"A última folha", por Sidney Jan e Ana Verçoza Monteiro

sexta-feira, abril 17, 2020 Sidney Puterman

Aproveitando a quarentena para arrumar as tralhas (quem não?), encontrei alguns exemplares do suplemento espírita que eu editei com Aninha no século passado, "A Última Folha". Me surpreendeu a atualidade do achado: era destaque no primeiro número a matéria "O Doutor das Torneirinhas", justamente sobre a importância de lavar as mãos para nos proteger das infecções. A edição circulou no Rio de Janeiro e em Petrópolis, em maio de 1999, e o texto, de página inteira, trazia a história do médico húngaro Ignaz Semmelweis. Provavelmente você já conhece esta estória, mas vale resumir seu conteúdo. Semmelweis, obstetra assistente, foi encarregado de supervisionar uma das duas maternidades gratuitas que funcionavam dentro do Hospital Geral de Viena, em 1846. A maternidade que ficou sob seu controle, a Primeira Clínica, tinha uma alta taxa de mortalidade materna. Alta mesmo: na média anual, dez em cada cem parturientes morriam de febre puerperal, em alguns meses chegando a 20% de mortes. Já a Segunda Clínica tinha um índice bem menor, de três óbitos em cada cem partos. Cientes destes números, as grávidas vienenses faziam de tudo para ir para a Segunda Clínica, recusando a internação na Primeira. Houve muitas que optaram pelo parto em casa, somente porque tinham sido designadas para serem atendidas na Primeira Clínica - e acharam mais prudente o risco caseiro. Estavam certas. Como o próprio Semmelweis constatou, o índice de mortes nos partos em casa (ou "na rua", como eram registrados) era similar ao da Segunda Clínica, e muito abaixo do morticínio da Primeira. Frustrado e intrigado, o médico buscou copiar todos os procedimentos da Segunda na Primeira, visando reduzir o número de mortes; mas sem sucesso. Passo a passo, ele equiparou todos os procedimentos, mas a disparidade entre as duas prosseguiu. A única diferença que restou era que, na Primeira, o parto era feito pelos estudantes de Medicina, e, na Segunda, por parteiras estudantes. Comparando os procedimentos, Semmelweis percebeu que os estudantes vinham da sala de autópsia, onde manipulavam os cadáveres, para a sala de parto - enquanto as parteiras não tinham este contato. Mais: um amigo seu, também médico, havia se ferido com o bisturi durante uma autópsia, adoecera e morrera. A observação dos fatos fez ocorrer a ele que alguma partícula cadavérica (ainda se desconhecia a existência dos micróbios) poderia ser a causadora das mortes. Para testar se a tese fazia sentido, ele pôs uma bacia de água com hipoclorito de cálcio na Primeira Clínica, pedindo que os estudantes lavassem as mãos antes de entrarem na sala de parto. Eureca. Em abril de 1847, antes da inovação, o percentual de mortes tinha atingido 18,7% - ou seja, praticamente uma em cada cinco mães morrera de infecção em abril. Já a partir de maio, com a adoção da higienização, o número de mortes caiu para 2,2%, com uma queda em junho para 1,2%. Recapitulando, em abril, sem que os médicos lavassem as mãos, 18 em cada 100 mães morreram. Em junho, com a assepsia implementada, apenas uma em cada 100 mães morreu. Mesmo estes números cabais não foram suficientes para convencer os médicos graduados do hospital, que vetaram a adoção do procedimento. Inconformado com a postura anti-científica do corpo médico da sua própria instituição, Semmelweis buscou apoio em outros hospitais, sem sucesso. Por absurdo que pareça, a mera assepsia pré-cirúrgica foi proibida. As mortes por infecção continuaram a ocorrer e o médico e sua tese caíram em descrédito. Difícil de acreditar, não é? O paralelo com a situação que vivemos hoje no Brasil é flagrante. Recomendações médicas oriundas de pesquisas comprovadas vêm sendo questionadas por parte do governo, e seu preço pode ser cobrado em vidas humanas. O presente copia o passado no que ele tem de pior, movido por despreparo e mesquinhez. Arre. Voltando à Viena antiga, o comportamento irresponsável (e doloso) dos médicos austríacos só teve fim com os avanços obtidos pelo inglês Joseph Lister. Considerado o pai da cirurgia moderna, foi Lister quem, quase 20 anos depois, comprovou que a assepsia prévia impedia o quadro infeccioso. O magnífico "Medicina dos Horrores", que postei aqui no blog há menos de dois meses (o post #306, https://bit.ly/TheButcheringArt), conta esta estória em detalhes. Lister se baseou, por sua vez, nas descobertas de Louis Pasteur, que desenvolveu a Teoria Microbiana das Doenças, utilizando os dados coligidos na pesquisa do francês para encontrar a chave para o até então insolúvel problema infeccioso. A conquista correu o mundo a partir de 1867, mas já não encontrou Ignaz Semmelweis entre os habitantes do planeta. O genial médico húngaro morrera dois anos antes, espancado pelos funcionários do hospício em que fôra internado. Sua insistência nos métodos profiláticos o havia levado à loucura e à internação. Lá, não sobreviveu mais do que duas semanas. A partir de 1867 a assepsia evoluiu para se tornar prática obrigatória em todos os hospitais do Ocidente. Hoje, em pleno século 21, lidamos com circunstâncias semelhantes ao deste passado que se pensava distante, provocadas pelo obscurantismo e pela mais genuína burrice. Para o momento, é o que temos. Agradeço pela gentileza da leitura e espero que o resumo não tenha sido demasiado extenso. Embora o blog se dedique à comentar a produção literária, o que não é o caso do post de hoje, me senti confortável para abrir uma exceção e publicar aqui o comentário sobre o suplemento. Foquei na biografia de Semmelweis, o que pode ser compreendido como uma referência direta ao livro que o biografou. Fica explicada a exceção. Vale ainda ressaltar que o jornalista responsável pela publicação assina Sidney Jan - que sou eu mesmo. Naquele momento, em 1999, achei que não deveria misturar meu trabalho profissional à frente da Todos Nós (que tinha apenas nove meses de fundada, em agosto de 1998) com a edição regular do "A última folha". Por isso, embora creditasse tecnicamente a edição à própria agência, ampliando o seu então reduzido portfolio, assinei o expediente somente com meus dois primeiros nomes, sem o sobrenome. Me sentia mesmo melhor assim, visto que, na juventude, eu já assinava somente Sidney Jan, por gosto e simpatia. Só depois de burro velho optei por grafar apenas o primeiro e o último nome. Ninguém é Puterman à toa. No mais, pena que, por razões pessoais, o suplemento teve somente duas edições, em maio e em setembro de 1999. Mas me deixou doces lembranças. Fiquem em casa e protejam-se.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

3 comentários:

  1. Que bacana, Sidney! Gostei bastante da matéria. A respeito das duas edições de "A última folha", é possível acessá-las virtualmente? Grande abraço!

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    1. Boa noite, Geovane! Que bom que gostou. Pena, como o material é pré-revolução cibernética, não está na rede. Mas acho que ainda tenho alguns exemplares do número 2, posso lhe encaminhar um pelos Correios.

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    2. Sidney, gostaria de receber a citada edição, mas aguardemos o término desse isolamento social. Para contato futuro: geovanefoletto@gmail.com

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