"O mundo de ontem", por Stefan Zweig
Duas Pontes, Petrópolis. 22 de fevereiro de 1942. Faz hoje 80 anos que o apátrida Stefan Zweig tomou uma dose de veneno e se deitou em sua estreita cama de ferro, numa casa branca na encosta da Rua Gonçalves Dias. Em seguida, sua esposa, Lotte, que o assistiu na morte, também se matou.
Ninguém esperava. Cinco meses antes, o casal se instalara na bucólica cidade imperial brasileira, cheio de planos. Nada do luxo d'outrora: era uma residência modesta, debruçada sobre uma pequena colina. A vista, ainda que peculiar, não rivalizava com a do seu castelinho em Salzburg.
Na villa o Führer descansava da tarefa que se incumbiu. Impor o domínio nazista sobre toda a Europa, instaurar um regime colonial sobre a Rússia, a Ásia e a África, saquear seu povo e suas cidades, escravizar ou matar o maior número possível de não-alemães e matar todos os judeus.
O contexto era um cenário de barbárie absolutamente oposto ao ambiente de excelência científica e cultural que havia imperado na Europa, de meados do século XIX à eclosão da Guerra Mundial, depois denominada "Primeira". Como conta Zweig, um estilo de vida que, de certa forma, havia sobrevivido ao combate sangrento e até - paradoxalmente - se depurado ao longo da década de 20.
Stefan Zweig era um dos ícones desta Europa cosmopolita. Era publicado em dezenas de idiomas, respeitado por artistas e políticos e íntimo dos principais nomes da cultura do seu tempo. Na verdade, ele era a síntese do clichê cidadão do mundo; mas é que seu nome realmente transcendia fronteiras. Ele próprio se surpreendia ao constatar que era aclamado onde quer que fosse - perambulasse pela Índia ou aportasse pela primeira vez em Nova Iorque.
Mas, pena, essa doce receptividade à sua talentosa pessoa não duraria muito. No início da década de 30, seu mundo, antes sólido, derreteu. Primeiro a Alemanha, depois a Áustria e aí a Tchecoslováquia; em seguida, toda a Europa. A Werhmatch e a SS se espraiaram como um câncer e esmagaram, sob a esteira dos tanques, uma sociedade milenar. A selvageria do regime nazista destruiu tudo o que viu pela frente (exceto o que roubou). O continente sucumbiu.
Sessenta milhões de pessoas morreram ao longo do conflito. Entre eles, seis milhões de judeus.
Foram poucos os que conseguiram fugir da sanha assassina do exército alemão. O autor da biografia à qual nos dedicamos aqui, Stefan Zweig, foi um desses poucos. E veio para cá.
Vir se matar em Petrópolis não era o ponto final planejado em seu roteiro. Mas foi a consequência natural de uma sucessão de fugas.
Já destituído da sua cidadania austríaca, e escapulindo da ameaça nazista, Stefan mudou-se para o Reino Unido, onde começou a escrever suas memórias. Com a invasão da Polônia e a declaração de guerra dos ingleses à Alemanha, o apátrida Zweig, que não era mais reconhecido na Áustria como cidadão austríaco, era, não obstante, um estrangeiro de língua alemã e, portanto, inimigo da Inglaterra, onde não pôde mais permanecer. Sob o peso da débâcle do continente, dali foi para os Estados Unidos, onde terminou sua biografia de uma Europa desaparecida. De lá veio para seu último refúgio, a América do Sul.
Mais especificamente, veio para o Brasil, ao qual dedicou um livro cujo título se tornou slogan. "Brasil, o país do futuro". No país tropical, escolheu Petrópolis, a mais europeia das nossas cidades. Seu último endereço foi aqui, a curtos quinze minutos de caminhada de onde escrevo agora. Legou ao mundo uma vasta obra, onde este seu "O mundo de ontem" pontifica.
Um livro que nos permite entender, sob o ponto de vista do ser humano impotente, a criminosa transformação do planeta. Ele é o manifesto da ignorância de um homem culto e político. Ilhado pela guerra onde quer que fosse, seu texto revela como o cidadão comum era vítima do desconhecimento e da desinformação. Não sabendo nada, lhe restava desacreditar de tudo.
A informação tinha impressão e transmissão proibidas. Nos países sob o jugo do nacional-socialismo, sintonizar em uma rádio aliada (geralmente a BBC de Londres, que tinha programas em alemão) era garantia de prisão, ou, pior, de execução imediata. Os jornais permitidos eram somente os do partido nazista - circunstância que veremos em detalhes em LTI, a linguagem do III Reich, do filólogo de Dresden Victor Klemperer (que, curiosamente, tem parentes residindo aqui em Petrópolis).
Ou seja, Stefan Zweig não sabia nada - tonto em meio aos discursos e ameaças, vindos de todos os lados envolvidos na guerra. Blefes, é verdade, que na grande maioria das vezes davam em coisa alguma (lembram de um presidente brasileiro que ameaçou extraditar um repórter - Larry Rother - que disse que ele gostava de umas cachaças? ou de outro que prometeu resolver na pólvora, o mal-estar com os EUA? pois é).
Mas naquele momento o buraco era mais embaixo. Os jogadores eram mais poderosos e, principal, Stefan não tinha o privilégio, que temos hoje, de ver a catástrofe em retrospectiva, alicerçados que estamos em toneladas de História, já decupadas e distribuídas. O célebre escritor só fugia.
Nem sempre fora assim. Na Primeira Guerra Mundial, Zweig foi interlocutor privilegiado de líderes beligerantes e autores pacifistas. Com base em suas entrevistas, a análise que faz dos movimentos que levaram ao vínculo entre Alemanha e Áustria em 1914 revela a reticência dos Habsburgo, símbolo-mor da pátria do autor. Mesmo que um pouco fora do nosso enfoque, aqui, vale para contextualizar o momento histórico e a inserção de Zweig neste ambiente nacionalista.
E, mais que tudo, do contencioso entre os dois grandes aliados de língua alemã, Alemanha e Áustria.
"Com o novo imperador Carlos, iniciara-se um movimento silencioso nos círculos mais elevados do governo para se separar da ditadura do exército alemão, que continuava arrastando brutalmente a Áustria, contra a vontade do país, no rastro do seu anexionismo selvagem", diz Zweig, concluindo que "no nosso estado-maior, os oficiais detestavam o autoritarismo brutal de Ludendorff".
Stefan se viu inclusive no meio de um anúncio separatista, quando, em reunião com o jurista Heinrich Lammasch, que viria a ser ministro-presidente austríaco por curto período, recebeu a revelação de que o governo austríaco iria se separar da aliança com os alemães: "Desde que a Rússia fora afastada militarmente, não havia nenhum verdadeiro obstáculo para a paz, nem para a Alemanha, nem para a Áustria", relata Zweig, acrescentando que "se o grupo pangermânico na Alemanha continuasse a se opor às negociações, a Áustria teria de assumir a liderança e agir com autonomia".
Tal movimento, contudo, nunca aconteceu. Zweig reputa o recuo à indecisão do imperador Carlos, e lamenta, porque crê que uma chance valiosa foi perdida. Lammasch só chegou ao governo quando os Habsburgo já haviam caído e a derrota austro-alemã na Primeira Guerra já era favas contadas.
"O imperador Carlos não teve a coragem de assumir sua convicção em público", opina o escritor, ressalvando que "afirmam alguns que a Alemanha ameaçou a Áustria com uma invasão militar". Aposta que Lammasch teria resolvido satisfatoriamente a questão, pois "Lammasch não apenas teria salvado a existência da Áustria como também a Alemanha do que mais a ameaçava em seu interior: a sua desmedida ambição de anexar".
Passagem importante, ainda que se referindo a um cenário de mais de um século atrás; mas, houvesse a Áustria imposto suas condições de país soberano ao aliado, a Alemanha, e talvez não houvesse combustível político para incendiar o povo alemão e produzir a Segunda Guerra Mundial. Vá saber.
As críticas, sempre polidas, de Zweig iam da direita à esquerda, como quando fala da esterilidade das eternas discussões políticas, apontando o "tipo eterno do revolucionário profissional que se sente elevado em sua insignificância pelo mero fato de fazer oposição e que se agarra ao dogma porque não dispõe de firmeza dentro de si próprio".
Em miúdos, Zweig detonava aquilo que aqui resumimos, na década de 70, como "esquerda festiva".
Mas, se sabia tanto da política na década de 20, em 1940 Zweig não sabia o que se passava no front, muito menos nos gabinetes palacianos de Hitler, Churchill, Roosevelt e Stalin. Era, ao fim da vida, um mero fugitivo, ignorante das circunstâncias em que se via desgraçadamente envolvido. Como afirma o celebrado historiador Max Hastings, no preâmbulo do seu Inferno: somente um número ínfimo de líderes e comandantes nacionais sabia o que se passava fora do seu campo de visão. "Os civis viviam numa espessa névoa de propaganda e incertezas, um pouco menos densa na Grã Bretanha e nos Estados Unidos".
Assim, razoavelmente perdido, o homem recebido por presidentes e lido por imperadores sofria com o desmoronamento do mundo e comungava com a reação incrédula e vulnerável do povo. Só lhe restava ler as notícias locais - dramáticas, ou ufanistas, mas certamente tendenciosas - e tomar decisões desesperadas apoiado no que lia. Sorte que, ao menos, dinheiro nunca lhe faltou. O que acabou, bem antes, foi sua esperança de sobreviver ao cataclisma.
Porém, antecedendo sua decisão de partir desta vida, nos deixou o registro do mundo que conheceu. Um mundo previsível e de saborosa estabilidade, como nos descreve o próprio Zweig:
"Ao tentar encontrar uma definição prática para o tempo antes da Primeira Guerra Mundial, no qual me criei, espero acertar dizendo: foi a época áurea da segurança. Tudo na nossa monarquia austríaca quase milenar parecia estar fundamentado na perenidade e o próprio Estado parecia ser o avalista supremo dessa estabilidade", inicia.
Da sociedade à economia, tudo transbordava solidez, "nossa moeda, a coroa austríaca, circulava na forma de brilhantes peças de ouro, avalizando, assim, a sua imutabilidade. Cada um sabia quanto possuía ou a quanto tinha direito, o que era permitido ou proibido". O autor se estendia na rotina pessoal: "Cada família tinha seu orçamento fixo, sabia de quanto precisaria para morar e para comer, para viajar no verão e para sua vida pessoal."
Stefan abre com a mesmice do equilíbrio e envereda por uma ponderada visão global: "Ninguém acreditava em guerras, revoluções ou quedas. Tudo o que era radical ou violento já parecia impossível numa era da razão", concluindo mais à frente que "o ódio entre um país e outro, entre um povo e outro, entre uma mesa e outra ainda não nos assaltava todos os dias a partir da manchetes dos jornais, ainda não separava as pessoas das pessoas e as nações das nações."
Epa! o ódio entre um e outro, entre uma mesa e outra ainda não separava as pessoas das pessoas? Acho que isso me soa familiar...
Neste autêntico "Show de Truman", os vizinhos alemães eram mais ranzinzas do que ameaçadores. "Os alemães do norte olhavam um pouco zangados e desdenhosos para nós, para os vizinhos às margens do Danúbio, que, em vez de serem 'eficientes' e manterem uma ordem rigorosa, viviam bem, comiam bem, deleitavam-se com festividades e teatros e, ainda por cima, faziam música excelente". Conclui o comparativo dizendo que "viver e deixar viver' era o célebre princípio vienense".
Tudo isto antes da primeira das duas guerras. Ele viria a contemporizar com a primeira e ser esculhambado pela segunda. Porque, lembrando, a guerra de Hitler foi tipo a segunda temporada da série "O mundo em guerra", só que desta vez com bombas, submarinos, caçadas humanas e campos de extermínio. Mas o que havia antes delas era uma Europa dominada pela placidez, principalmente para um cidadão cosmopolita do rico império austríaco.
Zweig foi sempre aquinhoado. Filho de uma família amorosa e bem estabelecida, Stefan vivia em um círculo de amigos estudantes onde o teatro, a ópera e a literatura eram os prazeres e as ambições. Virtuoso, teve seu texto aceito pelos jornais da capital enquanto ainda era um garoto. Inesperadamente, escritores que idolatrava elogiaram seu primeiro romance. Seu trabalho era dia a dia valorizado - músicos pediam que escrevesse peças para eles, atores lhe pediam personagens. Da noite para o dia, o jovem Stefan se tornou uma celebridade em Viena.
E, em muito pouco, também em Paris e Berlim. Nestas, que eram então as principais capitais do continente, Zweig desfrutava da admiração e da amizade dos principais artistas e intelectuais da época. Peter Hille, Émile Verhaeren, Raine Maria Rilke, Roman Rolland, Auguste Rodin e tantos mais.
O editor do Neue Freie Press, Thedor Herzl, foi um dos interlocutores mais marcantes de Zweig. Herzl foi jornalista correspondente no julgamento de Alfred Dreyfus e, convicto de que sua condenação se dera exclusivamente pelo fato de ser judeu, "concebeu então o plano fantástico de acabar de uma vez por todas com o problema judaico, juntando o judaísmo com o cristianismo através de um batismo de massa voluntário", nas palavras de Zweig, que contrapõe: "Não demorou para ele reconhecer a inexequibilidade desse plano".
Atente para a dimensão histórica do próprio Zweig, circulando por fatos que o uniam a Herzl, que viria a fundar o sionismo internacional, que desembocaria na criação do estado de Israel, atados por sua vez à narrativa de Dreyfus, personagem do célebre J'accuse, de Émile Zola.
"Se a segregação é inevitável, pensou, então que seja total!", reporta Stefan o pensamento de Theodor, cuja "ideia da eterna proscrição de seu povo o perpassou como um punhal". O escritor austríaco reproduz as palavras que escutou do primeiro sionista: "Se a humilhação volta e meia se torna a nossa sina, vamos enfrentá-la com orgulho. Se sofremos pela falta de pátria, vamos construir uma própria!"
Zweig comenta a baixa receptividade que teve a brochura "O Estado dos judeus", de Thedor Herzl, que defendia a fundação de uma "nova pátria na velha pátria, a Palestina". Para sua surpresa, houve perplexidade e irritação entre os círculos judaicos burgueses em Viena.
"Que diabos aconteceu com esse escritor habitualmente tão sensato, irônico e culto? Por que devemos ir para a Palestina? A nossa língua é o alemão, não o hebraico, a nossa pátria é a bela Áustria", rememora Stefan o que escutou nas reuniões que frequentava. A gente já sabe no que isso deu.
Nem tudo é seriedade na bio de Zweig: hilária é a sua descrição do airbnb em que se hospedou em Paris, uma pensão barata, com diversos apartamentos individuais. Se hoje entramos e saímos dos prédios parisienses digitando um código no portão, à época era na base do grito.
"Le cordon, s'il vous plaît", gritava-se, acordando o porteiro que dormia em seu quarto, para que ele puxasse da cama mesmo a cordinha, e assim abrisse a porta. Na volta, gritava-se o nome e o apartamento, e o procedimento se repetia. Pois um francês amigo do alheio se aproveitou do expediente para fingir ser quem não era e roubar a mala de Zweig. Quem quiser saber os divertidos detalhes da caça detetivesca ao ladrão, que compre o livro...
Vou me estender aqui para reproduzir o depoimento de Zweig sobre a propalada inflação no pós-guerra. Muito se fala como os alemães carregavam dinheiro no carrinho de mão para pagar o pão. O assunto me interessa diretamente, porque vivi a inflação brasileira de 1980 a 1994 e, ao contrário da juventude de hoje, sei bem o caos que a inflação provoca na economia. "Caos" é bem a palavra.
"O caos crescia a cada semana que passava, e a população ficava mais apreensiva. Pois a cada dia a desvalorização do dinheiro se tornava mais perceptível", explica o escritor. A situação foi muito além da brasileira, pois "o governo ativou ao máximo a emissão de cédulas para gerar o maior volume possível, mas não conseguiu dar cabo da inflação; assim, cada cidade, cada cidadezinha e cada aldeia começaram a emitir 'dinheiro de emergência', que na aldeia vizinha já era recusado e, na maioria das vezes acabava simplesmente sendo jogado fora".
"Tenho a impressão", diz Zweig, "de que um economista que soubesse descrever plasticamente todas essas fases, a inflação primeiro na Áustria, depois na Alemanha, poderia superar em suspense qualquer romance, pois o caos assumia formas cada vez mais fantásticas". "Em pouco tempo, ninguém mais sabia quanto custava alguma coisa", o que era exatamente a realidade brasileira no fim da década de 80. "Os preços variavam à vontade, uma caixa de fósforos podia custar vinte vezes mais em uma loja do que em outra", onde, explica, alguém "sem malícia ainda vendia sua mercadoria pelo preço da véspera".
Falando de moradia e alimentação, Stefan comenta que "o aluguel de um apartamento de tamanho médio na Áustria custava por ano menos do que o preço de um almoço", e que durante cinco ou dez anos a Áustria inteira morou de graça. E, pior, "quem respeitava corretamente o racionamento de alimentos morria de fome".
Pronto. Chega de inflação. Mas recorri a ela para dar o depoimento pessoal de um fato histórico super repercutido e mostrar também as preocupações mundanas do escritor.
Este depoimento pessoal, porém, esconde a dimensão literária que Stefan Zweig atingiu nos anos 30. Era simplesmente o maior vendedor de best-sellers da Europa. Mas seu apogeu foi ceifado pela ascensão nazista, quando os autores judeus foram expurgados e proibidos. Segundo o escritor, "das centenas de milhares e até milhões de exemplares de meus livros, não se encontra mais um único à venda na Alemanha hoje; quem ainda possui um exemplar mantém-no cuidadosamente escondido, e nas bibliotecas públicas eles se encontram ocultos em armários especiais".
O veto não se restringia à Alemanha. "Também na França, na Itália, em todos os países hoje escravizados, os meus livros antes entre os mais lidos hoje também são proibidos por ordem de Hitler". A fuga de Zweig Europa afora trazia também o terror de ser um escritor condenado à exclusão: "Como escritor sou hoje alguém que segue vivo atrás do próprio cadáver".
Poderia falar, ou escrever, horas a fio sobre a tragédia que se abateu sobre os lares de milhões de europeus, asiáticos e africanos e que Zweig, em fuga, simbolizou pessoalmente para nós. Mas ele foi bem além disso, por ser também um dos principais narradores do mundo que existia antes. O mundo de ontem ao qual se refere Stefan Zweig é o mundo que se dissolveu há um século atrás e dentro do qual a gente boia até hoje.
Não à toa, o título original é revelador: "O mundo que eu vi: memórias de um europeu".
Então conhecer e entender esse tal mundo de ontem pode ser uma mão na roda.
E Stefan Zweig é um bom cicerone. Impressiona como este autor austríaco, morto há exatas oito décadas, continua sendo referência entre estudiosos e historiadores quando querem se referir ao mundo da primeira metade do século XX. Parece até que combinaram entre si incluir uma ou mais citações a Zweig em seus livros de história - ele está em todos eles.
"Em Viena, Stefan Zweig vibrou por ser parte de uma multidão patriótica", relata o historiador Niall Ferguson em seu O horror da guerra, descrevendo o entusiasmo de Zweig diante da proclamação da guerra de 1914 (verdade apenas em parte: mesmo pacifista, se julgou a principio emocionalmente traidor da pátria caso não comungasse com o sentimento patriótico dos seus concidadãos).
Christopher Clark, em seu seminal Os sonâmbulos, que descreve o fluxo de ações que desembocaram na Primeira Guerra Mundial, conta como Stefan, que desfrutava de férias em Baden, lendo um ensaio sobre Tolstói e Dostoievski, percebeu algo de anormal na multidão. "O assassínio anunciou-se a Stefan Zweig sob a forma de uma interrupção no ritmo da existência".
Quando o historiador Max Hastings, em seu Europa 1939-1945 (o subtítulo do Inferno que já mencionei acima) quis exemplificar a diferença no engajamento popular com cada uma das duas guerras, ele se valeu também de Zweig, pois, segundo "O escritor austríaco Stefan Zweig (...), as pessoas não sentiam o mesmo porque o mundo em 1939 não era tão puerilmente ingênuo e crédulo como em 1914".
Hastings recorre novamente a Zweig para dar tintas vívidas à invasão de Paris pelos nazistas. "A queda da capital levou o escritor austríaco Stefan Zweig, um judeu agora em exílio alhures, a escrever", diz ele, abrindo aspas para Zweig: "Poucas desgraças pessoais me consternaram e me encheram de desespero como a humilhação de Paris, uma cidade abençoada, como nenhuma outra, pela capacidade de fazer feliz qualquer um que a visite".
Embora não fosse nenhuma ameaça, Stefan estava em risco. "Se os nazistas tivessem conquistado a Grã-Bretanha, a Gestapo teria prendido não apenas Winston Churchill e o líder do partido trabalhista, Clement Attlee, mas também pacificistas como Norman Angell, escritores como H.G.Wells e emigrados alemães como o romancista Stefan Zweig", diz o professor de história moderna Robert Gerwarth, em seu O carrasco de Hitler: a vida de Reinhard Heydrich.
A afirmação consta literalmente em O império de Hitler, do professor de história Mark Mazower, uma descrição minuciosa de como os nazistas administraram (ou tentaram administrar) a Europa ocupada. Havia uma relação de sujeitos a serem caçados na Inglaterra, em caso de ocupação, intitulada Sonderfahndungsliste GB, ou seja, "Lista dos mais procurados da Grã Bretanha", que incluía diversos judeus emigrados, entre outros Sigmund Freud (que já tinha morrido, mas que não tinha sido retirado da lista).
"Alguns desses temiam tanto uma invasão", diz Mazower sobre um eventual desembarque alemão no Reino Unido, "que fugiram para o outro lado do Atlântico: o escritor Stefan Zweig foi para os Estados Unidos e dali para o Brasil, onde se suicidou em 1942, depois de concluir seu comovente lamento por uma Europa que considerava irremediavelmente perdida, O mundo que eu vi".
Um dos mais citados escritores do mundo, mas quase desconhecido na própria cidade em que viveu seus últimos meses de vida, este escritor ímpar merecia ao menos um verbete público. Algo pelas esquinas da cidade. Um texto que pudesse ser decorado pelas crianças e adolescentes. Qualquer coisa modesta, com menos de dez linhas. Sem excessos ou apologia. Talvez com alguma ironia.
O famoso escritor europeu Stefan Zweig escreveu sua autobiografia pouco antes de se exilar, em 1942, em uma pequena cidade sul-americana, na mata atlântica fluminense. Batizada um século antes como Petrópolis, a “Cidade de Pedro”, ela devia seu nome a um imperador tropical, descendente de uma dinastia austríaca, filho de uma Habsburgo. Um austríaco desterrado, escrevendo - na cidade do filho da austríaca - sobre a Europa do passado.
No município seu nome batiza uma escola, uma pracinha extinta e uma rua no fim do mundo. Graças ao esforço do jornalista Alberto Dines, resgataram sua casa esquecida e criaram nela um museu delicado. Sabe-se lá até quando. Porque aqui neste país tropical fizeram uma gambiarra no frigobar do diretor e queimaram o Palácio da Quinta da Boa Vista.
Editora Zahar, 399 páginas (1a edição) 2014 | Tradução Kristina Michahelles | Copyright 1942
Título original: "Die Welt von gestern: Erinnerungen eines Europäers"
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