"1961", por Flávio Tavares
Flávio Tavares é autor do visceral "Memórias do esquecimento", postado aqui no blog há dois anos. Um testemunho valioso dos calabouços do golpe de 1964 e das vielas da resistência armada. Pena que pouco lido - a ousada trajetória da esquerda brasileira sucumbe ignorada, enquanto sua sósia de palanque usurpa um espaço que não lhe pertence (a tal estória do "país sem memória" que você já deve ter ouvido falar). Já este "1961" cobre uma outra crise política. Nele o veterano jornalista Flávio Tavares retrocede ao golpe anterior, desenrolado três anos antes do de 1964 - e, como seu subsequente, fruto de uma ação casuística. Nenhum dos dois movimentos golpistas foi previamente planejado e articulado. Fatos e personagens patéticos os provocaram (Jânio, o Quadros, em 61, e Mourão, o Olímpio, em 64). Tanto em agosto de 61, como em abril de 64, o golpe contra o governo constituído foi um gesto de oportunismo. Surgiu a brecha e mancomunaram-se os interessados. Há diversas narrativas atribuindo o golpe de 64 ao voluntarismo militar. Não na minha modesta opinião. E não só na minha, que, como você sabe, não vale nada. Mas, de acordo com historiadores de peso, neste golpe não houve associação prévia. Foi uma patacoada isolada que deu certo - e este livro de Tavares sobre o golpe de 61 contribui para esclarecer certas nuances do futuro golpe de 64. A hesitação caracterizava João Goulart. O comportamento inseguro e recalcitrante de Jango em 61 aparenta ter sido decisivo para viabilizar o golpe contra si mesmo, três anos depois (atente nesta obra, sobre 61, como agiu Goulart, e o compare às suas atitudes posteriores em 64). Mas vamos deixar 64 para lá, é muito golpe pra pouco ano. Este movimento tentado em 1961, que data e intitula o livro, frustrado, teve em Tavares (à época com 27 anos) um engajado coadjuvante da resistência. Nesta condição privilegiada, mais do que assistir de camarote, Flávio tomou parte nos eventos acontecidos. Ele os vivenciou agachado nas trincheiras da Cadeia da Legalidade, erguida no Rio Grande do Sul pelo governador gaúcho Leonel Brizola. E, se agosto de 1961 é a
data, Leonel é o
personagem. O livro é um tributo ao protagonismo do caudilho, diante do vácuo de poder deixado por Jânio Quadros. Como Tavares deixa claro, foi Brizola quem fez fracassar o golpe militar de 1961. É esta estória que o autor esmiuça, em minúcias, pagando o preço de um início meio emperrado. Apesar do talento do jornalista e da pertinência do seu testemunho, o livro demora a dizer a que veio. No afã de deixar incontestes os meandros da resistência, em todas as suas filigranas, a primeira metade do livro é aborrecida. Um excesso factual em detrimento da dinâmica dos acontecimentos. Entre idas e voltas, Tavares narra como o governador Leonel Brizola - assim soube da renúncia de Jânio e da manifestação dos ministros militares contra a posse do vice, o gaúcho João Goulart - se proclama contra o golpe anunciado e declara a não-aceitação do Rio Grande ao veto militar à posse de Jango. Brioso, mas um tanto fanfarrão. De forma um tanto presepeira (não fosse ele o Brizola...), constitui o Palácio Paratini em fortaleza dos revoltosos e algumas dúzias de revólveres velhos são distribuídos - inclusive entre os jornalistas simpatizantes do governador, como o caso do jovem Flávio. O autor conta que recebeu a sua arma, quebrou um vitral de uma das janelas mais altas do Piratini e se preparou para receber à bala as Forças Armadas. Se, a princípio, o III Exército, cuja sede era justamente em Porto Alegre, era a ameaça próxima (com vocação para se tornar o braço armado de Brasília), após algumas escaramuças verbais a liderança militar gaúcha se alia ao governador e constituem juntos a posteriormente legendária Cadeia da Legalidade. O movimento era pela posse de Jango, garantindo ao herdeiro político de Getúlio a presidência do Brasil - afinal de contas, ele fora eleito vice-presidente justamente para isto. Em caso de vacância da presidência, assumia (em tese) o vice. Ressalte-se que, de maneira estapafúrdia, no Brasil de então o povo votava separadamente no presidente e no vice-presidente. Ambos não constituíam uma chapa única, onde o candidato a presidente escolhia o seu vice (alguém que, presume-se, tinha afinidade com o projeto e a orientação política do presidente). Assim, políticos de correntes diferentes, até mesmo opostas, podiam acabar visceralmente unidos no Palácio do Planalto. Algo como se o Guilherme Boulos fosse o vice do Bolsonaro. Ou o Doria como o vice do Lula. Ou o Michel Temer como vice da Dilma Rousseff (ops, este exemplo não vale). E foi justo o caso da eleição de 1960: um candidato de direita, Jânio, foi eleito presidente do Brasil. E um candidato de esquerda, Jango, foi eleito vice-presidente do Brasil. Idiossincrasias da democracia tupiniquim. Deu no que deu, e precisamente por isso. O sem estribeiras do Jânio resolveu se dar um auto-golpe, renunciando à presidência, justamente porque seu vice era alguém que o Exército não toleraria que assumisse. Jânio renunciou porque o Congresso não lhe era dócil, e ele queria reduzir o excesso de democracia que tolhia seu governo. Concebeu para a renúncia um momento estratégico: o vice João Goulart estava em visita oficial à China comunista. Jânio arquitetara o instante perfeito. Além de longe, no lugar mais distante do globo, impossibilitando que assumisse a presidência nos dias imediatos à renúncia, Jango na China ainda reforçava a ameaça de um presidente brasileiro comunista. Na cabeça de Jânio (no Brasil nunca faltou presidente maluco), o Exército não aceitaria sua renúncia e ele se fortaleceria, ditando suas ordens a um parlamento manietado. Só que não. Para surpresa do agora ex-presidente, sua renúncia foi passada nos cobres. Com a ausência temporária do vice, em viagem, Raniere Mazzili assumiu provisoriamente a presidência. Única questão é que o Exército não iria engolir Jango como presidente e já o mandara avisar para que não voltasse. Foi aí que Brizola entrou. Tavares faz a narrativa idólatra de um Brizola gigante (ao fim da campanha e do livro, há o registro de um prato lançado em um restaurante nova-iorquino com o nome de
Steak Brizola, um suculento filé com três ovos). Descreve como a resistência foi montada de forma quase brancaleônica, de como Brizola cooptou o III Exército para o seu lado, de como Brizola confrontou Brasília - tudo isto com uma farta quantidade de pormenores. Narra como o Exército brasileiro descia de São Paulo para o Sul e de como o exército dos pampas subiu do Sul para a fronteira de Santa Catarina com o Paraná. Traz o depoimento dos pilotos que foram orientados a derramar bombas sobre Porto Alegre. Os planos da Marinha brasileira de invadir o Rio Grande pela Lagoa dos Patos, e também da artimanha de Brizola de naufragar cargueiros na entrada da baía. Na descrição de Tavares, com seu revólver na cintura, Brizola tinha sempre a metralhadora à mão, e a nação estava prestes a se ver engolfada em uma sangrenta guerra civil. Pode ser. Mas não rolou. Nenhum dos combates aventados, que quase aconteceram por um triz, se deu. Alguns diriam que a montanha pariu um rato. Não eu. Não posso desdenhar do que não vi. Mas a visão de Tavares parece superestimar o potencial do conflito. Fato é que aconchegaram-se. Ninguém atirou em ninguém e Jango voltou da China por uma covarde e saltimbanca rota por Nova York, Lima e Montevidéu, onde se demorou o suficiente para palestrar com Tancredo e negociar uma alternativa parlamentarista. Brizola ferveu nas algibeiras. Se considerou descaradamente atraiçoado. Se batera pela "legalidade" - e a legalidade era a manutenção do regime presidencialista, e com Jango presidente. Na verdade, isso ainda iria acontecer, só que não naquela hora. Também daria errado, mas depois. No testemunho de Tavares, os gaúchos que desfilavam pelas ruas de Porto Alegre, com revólver na cintura e garrucha na mão, se decepcionaram. Tanto quanto o autor, se sentiram traídos por ter Jango cedido à rodada de negociações - negociação esta que não existiria não fosse a resistência de Brizola e seus liderados. Na visão de Tavares, que me parece bem verossímil, o Rio Grande impediu o golpe em Jango, mas o próprio Jango sabotou a resistência, se articulando com os inimigos e assumindo sem poder, em um regime parlamentarista. Brizola e Jango, antes amigos, cunhados e aliados, depois da campanha da Legalidade ficaram sendo somente cunhados. Jango foi para Brasília e Brizola se manteve no Sul, sem nenhum poder ou indicado no novo governo que ele ajudara a existir. Um fim um tanto pífio para quem apostava em derramamento de sangue e em uma invasão a cavalo no Planalto Central. Ponto. E assim tudo acabou. Ou quase, porque o livro traz por bônus algumas análises pessoais do autor: ao fim do texto, enfileira bons capítulos extras, falando de Jânio, Jango e Brizola. Sobre este último, procura identificar a
chama guerrilheira que o governador exibiu, metralhadora a tiracolo e discurso rebelde. Narra o encontro de Brizola e Che Guevara ocorrido poucas semanas antes, por conta da Conferência Econômico-Social da OEA. À ocasião, Guevara, que chefiava a missão cubana, era ministro da Economia e presidente do Banco Nacional de Cuba. Brizola havia sido nomeado por Jânio como conselheiro-especial da delegação brasileira. O autor era o jornalista designado pelo jornal Última Hora para a cobertura do evento. Che e Brizola foram os convidados únicos de um churrasco oferecido pelo presidente do Uruguai, Eduardo Haedo, em sua residência em Punta del Este. Conversaram por um longo tempo a sós. Dois dias depois, no plenário da conferência, o argentino fez um discurso contundente denunciando o estrangulamento econômico que os Estados Unidos impunham à Cuba. Brizola foi o único da delegação brasileira a elogiar o discurso de Che, o que resultou no seu abandono da conferência, alegando que os demais brasileiros não estariam apoiando a posição cubana, como previamente orientado por Jânio. Após a espetaculosa
mise en cene, Brizola e Che conversaram separadamente e depois se abraçaram. Flávio Tavares testemunhou o encontro. Assim largou do guerrilheiro, Brizola disse ao autor: "Isto aqui não é uma reunião dos povos das Américas. É uma conferência das oligarquias". A frase encaixa bem no pitoresco Brizola que passei a assistir no início dos anos 80, quando ganhou a eleição para governador do Rio de Janeiro, em 1982. Seu mote contínuo eram as "perdas internacionais". Ladainha que repetiu até o túmulo, e que suspeito tenha se consolidado tendo em mente a encardida ilha caribenha. Mas o fato é que o movimento fundado por Leonel Brizola repercutiu, para o bem e para o mal, nos anos e décadas seguintes. Com o golpe de 1964, Brizola fugiu e os brasileiros ficaram. Tavares entre eles - e acabou na clandestinidade. Foi preso, torturado e foi um dos prisioneiros que embarcaram no lendário
Hércules 56, em troca do embaixador americano. Mas isto foi já pro fim da década. Ali onde o livro nos deixou, os primeiros anos da década de 60, já não foram politicamente generosos para com o Brasil. E, sob a ótica da década, 1961 não foi um bom presságio. Fosse eu um tolo narcisista e diria que, de bom, no duro, só mesmo minha chegada ao mundo, no dia 8 de maio do tão repercutido ano - dia o qual, a propósito, cai justo hoje, quando celebro em compenetrada quarentena mais um aniversário. Mas aí já é outra estória.
L&PM Editores, 231 páginas
P.S.: Sim, sou eu o bebê na foto amarelada. A moça comigo no colo é Mamãe. Copacabana, maio de 1961.
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