"Sem nunca jogar a toalha", por George Foreman
George Foreman era um tubarão. Um grande tubarão negro. Seus olhos miúdos e sua couraça imponente não deixavam margem à dúvida. Se ele viesse em sua caça, você estava morto. Não importava quem você fosse, seu destino era um só. Lona.
Eu, criança, fiquei pilhado para essa luta, entre o tubarão predador e o ex-campeão lendário. Poucos anos antes, ele fora destronado por Joe Frazier (vi essa luta também, em preto-e-branco, numa transmissão que varou a madrugada), que depois fora despejado, debaixo de cascudo, por Foreman.
A imprensa proclamava que a luta entre Cassius Clay, ops, Muhammad Ali, e Joe Frazier era a "luta do século". Eu, bobinho, acreditava. Depois vieram mais umas quinze "lutas do século" - e o século ainda era o mesmo. Descobri que a "luta do século" era sempre a última.
Ali e Frazier eram o topo do boxe. Era como Roger Federer e Rafael Nadal foram anos depois, no tênis - absolutos. Aí surgiu o intruso George Foreman e implodiu Frazier em questão de minutos. Foi como se o Djokovic chegasse e eliminasse ambos por quarenta a zero no primeiro game.
A luta entre o campeão tubarão e a presa desafiante se daria no Zaire, um país africano que nem existe mais (eles vivem trocando o nome dos países por lá, dependendo do tirano da vez). Foi batizada de "The Rumble in the Jungle" e talvez tenha sido a maior luta de boxe de todos os tempos.
Ou seja, dá para dizer que esse confronto em Kinshasa, em 1974, foi mesmo a "luta do século".
Tanto que virou livro ("A luta", por Norman Mailer, postado aqui no blog dez anos atrás) e filme ("When We Were Kings", lançado em 1996). Você leu? se não, leia. Você viu? Se não, veja. É uma história épica. A jornada do herói. Sim, o inconcebível aconteceu. O ex-campeão abateu a murros o temível tubarão. E, não tivesse sido o avesso do nocaute esperado, não teria entrado para a história.
Mas o inesperado se deu. Muhammad Ali, a versão islâmica de Cassius Clay, cansou as mandíbulas do tubarão. O monstro definhou de fome. Morreu de tanto dar dentadas a esmo, sem destroçar sua presa. A tática maluca utilizada por Ali foi batizada de rope-a-dope.
Não é qualquer ser humano que pode performar uma rope-a-dope strategy. Você precisa ficar pendulando para trás e para a frente nas cordas do ringue, enquanto um animal te espanca. A ideia é fazer o animal (o adversário) cansar de te bater. Se você não for nocauteado e sobreviver, aí sim você esmurra o animal cansado, que, extenuado, cai.
Foi o que fez Muhammad Ali contra George Foreman. Em seu livro "God in my corner", bisonhamente traduzido em português como "Sem nunca jogar a toalha", Foreman diz, contudo, que o "dope" da tal técnica foi literal. Ele teria sido dopado com uma espécie de sonífero, antes da luta.
E não só. Foreman confessa que o árbitro teria pedido 25 mil dólares ao seu agente para não desqualificá-lo. George resolveu pagar. Ele tinha fama de ser um lutador que dava socos abaixo da linha da cintura. Não quis correr o risco de ser desqualificado e ter seu cinturão roubado.
Algum tempo depois soube que o agente de Ali havia pago 35 mil dólares ao mesmo árbitro. Só aí entendeu melhor a pressa com que ele havia feito a contagem que deu a vitória ao adversário.
"Lutei limpo, e não fiz nada que teria me desqualificado, por isso desperdicei 25 mil dólares sem necessidade", reclama. "Mas quando Ali me derrubou, o árbitro contou rápido demais. Quando me levantei no oito, ele contou 'oito-nove-dez' como uma palavra só".
Certamente soam como desculpas. Mas fazem todo sentido. Eu, menino - reitero -, vi a luta. Tudo indicava que Ali seria trucidado pelo tubarão, sem dó nem piedade. Mas o tubarão, com 25 vitórias e zero derrota, "cansou". Eu, ehm. Todos celebraram que a estratégia suicida funcionou.
Eu também fiquei feliz. Torci muito pelo Cassius Clay contra o grande tubarão preto.
O livro de Foreman conta que essa luta foi decisiva para a sua vida. Segundo o próprio, ele perdeu, mas ganhou. Teria sido ali que ele começou a trilhar o caminho para Deus. Fico feliz demais por ele. Mas esse é só um prenúncio do que é o livro. É um (bom) exemplo do que se convencionou chamar no mercado editorial de literatura de auto-ajuda.
Nele, o ex-campeão mundial de boxe George Foreman traz conselhos de como superar as adversidades e como encontrar a si mesmo através da fé. Foreman foi um legítimo campeão e escreve um texto convincente (óbvio que com a ajuda de um ghost-writer, no caso, Ken Abraham).
Há muitas lições a aproveitar. Foreman se abre com tocante sinceridade e nos oferece palavras de conforto e conselhos sábios. Muitas das suas afirmações me comoveram. Mas o livro não é o que eu pensara. Só embarque nessa canoa se este for o tipo de literatura que você está procurando.
"Depois que encontrei Cristo, consegui olhar novamente para aquela luta de boxe e na verdade agradecer a Deus", reflete. "Embora eu não soubesse naquela época, o que parecia ser a pior coisa era na verdade a melhor. Por quê? Porque aquela derrota me iniciou na minha busca por Deus".
Há também conteúdo relevante sobre a trajetória do ex-campeão - distribuído de maneira esparsa. Picotada. Noutras vezes, de forma redundante. Só que o carro-chefe do texto é a sua conversão à fé.
São dezenas de páginas de reflexões íntimas e espirituais, orientação comportamental e proselitismo. Se você quiser saber o contexto detalhado das lutas do campeão, vá beber noutra fonte.
A obra nos faz simpatizar com George Foreman. De verdade. Ele deixa para trás a imagem de tubarão predador e se transforma na pantera amiga do menino Mogli. Mas confesso que não queria simpatizar com Foreman. Já simpatizo com gente demais. Me bastava apenas conhecer sua história.
Se minha curiosidade voltar, vou ter que procurar noutro lugar. Se achar, eu conto aqui.
Editora Thomas Nelson Brasil, 275 páginas | 1a edição 2007 | tradução Rafael Mantovani
Título original: "God in my corner"
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