"A mulher do próximo", por Gay Talese
Hugh Hefner, 47, o fundador da Playboy, saiu da sua mansão cinematográfica na California em direção à Chicago. Antes, ordenou ao comandante do vôo que fizesse um desvio - queria pegar a namorada no Texas. Em minutos, o seu jato particular, um DC-3, todo pintado de negro, com o inconfundível símbolo do coelhinho branco pintado na carenagem, aterrissou no novo aeroporto de Dallas/ Fort Worth. Centenas de pessoas que olhavam pela janela gigantesca que dava para o campo de aterrissagem ficaram absortas ante o pouso do grande bólido negro.
Hoje, nada disso nos choca ou excita. Mas não é material descartável - prossegue pertinente como uma criteriosa história comportamental. Para tal, o livro de Gay Talese reúne alguns perfis biográficos ligados à indústria do sexo e da pornografia nos Estados Unidos, em um período que cobre mais de cem anos, indo de meados do século 19 ao fim dos anos 70.
É o quarto livro de Talese que posto aqui no blog - e cada um deles vale a leitura. O elegante jornalista ítalo-americano é um mestre na arte de elaborar perfis. Talvez o maior de todos. Neste livro, escrito logo em seguida ao seu "Honra teu pai" (que você acha também aqui, sobre as entranhas de uma família mafiosa), ele dá mais uma prova do quão apropriada é sua fama.
Mas se o amálgama é uno, o sexo, os personagens são os mais variados. Ele começa contando a história de um adolescente que nos anos 50 se trancava no quarto com sua coleção de fotos de pin-ups, para dar vazão à sua paixão represada pela modelo Diane Webber. Daí ele conta a história de Diane Webber, uma mocinha reprimida do interior que veio para a cidade grande tentar ser artista. E conta de muitas outras mocinhas iguais, que queriam ser atrizes e que acabaram se tornando massagistas. E conta das casas de massagens, suas profissionais e seus frequentadores. Em seguida ele conta a juventude de Hefner, como irá contar a de tantos outros que participaram, cada um a seu modo, da mudança de paradigma.
Conta dos editores que derrubaram convenções morais de um país puritano e que acabaram presos por isso (em muitos estados norte-americanos o sexo oral era passível de prisão, mesmo que fosse entre marido e mulher - em Connecticut, a pena chegava a 30 anos de cadeia). E de um bem-sucedido corretor de seguros, com amantes eventuais e uma esposa que era a típica dona de casa (cuja situação irá se inverter). E de um casal dedicado a quebrar as barreiras sexuais dos anos 60 - e que criaria Sandstone, um retiro mas montanhas californianas dedicado ao sexo livre. E de outros pioneiros do sexo, como Oneida, uma fazenda utópica na segunda metade do século XIX que misturou religião, sexo e produtividade, com sucesso absoluto nos três (principalmente no último).
Não obstante a profundidade da pesquisa, é importante registrar que o tema está mais do que datado. Seus personagens se perderam na poeira do tempo e o frenesi que cercava o assunto sexo não é sequer uma pálida bruma dos anos passados. O que então era libertário hoje não passa de uma velharia em retrospectivas de costumes. O que era contestador na sociedade da época é hoje matéria banal no celular de um adolescente qualquer.
O livro, entretanto, permanece bem escrito, e a leitura entretém, ainda que não entusiasme. Há aqui ou acolá declarações que merecem uma citação à parte. Selecionei duas, como a frase de Gershon Legman, que define como a moral e a justiça da época funcionavam, e a da ativista Betty Dodson, sobre as razões do próprio matrimônio. Legman resumiu assim o alcance da lei :
"Homicídio é crime. Descrever um homicídio não. Sexo não é crime. Descrevê-lo é."
Já a artista feminista Betty Dodson, falecida recentemente, que denominava relações múltiplas como "sexo varietal", lançou as bases de seu movimento de maneira bem contundente. Foi, no mínimo, original ao classificar a razão que, na mocidade, a conduziu ao altar:
"Numa sociedade que não tem igualdade econômica entre os sexos, fui forçada a negociar com minha boceta para ter alguma esperança de segurança financeira. O casamento, nessas circunstâncias, é uma forma de prostituição."
Isso, sim, é feminismo raiz.
As citações não são, a propósito, uma presença assídua no estilo do autor. A preferência dele é outra. Ele, que se caracteriza pela descrição esmerada dos seus entrevistados, ao fim do texto surpreende os leitores e se transforma ele próprio em personagem. Conta o que o motivou a escrever o livro e revela seu processo de apuração. Incluindo como tomou parte na maioria das experiências sexuais que descreve.
Antes de falar até que ponto foi o seu envolvimento, Talese retorna ao ponto de partida e confidencia a indecisão em que ficara após o sucesso do seu livro anterior. Não sabia o que escrever. Acabou achando que a revolução sexual que brotava descontrolada no início dos anos 70 pudesse ser um bom tema.
Seguindo à risca o método que o consagrou, o jornalista começou sua pesquisa in loco. Antes de esmiuçá-la, e inusitadamente falando de si mesmo na terceira pessoa, deixa claro o que o fez se meter no assunto.
"Em 1971, quando estava pensando em possíveis temas para seu próximo livro, decidiu que o que mais o intrigava era a nova abertura do país para o sexo, a expansão do consumo de material erótico e a rebelião silenciosa que percebia na classe média contra os censores e clérigos que tinham sido uma força inibidora desde a fundação da república puritana. Após ler vários livros sobre leis sexuais e censura, observar nos tribunais muitos processos relativos a obscenidade e entrevistar os editores de Screw e publicações similares, Talese começou sua odisseia pessoal pelo mundo do sexo, aventurando-se em casas de massagem e tornando-se um cliente habitual."
O autor prossegue em seu making of e se desnuda - chega até a confessar que de estudioso se tornou praticante devoto. Se doando à causa, chegou a trabalhar como gerente de uma casa de massagens, no intuito de conhecer melhor o perfil dos clientes (e, nas horas de ócio, entrevistar as profissionais). Admite que nas reuniões de nudismo e sexo livre que testemunhou não se manteve passivo. Com tanta dedicação, o efeito colateral do livro foi abalar os alicerces do seu casamento.
Que resistiu, advirto.
Assim, com franqueza pessoal, detalhismo narrativo e um plano de vôo bem organizado, Gay Talese legou um tratado antropológico do sexo na América pós-guerra do Vietnam. Bem promovida, a brochura não decepcionou e figurou entre as mais vendidas do ano.
No hemisfério norte do continente, o sexo sempre foi um tabu que sustentou o ranking dos best-sellers. Mas, se a mais rica das nações construiu um império que domina há décadas a economia mundial, pelo relato percebe-se que ela nunca obteve o mesmo rendimento entre quatro paredes.
Já aqui falamos menos e praticamos mais. Cada povo é bom numa coisa.
Companhia das Letras, 483 páginas
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