atual vê como subordinação e sujeição. Sabe-se lá como nós, pátria mundial dos mestiços, caldeirão de todas as etnias, veremos a nós mesmos no futuro. 

Por isso, mais do que uma história do racismo no futebol e da sua superação - de 1900 a 1962 -, o livro é uma coletânea inestimável de passagens que contam melhor do que ninguém a construção da devoção ao futebol dentro da nossa sociedade.

Impagáveis as centenas de curiosidades a transbordar pelas galerias deste museu impresso. A troca das camisas de ganga pelas camisas de malha ("a camisa de ganga, larga, aberta no peito, que se enchia de ar, enfunando-se como velas ao vento"); o jogador de perna quebrada no hospital, com um prato fundo ao lado do leito para os torcedores visitantes depositarem suas moedinhas; a fidelidade do jogador ao seu time, que vinha do fato de ter que ficar quatro anos na cerca, jogando só nos aspirantes, quando trocasse de clube; o goleiro que ficava cercando o frango na área; a bola proposital para fora de Garrincha, dentro da área, na cara do gol, para Pinheiro ser atendido.

"Garrincha inventou essa jogada num Fluminense e Botafogo. Era um Gandhi do futebol".

"O negro no futebol brasileiro" é uma mina de ouro. E que requer fôlego para descer até o fim.

Editora Mauad, 343 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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