"Vai, Brasil", por Alexandra Lucas Coelho

terça-feira, abril 28, 2020 Sidney Puterman

O livro é uma compilação de crônicas sobre o Brasil, publicadas em um jornal português, por uma jornalista lisboeta que veio a morar no Rio. O desconcerto da sua prosa nos lembra como o português pode ser bem escrito. O tempo das crônicas é remoto, o livro é antigo: fala de um Brasil babilônico, onde a única pandemia era de auto-confiança. Estávamos no início do governo Dilma, com números estratosféricos da inflada economia brasileira. A autora - de simpatias à esquerda -, mesmo evitando a mera rasgação de seda, capitula às promessas daquele tempo. Pensava que vivíamos uma nova aurora. O mundo de então estava na contramão, eram os de lá que queriam vir para cá ("O meu sonhador senhorio no Rio pensa em comprar um apartamento em Lisboa. Eu temo não conseguir alugar o meu para continuar a viver na casa dele."), porque não se resignavam a ganhar 500 euros por mês. Mesmo os desconhecidos lhe mandavam mensagens: "Portugueses que não conheço escrevem-me a perguntar o que fazer para emigrar para o Brasil, e não é um nem são dois". Gostaria eu de dizer que eram bons tempos, mas eram apenas tempos enganosos. A ideia grandiloquente de "sexta economia do mundo" nos agradava. Humpf. Deixemos de lado esse rame-rame de política e economia, que estes não são os temas de Alexandra (ainda que escavuque assombrações, "houve aquele dia que a Zélia apareceu na televisão para confiscar o dinheiro dos brasileiros"). Não é esta a sua praia. Seus protagonistas são o Rio, perante o qual ela se desmancha, o Brasil, que lhe fascina, e a cultura, que lhe apaixona. Seu olhar é delicado e ela nos faz parecer melhores. Descreve nuances: "Um paulista disse-me uma coisa duplamente cruel. O Rio é preguiçoso, esbanjador, decadente: ainda vive na corte de D. João VI." Ela mesma contrapõe: "Quem tenha experiência com cariocas no que respeita a combinações já terá dito coisa pior, depois de esperar horas por alguém, ou dias por um telefonema, ou toda a vida por um pedido de desculpas. Até perceber que para o carioca aquilo não tem desculpa porque não tem culpa." Nos faz gentilezas: "Os paulistas podem dizer coisas cruéis dos cariocas. Já é mais difícil imaginar os cariocas a dizerem coisas cruéis dos paulistas." Ao fim, suspeito que a autora tenha convivido com uma tribo bem seleta de cariocas, pela afirmação "conto pelos dedos das mãos os cariocas que conheço que não fumam maconha." Vou pular essa. Carioca, meu passado me condena. Alexandra é uma europeia assustada com as jacas ("parecem uns pandas verdes e cegos, pendurados por um fio") e com o funk no Buraco Quente: "Já vi massas com arma de fogo, mas nunca tinha visto armas de fogo no meio de uma massa que rebola os quadris, flecte os joelhos e vai baixando o bumbum como quem senta, ao som de um refrão contínuo que diz: 'Senta-senta-senta na piroca." Ela esclarece: "Piroca é aquilo a que todo brasileiro chama pau." Embora condene ("menina de 10 anos já está transando"), ela, na matéria, não se acanha. Tanto, que, noutra crônica, disserta: "nabo, rola, jeba, bilau, neca, piupiu, pilinha, pirulito, piça, pemba, pingolim e o 'caralhaquatro". Pilinha? Neca?? Boiei. Conheço o bem mais inocente "necas de pitiribas", que quer dizer... nada. Mais estarrecida ela ficou com a força das chuvas que abateram Teresópolis e inundaram Itaipava ("numa noite choveu um mês e quase 300 pessoas morreram disso"). Atualizou o número numa palestra que fez, dizendo que "o Brasil é o escândalo das 850 mortes numa noite de chuva e um país inteiro a ajudar". Admoestada pelo elogio, corrigiu: "minha visão idílica do Brasil tem a ver com a culpa do colonizador". Críticas, elogios, em todo lugar há os insatisfeitos. "Os leitores zangados por eu nunca achar coisas boas no Brasil alternam com os leitores zangados por eu só achar coisas boas no Brasil. Há ainda os leitores zangados por eu ceder aos interesses do Acordo Ortográfico e os leitores zangados por eu não ceder aos interesses do Acordo Ortográfico." Ranzinzices. Numa outra feita, desenrola: "O que separa Portugal e o Brasil não é a ortografia - é a sintaxe, a fonética, o vocabulário, o clima, a paisagem, o temperamento, acima de tudo a história. A ortografia é o menor dos nossos desacordos." As palavras dela que não existem aqui são pequenas joias. De muitas, a que peguei para mim foi desarrincanço, mesmo que nunca vá saber usar. Conhecer a terra do outro remove segredos. Alexandra cruzou a Amazônia no início da década. Um jornalista underground de Belém lhe alertou: "Quinze por cento da floresta já foi destruída. Nunca o homem derrubou tantas árvores. A Amazônia era a última esperança de uma civilização florestal." O barqueiro Odaílso, em Alter do Chão, concorda: "Estão desmatando e não plantam nem uma árvore no lugar". Engajada, a indígena Ludineia denunciou os empreendimentos do governo: "Isso aqui vai sumir (...) Não tem precisão de fazer essas barragens. Essa energia é pra mandar pra fora, não é para cá, para a Amazônia. Desvia o rio, e os peixes como vão ficar? Como é que o povo caboclo e indio vai viver?" Coelho conversou também com José Batista, advogado da Comissão Pastoral da Terra. "Uma região habitada há milhares de anos por populações tradicionais, indígenas, pescadores, extrativistas, transformou-se na campeã do trabalho escravo". Segundo ele, o estado "criou todas as condições para a exploração". Comentando a sequência de assassinatos dos líderes locais, afirma: "O problema não é a ausência do estado, é a presença do estado sempre do outro lado". Alexandra não se contentou com as viagens fáceis. Extenuada de tanta água, citou "a imensa aranha hidrográfica" referida pelo português Ferreira de Castro, em seu "A Selva": "Águas em amplitudes de pasmar a quem não concebesse que nos oceanos pudesse também crescer bosques intermináveis". Também me pareceu quando enfurustei pelos igarapés. Mas cortei os silenciosos, defronte à Ilha dos Papagaios, no Pará. Não os superpovoados de Manaus, que são o habitat de uma favela de palafitas. Alexandra também esteve lá. "O ar cheira a esgoto. A água está atulhada de lixo, uma ponte de tábuas partidas leva às palafitas: barracos tortos, com os pés enfiados numa pasta podre, tanto que em muitos pontos não se vê a água". Ela pergunta à Ednaldo, de Santarém, à porta da sua barraca-drogaria. "Tem sempre todo esse lixo?" "Sempre. Uns jogam fora, outros não." Eliete se queixa de um outro crime: "Tem um bocado de tráfico, para os nossos filhos fica ruim." Eduardo confirma: "À noite não dá pra descer. Quem manda aqui é o tráfico". Perguntado se o crime é organizado, diz: "Em Manaus, os traficantes organizados são todos policiais". Os insetos perturbam Elaine, que, mesmo assim, convida: "Os mosquitos mordem a gente, não pode abrir a boca que eles enchem, é só a senhora vir aqui às seis da tarde". Não vou não. Alessandra, uma vizinha quase homônima, vê a equipe de limpeza do governo e revela: "Limpam, mas não adianta, porque os moradores são os primeiros a sujar." Já Alexandra fuça tanto os rincões da Amazônia que acha até índio que fala inglês. Xuriman, cheio de estórias. A jornalista conta também de amenidades, guloseimas, de todas as artes. Quando eu estive em Lisboa, há três anos, além do fado na tasca, me deixei seduzir pelos pães de lá, os vianinhas, os bolas dágua e outros mais. Blasfemo, cheguei a achá-los melhores do que os da Cidade Luz. Alexandra desdenha do pão do Brasil: "O pão que só não é o pior do mundo porque existe a Espanha". Não questiono, o pão daqui é fraco. Outra canelada dela aponta o dedo para a nossa má arquitetura. De acordo, sem mais. Bonita, observadora, descolada, a escritora se sente em casa no mundo que é dela, o dos talentosos. É amiga deles todos. O Moraes de "Pornopopeia", o Assis da "Febre do Rato", o Scott de "Habitante Irreal", a Bethânia de Carcará, o Caetano de Bethânia e o Chico que ela pensa que é absoluto. Pensa certa, porque ele era, no tempo longo que ele foi. Apesar do Brasil não ter ido (se é que um dia vai), a jornada literária país afora com Alexandra Lucas Coelho é doce, sem ser piegas. Parece daqui, sendo gringa. Voltou para a Europa, onde ainda vive o Brasil que atolou: publicou uma ficção passada no Rio e há pouco lançou um livro dedicado à Bahia, ambos pela Bazar do Tempo. Já este de capa verde que manuseio foi editado pela Tintas da China, cuja encadernação é o que há, deixando o livrinho ainda mais gostoso de ler. Há quem prefira os tabletes de leitura, eu não. Quero curvas, quero texturas. Minhas mãos lêem comigo. Tenho mil carências. Mas não sou maneta.

Editora Tintas da China, 315 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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