"Trilogia suja de Havana", por Pedro Juan Gutiérrez
O cubano Pedro Juan escreveu um livro nada político sobre Cuba - mas sua prosa troglodita nos oferece uma incursão pela Cuba profunda e por aquilo que os políticos fizeram dela. Por R$ 54,32 no site do Submarino, você desfruta de uma crônica onde a Havana do Malecón, dos pretos e das putas é a grande protagonista. Ali não existe Fidel, Baía dos Porcos ou socialismo - só se trepa e só se come. O jornalista e biscateiro Pedro Juan faz nesta sua resenha semi-biográfica desbocada uma economia de cenários e motivações existenciais. Tudo se resume a uma mesma ladainha cotidiana, revezando sexo, miséria, fome e droga. Os títulos de suas dezenas de contos não dão margem à dúvida do
mundo cão que é a matéria-prima da coletânea de Gutiérrez: "Dá uma punhalada nela, compadre", "Eu, revirador de merda", "Sempre tem um filha-da-puta por perto", "Bicha e suicida", "Meu cu em perigo" etc. Nada de sutileza. Ainda que vez ou outra ele alivie para um lirismo inesperado ao batizar textos com "
Sabor a mi" e "Plenilúnio no terraço", a essência permanece homogênea: pobreza, desemprego e putaria. Parece ruim? Não se engane. A prosa desse cubano é boa pra caralho. Os personagens de Pedro Juan adoram passear no calçadão, defronte ao mar do Caribe, sempre em busca de um trampo, de um dólar, de um boquete. São os sobreviventes que colorem a cidade, em diversos tons de negritude. São os cubanos. Cada um com sua estória. São uns fodidos. Como Baldomero, que chegou do interior e logo arrumou dinheiro para o rum vendendo fígados. No livro você vai descobrir de quem. Haja fome. Ou a
matilha de oito negros magros querendo retalhar um cavalo morto. Talvez a expressão soe racista - mas rascismo em Cuba, como aprendi no fenomenal "Pichón", de Carlos Moore (publicado aqui no blog há coisa de dois anos), é mato. Como em "Abandonando os bons costumes", a namorada Miriam "gostava de pretos bem pretos, pra se sentir superior. Sempre me dizia: 'São grosseiros, mas eu digo a eles:
nego, sai pra lá! e fico por cima porque sou clarinha feito canela." A gente vê a Cuba potência olímpica toda negra e imagina que lá é bem diferente daqui. Vai nessa. Em "Grandes seres espirituais", parece que estamos num bairro qualquer do Rio: "A polícia pede o documento aos negros vinte vezes por dia". Não pense que parece
só nisso, como narra Pedro Juan: "De vez em quando um policial 'confiscava' um saco de pizzas ou de hamburgueres e ainda levava todo o dinheiro do vendedor. O sujeito entregava apavorado o que tinha, porque senão vinham as multas, o processo e os antecedentes penais. O que há de mais parecido com um delinquente é um policial. Os extremos se tocam." De extremos o autor entende bem. Pedro Juan trabalhou de tudo. Gari, pescador, muambeiro, faxineiro, garoto de programa, gigolô, carregador, traficante, açougueiro e até repórter
free-lancer. Um dia foi cobrir um seminário de cinema nos subúrbios de Havana, onde conheceu Rita de Cássia, "uma brasileira de pele dourada que queria ganhar muita grana escrevendo roteiros de novelas e tinha umas belas pernas e queria tomar distância do seu divórcio recente". Os dois foram bater papo no "bosquezinho" da escola de cinema. "Havia gente, porque naquele lugar os alunos são rapazes muito promíscuos, como é lógico. Perto de nós, dois garotos se beijavam desbragadamente e um instante depois abriram o fecho das calças, botaram os..." Você imagina o que eles botaram. O nível de obscenidade do livro fica muitos furos acima do limite tolerado aqui no blog. Pela concorrência de espaço, Rita e Juan desistiram do bosque e foram para o apartamento alugado pela brasileira. O cubano chamou de "paraíso" o Festival de Cinema Latino-americano ("muito sexo, muito rum e muita comida"). Pedro Juan idealizava um Brasil podre de rico. Ele lembra: "Em Cuba já estava começando a escassez mais séria da sua história. Acho que foi em 91. Ninguém imaginava toda a fome e a crise que viria depois. Eu também não. Só estava preocupado em dar um jeito de comer, porque nesse mesmo ano, em poucos meses, tinha emagrecido dezoito quilos, por falta de comida". Gutiérrez conta que disputou as atenções de Rita com uma outra roteirista brasileira gay, mas Rita lhe permaneceu fiel e "pagava tudo porque eu não tinha um dólar no bolso e eu aceitei tranquilamente que ela pagasse sempre". No último dia juntos ele pegou tudo que ela estava deixando para trás: "umas sandálias de borracha usadas, meio vidro de xampu, geléias, bloquinhos de notas, pedaços de sabonetes, um barbeador descartável". O saldo foi positivo. "Nunca mais nos veríamos. Ela já tinha me falado que lhe doía muito ver tanta miséria e tanta comédia política para disfarçar as coisas. Por isso não queria voltar mais." Por falar em miséria, um capítulo à parte (na verdade, é pano de fundo em diversos capítulos) são os banheiros, geralmente coletivos, em espigões em ruínas onde dezenas de famílias vivem como num cupinzeiro: "O banheiro mais nojento do mundo, compartilhado por cinquenta moradores, que se multiplicam, porque a maioria é do Leste. Vêm para Havana aos bandos, fugindo da miséria (...) e trazem junto a família inteira. E se viram para morar todos num quarto de quatro metros por quatro. Não sei como. Mas conseguem. E no banheiro a merda chega até o teto. Nesse banheiro cagam, mijam e tomam banho diariamente nada menos que duzentas pessoas. Sempre tem fila. Mesmo que você esteja se cagando, tem que entrar na fila. Muita gente, eu entre eles, nunca entra na fila: cago num papel e jogo o pacote de merda no terraço do edifício ao lado, que é mais baixo. Ou na rua. Tanto faz." Abro aqui um espaço para uma dica turística: em indo à Havana, reserve um
Airbnb em um prédio mais alto que o dos vizinhos, por precaução. E privilegie as ruas com marquises. Pedro Juan, justiça seja feita, se coloca nos dois lados da questão, quando o assunto é "se cagando". Em "Um dia eu estava esgotado", ele era o cara dentro do banheiro, puto com quem se borrava do lado de fora: "Fui ao banheiro. Gosto de cagar confortavelmente, sem pressa. Mas lá onde eu moro não é possível. Temos um banheiro usado por todos os moradores do terraço, e isso é uma desgraça porque tem sempre alguém cagando nas calças que bate na porta e grita para você andar rápido e sair." Ou seja, mesmo em um mundo marrom, a grama do vizinho sempre é mais verde. E isso para não falar na descarga: "Tínhamos problema com a água e era preciso trazê-la em baldes da cisterna, no porão do edifício, nove andares sem elevador." OK, Gutiérrez. Com falta dágua aqui no Rio você não vai comover ninguém. Muitas vezes o problema não se restringe ao banheiro - é como se o bairro todo fosse uma latrina. "Nós dois somos do mesmo bairro: El Palenque. Faz anos que saí de lá. É um aglomerado de casas de lata, madeira podre e pedaços de plástico. Ao lado do rio Quibú, que tem cheiro de merda desde que Deus o fez. Quando eu era criança estava convicto de que todos os rios são de merda. Quando vi um de água fiquei assombrado." Em meio à inevitável imundície, ganhar a vida em Havana é preocupação diária. Suja e sem floreios. O amigo lhe sugeriu tomar conta de "algum velho": "Ali na esquina tem um velho inválido que mora sozinho. A mulher dele morreu há dois meses, e o cara vai morrer de fome e pestilência. Entra lá, cuida dele, limpa a sujeira e arranja um pouco de comida, e quando ele morrer você fica com a casa." Para falar da fome o autor me faz lembrar que os cubanos já foram fazer a guerra na África, no tempo do imperialismo soviético. Bons tempos, para eles. Seu mundo mudou com a queda do muro. "Nós achávamos os angolanos selvagens porque comiam rato assado. E os da Etiópia comendo as tripas podres das vacas. Agora é a nossa vez. Aqui já não tem nem gato, o povo comeu tudo." Não são uns poucos. "As pessoas andam sujas, malvestidas, com fome, e ninguém fala. O caso de cada um é arranjar dinheiro e comida e sobreviver." Entre os de Havana, obesidade dá status e vira assunto entre o escritor e a vizinha Zulema, que se gaba do sobrinho: "Como ele está gordo! Diz que come um bife por dia." Quem não arruma trabalho pode esmolar. "Estendi o braço e comecei a pedir esmola a todos os que passavam ao meu lado. Eu só balbuciava. Quando você vai pedir esmolas não pode falar claro, nem raciocinar nem nada. Você é um animal miserável, um micróbio pedindo umas moedas pelo amor de Deus. Um fedorento. Sempre foi assim desde que o mundo é mundo. É uma verdadeira arte pedir esmolas e aparentar imbecilidade, cretinismo, bebedeira crônica, estupidez. Só um imbecil pede esmola. Se você estiver um pouquinho acima da imbecilidade você pode fazer qualquer outra coisa." Gutiérrez entende do assunto e parece até que descreve um magricela com cara de ameba que cresceu aqui na Dezesseis pedindo esmola, com uma caixa de paçoca na mão. Garanto que o sujeito tem o
physique-du-role descrito pelo autor. Há, do lado oposto, os que podem contornar os cartões de racionamento. "Quem tem dinheiro não pode dar mole fazendo duas horas de fila por uma garrafa de rum com a caderneta de racionamento na mão. Nem pensar. Pago o dobro e resolvo num minuto. Logo os velhos começaram a reclamar com sua matraca: 'O que é isso, tem que ser igual pra todo mundo, é com a caderneta'. Ficam putos quando chega gente com dinheiro e passa a perna neles. Eu me afastei um pouco e gritei: 'Igual merda nenhuma. Bando de derrotados! Vão à puta que os pariu." Embora o tema do autor seja as necessidades básicas da população cubana, não pense você que Pedro Juan era um alienado. Ainda que evite o interesse pela política, o autor sabe da existência da censura e o peso da ignorância: "Se você não tiver toda a informação, não pode pensar, nem decidir, nem opinar. Acaba se transformando num idiota capaz de acreditar em qualquer coisa." Conheço bem esses tipos. Gutiérrez tem uma ideia própria do seu distanciamento: "Eu já não dou conta de mim, imagina se vou me meter com os políticos, que são uns filhas-da-puta e no final fazem o que bem entendem. É assim em todo lugar. A política é a arte de enganar bem." Nada a acrescentar. Ele sabe que não tem alternativas - não sem uma exagerada dose de risco. Um dos assuntos recorrentes sobre os cubanos, até os anos 90, eram os emigrantes que chegavam à Flórida de balsa, fugindo do regime comunista. "Podia ter ido embora numa balsa. Tive muitas oportunidades de ir nas balsas que meus amigos fizeram. Mas não. Já naveguei muito no golfo e sei como é o Caribe. Tenho medo de balsa. Às vezes não é bom saber muito. Os ignorantes são felizes. O pessoal acha que é valente porque se aventura até Miami flutuando num pneu de caminhão. Mas não são valentes, são camicases." Pedro Juan Gutiérrez caçoa dos moralistas ("pessoas hipócritas no sexo geralmente fazem muita sacanagem quando estão vestidas") e zomba de quem procura qualquer coisa mais profunda que comida. Recrimina a busca da ex-mulher por "paz interior": "Para viver em paz interior você tem que ser muito imbecil." Gutiérrez ignora essas frivolidades. Quer beber, comer, cagar, foder. Não sobra nada além disso. Seus horizontes - irônico para quem vive numa ilha - são estreitos.
La Habana não é para os fracos.
Editora Alfaguara, 348 páginas
Prezado, Sidney. Venho aqui cumprimentá-lo sobre suas brilhantes resenhas. Creio que seus resumos são muito melhores do que alguns dos próprios livros - os quais já li e me permiti a comparação. Não costumo escrever ou comentar em blogs, mas sinto-me na obrigação de fazê-lo, aqui, como forma de incentivo para que prossiga e continue nos brindando com seus textos. Não o conheço, sou do Paraná, descobri o blog por acaso, quando procurava no Google sobre o livro do Pedro Collor de Melo - que grata surpresa! Saudações!
ResponderExcluirObrigado, amigo. Pode estar certo que seu comentário fez meu dia mais feliz :) Ler é um grande prazer e resenhar os livros me permite multiplicar esse prazer. Agora, ainda mais: com o isolamento, me propus o desafio de comentar um livro por semana. Por enquanto, venho conseguindo! vamos ver até quando... Já esse "Passando a limpo", do Pedro Collor, é um dos líderes aqui nas estatísticas, gera um baita tráfego. Mais que merecido, né, o cara derrubou o governo do irmão e morreu pouco depois. Uma estória digna de Shakespeare. Agradeço muito a generosidade do seu elogio. Fique à vontade para participar do blog e acrescentar seu ponto de vista aos livros lidos. Grande abraço.
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