"Getúlio, 1882 - 1930", por Lira Neto

segunda-feira, abril 21, 2025 Sidney Puterman


Na infância, minha convivência com Getúlio era puramente interesseira. O cabeçudo estampava a nota de dez cruzeiros. Os sisudos Caxias (dois cruzeiros) e Barão do Rio Branco (cinco cruzeiros) valiam menos. A feiosa Princesa Isabel valia cinquentinha - mas essa nunca me caiu na mão. Que dirá a do barbudo pai dela, D. Pedro II, montado em inatingíveis cem cruzeiros.

Pra mim, nossos vultos históricos eram literalmente moeda de troca. Quando alguém me dava uma nota com a cara lisa do Getúlio, eu corria na banca da esquina e trocava por dois gibis da Ebal.

À medida em que deixei de ser guri, tomei ciência de que o muita testa da nota esverdeada era o presidente mais reverenciado da História do Brasil. Nas leituras que se seguiram, percebi também que o baixola era muito incensado, mas pouco perscrutado. Li textos onde o conteúdo era mais retórico que histórico, mais hagiológico que biográfico. Em suma, uma literatura capenga.

Faltava uma obra à altura do espaço que Getúlio Vargas ocupava no imaginário do Brasil.

Enfim, o cearense Lira Neto chamou para si a responsabilidade em escrever a biografia completa de Getúlio Vargas. O brasilianista Thomas Skidmore, autor de "Brasil: de Getúlio a Castelo", troçava que a tarefa de biografar Getúlio demandaria "quase toda a vida de um eventual biógrafo". 

Não sei quanta vida tomou de Lira Neto. Mas gerou um calhamaço de mais de 1.800 páginas, distribuído em três tomos (para conforto do leitor). Hoje posto aqui o primeiro deles. O "soldado".

As três lombadas seccionam cronologicamente a trajetória de Getúlio Vargas.

Ainda que o próprio autor refute a ideia de três "Getúlios" (com cada um correspondendo a um tomo - o "revolucionário", até 1930; o "ditador", até 1945; e o "democrata", até 1954), faz sentido isolar as várias facetas de um mesmo personagem. É uma peça em três atos.

Políticos constroem uma persona pública por meio das quais interagem e desejam ser identificados. Nós, reles cidadãos, decupamos o enigma proposto quando, e se, uma biografia honesta os decodifica. Aí sim espreitamos o que estava velado pelas cortinas. É quando o figurão garboso no pedestal perde alguns dos seus disfarces e tem seus truques revelados.

E o figurão Getúlio tem uma magia bem peculiar. Bonachão, arguto e nada marcial. Ainda assim, chamei o primeiro de seus personagens de "soldado" porque ele mesmo assim se intitulou, na página do seu diário alusiva à sua posse como chefe de governo.

"(...) Eu entrei de botas e esporas nos Campos Elíseos, onde acampei como soldado, para vir no outro dia tomar posse do governo no Catete, com poderes ditatoriais".

Podemos ver o "soldado" em dezenas de fotos da época. Um coroa baixinho e rechonchudo numa veste militar. Tronco curto, com um cabeção e um ventre saliente, e perninhas miúdas enfiadas em botas enormes. Bem mais para anão de jardim que para combatente. Que soldado era esse?

Nem de todo farsa, nem de todo real. Quem ler a biografia de Getúlio escrita por Lira Neto irá descobrir. Tinha seus antecedentes. Manuel Vargas, pai de Getúlio, lutou na Guerra do Paraguai, comandando sua tropa. Saiu do conflito com patente de general e terras em São Borja.

Ligado ao principal grupo político do Rio Grande, chefiado por Júlio de Castilhos, e depois por Borges de Medeiros, Manuel Vargas sempre esteve próximo do poder. E doravante os Vargas foram o poder constituído em São Borja e arredores.

Dos filhos, o mais violento era Viriato, envolvido em pelo menos dois assassinatos. Já de Getúlio, roliço, pacato, o pai esperava tudo, menos um guerreiro. O menino surpreendeu o pai. Cismou de fazer o colégio militar. Cursou o colégio por mais de um ano, mas acabou abandonando, envolvido em uma revolta estudantil contra a péssima conservação das instalações.

Getúlio Vargas trocou de carreira - se formou advogado e foi indicado para promotor em Porto Alegre. Tudo a ver com seu jeitão. Mas aí estourou mais uma revolução gaúcha, entre chimangos (seu lado familiar) e maragatos, e ele voltou para São Borja, para estar ao lado do pai e dos irmãos.

A liça foi breve e ele retornou a Porto Alegre, onde (sob as bençãos de Borges de Medeiros, o grande manda-chuva local e do qual Manuel Vargas era tributário e aliado) se tornou deputado. Lógico que houve uma eleição. Mas eleições, naquele tempo, eram pro-forma. Vencia quem o presidente do estado dizia que venceu. Era tudo descaradamente fraudado.

Getúlio logo se revelou um político de berço. Sereno, conciliador, matreiro, cativava amigos e adversários. Suas manifestações na tribuna, somadas à confiança que o Borges depositava nele, o guindaram ao cargo de representante da bancada gaúcha na Capital Federal. 

Vargas deu tão conta do serviço que, no governo do recém eleito presidente do Brasil, Washington Luís, foi escolhido para Ministro da Fazenda. E olha que fazer contas nem era seu forte.

A imprensa não aliviou. O gaúcho não tinha predicados para a pasta. Era um político novo e não entendia patavinas de economia. Já Washington desdenhou. Disse que de economia entendia ele e bastava. E Getúlio acabou que conquistou mais apoios. O baixinho era danado.

O problema é que o país estava em convulsão política. Como sempre, aliás. Até postei aqui semanas atrás o livro do Pedro Doria sobre o tenentismo. Nele o jornalista esmiuça o golpe militar de 1922, a Revolução Gaúcha de 1923 e a Revolução Paulista de 1924, que desbocou na Coluna Prestes, ativa até 1927. Tá tudo no livro.

Getúlio Vargas largou o ministério para se tornar presidente do Rio Grande do Sul. Sua indicação era fruto de um acordo entre as duas grandes facções gaúchas - republicanos e libertadores - para que o sempiterno Borges de Medeiros, depois de cinco mandatos, entregasse o poder. Getúlio deixou de ser ministro, foi presidir o estado, mas preservou seu ótimo relacionamento com Washington.

Como sabido, àquela época São Paulo e Minas se revezavam na presidência. Era a tal República do Café com Leite. Mas Washington Luís, que já havia presidido São Paulo, queria emplacar seu candidato, o paulista Júlio Prestes. Os mineiros não gostaram. Foi soprado um nome de consenso. Uma candidatura gaúcha.

Podia ser "consenso" para a Aliança Liberal, o partido que fazia oposição ao governo. Para Washington, era uma traição. Principalmente quando o candidato aventado era o seu ex-ministro. 

Getúlio não gostou nem um pouco da ideia de ser lançado candidato a presidente. Por inúmeras razões. Primeiro, porque achou que não ganharia. Segundo, porque achava que, se ganhasse, não levaria. Terceiro, entrar em choque com o governo federal significaria cortar todas as linhas de crédito que vinham beneficiando o Rio Grande, todo endividado.

Getúlio não queria desagradar seus parceiros locais, se negando à candidatura. Mas também não queria afrontar Washington Luís, seu ex-chefe e, até então, conveniente aliado.

Acontece que havia muitos focos revoltosos país afora avessos a Washington Luís. O Rio Grande exercia uma liderança natural, pois o tenentismo estava mais estruturado lá do que em qualquer outra parte do país. Outro estado pegando fogo era a Paraíba. João Pessoa (que veio depois dar seu nome à capital) era o governador local, contra o governo federal e as forças conservadoras da região.

A terceira perna do grupo que queria derrubar o governo estava fincada em Minas Gerais. 

O nome de Getúlio Vargas ganhou cada vez mais força, ele que só queria governar o Rio Grande em paz. Mas Vargas acabou muito mais um joguete das circunstâncias do que condutor do próprio destino. Foi lançado candidato. Washington estrilou. Getúlio negou, mas outros fatos evidenciaram que ele dizia uma coisa em público, mas manobrava por baixo dos panos pela candidatura.

Os jornais estampavam nas manchetes as evidências do Getúlio traidor.

Traidor ou não, Getúlio tentou de toda maneira recuar. Mas era tarde. Seu nome foi para as urnas. Não levou, como ele já bem sabia. No Brasil de então, o voto era impresso, mas ganhava quem o presidente queria que ganhasse. Como já disse acima, a eleição era só para satisfazer as aparências.

Houve uma grita contra o resultado da eleição. Getúlio queria que ficasse tudo por isso mesmo. Se reaproximou de Washington Luís, com mensagens conciliatórias. Mas mataram João Pessoa (vice na candidatura de Getúlio) pelas costas. Até hoje se questiona se foi um crime político ou de vingança pessoal. Mas não importa. Naquele momento, tudo tinha um peso político.

O trinômio Rio Grande do Sul, Paraíba e Minas Gerais precisaria reagir em conjunto ao assassinato e dar uma resposta à altura. O Rio Grande resolveu se levantar contra a República. Getúlio assentiu. Os gaúchos fizeram sua bravata - iriam amarrar os cavalos no Obelisco em frente ao Senado Federal.

A princípio parecia que não daria em nada. Minas prometera muito e entregava pouco. Mas os gaúchos se articularam, mataram a resistência federal no estado ("mataram" do verbo matar, dezenas de oficiais legalistas foram mortos, Porto Alegre ficou em chamas) e embarcaram no trem rumo ao sudeste.

Uma vez "revolucionário", Getúlio intimamente se preparara para o pior. Seu código de honra era extremo. Caso a revolta desse com os burros nágua, suicidaria. O que ele enfim viria a fazer, em 1954, já ameaçava em 1930. E ameaçaria de novo em 1932.

Não foi necessário. A Revolução triunfou no Rio Grande. Agora era avançar e tomar conta do país.

Getúlio, o candidato preterido, aquele que assumiria a nação, foi no trem da soldadesca, num vagão que mais parecia um spa. Vestiu um uniforme de campanha, para ficar consoante com o espírito da coisa. Mas o avanço da Frente Revolucionária estava mais para festa do que para guerra.

Ainda no Rio Grande, "em todas as cidades do trajeto, maragatos e pica-paus confraternizavam, dando vivas a Getúlio em uma só voz. O povo cercava o trem, entoava hinos cívicos e aplaudiam febrilmente os soldados que apareciam às janelas da composição", relata Lira Neto.

As refeições eram feitas em pratos de porcelana e taças de cristal. "Havia razões para aquela caravana ser tão pouco marcial", explica o autor. Enquanto estivessem em território gaúcho, "o perigo de se deparar com tropas e reações legalistas pela frente era quase nulo".

As forças legalistas sediadas em Santa Catarina meteram o pé, diante do avanço revolucionário. Lira estima que mais de cem comboios cruzaram o rio Uruguai, na divisa dos dois estados, carregando as tropas da Revolução. Os vagões iam lotados e voltavam vazios, para buscar mais soldados.

De guerra, por enquanto, nada. Só muito oba-oba. Isso aqui é Brasil.

A chegada a Curitiba foi "deslumbrante", segundo o próprio Getúlio. Fardado, saiu do trem para uma limusine que o levou diretamente ao palácio do governo estadual. "Com um vistoso arranjo de flores sobre o capô, o veículo mais parecia um carro alegórico", pontua o biógrafo.

À medida em que os revolucionários avançavam e os legalistas recuavam, a batata do presidente Washington Luís ia assando. O emparedamento já era tal que o alto-comando das forças armadas chamou o protagonismo para si e apresentou um ultimato ao presidente, informando-o, na cara dura, que uma "Junta Governativa Provisória" assumira o comando da nação.

A heróica Revolução virou um reles golpe militar.

Pela manhã, Washington, encolerizado, prometeu aos seus ministros: "Só aos pedaços sairei daqui!". Avisado que aviões do Exército bombardeariam o Catete, bradou: "Que bombardeiem, mas não saio!"

À tarde, o brioso Washington, prudentemente, reconsiderou. Aceitou se entregar e foi feito prisioneiro no Forte de Copacabana. Seguiu para o cárcere numa limusine Lincoln modelo 1928.

Com o presidente deposto, a Junta Governativa tentou dar um golpe de mão nos revolucionários, dando a entender que ela presidiria o país até que fosse organizada uma nova eleição. Getúlio e seus aliados, que vinham em direção ao Rio, mandaram avisar que a banda tocaria de outra forma.

"Acho-me nas fronteiras do estado de São Paulo com 30 mil homens de tropas do Exército e do povo do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, perfeitamente armados e municiados, agindo em combinação com Minas e com o Norte, sob direção de Juarez Távora", escreveu Getúlio à Junta.

"Não somente para depor Washington Luís", continuou, "mas também com o fim de realizar o programa da revolução. Os membros da junta no Rio de Janeiro serão aceitos como colaboradores, porém não como dirigentes, uma vez que seus elementos só participaram da revolução quando ela já estava virtualmente vitoriosa".

Para bom entendedor, meia palavra basta. A Junta enfiou a viola no saco. "Estou pronto e sempre foi este o meu pensamento, passar o governo a Vossa Excelência quando Vossa Excelência aqui se apresentar", escreveu de volta o general da Junta, Tasso Fragoso.

Getúlio Vargas chegou na Estação da Luz, em São Paulo, no dia 29 de outubro. "Foi recebido com glórias de herói", com duas mil pessoas na gare, esperando por ele. Dois dias depois, a cena foi reproduzida tim-tim por tim-tim na Central do Brasil, no Rio de Janeiro.

O populacho do Distrito Federal repetiu o paulista. Se os paulistanos celebraram um sujeito que nunca viram mais gordo, os cariocas duplicaram a festa por alguém que mal conheciam.

"Cada pessoa, entre os milhares ali presentes, queria chegar mais próximo de Getúlio para olhá-lo bem de perto e, se possível, tocar-lhe a mão", descreve Lira. "Na balbúrdia que se formou, os mais velhos eram derrubados; as mulheres, atiradas ao chão; as crianças, pisoteadas", continua. "Os mais afoitos, ignorando as medidas de segurança, se precipitavam perigosamente, em ondas, rente ao vão entre a plataforma e os trilhos".

Quando o pequeno gaúcho de São Borja conseguiu se desvencilhar dos seus novos súditos, entrou no carro aberto da presidência da República, um Lincoln modelo L, que aguardava por ele. O trajeto se deu pelas avenidas entulhadas de gente: Marechal Floriano, Visconde de Inhaúma, Rio Branco e Avenida Beira Mar, até o Palácio do Catete - seu novo endereço nos quinze anos seguintes.

Foi coreografada então a cena que, antes prometida como uma bravata, entraria para a história: gaúchos, de uniforme de campanha, amarrando seus cavalos no obelisco defronte à Cinelândia.

O que a minuciosa biografia de Lira Neto nos oferece neste primeiro volume é a história de um político de pouca expressão (e reduzida experiência) ser enviado para a capital como novo representante da bancada gaúcha - e pau-mandado do caudilho do Rio Grande, Borges de Medeiros.

Habilidoso, cativou o presidente do país, Washington Luís, e, numa dança partidária das cadeiras, acordou ministro da Fazenda, sem entender bugalhos de economia. Num jogo de conveniências da política estadual, abandonou o ministério para se tornar governador do Rio Grande.

De volta a seu estado, em um momento em que a política nacional era um vulcão cuspindo fogo, seu nome é costurado por mineiros e gaúchos, à revelia da vontade do próprio Getúlio, como candidato de oposição ao governo federal - traindo o seu ex-chefe direto, o presidente da República.

Após muitas idas e vindas, Getúlio aceita, perde a eleição e se conforma; mas o resultado é contestado por seus pares e a aliança formada por gaúchos, mineiros e paraibanos se levanta em armas contra o governo, que promete resistir - mas se rende.

As centenas de vagões, trazendo trinta mil soldados e, no luxuoso carro-dormitório, o doutor Getúlio Vargas e comitiva, vem de Porto Alegre ao Rio de Janeiro em ritmo de festa. O até então semi desconhecido são-borjense assume o Catete e uns gaúchos de anedota dão a volta no Obelisco.

Termina o primeiro livro e começa um novo capítulo para a história do Brasil.

"Poucas vezes vi alguém descrever tão bem a história de Getúlio Vargas e do povo gaúcho como o Lira Neto na primeira parte da sua trilogia. Foi tão impactante para mim que me vi andando com Getúlio, fumando um charuto, pela Rua da Praia, em Porto Alegre", escreveu, na contra-capa... Lula! 

Sim, é bem possível imaginar Lula confabulando e fumando um charuto.

Mas lendo um livro?

Companhia das Letras, 629 páginas  |  1a edição, 2012


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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