"Black hole", por Charles Burns


Falei de HQ semana passada. Mais que válido. Quadrinhos são (às vezes) assunto sério. Podem ser literatura, às vezes jornalismo. Ou pura arte. Que viram objetos de culto, como Black hole, uma graphic novel incensada. Seu autor é uma coleção ambulante de prêmios. Por isso, quando vi o exemplar, não refuguei e comprei o tijolo preto. Capa dura, tátil, instigante. 

Alguns quadrinhos merecem uma abordagem pragmática. Mais do que qualquer outra manifestação cultural, o risco do artista, a forma como ele distribui os espaços e como eles interagem entre si importam tanto ou mais do que a estória (que muitas vezes é coadjuvante).

Guri, eu curtia quadrinhos e acompanhei desde os anos 70 a evolução dos traços e da sua arquitetura nas páginas, seus dramáticos closes frame a frame. Comprei na banca o exemplar número 1 do Homem-Aranha e do Demolidor, dois super-heróis atormentados. Fui fã tardio do Spirit de Will Eisner. Experiências que me facilitaram perceber o quanto Burns é bom. 

Em Black Hole a estética gera tensão no contraste entre o preto e branco. O tom sombrio cria um ambiente ameaçador, temperado por um noir diáfano. As referências constantes ao universo cotidiano da sociedade de consumo norte-americana dá ares de pop art à trama macabra.

O argumento, em si, é bem simples. Ingênuo, até. Em uma pequena cidade, jovens estudantes contraem uma doença contagiosa que os transforma em mutantes "leprosos". Assustados, criam uma comunidade nas montanhas e só vão à cidade disfarçados, para comprar alimentos. 

Nestas idas, invariavelmente eles vão contaminando outros jovens, seja pelo simples toque ou por relações sexuais. No início, as mutações são discretas. Vão de escamações a fendas nos pés. Mas depois elas vão se tornando escatológicas. Os mutantes têm uma segunda boca na garganta, às vezes na barriga. Em todos eles nascem um cotoco de rabo.

Esta estética freak é combinada com enredo típico de fotonovelas, muitos flertes, paixões juvenis temperadas a álcool e drogas. O resultado, porém, é denso. Black hole tornou-se cult.

Adianto que a narrativa, repleta de sonhos, pesadelos e flashbacks, é um pouco confusa. Os personagens são muito semelhantes entre si. A gente se distrai e já não sabe quem é quem. A história vai e vem vezes demais, aparentemente sem sair do lugar. Por isso, para os mais exigentes, deixa a desejar. Acredito, porém, que os fãs do gênero não vão se importar.

Para os viciados em HQ cabeça, Black Hole é graphic novel na veia. E isso basta.

Darkside Graphic Novel, 370 páginas | 1a edição 2017 | Copyright 2005 | Tradução Daniel Pellizzari

Obs.: Só depois soube que o livro era a reunião de doze séries de tirinhas, publicadas ao longo de dez anos. Entendi agora a redundância e a desconexão entre as diversas partes do livro. Não era um livro.

"Palestina", por Joe Sacco



Muito antes da Palestina se tornar a popstar do debate eletrônico, no tempo em que ela era apenas mais um lugar esquecido, superpopuloso e conflagrado do planeta, o jornalista norte-americano Joe Sacco esteve lá e fez uma série de reportagens sobre a região.

Isso foi há mais trinta anos, no início do anos 90. Estávamos no longínquo século passado. Como não havia rede social para estimular e domesticar a opinião coletiva, ninguém queria saber de Palestina. Mas Joe, um repórter por natureza, via a questão de forma diferente. Um povo oprimido, mantido sob violência em condições insalubres, era um banquete para um jornalista apaixonado por conflitos.

Ainda mais para um do tipo que desenhava suas reportagens - e as publicava em forma de HQ. A série de tiras virou livros. Vieram os prêmios e o reconhecimento internacional.

Justo. Porque não pense você que, por se tratar de HQ, Sacco faz um jornalismo "menor". Ledo engano. Ao contrário, seu traço potencializa o conteúdo. A Palestina retratada é tensa, pobre, suja - e os quadrinhos cheios de volume do autor nos arremessam no ambiente irrespirável dos seus habitantes. Proporciona uma substância que uma foto raramente poderia atingir.

E haja substância. O momento histórico do recorte, visto em perspectiva, era ímpar. O Acordo de Oslo ainda não havia sido assinado entre os líderes Yitzhak Rabin e Yasser Arafat. À época, a promoção de um acordo era um ansiado passo rumo à paz. Seu provável acerto pontificava na capa dos jornais, ao mesmo tempo que era solenemente ignorado pelo público. Na América do Sul se jogava a última rodada das eliminatórias e o Brasil faria um jogo decisivo contra o Uruguai, no Maracanã, para obter (ou não) a classificação para a Copa do Mundo de 1994.

Romário emitiu nosso bilhete para o Mundial nos Estados Unidos (que venceríamos) e Clinton mediou o acordo, onde Israel entregou parte da Cisjordânia para controle palestino, reconhecendo a OLP de Arafat como legítimo governante do território, ao mesmo tempo que a OLP, em nome da Palestina, reconhecia o direito de existência do Estado de Israel.

Era para ser o início de um processo de harmonia compulsória. Mas, a despeito das expectativas, não funcionou. Os palestinos estavam divididos em muitas correntes e disputavam poder com a OLP. Um judeu reacionário assassinou Rabin em um evento público. Os avanços derreteram. Paz nunca foi um produto disponível nas prateleiras daquela estreita faixa de terra no Oriente Médio.

Pouco antes disso, o jornalista passou algumas semanas visitando a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Esteve também em Tel Aviv. Os dois cadernos do "Palestina" de Joe Sacco dos quais falamos aqui são resultado de entrevistas e viagens in loco realizadas antes do acordo.

E o que vemos na obra é que, meio século após o estabelecimento do Estado de Israel e após várias guerras árabe-israelenses, a Palestina prosseguiu um barril de pólvora. Pois é. E, como você sabe, continua sendo até agora, em 2024: o grupo político que governa a Faixa de Gaza - o Hamas - fez um ataque-surpresa a comunidades israelenses fronteiriças (ataque cuja finalidade era o terror, sem objetivo militar) e mataram a sangue-frio 1.200 pessoas, nas ruas e em suas próprias residências. Degolaram homens e estupraram as mulheres. Sequestraram mais de 250 pessoas.

Até o momento em que escrevo esse post, mais da metade dos reféns permanece em poder dos palestinos. Como resposta, Israel bombardeou e invadiu a Faixa de Gaza. Apesar de já terem morrido mais de trinta mil palestinos (segundo o próprio Hamas, que não é uma fonte confiável), os terroristas se recusam a devolver os reféns. O front se estende e não há previsão de trégua.

Por distorção deliberada dos fatos, desde o início da guerra, em 7 de outubro do ano passado, a reação de Israel é maliciosamente chamada de "genocídio" pela oposição midiática. Ops, genocídio? Vale frisar que, contraditoriamente à tese, a região ostenta a mais alta taxa de natalidade do planeta. 

Ou seja: quem souber matemática, que faça as contas.

Perceba que o subtítulo do primeiro livro, "Uma nação ocupada" - ainda que a Palestina não fosse, nem nunca tivesse sido, uma nação - revela de que lado está o autor. E daí?

Nada contra. Ter lado é válido. Já mentir, distorcer, caluniar - não é. E Joe não faz nada disso.

Segundo ele comenta na introdução, os quadrinhos foram publicados anteriormente e somente depois organizados em dois livros. Talvez as tiras tenham sido produzidas em momentos diferentes. O primeiro livro é mais impressionista, e enfatiza o impacto provocado no autor pela realidade local. Investe mais no choque de culturas - um gringo imerso numa comunidade palestina sob ocupação.

Já o segundo livro - cujo subtítulo é apenas "Na Faixa de Gaza" - é mais dissertativo, com uma massa de texto no mínimo três vezes maior. Traz mais depoimentos locais e se debruça metodicamente sobre cada uma das facetas de um povo dominado, mas insubmisso. 

O cartunista foi muito bem aceito pela população, que logo identificou no maltês-norte-americano um defensor. Foi recebido nos lares com a tradicional hospitalidade árabe. As pessoas se abriram. Revelaram seus pensamentos, contaram suas estórias. O autor fez por merecer a confiança e produziu um libelo em nome do povo palestino.

Mas o jornalista evita qualquer laivo de pieguice e também a manipulação emocional que depoimentos exageradamente passionais poderiam provocar. Mesmo que em prol do povo ocupado, ele é ininterruptamente crítico. O que reputo como o principal ponto do seu trabalho. Defender uma convicção e concomitantemente expor suas contradições é uma virtude e tanto.

Vale abrir um parênteses. Infelizmente, esta riqueza interpretativa é cada vez mais rara no novo mercado do antagonismo compulsivo. A ideologia é agora uma ferramenta político-eleitoral e a disseminação do conhecimento se tornou um subproduto torto da ideologia. Pena.

Voltemos ao trabalho do maltês. Se impactante na prosa, ele é contundente na estética.

O traço de Joe Sacco visa o desconforto. Os personagens são vistos de forma angulada, de baixo para cima, ou em closes demasiados, nos deixando muito próximos das suas fisionomias grosseiras e dos seus narizes volumosos. Em muitas páginas o texto fica na quina dos quadrados, e temos que torcer o rosto (ou o livro) para lermos o conteúdo.

A massa de letrinhas é grande. Pontos básicos da história dos judeus e dos palestinos são repisados, de forma sumária. No primeiro livro, de uma frase bíblica onde Moisés delimita as fronteiras do Estado de Israel, Sacco pula para o mandato inglês da Palestina após a Primeira Guerra Mundial.

O autor oferece seu ponto-de-vista por meio da sua interpretação das figuras públicas e dos personagens que cria. Na época do mandato, os ingleses são esnobes que decidem o destino alheio em seus gabinetes aquecidos. Na atualidade, os judeus são retratados como jovens bem-nascidos com preocupações supérfluas. Os palestinos são os que sofrem.

Este sofrimento é dissecado em minúcias no segundo livro. Sacco investe centenas de quadrinhos na reprodução de lares e intermináveis chás, em reuniões de homens que relatam a opressão israelense, a reação palestina, as prisões e espancamentos, as péssimas condições de vida nas cidades palestinas.

Expõe como a juventude, desde a sua mais tenra idade - os moleques são cooptados com treze anos para participar das facções -, é preparada para o confronto contra as forças de ocupação. A morte destes meninos é a consequência natural do embate desproporcional. Os caixões são carregados pela multidão, envoltos em bandeiras e embalados por cantos de ódio, gerando combustível para a causa e aliciando novos garotos, que em breve desfilarão como novos cadáveres em velhos caixões.

Ao não aceitar que o governante judeu governe a terra - conquistada em um combate reativo às ameaças e ao terror islâmico -, o enfrentamento é constante e o sofrimento da população idem. Não havia solução à vista na narrativa de Joe Sacco. Também não há agora, trinta anos depois.

A pena detalhista de Joe nos acerta com o ângulo de visão dos habitantes. É um povo que vive sob o estigma do preconceito, manietado por seus próprios dogmas. O jornalista, entretanto, é tímido na denúncia de como a catástrofe palestina é massa de manobra na mão dos vizinhos árabes .

São todos também inimigos dos judeus, mas que recusam ajuda aos palestinos, de cuja desgraça se aproveitam. Nem Sacco denunciou antes, nem a mídia planetária denuncia agora.

O quadrinista conta o que quer, da forma que vê. Eu entendo as partes, só que vejo o todo de forma diferente. Mas não tenho como não me render à virulência dos seus quadrinhos e à essência honesta das suas convicções. Ler Joe Sacco é um pedágio obrigatório para entender a questão palestina.

Já no fim do segundo livro, ele reproduz em uma sequência de frames sua conversa casual com um palestino idoso, sentado à rua, em Jenin. O que ele disse, em 1992, ecoa em 2024.

"Isso nunca vai acabar. Eles querem esta terra. Nós queremos essa terra. Nunca haverá paz."

Conrad Livros, 246 páginas  |  3a edição, 2004  |  Copyright 1999 | Tradução Cris Siqueira
Título Original: "Palestine: A Nation Occupied - In The Gaza Strip"

P.S.: Para evitar que seu interesse na leitura seja desestimulado, pule o prefácio verborrágico e ginasiano assinado por José Arbex, no primeiro livro. Raso e prolixo, parece mais uma redação do Enem. Vá direto para os quadrinhos. Já o prefácio do segundo livro, do filho de palestinos Edward Said, é excelente.

"Exodus", por Leon Uris


"Exodus" é um híbrido de livro de história e romance. Ora pende mais para um, ora para outro. O início, ficção pura, é bem característico dos best-sellers que dominaram o mercado editorial norte-americano dos anos 50 aos anos 70. Diálogos curtos e personagens cínicos.

Sob este aspecto, o livro é bom. Ainda que, à medida em que o enredo se desdobra, os componentes fictícios acabem sendo escanteados pela densa abordagem histórica.

E aí, quando o assunto é História, não espere isonomia salomônica. A abordagem do autor se dá sob o ponto-de-vista dos hebreus. Mas isso não condena a obra. Como repito sempre, não há autor imparcial. Todo mundo tem lado. Porém, se o conteúdo é honesto e valioso, tá valendo.

Aqui vale. "Exodus" se tornou um marco para o entendimento de um conflito até hoje em curso.

O título do livro remete ao nome de um dos navios que zanzavam abarrotados de sobreviventes judeus, pelo Mediterrâneo, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Os passageiros eram refugiados europeus. Sem terra ou pátria, cada indivíduo embarcado era o último componente de uma família chacinada. Eram remanescentes do Holocausto, à deriva e sem destino legal.

Em 1947, o fim de cada uma destas embarcações era incerto e se resumia a quatro opções:

Na tentativa de furar o bloqueio inglês, os navios zarpavam da França e eram 1) abordados nas proximidades do porto, e dali obrigados a retornar e despejar os judeus de volta em terra firme, donde eram reconduzidos para campos de refugiados na Alemanha; 2) abordados já em alto mar, daí escoltados até o Chipre, onde os passageiros eram trancafiados em campos de refugiados na ilha; 3) bem-sucedidos em desembarcar sua carga humana em algum porto da Palestina, e aí era um salve-se quem puder, com os judeus perseguidos pela polícia inglesa; 4) afundados à sangue-frio pela Marinha Real Britânica.

Os passageiros do Exodus eram fugitivos de um campo de refugiados cipriota. Seu capitão tinha por missão desová-los clandestinamente na cidade de Haifa, na Palestina. A viagem foi pra lá de romanceada e ajudou a catapultar as vendas da obra, que virou quase uma franquia: o longa-metragem "Exodus", estrelado por Paul Newman, arrastou multidões aos cinemas.

(Em 2007 foi publicado "Exodus 1947", por Ruth Graber, um sólido trabalho de reportagem investigativa, em que os passageiros do emblemático navio foram entrevistados e seus destinos - bem como sua origem - foram revelados.)

Já o roteiro de Leon Uris, após utilizar os capítulos iniciais para criar uma atmosfera de thriller de ação, logo revela seu principal objetivo, que é uma longa linha do tempo. Uris narra a vida das comunidades judias nas franjas do Império russo, vítimas frequentes de animados pogroms. Com o surgimento do sionismo, a perseguição estimula a imigração dos idealistas para a Palestina, no fim do século XIX.

O escritor faz deste recorte a gênese da trama. Se valendo da epopeia ficcional de dois irmãos, Barak e Akiva (nés Jossi e Yakov), que vão cinematograficamente a pé da Rússia ao Oriente Médio, o autor detalha as costuras e pressões políticas de um mundo com interesses excludentes, no início da Guerra Fria.

Abre uma janela interessante sobre as relações sociais árabes na Palestina da época, e de como a chegada dos judeus desestabilizou a exploração que os efêndis tradicionalmente faziam dos felás - o povo primitivo e ignorante que habitava os pântanos da região.

Se valendo das aldeias que proporcionavam interação comunitária, o autor pontua ao longo de todo o livro o contraste entre o que apresenta como ímpeto modernizador e criativo do colono europeu (os judeus) e a passividade característica do nativo local (os felás).

Também expõe o choque de culturas, contrapondo a igualdade de homens e mulheres entre os judeus (onde as mulheres protagonizavam até ações militares) à submissão das mulheres árabes - nas costas de quem caía o serviço pesado das aldeias, na função de semi-escravas dos maridos.

Após um período de relativa tolerância entre árabes e judeus, no início do século XX, onde havia uma rivalidade latente, amenizada pelos ganhos pecuniários que a presença judaica trazia para a terra e o povo local, o mandato inglês da Palestina se torna o catalisador do livro, incendiando a história.

Antagonistas cuja existência histórica acabou diluída na sequência interminável de conflitos que caracteriza a região, os ingleses - que ocupavam a Palestina com seu exército - são expostos como o maior inimigo do êxodo judaico. Após um curto período em que toleram e contribuem para o estabelecimento dos judeus, os britânicos, por uma mescla de interesses econômicos e políticos, passam a impedir a chegada dos judeus, ao mesmo tempo em que municiam e protegem os árabes. 

Este enfrentamento não só abre o livro, como citei - com os judeus sobreviventes da Solução Final confinados em um campo de refugiados no Chipre, sob vigilância inglesa -, como vai tomar boa parte da narrativa. São os judeus em guerra declarada contra os ingleses, em enorme desvantagem militar e numérica, e tendo que simultaneamente neutralizar as dezenas de grupelhos árabes que executavam ataques de emboscada.

Todo o universo geopolítico e diplomático que marcou o período é esmiuçado na obra. O avanço cronológico das tratativas internacionais em busca de uma solução que contemplasse todas as partes interessadas é descrito em detalhes.

A baixa perspectiva de sucesso e a reviravolta política que resultaram na imprevista aprovação da ONU à criação do Estado de Israel é apresentada voto a voto. Para quem desconhece as filigranas da História - eu e a imensa maioria da torcida botafoguense -, a reprodução da Assembleia é uma oportunidade ímpar para aprender como as coisas se deram, em um passado nem tão remoto assim.

Ao fim, Uris retoma os personagens que lhe ajudaram a contar sua história. Ainda que celebrando a vitória parcial por terem construído um lugar para os judeus, as mortes no confronto constante com os árabes, em um contexto onde por algum tempo pareceu possível a coexistência em harmonia, impedem um final feliz.

Compreensível. Publicado há 65 anos, boa parte do texto parece ter sido extraído do jornal de hoje.

Editora Record, 713 páginas  |  10a edição, 2023  |  Copyright 1958 | Tradução Vera Pedroso


"Filho do Hamas", por Mosab Hassan Yousef




Nunca tinha ouvido falar desse cara. Mosab Yousef. Mas o fato é que a guerra entre Israel e o Hamas abriu espaço para nomes desconhecidos que tivessem qualquer coisa a ver com o conflito. Mosab foi apresentado na mídia com o apelativo título de "o filho do fundador do Hamas". As chamadas para uma entrevista no horário nobre, na emissora de maior audiência, me chamaram a atenção.

Sou cético por natureza. Vejo desconfiando do que vejo. Leio desconfiando do que leio. Para me sentir à vontade com o tema, preciso destrinchá-lo. Descobrir se há algo por trás. Boa parte das vezes o conteúdo já trai a (má) intenção de quem fala ou escreve. Mistificações, interesses pessoais, tentativas de manipulação - tudo isso salta aos olhos, quando lemos nas entrelinhas.

Às vezes não dá para "ver" e temos que recorrer a uma boa pesquisada, um aprofundamento maior para decifrarmos com segurança se o que estamos vendo/ lendo merece credibilidade. Assim, com tudo isso em mente, fui assistir a entrevista do tal "filho do Hamas". Com os dois pés atrás. 

Ainda mais porque ele era apresentado como um "traidor" do Hamas, que teria trabalhado como agente secreto para Israel. Parto do princípio óbvio que nenhum traidor é confiável - é o primeiro raciocínio de qualquer um, e eu não sou diferente. Mesmo assim, fui ver a tal matéria com o Mosab.

Com cinco minutos de entrevista, eu estava surpreso. Articulado, direto, despojado, Mosab Yousef não parecia se encaixar em nenhum estereótipo. O que ele dizia era convincente. E humano: era contra a guerra e contra o terrorismo. Se declarou a favor de dois Estados - um palestino e um judeu.

Yousef fazia sentido.

Na entrevista, ele comentou sobre um livro que escrevera dez anos atrás. Ansioso por entender melhor quem era aquele sujeito, se era confiável ou não, se era uma farsa, uma peça de propaganda de Israel ou um pacifista legítimo, ele me deu de bandeja como eu iria descobrir.

Lendo o livro.

Antes de mais nada, temos que aceitar que a mídia, e principalmente agora as redes sociais, trabalham com estereótipos. São mais fáceis de processar e digerir. É a dicotomia mocinho-bandido. Assim, sob a lente dessa dualidade simplificadora, "entendemos" logo do que se trata. Voltando à ideia anterior, se Mosab é palestino e espiona para os israelenses, ele é traíra. O sujeito mau.

Pior ainda. O cara traiu o pai. O pensamento agitado já deduz: "É a ovelha negra da família."

Pois nada mais longe da verdade. O livro é, acima de tudo, uma ode de amor e de reverência ao pai. Parece contraditório, não é? Pois é. As pessoas de carne e osso têm muitas nuances. Assim o leitor vai desvelando as particularidades da personalidade de Mosab à medida em que avança no livro. Mas aqui precisamos estabelecer um ponto.

O Mosab Yousef, o "Filho do Hamas", apareceu na (nossa) mídia agora, em outubro de 2023, por conta do ataque terrorista do Hamas. Isso dá às suas palavras e ao seu livro um cunho oportunista. A questão, porém, é que o livro foi escrito e lançado em 2010. Há treze anos atrás. 

Sem oportunismo ou sensacionalismo. A gente só nunca tinha ouvido falar no cara, nem no livro.

O Mosab que essa pequena bio, publicada em 2010, descreve era um garoto palestino de boa índole, racional e reflexivo. Adorava - e ainda adora, como eu disse acima - o pai, Hassan Yousef (a propósito, pelo seu relato, todos adoravam Hassan: generoso, tranquilo e devotado ao Islã).

"Meu nome é Mosab Hassan Yousef. Sou o filho mais velho do xeique Hasan Yousef, um dos sete fundadores do Hamas. Nasci na cidade de Ramallah, na Cisjordânia, e faço parte de uma das famílias islâmicas mais religiosas do Oriente Médio".

Assim Mosab abre o primeiro capítulo. Após algumas digressões históricas, ele nos conta como o pai vivia para a religião e para a família. Mosab queria ser como o pai.

O pai fundou o Hamas como uma instituição religiosa e filantrópica, em uma Palestina que era um barril de pólvora. Aos poucos, o Hamas ganhou o respeito da população e passou a ter relevância política. Se tornou uma alternativa confiável à OLP e à ANP, ambas tidas por corruptas.

Quando um braço do Hamas começou a combater Israel com violência, Hassan, pai de Mosab, não participou. Mas nunca condenou ou procurou restringir as ações violentas. Apesar de "pacífico", era bastante visado por Israel. Assim, por ser notoriamente um fundador do Hamas, Hassan passou boa parte da sua vida em prisões israelenses. Nunca reclamou, porém, ou sequer reportou à família o que suportava na prisão.

Mosab conta que, como filho mais velho de uma família em que o pai passava a maior parte do tempo preso, se tornou uma espécie de pai postiço para os seus irmãos. E também arrimo de família. A despeito da projeção que o pai possuía, e dos muitos tios de Mosab politicamente bem situados, a cada vez que o pai ia preso, ele, a mãe e os irmãos eram acintosamente abandonados.

Quando o pai retornava para casa, refluíam todos. As mesmas reverências, o mesmo respeito. Assim que os israelenses prendiam novamente seu pai, todos sumiam. Não havia dinheiro. Sentiam fome. Mosab passou a vender nas ruas os doces que a mãe preparava. Os tios o proibiram quando souberam. Era humilhante, disseram. Mas não lhe davam os meios para subsistir na ausência do pai.

Mosab era guri na época da Primeira Intifada. Garotos palestinos ganharam as manchetes do mundo tacando pedras em tanques israelenses. Davi contra Golias. Mosab era um deles. Odiava os judeus.

Jogar pedras em judeus, entretanto, era pouco para Mosab. Ele queria sangue. Vingança histórica. Queria matar os judeus. Para isso, precisava de meios. Adolescente, não tinha espaço na organização, mesmo sendo filho do xeique. O próprio pai queria que ele se concentrasse apenas nos estudos. Mas ele queria participar também da guerra contra Israel.

Conseguiu de um primo um contato com um vendedor de armas de segunda mão. Com o dinheiro que economizara, comprou uma pistola e uma metralhadora. Agora sim ia exterminar os judeus. Nos preparativos para o atentado com o qual sonhava, testou as armas. A metralhadora não funcionava. Antes que pudesse exigir o dinheiro de volta, foi capturado pelo serviço secreto de Israel numa blitz.

Foi espancado, torturado e mantido por semanas em uma solitária infecta.

Como era praxe do serviço secreto, após o período de tortura, os presos palestinos, de acordo com sua utilidade potencial, passavam por uma tentativa de cooptação. Os israelenses queriam espiões. Mosab ignorou a oferta.

Foi cumprir sua pena em uma prisão coletiva. Lá, como aqui, os presos são distribuídos pela sua facção. A de Mosab era o Hamas, a maior e mais poderosa (outras eram o Fatah, a Jihad Islâmica e a FDLP/FPLP). Na prisão foi que conheceu de fato como era a organização. O Hamas. Não aquele em que seu pai era um líder da face religiosa do grupo. O Hamas que detinha poder político e militar.

Não era o que ele esperava.

O que Mosab encontrou na prisão foi um sistema despótico, arbitrário e violento. Administrado pelo Hamas, que aterrorizava a todos os detentos. Mas não a ele.

"Por ser filho do xeique Hassan, eu estava acostumado a ser reconhecido em todos os lugares aonde ia", esclarece. "Se ele era o rei, eu era o príncipe, o herdeiro legítimo, e era tratado como tal".

O irmão do seu pai, Ibrahim Abu Salem, estava na mesma prisão, sob detenção administrativa. Era um dos maiorais da cadeia e tinha autorização para circular por todo o campo. Mosab e o tio tinham uma relação apenas cerimoniosa; mas, ainda assim, só isso já reforçava a segurança do "príncipe".

Mesmo estando "imune" à agressão física e psicológica dos maj'd (os xerifes do Hamas na cadeia), Mosab achava o sistema injustificável. Todos os detentos tinham que se comportar rigorosamente dentro dos preceitos do grupo. Quem falhasse em qualquer um dos rituais diários prescritos (despertasse atrasado, ou cochilasse durante uma oração, demorasse um pouco mais no banheiro etc) "ganhava um ponto vermelho". 

Quando um sujeito acumulasse um determinado número de pontos vermelhos, os maj'd mandavam todos os detentos saírem da tenda, traziam o "infrator", aumentavam o som da tv (para abafar os gritos) e davam início ao corretivo. Se havia suspeita de que o punido "falava muito", e tivesse passado alguma informação aos israelenses, a tortura era semanal.

Um dos presos explicou à Mosab os castigos mais comuns. "Eles costumam por agulhas sob suas unhas e derreter bandejas de plástico sobre sua pele", revelou. "Às vezes, colocam um grande bastão atrás dos seus joelhos e o fazem ficar agachado por horas e não o deixam dormir".

Para o Hamas, todos os detentos eram suspeitos, e por isso eram todos continuamente vigiados. E, mesmo sendo o "príncipe", o autor confessa que "tinha medo de cometer um erro, de me atrasar, de continuar a dormir depois da ordem de despertar ou de cochilar durante a jalsa".

Mosab esclarece que "se alguém era 'condenado' pelos maj'd por ser colaborador, sua vida acabava, a vida de sua família era destruída, e seus filhos, sua mulher, todos o abandonavam". Muitas vezes o condenado era inocente, mas só o fato de ter sido acusado era a exclusão absoluta. "Ser tachado de colaborador era a pior reputação que alguém podia ter", diz o palestino. 

Muitas vezes a punição ia além da tortura e da exclusão. De acordo com o autor, de 1993 a 1996 o Hamas assassinou, dentro das prisões israelenses, 16 suspeitos de colaboração.

A vergonha imposta aos que eram poupados da execução fazia deles párias dentro da sociedade palestina. Eram obrigados a assinar confissões admitindo perversões sexuais. Por conta da boa caligrafia, Mosab as escrevia, para que os detentos as assinassem. 

"Eu passava meus dias copiando dossiês sobre prisioneiros", explica Mosab. "Os relatórios se assemelhavam ao pior tipo de pornografia. Homens que confessaram ter feito sexo com a própria mãe. Um detento que declarou ter feito sexo com uma vaca. Outro, com a filha. Um outro, com a vizinha, tendo filmado tudo e dado as imagens aos israelenses".

A obsessão pelo sexo revela muito mais sobre os carrascos que ditavam as confissões do que sobre os pobre coitados que as assinavam. Revela, sobretudo, a cultura primitiva da região.

"Para mim, aquilo parecia loucura", escreveu. "Enquanto continuava a copiar os arquivos, percebi que, sob tortura, os suspeitos eram questionados sobre assuntos que não tinham como conhecer, mas que, mesmo assim, davam as respostas que achavam que os torturadores queriam ouvir".

Mosab reencontrou na cadeia Akel Sorour, um antigo amigo de infância. Se o passado os unia, no presente, porém, Akel estava em situação oposta à de Mosab - era órfão e sua família se resumia a uma irmã. "Isso o tornava muito vulnerável, porque não havia ninguém para vingar sua tortura", esclarece Mosab. Embora fosse membro de uma célula do Hamas e já tivesse sido preso várias vezes, ele era rejeitado pelos prisioneiros urbanos da organização.

"Por ser um simples camponês, seu modo de falar e comer parecia engraçado para os outros que se aproveitavam dele", relata. "Akel tentava de todas as maneiras ganhar a confiança e o respeito dos prisioneiros, cozinhando e limpando para eles, mas era tratado como lixo, pois os outros sabiam que ele os servia porque tinha medo".

Uma vez por mês, as famílias podiam visitar os prisioneiros e levar comida para eles. Akel ganhou duas sacolas da irmã. Ao voltar para a seção, porém, foi levado pelos maj'd para interrogatório. A comida foi extorquida dele e servida para o tio Ibrahim e para outros maj'd. Akel já tinha trabalhado para o tio, pensou Mosab, e até mesmo preparado a comida dele. Não entendia porque Ibrahim não tinha impedido a arbitrariedade.

"Olhei para meu tio e me perguntei por que ele não os deteve. Estivera na prisão com Akel várias vezes, os dois haviam sofrido juntos", questionou. "Será que permitiria a tortura por ele ser um camponês pobre e calado de um vilarejo e meu tio ser da cidade?"

Mosab registrou que "Ibrahim Abu Salem ficou sentado com os maj'd, rindo e comendo os alimentos que a irmã de Akel levara". Enquanto isso, "outros integrantes do Hamas enfiavam agulhas sob as unhas do rapaz".

"Mais tarde, me entregaram seu dossiê para copiar", descreve. "Segundo o relatório, ele confessara ter feito sexo com todas as mulheres da aldeia e também com burros e outros animais. Eu sabia que tudo aquilo era mentira, mas copiei o arquivo e os maj'd o enviaram para o seu vilarejo. A irmã o deserdou e os vizinhos se afastaram".

Akel, que já ficara irreconhecível após a tortura, definhou. Passou a evitar Mosab.

O filho de Hassan julgava os mad'j piores que qualquer colaborador. Estava confuso.

Toda a religiosidade que herdara do seu pai parecia disassociada do Hamas real. A proposta que ouvira do Shin Bet - o serviço secreto de Israel - passou a ser intimamente avaliada. O que os israelenses lhe propuseram foi que contribuísse, sob a alegação de que isso ajudaria a evitar a morte de inocentes palestinos e judeus. 

Ainda que a possibilidade de salvar vidas lhe fosse atraente, Mosab não fazia ideia de como poderia colaborar. Era um garoto, sem acesso a nenhuma informação. Mas a ideia começou a girar na sua cabeça, aumentando a sua confusão.

Lendo a biografia, me pareceu que o abalo das convicções religiosas de Mosab são o cerne da sua história. Nós, distantes deste conflito singular e das culturas que o envolvem, temos escassas ferramentas para aferir com precisão o que pensam os locais. Nossa realidade carece de pontos de contato com a realidade deles. Nossa relação com a religião é outra. 

Seja como for, fundamental para que possamos bem avaliar a situação é conhecer o relacionamento e o sentimento entre pai e filho - o fundador do Hamas e o alardeado "filho do Hamas". Para tanto, vou transcrever alguns trechos em que ele se refere ao pai.

"Meu pai nunca me ensinou a odiar, mas eu não sabia como evitar esse sentimento. Embora ele protestasse calorosamente contra a ocupação - e acredito que ele não hesitaria em ordenar um ataque nuclear à nação de Israel se dispusesse das bombas -, nunca disse nada contra o povo judeu, ao contrário de alguns líderes racistas do Hamas", conta Mosab. "Meu pai estava muito mais interessado no Deus do Alcorão do que na política".

"Meu pai era o Islã para mim. Se eu tivesse de colocá-lo na balança de Alá, ele pesaria mais que qualquer outro muçulmano que conheço". Ressalta que ele "nunca perdeu a hora de uma prece e, mesmo quando chegava tarde e cansado, eu o ouvia orando e fazendo súplicas ao deus do Alcorão no meio da noite. Ele era humilde, amoroso e clemente com a esposa, os filhos e até mesmo com desconhecidos". 

O comentário seguinte é quase uma chave para a interpretação do conceito de religião por parte de Mosab. "Mais do que um defensor apaixonado do islamismo, meu pai vivia como um exemplo do que deveria ser um muçulmano. Ele refletia o lado bonito do Islã, não o lado cruel que exigia que seus seguidores conquistassem e escravizassem o mundo".

(Hoje, mais de uma década após o lançamento do livro, o Hamas permanece financiado pelo Irã, uma ditadura religiosa islâmica xiita. Seus líderes pregam a conquista do mundo em nome de Alá. Seu objetivo prático é a morte dos infiéis - todos os não muçulmanos, o que inclui você, que lê este post.)

"Seu amor pelos muçulmanos e sua devoção a Alá nunca esmoreceram", insiste o autor. "Ele ansiava pela paz para seu povo e havia trabalhado a vida toda para atingir aquele objetivo".

Mosab, que com o passar dos anos se tornara o guarda-costas do pai, e que se considerava "seu aluno e confidente", é aqui definitivo em sua relação com a figura paterna, um dos fundadores do Hamas. "Ele era tudo para mim. O melhor exemplo do que significava ser um homem". 

Após mais um atentado terrorista com muitas vítimas, temia pela vida do pai, pois acreditava que o governo israelense estava determinado a matá-lo. "Embora não tivesse organizado os atentados suicidas, ele, de qualquer maneira, era culpado por ter ligações com os envolvidos no massacre".

Pondera também que "além disso, ele tinha informações que poderiam ter salvado vidas e não as divulgara". Ele tinha convicção que Hassan poderia ter detido a escalada da violência. "Meu pai tinha influência, mas não sabia usá-la. Poderia ter tentado deter a matança, mas não o fizera".

O pacote que levou o primogênito de um dos sete fundadores do Hamas a cooperar com o serviço de inteligência de Israel era complexo e envolvia variáveis improváveis. Uma delas foi sua aversão à violência e arbitrariedade dos líderes do grupo contra os próprios integrantes, onde sub-líderes exerciam um comportamento oposto ao do seu pai.

Outra foi a conversão do devoto e religioso Mosab ao cristianismo. Ao ter acesso na cadeia a uma Bíblia vertida para o árabe, ele se identificou muito mais com a postura humanitária e os ensinamentos de tolerância de Jesus Cristo do que com os preceitos intransigentes do colérico Alá.

Foi o amor pelo seu povo e pela vida humana que levaram Mosab Yousef a rejeitar a política indiscriminada de terrorismo praticada pela organização criada, com outros propósitos, por seu pai. Segundo ele, contribuir para evitar a morte de inocentes - sejam muçulmanos, judeus ou cristãos - se tornou sua causa maior.

E, ao lado desta, sem sombra de dúvida, a possibilidade de proteger a vida do pai. Que, a certa altura, passou a ser ameaçada pelo próprio Hamas, quando Hassan deu declarações públicas favoráveis a criação dos dois Estados. 

Mosab diz que a visão do seu pai sobre a questão palestina-israelense evoluíra com o passar dos anos. Ele teve influência nisso, mas não só: o pai ouvia a todos e gostava de absorver o conhecimento alheio. Como frisa o filho, "por esse motivo sua visão era muito mais clara e ampla do que a dos outros líderes do Hamas".

"Ele via que Israel era uma realidade imutável e reconhecia que muitos dos objetivos do Hamas eram ilógicos e inalcançáveis", conta Mosab. "Queria encontrar um meio-termo que ambos os lados pudessem aceitar sem se humilhar e perder o respeito".

O autor conta que no primeiro discurso público que Hassan fez após um longo período na prisão (falo dela mais à frente), "ele sugeriu a possibilidade de haver dois Estados, o que traria uma solução para o conflito. Ninguém no Hamas tinha dado uma sugestão desse tipo". 

Com isso, admite, "meu pai estava reconhecendo o direito de existência de Israel!"

Esse reconhecimento, porém, era inaceitável para o Hamas. O poder político e financeiro do grupo - leia-se os seus líderes - dependia do não-reconhecimento do Estado judeu. Àquela altura, a "causa" do Hamas não era um fim. Era um meio que assegurava status e dinheiro aos chefes da organização.

E mais ainda com a possibilidade, surgida em 2005 (cinco anos antes da publicação do livro), do Hamas se constituir em um partido político e disputar as eleições para governar os palestinos.

Hassan Yousef foi questionado e pressionado para retroceder. Para desgosto de Mosab, o pai recuou.

Depois de ter participado de inúmeras operações que evitaram atentados à bomba e que levaram à prisão de terroristas (vale a pena você ler a biografia para conhecer os detalhes destas ações), a única preocupação de Mosab era com a segurança do próprio pai, paradoxalmente cada vez mais um alvo potencial do Hamas.

Mosab confessa que seu idealismo foi derrotado pela escalada de violência e pela cupidez ilimitada do grupo. Não via escapatória para si mesmo, nem para suas aspirações, nem para o povo palestino. O círculo vicioso de ódio e ignorância estava de tal forma entrelaçado que ele capitulou.

Articulou com o serviço secreto israelense sua própria prisão e a prisão do pai - acreditava que Hassan estaria mais seguro em uma cadeia do que na Cisjordânia. E ele mesmo, Mosab, preso, estava a um passo de abandonar aquele mundo. Combinou que seria libertado após um tempo encarcerado e em seguida tirado do país.

Via Síria, foi para os Estados Unidos, sozinho. Seu projeto era recomeçar a vida, do zero. Um jovem palestino cristão em mundo desconhecido. Mas não é fácil deixar uma vida (ainda mais uma vida como essa) para trás. Fosse uma tentativa catártica de se desconectar do seu passado, uma carta de amor ao pai ou uma aposta em um novo ponto de partida, resolveu escrever a própria história. 

"Meu nome é Mosab Hassan Yousef. Sou o filho mais velho do xeique Hasan Yousef, um dos sete fundadores do Hamas. Nasci na cidade de Ramallah, na Cisjordânia, e faço parte de uma das famílias islâmicas mais religiosas do Oriente Médio". 

Editora Sextante, 287 páginas |  1a edição  | Copyright  2010  |  Tradução Marcello Lino 

Título original: "Son of Hamas"