"1499", por Reinaldo José Lopes
Dou meus parabéns ao Cabral. Quinhentos e vinte anos é um número a festejar. Mas há hoje em dia quem faça troça com a ideia do "descobrimento" do Brasil pelos portugueses. Implicância. Muitos caçoam da primazia lusitana e atribuem a descoberta ao italiano Cristóvão Colombo, que viajava a soldo do Rei de Espanha e, poucos anos antes, havia descoberto a América. Já os iberocéticos dão crédito aos holandeses ou, mais radicais, aos vikings, que teriam navegado até Jericoacoara. Pouco provável. Surfando na onda do politicamente correto estão os que dizem que o Brasil já pertencia aos tupis, muito antes da chegada dos europeus. Hummmm... mas até sob este prisma há controvérsias. Estes índios não seriam também invasores de uma terra que já tinha seus donos, antes da chegada dos próprios tupis? A ver. É deste passado remoto que trata o jornalista Reinaldo José Lopes, em seu didático "1499, o Brasil antes de Cabral". Com maneirismos pedagógicos, o autor leva a nós, leigos, por uma longa incursão às profundezas históricas do continente sul-americano. Seu ponto de partida é o mais longevo indício que possuímos: os fragmentos do crânio de Luzia, uma nossa conterrânea de 13 mil anos de idade (possuímos é forma de expressão - a cabeça de Luzia foi torrada e virou cinzas no incêndio criminosamente negligente do Museu Histórico Nacional, alguns anos atrás). A partir daí Lopes traça as hipóteses cientificamente admissíveis para a chegada do homo sapiens no continente e nos apresenta o fascinante mundo das cavernas brasileiras. Destrincha um pouco da cultura que nos legou os enigmáticos sambaquis. Ensina os burrinhos (eu, entre eles) como os povos mais primitivos, os caçadores-coletores, se tornaram agricultores. Decupa a invasão indígena da Amazônia e como o ramo tupi-guarani se tornou dominante do Oiapoque ao Chuí (ou quase). Nos mostra, acima de tudo, que sabemos muito pouco sobre as origens do nosso próprio continente, e, por extensão, do nosso país - que ocupa, sozinho, quase metade do território sul-americano, ficando as outras onze nações donas da outra metade. Não eram meros símios sem-pelo fazendo uga-uga em uma terra desabitada. Além de animais gigantescos que foram extintos, provavelmente pelo aquecimento global do Pleistoceno, os contemporâneos de Luzia tinham hábitos culturais e religiosos que lhes atribuem uma identidade bem particular. Chamados de paleoíndios, seus vestígios no abrigo da Lapa do Santo, em Minas Gerais remontam há 12.000 anos e surpreendem pela complexidade. Praticavam um sepultamento secundário (quando, após um enterro inicial, o cadáver é desenterrado e recebe outro destino) que incluía tirar os dentes de um defunto e fixá-los na boca de um outro, fazer de crânios recipientes de ossos de defuntos diversos, pintar ossadas com corantes e carvão, trocar cabeças de adultos e colocá-las em corpos de crianças e outros passatempos (rituais, vá lá) mórbidos. No sítio foi identificada a mais antiga decapitação do continente americano, um delicado arranjo onde o tronco foi suprimido e a cabeça foi colocada sobre as mãos do sujeito, mas estas foram invertidas: a esquerda à direita e a direita à esquerda, uma voltada para cima e outra para baixo (fósseis da futura política brasileira?). Por falar em política - mil perdões -, há um capítulo em que o próprio autor revela sua irreverência, o "Saudação à mandioca". Disserta Reinaldo que o mais antigo registro do alimento (que é hoje a principal fonte de carboidrato de mais de 800 milhões de pessoas) indicava fosse ele nativo da costa peruana. Análises de DNA, entretanto, atestam sua brasilidade ancestral, pois a raiz se revelou originária da região que compreende o norte do Mato Grosso, o Acre e Rondônia (podendo a Bolívia também pleitear sua condição de berço da mandioca). Atente que o Planalto Central do Brasil abriga mais de 50 espécies do gênero Manihot, o que prova o quanto ela, a mandioca, se disseminou na pré-história do país. Mas o mais curioso é que a variedade preferida na maioria dos assentamentos amazônicos pré-Cabral era a versão venenosa da planta. E, mais, o alto grau de toxicidade da mandioca brava foi resultado de gerações de aprimoramento genético gerenciado pela população nativa. Acreditam os historiadores que uma vantagem apresentada pelo tipo venenoso era o seu melhor rendimento agrícola, pois sua agressividade natural o deixava menos sujeito a pragas, permitindo que alimentasse mais cabeças por hectare (lembrando que o preparo correto da mandioca brava, dominado pelos indígenas, lhe retirava o poder maligno). No atual entendimento científico, diante do solo ácido e pobre da floresta amazônica, somente a mandioca poderia subsidiar o surgimento de grandes concentrações demográficas. Ou seja, para quem zoou da presidenta, bola fora. Viva a mandioca. As grandes populações a que me referi eram muito superiores às tabas e ocas da civilização indígena que tivemos notícia. Pelo que defende Lopes, as que chegaram ao nosso conhecimento eram uma pálida sombra do que foram no passado. Quem melhor fundamenta isso é o explorador quinhentista espanhol frei Gaspar de Carvajal, que relata comunidades de dezenas de milhares de habitantes, vivendo em cidades extensas e comercialmente sofisticadas no interior da Amazônia (o que em parte dá razão aos devaneios do britânico Percy Fawcett, que, em busca do Eldorado, acabou engolido por ele): "Entre povoado e povoado não havia mais do que um tiro de besta, e houve povoações que duraram cinco léguas (equivalentes a 30 quilômetros), sem haver espaço entre casa e casa". Dando todo desconto do mundo a um viajante exagerado, isso era mais que enfileirar sete orlas de Copacabana de casario indígena - nada a ver com a ideia que fazemos das civilizações amazônicas. No percurso, Carvajal travou contato com os Tapajó, a quem atribui o uso habilidoso de venenos, a posse de escravos e rituais funerários que incluíam comer os ossos dos próprios antepassados - devidamente moídos, que ninguém é de ferro (nem os Tapajó). Além disso, a sofisticada arte tapajônica incluía a confecção dos muiraquitãs, pequenos sapos esculpidos em jadeíta (uma pedra esverdeada), cuja distribuição no território amazônico comprova a extensão do domínio político Tapajó. Por falar em extensão, Lopes cita a comunidade Wakuenai, pequeno grupo lá para os lados da Venezuela, cujos cantos de iniciação ritual trazem referências textuais que cobrem a planta hidrográfica de toda a América do Sul. Fica a pergunta: como eles alcançaram esta sapiência? O jornalista traz indagações que mexem com a segurança do nosso conhecimento prévio sobre as populações sul-americanas que antecederam o desembarque português. Elas eram maiores, mais capazes e mais elaboradas do que aprendemos nos livros de escola. É mesmo de pasmar o tamanho da nossa ignorância sobre estes brasileiros. Na manufatura bélica dos nativos despontava a ybyrapema, uma espada feita de madeira extremamente dura, fina e com quase um metro e meio de extensão. Este tacape era uma arma manejada com perícia pelos Tupi do litoral, que conseguiam decapitar um cidadão com uma cutelada só. Ainda que as vítimas não tivessem cabeça para lembrá-la (foi mal, não resisti), esta memória também foi engolida pela cultura que a substituiu (a nossa). Longe de querer santificar os proprietários ancestrais do continente - cujas habilidades primavam mais por matar outros seres humanos do que zelar pela opulenta natureza que os cercava -, é valioso entendê-los como nossos predecessores. Para dar-lhes uma estatura crível, convém não idealizá-los, posto que eram, como nós, ardilosos e cruéis. Quer um exemplo? Quando lutavam a favor do vento, queimavam quantidades industriais de pimenta para cegar os adversários e matá-los com mais facilidade no cerco às suas aldeias, sem misericórdia para com mulheres e crianças. Não surpreende. Esta é, para nossa tristeza, a história da civilização. A cultura pior aparelhada para o confronto bélico sucumbe diante de uma força que pode até ser menor, mas melhor armada. Dizem os historiadores que a maior civilização da América do Sul, a inca, teve dezenas de milhares de guerreiros a pé derrotados por 60 cavalos, 200 soldados e 4 canhões espanhóis, que capturaram seu imperador Atahualpa no primeiro ataque e o mantiveram como refém - até que, por fim, foi impiedosamente executado. Neste caso, tiveram influência a pólvora, os projéteis e as bestas de quatro patas, que os nativos nunca tinham visto (depois os equinos acabaram se tornando espécies locais, fortalecendo a resistência dos grupos indígenas na América do Norte e também por aqui - os Guaikurú, no pantanal matogrossense, aprenderam a montar e se tornaram guerreiros quase imbatíveis). Mas tudo isto conta apenas um pedaço da estória. Porque muito mais que cavalos, arcabuzes e canhões, os tardios invasores europeus tiveram a seu favor um elemento genocida que hoje, infelizmente, veio nos revisitar: a gripe assassina. No passado não houve cura, respiradores ou cloroquina que salvasse a milenar civilização sul-americana da peste trazida pelo homem branco. E, para nosso pesar, nunca fomos tão capazes de sentir na própria pele o poder desta matadora invisível, que eliminou uma cultura ancestral, como agora.Editora Harper Collins, 246 páginas
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