"Inverno na manhã", por Janina Bauman

domingo, julho 21, 2019 Sidney Puterman

O subtítulo - "uma jovem no Gueto de Varsóvia" - antecipa que será uma leitura doída. Então, ao ter o livro nas mãos, sinto um aperto. Normal. Sei que vou sofrer junto com a autora e com os personagens, todos tão reais como você e eu. Lógico que este sofrimento é retórico. Não estamos lá, naquele tempo. Sequer estávamos vivos. Mas, ao lermos, a distância evapora. Hipnotizados pelo texto, ao fim de cada frase tudo nos parece dolorosamente real. No capitulo seguinte, estaremos num labirinto, cercados por verdugos, com frio e fome. Escolado de outros livros, já sei como é. Sigo, página a página, revisitando as mesmas crueldades, a mesma vilania, a mesma sensação de impotência. Me escondo dos nazistas e vejo outros fugitivos perdendo tudo: amigos, família, saúde, dignidade, amor próprio. Sei que, impotente, terminarei o livro querendo permanecer unido àqueles que enfrentaram toda aquela ignomínia - os muitos mortos e os poucos sobreviventes. Mas isto não existe. Para nós, meros leitores, tudo acabará com a volta do livro para a prateleira. Nos resta pensar que é só uma velha estória de genocídio, dos tempos em que o mundo ainda era em preto-e-branco. Igual a tantas outras estórias de desgraça, durante os anos da carnificina alemã. Igual? nem tanto. Cada uma destas estórias, por mais semelhantes que sejam, tem uma personalidade ímpar e nos cativa. Se iguais por se tratarem de relatos de quem esteve por morrer inúmeras vezes, pelos mesmos algozes, são distintas porque cada uma revela ângulos e detalhes ainda desconhecidos da tragédia. Nos tomam de uma outra forma. A história de Janina Bauman é dessas. Descortina flagrantes de uma cidade que permanecia viva sob o domínio dos boches. Com Janina soube de uma vida social do gueto que eu desconhecia (espetáculos de música, restaurantes sofisticados, hortas coletivas; ainda que clandestinamente, durante um bom tempo quem pudesse pagar desfrutava intramuros de um cotidiano com luxo e regalias). Soube pelo livro da Varsóvia que desmoronou em etapas. Soube ainda da existência desta judia, cuja coragem à época faz dela exemplo para o protagonismo feminino de hoje. É o que nos oferece o livro. Nele, Janina conta em ritmo cronológico a sua história. Começa com a descrição dos tempos de criança, antes da guerra. Do seu particular estranhamento ao judaísmo. Da sua rotina de rica menina judia em uma nação antissemita, preconceito volta e meia referido, como quando ela conta, ainda no tempo de paz, sobre seus planos de ser ser médica, tal qual o pai: "Era difícil para qualquer um entrar na escola de medicina da Universidade de Varsóvia - para uma moça ou rapaz judeu, era quase impossível. Embora as universidades polonesas não tivessem chegado a adotar a exclusão total, havia não obstante uma clara restrição extra-oficial ao número de judeus admitidos como alunos, em particular nos cursos que formavam profissionais liberais, como medicina." Até o início da adolescência, Janina ainda vivia na sua bolha feliz, adaptada ao racismo belicoso da cultura local. A erupção da guerra, porém, desarticula o arranjo social. Seus imaturos olhos adolescentes testemunham a degradação da vida sob jugo alemão. Ressalte-se que o confinamento no gueto se deu em várias fases, não foi linear: por ainda alguns meses foi possível a Janina ter uma vida digna, enquanto assistia milhares de conterrâneos judeus morrendo de inanição pelas ruas do bairro murado. A partir daí, a piora foi rápida. Quando começaram as deportações em massa, o gueto já era o inferno. Já aí o cotidiano de Janina não era mais do que se esconder, procurar restos de comida, se esgueirar entre becos e prédios abandonados e escapar das patrulhas de execução. Nesse período assistiu a irmã de onze anos ser atropelada, por um caminhão alemão, pelo que lhe pareceu puro sadismo do motorista. Para alívio da família, após a ameaça de cegueira e amputação, Sophie sobreviveu, sem sequelas. Já então dignidade não era mais um sentimento cabível. O regime alemão havia transformado seres humanos em ratos. Ela mesma comenta: "Logo me acostumei a remexer as casas de pessoas mortas e até aprendi a tirar algum prazer disso. Sabia que a corrupção havia se infiltrado em minha alma e eu não estava dando a mínima." A deterioração das condições de vida no gueto - uma frase perversa, pois foi a queda do indizível ao inominável - é um ângulo importante trazido por Janina. Ela descreve o terror provocado pelas Aktions, as ações para captura de judeus no interior do gueto, para deportação para os campos de concentração. Ainda que vivendo em condições subumanas, as famílias tentavam se manter coesas e com expectativa de sobrevivência, dentro do ambiente de circulação vigiada do gueto. A partir de julho de 1942, entretanto, a administração nazista resolveu esvaziar o bairro murado onde viviam meio milhão de pessoas. As convocações voluntárias para que os judeus partissem em direção ao leste (sob promessa de trabalho e moradia, mas que eram na verdade uma farsa para conduzir os judeus cordatamente aos campos de extermínio) foram substituídas pelas Aktions. Estas eram blitze que apanhavam todos os judeus que estavam nas ruas do gueto e os levavam dali diretamente para os trens de deportação. As operações de caça duravam até que se atingisse a cota do dia. Isto fazia com que informações privilegiadas sobre os dias das Aktions corressem de boca em boca, levando as pessoas a não saírem ou a se esconderem nos dias de captura. Em semanas, porém, pela ausência de judeus disponíveis nas calçadas, as buscas avançavam pelos prédios, e, à medida em que estes iam sendo esvaziados, pedaços do gueto eram devolvidos à cidade. As possibilidades de permanência no gueto iam se extinguindo, restritas aos trabalhadores-escravos ainda considerados essenciais pelos alemães. Um ano depois, o bairro de aprisionamento dos judeus foi destruído, incendiado pelos nazistas. À custa das jóias e do tio motorista de ambulância - que morreu sem que Janina soubesse se era corrupto ou herói -, mãe e filhas se mantiveram à salvo da morte e da deportação. Mas o desmonte prosseguiu, e seu derradeiro ato foi o Levante do Gueto, onde, de 19 de abril a 15 de maio de 1943, rebeldes judeus liderados pelo jovem Mordechai Anielewicz enfrentaram e mataram centenas de soldados do Reich. Mordechai tombou em 8 de maio e o levante, desde o início utópico e suicida, foi debelado na semana seguinte. A resistência judaica teve colaboração de poloneses cristãos (versão sustentada por Julian Kulski em seu "A cor da coragem", livro recentemente resenhado aqui neste blog) e certamente inspirou o Levante de Varsóvia, que aconteceria no ano seguinte, em 1o de agosto de 1944 - tema de uma obra seminal de Norman Davies, que em breve comentarei aqui também. O cartaz que Janina vira no gueto no ano anterior (um folheto que dizia "Irmãos, não morram em silêncio. Resistam ao terror nazista. Vamos lutar."), assinado por uma tal ZZW, havia antecipado tanto a luta quanto a derrota. Em quatro semanas as forças especiais da SS carbonizaram os revoltosos. Dos escombros do gueto foi acionada a rede de auxílio a Janina, sua irmã e sua mãe. Mulheres abnegadas e corajosas ajudaram as três. Algumas por laços de família, outras por amizade ou caridade e algumas mais por dinheiro. A pequena célula familiar, constituída por três mulheres em fuga permanente, passou por mais de 20 esconderijos ao longo de seis anos, na Polônia ocupada pelos nazistas. Foram caçadas pela SS, confinadas no gueto, embarcadas em vagões de transporte, ameaçadas de estupro e escondidas em sótãos, porões, paredes falsas, armários, bordéis e em apartamentos de antigos ricos. Estiveram boa parte do tempo a um triz da descoberta e da morte. Exceção das exceções, sobreviveram - fazem parte do punhado de milhares de exceções em meio aos milhões de mortos. Sua fuga incessante conta muito da sina dos judeus e dos poloneses. O livro de Janina Bauman, née Lewinson, foi uma surpresa. Não esperava fosse tão bom, quer pelo conteúdo, quer pela forma. Pesquisando após a leitura da obra, descobri que ela se tornou jornalista e escritora, e que veio a casar com o famoso filósofo polonês Zygmunt Bauman. Talentosa, me fez procurar por outros livros seus. Um título que me despertou o interesse foi "A Dream of belonging: my years in Postwar Poland" (em tradução literal, "Um Sonho de pertencimento: meus anos na Polônia do pós-guerra"), mas está esgotado mesmo nos sites estrangeiros. Continuarei procurando, quero retomar minha vida com ela pelas ruas da Varsóvia arrasada. Conhecer seus pensamentos sobre a Polônia que sobreviveu ao Reich, mas não aos russos. Esta é a magia suprema da literatura: Janina partiu do planeta em 2009, mas eu ainda irei encontrá-la em 1945 e escutarei dela mesma tudo o que se passou. Aos meus olhos de leitor, viva.

Jorge Zahar Editor, 230 páginas

P.S.: Tirei a foto no Uprising Museum de Varsóvia, ao lado de um dos muitos painéis revivendo a capital polonesa do final dos anos 30. Um museu único, triste e sombrio.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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