"Paixão", por Plácido Berci
Já é uma "tradição" pessoal: sempre que viajo, seleciono para levar comigo livros que façam algum sentido com o roteiro ou com o destino. Nem sempre a escolha é fácil. Há as opções óbvias e há também os destinos que são figurinha fácil na literatura.
Desta vez cocei mais a cabeça. O pano de fundo era uma ida ao Equador para assistir um jogo de futebol (acabei vendo dois). Procurei os autores equatorianos mais badalados. Livros sobre vulcões, a história de Quito ou o cálculo do hemisfério. Em vão. O que encontrei não me seduziu.
Deixei de lado o país e foquei na atividade-fim. Bola. Futebol. Emoção. Aí facilitou minha vida. Foi então que decidi levar comigo o carinhoso livro de Plácido Berci - sobre o futebol no país que inventou o futebol. Tudo a ver. Qual o problema de ir para uma montanha e ler sobre uma ilha? O que importava eram as quatro linhas do gramado. As arquibancadas pulsando.
O título, "Paixão", é sob medida para o sentimento; seja da hinchada, do autor ou do leitor. Assim, apaixonado pelo esporte, o livro me caiu como uma luva, ops, como uma chuteira. Leitura fácil. O jornalista faz uma viagem afetiva às raízes do jogo. E é principalmente disso que o livro trata: afeto.
Berci visitou as origens. Os clubes que estiveram na gênese do esporte, no longínquo século XIX, e que permanecem vivos no século XXI. O escritor itinerante deu e recebeu afeto de torcedores que são dirigentes, de ex-atletas que são roupeiros e de jornalistas e turistas igualmente apaixonados.
O pesquisador desfia revelações de enciclopédia. Por exemplo, a antológica reunião no pub londrino "Freemason's Tavern". Plácido conta que, em 26 de outubro de 1863, representantes de doze colégios se reuniram para uniformizar as regras de um novo esporte - que cada colégio praticava a seu jeito, com muitos participantes e uma única bola.
Os colégios eram de diferentes cidades. Da mesma forma que hoje se discute aqui a interferência do VAR, o fulcro do debate foi sobre quantos jogadores de cada time poderiam por a mão na bola. Houve uma dissensão. Os que defenderam que apenas um jogador poderia segurar a bola com as mãos formaram a Football (pé-bola) Association, a atual Federação Inglesa de Futebol.
A outra metade, liderada pelos representantes do colégio de uma cidade situada 134 quilômetros a noroeste de Londres, achou melhor que todos os jogadores pudessem por a mão na bola. O nome dessa cidade? Rugby, no condado de Warwickshire.
Os dois esportes, nascidos siameses, se separaram e tomaram a partir daí cada um seu rumo. Foram ambos bem-sucedidos. Sendo que um foi muito mais bem-sucedido do que o outro...
A invenção do futebol, porém, antecede em seis anos a sua regulamentação. O Sheffield Footbal Club foi fundado em 24 de outubro de 1857, e o jogo se orientava por uma norma batizada como Código de Sheffield. Essa norma balizou as regras do jogo, na tal reunião de 1863 em Londres.
Berci esteve no condado de South Yorkshire, para visitar o clube (hoje disputando o que seria equivalente à nona divisão do país). Reconhecido pela FIFA como o primeiro clube de futebol da história, volta e meia é agraciado pela instituição com uma verba de caráter extraordinário. Justo.
São quatro os clubes do condado. Além do Sheffield propriamente dito, há o Hallam, de 1860, e também o Sheffield Wednesday, de 1867, e o Sheffield United, de 1889. O Wednesday tem recebido muitas manchetes no Brasil nos últimos dias. John Textor, o polêmico e midiático dono do Botafogo, parece que fez uma proposta para adquiri-lo. A ver.
O autor também abre um espaço generoso para falar do Corinthian inglês, fundado em 1882, e que, excursionando pelo Brasil em 1910, teve o nome surrupiado pelo Corinthians Paulista.
À época, o Corinthian era o bicho-papão em pessoa. Seu uniforme totalmente branco inspirou o da seleção inglesa - o English Team - e o do Real Madrid. Por duas vezes o clube cedeu os onze titulares da seleção. Meteu também a maior piaba já tomada pelo Manchester United: 11 a 3, em 1904. No Brasil, atropelou por 10x1 o Fluminense (que não era o campeão carioca, e sim o Botafogo).
Áureos tempos em que o futebol inglês deitava cátedra.
A Primeira Guerra Mundial, em 1914, cobrou um preço sanguinário da juventude europeia. Todos os 22 jogadores do clube serviram no exército inglês e morreram em combate. O Corinthian jamais se reergueu. Para sobreviver, fundiu-se com o Casuals, cuja camisa é rosa e marrom. Ôxi.
Plácido conta essas e outras estórias saborosas, como a dos dois Manchester. O United, o rico, e o City, o (ex) pobre. O segundo, que vestia azul, sempre viveu à sombra do primeiro, que vestia vermelho. Um campeoníssimo e o outro irrelevantíssimo. Nos últimos anos, entretanto, o sucesso esportivo trocou de lado. Os torcedores do Manchester City se gabam, em (compreensível) êxtase:
"Nós passamos muito tempo na merda, agora merecemos isso", celebra o torcedor James Phillips.
O jornalista nos traz também outra rivalidade centenária entre vermelhos - do Liverpool - e azuis - do Everton. O clássico entre os dois é chamado de Merseyside Derby. Deve ser daí que um clássico entre dois times paulistanos (não me pergunte qual) é chamado de dérbi.
Entre muitas informações pontuais e curiosas, gostei de saber que o jornalista australiano Dominic Bossi, repórter do Sydney Morning Herald e torcedor do Sydney Football Club em seu país, esteve no Brasil na Copa do Mundo de 2014 e se tornou torcedor do Botafogo.
Sydney (ou Sidney) e Botafogo, tudo a ver - pensei eu, orgulhoso, cá com meus botões.
As razões que o levaram Dominic a torcer pelo Glorioso, porém, já não se sustentam. Me privarei, entretanto, de revelá-las. Quem as quiser saber, que leia o livro...
Outro ângulo que Plácido Berci explora é a paixão do público inglês pelas apostas. Destaca que toda rua da ilha tinha sua própria casa de apostas. Ele mesmo fez sua fezinha uma vez ou outra - e em uma delas ganhou uma grana preta. Mas o autor, que escreveu o texto em 2014, muitos anos antes da invasão cibernética das casas de apostas no Brasil, não faz apologia do jogo e alerta:
"Jogar é como fumar", compara. "O sujeito pensa a princípio que o vício é uma lenda e arrisca umas tragadas. Num belo dia, percebe que fumou um maço inteiro inteiro. No jogo, o pulmão é o bolso que um dia, em vez de preto, amanhece vazio", filosofa.
En passant, aborda a questão que transformou as violentas torcidas inglesas (os famosos hooligans) nos comportados espectadores da atualidade. O turning point veio com o Relatório Taylor, que propôs alterações para evitar que tragédias como as de Bruxelas (onde morreram 39 torcedores da Juventus, em confronto com os fãs do Liverpool) e de Hillsborough (quando morreram 96 torcedores) acontecessem novamente.
Diferentemente daqui, lá as necessárias adaptações foram (e permanecem sendo) feitas. Pouparam-se muitas vidas. E, de lambuja, criaram o maior e mais rico campeonato de futebol do planeta, a Premier League. Sabem tudo de bola.
Pois é, ela, a bola. Razão da magia que move os enfeitiçados. Seja pelo Sheffield, pelo Corinthian, pelos Manchester e pelo clube alvinegro que me levou até o Equador. Meu time, o Botafogo, comunga com eles um passado histórico (e até, data vênia, sr. Relator, maior, muito maior). E que atravessa, de novo, enfim, um momento de glórias e conquistas épicas.
Em Quito, Equador, para onde levei comigo o livro de Plácido Berci, não foi o que aconteceu, porém. Exatamente como os ingleses, acompanhei o time, cantei para o time, e saí do estádio derrotado. E também, exatamente como eles, me mantive vidrado, hipnotizado no jogo seguinte (batemos, na extremidade diagonal do continente, seis mil quilômetros a sudeste, o gaúcho Juventude, por 3x1).
Sei de torcedor botafoguense que foi direto das arquibancadas de Quito para as de Caxias do Sul.
Certas coisas não têm explicação. Como a paixão pelo futebol. Só os apaixonados pra saber.
Via Escrita Editora, 154 páginas | 1a edição, Copyright 2015
Obs.: Troquei mensagens com o autor, via instagram. Ele me revelou que esta primeira edição é rara, mas inferior à 2a edição, que traz 60 páginas a mais. Folgo em saber. Espero vir a a lê-la.
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