"Caçando Eichmann", por Neal Bascomb

terça-feira, abril 14, 2020 Sidney Puterman

No início da década de 60 a catástrofe da Segunda Guerra Mundial já era passado para a maioria das nações. De uma maneira ou de outra, todas procuraram juntar os cacos, absorver os danos e reescrever a sua própria história. O Velho Continente, há pouco esfacelado, se dividira em duas fatias antagônicas. O Leste Europeu puxava o zíper da Cortina de Ferro e promulgava um novo modelo de sociedade, controlada pelo Estado e construtora do igualitarismo - onde, para proteger a população do capitalismo, ninguém entrava e ninguém saía. Já a Europa ocidental perdeu o protagonismo e buscava reerguer o que o conflito havia posto abaixo. Desossada pelos bombardeios, teve sua recuperação financiada pelos Estados Unidos, que investiu a bagatela de 100 bilhões de dólares (em dinheiro de hoje) para revigorar a Economia em ruína dos países envolvidos. Entre os mais beneficiados pelo Plano Marshall figurava a Alemanha, que, a essa altura, já não era o bicho-papão de uma década e meia antes. A antiga agressora parecia dócil e desdentada, e, após um curto período de desnazificação e de presumida perseguição aos criminosos de guerra, houve um consenso mudo entre as grandes potências ocidentais de que o passado sujo deveria ser varrido para baixo do tapete. Em comum acordo, os alemães não se auto-deduravam, enquanto americanos e ingleses faziam vista grossa aos antecedentes nazistas do inimigo vencido - afinal de contas, todos eles tinham um novo continente para tocar. Os que ainda tinham feridas para curar eram os russos e os judeus. Os primeiros, entretanto, já haviam matado todos os alemães que queriam, e ainda tinham dezenas de milhares de chucrutes no estoque, apodrecendo nas prisões siberianas, à mercê dos humores ciclotímicos do regime soviético. Os segundos tinham sua nova cota de problemas, pois o novo Estado que criaram, Israel, estava sob constante ataque dos vizinhos do Oriente Médio. Sem sombra de dúvida, o fantasma do terror nazista permanecia incrustado na pele e na memória dos sobreviventes do Holocausto e dos familiares dos seis milhões de judeus selvagemente assassinados nos campos de concentração alemães. Mas a caçada aos criminosos de guerra já havia praticamente cessado. Os que não morreram nem estavam presos haviam desaparecido na fuga. Trocaram suas identidades e sumiram no mundo - ou mesmo na própria Alemanha, o melhor lugar do mundo para um criminoso de guerra alemão se esconder. Afinal de contas, dos 800.000 membros da SS, 100.000 foram investigados, 6.200 foram julgados e apenas 124 ex-SS foram condenados à prisão perpétua (bem diluídos 0,015% da tropa total, o que, veja só, inocentava 99,98% dos seus integrantes). Como eu dizia, a Alemanha era um ótimo lugar para um ex-SS se refugiar. Decerto que os mais famosos e visados eram um prêmio grande demais para se manterem clandestinos. Estes estavam em algum canto remoto do globo, disfarçados de gente decente. Assim, com o biombo multinacional de proteção e o alto custo de tempo e dinheiro demandado, os outrora abnegados perdigueiros foram se desmobilizando. Mas um promotor de Justiça alemão, de origem judia, Fritz Bauer, um outro célebre judeu caçador de nazistas, Simon Wiesenthal, e um meio-judeu cego, Lothar Hermann, morador de Buenos Aires que se fazia de cristão, foram os artífices na busca de um famoso criminoso de guerra que parecia ter evaporado no ar: Adolf Eichmann, o oficial nazista que organizara toda a logística da deportação - e da ansiada subsequente extinção -  do povo judaico. Ainda que as trincheiras do burocrata fossem comumente as paredes do escritório, ele era um dos responsáveis por milhões de assassinatos cometidos a sangue-frio, tendo comandado as operações de extermínio na Áustria, Alemanha, França, Itália, Holanda, Bélgica, Dinamarca, Eslováquia, Romênia, Polônia e Hungria. Na definição do autor, "Eichmann era o responsável pela execução da política de Hitler para aniquilar os judeus. No cargo, agia como se fosse o diretor de uma divisão de algum conglomerado internacional. Estabelecia metas ambiciosas; recrutava e delegava funções a subordinados eficientes; viajava com frequência para acompanhar o progresso desses subordinados; estudava o que funcionava e o que não dava certo e fazia os devidos ajustes; não se esquecia de prestar contas de sua eficácia aos chefes, com gráficos e números. E, embora usasse farda, não media o sucesso pelas batalhas vitoriosas, mas por cronogramas obedecidos, cotas cumpridas, eficiência obtida, diretrizes seguidas e unidades movidas." Ou seja, o frêmito da perseguição podia já ter esmorecido, mas um peixe graúdo como este provocava que o caro e desgastante esquema de farejamento de criminosos de guerra fosse recolocado em prática. É esta a estória que Neal Bascomb nos traz. E o faz com uma pesquisa extensa, um conteúdo farto e em formato de thriller. Inicialmente Bascomb coloca Eichmann no cenário do crime. Mais precisamente em Budapeste, 1944. Não por acaso. Apesar de não representarem sequer 0,1% das mortes causadas por Eichmann, os fatos que ali se deram foram determinantes para o seu julgamento e condenação. Ali Eichmann saiu detrás da escrivaninha e desfrutou ostensivamente do seu poder, ameaçando e prendendo durante o dia e, após o expediente diário, saindo para desfrutar como um nababo nazista os prazeres da animada noite húngara (ficaria menos empolgado se soubesse o quanto isso lhe custaria no futuro). Os bacanais, entretanto, foram engolfados pela derrocada a galope. Bascomb parte destes últimos momentos de poder para seguir Eichmann pelas suas inúmeras rotas de fuga, com a anunciada derrota dos alemães. Embora se gabasse do que havia feito e se dissesse disposto a morrer, ele, como dezenas de milhares de outros, fugiu. As várias identidades que assumiu, os campos de prisioneiros de guerra por quais passou e sua fuga para a Áustria foram drenados pelo seu sumiço derradeiro em um longínquo país amigo, nos confins da América do Sul. Um vizinho que conhecemos bem, nuestros hermanos. A Argentina detinha então a maior comunidade nazista fora da Alemanha. Seu governo, peronista, foi hitlerista até os estertores do conflito mundial (por mera conveniência política, se bandeou para os Aliados aos 44 do segundo tempo). Os criminosos de guerra tinham em Buenos Aires um endereço seguro. Se sentiam em casa, estimulados pelo ambiente fortemente antissemita. À chegada, segundo Neal, Eichmann conseguiu, por meio de contatos locais, alguns empregos de baixa qualificação - aos quais nunca se adaptou. Ex-magnata do regime de Hitler, também não logrou sucesso na integração aos grupos de elite formados por antigos oficiais da SS. Seu antigo poder se extinguira e os colegas de antes o desprezavam. O tinham por arrogante e esquisito. O peso do isolamento foi demasiado e ele assumiu o risco de mandar vir da Europa a esposa e os filhos. Bem orientada, a mulher tentou apagar os rastros antes de partir. Mas seu próprio desaparecimento era uma pista e tanto. O perdido dado pela família de Eichmann era um forte indício de que ele permanecia vivo em algum lugar do planeta. Esta convicção na sobrevivência de Eichmann, dada pela partida da sua mulher e dos filhos para lugar ignorado, somada às pegadas que apontavam para sua presença na Argentina, foi suficiente para fazer girar novamente a manivela. A máquina judaica de caça aos operadores dos campos de concentração fôra religada. A trama para enredá-lo foi lenta e meticulosa (ainda que sem percalços de monta). Cada uma das etapas organizadas pelo serviço de espionagem foi bem-sucedida. Ao leitor atento impressiona como um cronograma tão sem incidentes - que ajudariam na dramatização da narrativa - possa ter sido contado com tanta tensão. Mérito de Neal Bascomb. O jornalista descreve em pormenores a história da captura, dando detalhes da resistência do próprio governo israelense em se lançar em uma aventura com alto potencial de fracasso e também do ceticismo dos serviços de espionagem do país, escaldados com a enxurrada de indícios enganosos com que lidavam constantemente. O Oriente Médio estava em ebulição, Jerusalém estava na mira e fazia sentido desdenhar do testemunho fornecido por um cego - a única pista que colocava Eichmann em Buenos Aires. Bem, a grande diferença é que Eichmann estava lá. E dando sopa. Vivia com a família, como um ermitão, numa zona isolada da periferia portenha, sem dinheiro ou conforto. Amargurado com o fim fracassado, seu único momento de convívio com as glórias passadas foi ao aceitar o convite de um compatriota, também radicado na cidade, para gravar seu testemunho de oficial, dando a sua versão do que teria acontecido na Europa sob domínio nazista. O amigo o convenceu sob o argumento de que a História merecia a visão de ambos os lados, não somente a narrativa dos americanos e dos judeus (o que, para muitos, dava no mesmo). Era necessário um discurso que afirmasse as boas intenções dos alemães. Eichmann tolamente se deixou levar pela ladainha do "amigo". A incompreensível ingenuidade o condenou. Foram as fitas com o seu testemunho, em um depoimento voluntário e onde defendia sua auto-determinação, que desmentiram a versão, vitimista, que ele viria a adotar no julgamento, alguns anos depois. As fitas, logo vendidas à imprensa alemã, tornaram o amigo rico e custaram o pescoço de Eichmann. No livro dedicado ao meticuloso passo a passo dessa estória, Bascomb já no início disseca a performance que fez de Eichmann um criminoso que não se poderia ignorar, detalhando o seu modus operandi, que principiava no isolamento da comunidade judaica de cada cidade, seguida pelas ordens "para impor o uso da Estrela Amarela, proibir as viagens e o uso de telefone e rádio, e impedir que os judeus ocupassem cargos públicos, e praticassem várias outras profissões". Como discrimina o autor, "havia mais de cem dessas medidas, que visavam identificar e remover os judeus da sociedade. O estágio seguinte seria tomar posse da riqueza deles para os cofres do Terceiro Reich. As contas bancárias seriam congeladas, as fábricas e empresas pertencentes a judeus seriam desapropriadas e o patrimônio de todos os indivíduos, espoliado, inclusive seus cartões de racionamento. Em seguida, viria a guetificação, para remover os judeus de suas moradias e concentrá-los até que o quarto e ultimo estágio pudesse ser posto em prática: a deportação para os campos." A partir daí, com os comboios entregues, Eichmann passava a bola para os executores finais do processo do genocídio. Era este o sujeito que vivia como um pária da própria comunidade clandestina e que o serviço de espionagem israelense estava prestes a por as mãos. Nada restava então da empáfia e da coragem fingida com que, ainda em Berlim e às vésperas do ataque final, Eichmann se despedira da sua unidade: "Quanto a mim, nada mais resta que me interesse no mundo, além de lutar até o fim, e só penso em encontrar a morte nessa luta. Pularei alegre e feliz na cova sabendo que comigo estão 5 milhões de inimigos do Reich." Bem, como sabemos, Eichmann não lutou e nem foi ao encontro da morte, apenas pulou na cova para se esconder dos tais tiros dos inimigos do Reich. Além da narrativa minuciosa que cobre mais de uma década de fuga e perseguição, Bascomb, de bônus, revela algumas facetas pouco conhecidas da xenofobia, como a Tacuara, uma organização nacionalista radical argentina, inspirada na Falange espanhola, fascista e antissemita (o nome vinha de uma faca gaúcha, e a composição do grupo era de jovens inflamados). Eram apenas garotos, mas ambiciosos: desconfiados de que havia judeus perambulando por Buenos Aires na posse de Eichmann, tentaram se articular para caçá-los, mas fracassaram. Ao fim de tudo nos resta claro que o Eichmann do qual Hannah Arendt faria seu personagem-símbolo do conceito de banalidade do mal talvez nem fosse tão banal: a aparência insossa e a narrativa amorfa podem camuflar um psicopata que só a oportunidade revela (mas a sócio-psicologia pertence a uma outra esfera, que transcende o mero encadeamento de fatos, que é do que trata do livro e, por conseguinte, este post). Como nos conta Neal com raro talento, Adolph Eichmann foi identificado, caçado, capturado, contrabandeado, julgado e executado. E a caçada e o julgamento do mais emblemático criminoso de guerra alcançado pelos agentes israelenses deu novo fôlego às operações, que se estenderam ainda por mais de uma década. Dos "desaparecidos", o mais cobiçado era Joseph Mengele, médico-açougueiro que conduziu macabras experiências pseudo-científicas nos campos de concentração, martirizando milhares de crianças, preferencialmente gêmeas. Enquanto os agentes armavam o cerco para capturar Eichmann, descobriu-se que Mengele vivia em Buenos Aires. Espiões foram despachados para identificá-lo, mas o infanticida alemão escapou por um triz - como escaparia ainda outras vezes, acabando por morrer afogado, velho e gordo, em uma turística praia do litoral paulista. Apesar da passagem dos anos, os caçadores de criminosos nazistas pegaram alguns figurões e também arraia miúda - em meio a ela um tatuí nazista, Herbert Cukurs. O meganha cometera crimes de guerra na Letônia, entre 1941 e 1944, e fugira para o Rio, onde implantou bicicletas aquáticas na Lagoa Rodrigo de Freitas - os populares "pedalinhos". Descoberto na Cidade Maravilhosa, fugiu para o Uruguai, onde foi encontrado, justiçado e trancado dentro de um baú. A polícia de Montevidéu, ao abri-lo, encontrou o cadáver e um bilhete, assinado: "Aqueles que jamais esquecerão".

Editora Objetiva, 383 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: