"Mein Kampf, a história do livro", por Antoine Vitkine
Diz a lenda que Hitler falava tanto, na prisão, que seu colega de cela, Gregor Strasser, sugeriu a ele que escrevesse um livro de memórias, para livrar os demais detentos do palavrório empolgado dos seus discursos sem fim. O tagarela Adolf, bem mandado, acatou a sugestão. O título que ele inicialmente deu ao seu livro foi Abrechnung (algo como "Acerto de contas", segundo um casal alemão amigo).
Acabou que depois acharam Mein kampf ("Minha luta") mais adequado à sua versão de mártir indignado (a propósito de nomes despropositados: já imaginou que poderíamos ter tido um Abrechnung escrito por um Adolf Schicklgruber? a história do planeta teria sido mais caricata).
Lenda ou fato, o que importa é que a primeira versão ficou pronta logo em seguida (presos dispõem de tempo) e diversos jornais de extrema-direita anunciaram a sua publicação, já em junho de 1924. Não rolou. De acordo com o "biógrafo" do livro, esse trabalho inicial foi jogado na lata do lixo. Os colaboradores mais próximos de Hitler vetaram o texto, por suas "muitas inabilidades estilísticas, suas repetições, suas imprecisões".
Caraca, se no post sobre o Mein kampf eu já tinha comentado como o livro era repetitivo e mentiroso, imagina essa primeira versão o estrupício que não era.
Rudolf Hess, uma das mais insólitas figuras da cúpula nazista (que viria a ser vice-líder do partido e que em 1941 embarcaria sozinho num monomotor e aterrissaria na Escócia para tentar negociar a paz com Churchill), assumiu a responsabilidade de montar um grupo para reescrever a obra que seria assinada por Adolf Hitler - mantendo a seiva das ideias defendidas pelo encarcerado.
Isso nos leva a crer na figura de um Adolf Hitler boneco de ventríloquo. Mas seria precipitado julgar assim. Trago para nos esclarecer o Thomas Weber, autor do instigante Tornando-se Hitler, que discorda (como pode ser constatado no post sobre o livro, aqui mesmo no blog), dessa visão plana de um Hitler dirigido por outros, ou tampouco um arauto para outrem. Discorre, nas 474 páginas de seu ensaio - que vale demais a pena ser lido -, sobre a astúcia com que o austríaco construiu seu personagem, ainda que sob influências determinantes para a construção de seu discurso. São percepções complementares.
Vou contrabandear aqui um parágrafo de Weber, que disserta sobre a habilidade do Hitler de alguns anos antes do seu livro icônico. "A arte da política costuma recompensar aqueles que têm um talento para logo reagir a situações imprevistas e explorá-las não só para a sua própria vantagem, mas para a vantagem das ideias políticas que estão propagando", afirma, complementando que "era nisso que Hitler já começava a se destacar no início de 1920".
Conjectura, em seguida, que Hitler "não era apenas uma marionete nas mãos do Reichwehr ou de notáveis da direita radical em Munique. Sim, eles o usaram. Contudo, Hitler também os usou. Com velocidade surpreendente, ele virou o jogo sobre as pessoas que o apoiaram pensando que ele seria um instrumento". Conclui que "em geral, elas passaram um tempo considerável sem perceber a rapidez com que Hitler se emancipara".
Bem, voltando. Ao sair da penitenciária, face ao seu histórico conturbado, Hitler estava proibido de protagonizar comícios. A polícia da Baviera chegou a avaliar se a publicação do livro assinado pelo sicofanta não quebraria o silêncio imposto pela lei. Não chegou a tanto. Os fiscalizadores legais não viram problema e a venda foi autorizada. Já em 1925, foram vendidos 9.473 exemplares.
Como a gente vai ver a seguir, virou um dos maiores best-sellers do país. Ao longo dos anos, os royalties do livro enriqueceram o autor. Em 1947, o cálculo era que as vendas tivessem rendido a ele 15 milhões de Reichsmarks, o que daria, hoje em dia, algumas dezenas de milhões de euros.
Reparou no ano, 1947? Pois é. Como ele se matou dois anos antes, escondido num buraco de tatu sob nove metros de concreto armado, o autor milionário não pôde curtir a bolada.
Como já me cansei de falar, este livro fazedor de dinheiro, noves fora sua dimensão histórica - e mítica -, é ruim às pampas. Ainda que tenhamos que relevar e dizer que não o é o tempo todo.
Alguns trechos reforçam sua refinada concepção da propaganda, que também citei no post anterior. Inclusive chega a lidar com o próprio espanto causado por sua retórica incendiária, no texto de divulgação do livro: "Cada alemão que se interesse pela política deve conhecer seu adversário. Você conhece Adolf Hitler?" Boa sacada. Mesmo, porém, com esta abordagem direta, os anúncios geraram poucos interessados, além dos militantes do partido (mas que sustentaram uma crescente fonte de vendas, pois eram dezenas de milhares).
Alertando aos mais inteligentes para não inferirem que comparei aqui FH com AH, vale recordar que, se Fernando Henrique Cardoso disse, na presidência, "esqueçam o que eu escrevi", Hitler, cinco anos após ter chegado ao poder, fez o mesmo: "Se eu tivesse adivinhado em 1924 que um dia me tornaria chanceler, jamais teria escrito Mein Kampf".
Não à toa. Como disse o filósofo Alexandre Koyré, a obra é "uma conspiração à luz do dia". Já o politólogo Josselin Bordat explica que "esse texto ditado diante de uma plateia de alguns fanáticos numa prisão transforma-se, por força dos acontecimentos, no principal esteio ideológico de um regime totalitário". Bordat vai além: "É um texto que revela um plano de dominação do mundo distribuído aos milhões de exemplares por um regime totalitário"
Foi um aviso ao planeta. Mas o mundo não soube lidar bem com a informação privilegiada. Neville Chamberlain (que está tendo uma releitura agora na Netflix com "Munique: no limite da guerra", já carimbada pelo Demétrio Magnoli como pós-verdade) que o diga.
Mesmo quem alçou o excêntrico Adolf Hitler a líder alemão era seu crítico, e dos azedos. Viktine revela uma frase em off de Paul von Hindenburg, o marechal presidente alemão que nomeou Hitler chanceler. "Isto, Chanceler?! Eu o nomearia no máximo ministro dos Correios, pois assim poderia lamber meu saco para colar os selos".
Bem, fora o vitupério jocoso, o marechal alemão é que serviu de escada para a ascensão do cabo austríaco. Hindenburg morreu logo depois da infeliz nomeação e sua função de presidente foi extinta, ou incorporada, por aquele que seria o eventual lambedor do seu saco.
Ironias da História.
Sobre a confiança que devemos ter sobre as frases dos políticos, uma para mim é top. Hitler diz ao embaixador francês, poucas semanas depois de assumir o poder: "Meu governo é sincera e profundamente pacífico". E foi além, afirmando que seu sonho é ser um dia retratado em um monumento "como aquele que terá reconciliado a França e a Alemanha".
O pacífico acima, de bigodinho, no futuro invadiria a França e dividiria o país ao meio, enquanto mundo afora provocaria, por baixo, a morte de sessenta milhões de pessoas. Sete milhões de alemães e meio milhão de franceses. Mas esta contabilidade sangrenta não cabe aqui e a reservo para os livros sobre a guerra. Este é sobre o livro escrito pelo cara que faria a guerra.
Este ser essencialmente cordato e promotor da bem-aventurança entre os povos, o tal do Adolf, não enganou também o embaixador francês, André François-Poncet, que escreveu em seu diário: "Que um homem assim esteja à frente de um povo de sessenta milhões de seres e controle todas as engrenagens do governo constitui para a Europa um perigo que não pode ser dissimulado".
Tal e qual não ludibriou o general Gauché, que, ainda em 1932, escreveu uma nota ao seu ministro: "Mein kampf contém a lei dos futuros atos de Hitler". O marechal Lyautey, herói das guerras coloniais, reforçou: "Todo francês deve ler esse livro".
Em outro trecho, Hitler, o Pacifista, se expressa assim: "Nosso objetivo primordial é esmagar a França. Devemos antes de mais nada reunir todas as nossas energias contra esse povo que nos odeia." É comentado pelo escritor André Suarès, que afirma "o delírio desse primata que tudo concede a si mesmo para tudo recusar ao outro".
Amigo de Gide, Claudel e Valéry, Suarès vê Mein Kampf com tintas próximas às que utilizei.
"Essa baboseira enfurecida leva o leitor de uma náusea a outra", diz Suarès, reforçando que "ele repete cem vezes a mesma coisa. Essa remastigação é um sinal de mania: dez vezes menos longo, Mein Kampf não seria nem mais nem menos verdadeiro, nem mais nem menos completo". Sobre a procura pelo autor do incêndio do Reichstag, o escritor se manifesta, acre: "Ele diz expressamente que é preciso incendiar o Reichstag, e o fez. E ainda estamos procurando o incendiário, o culpado? De que mais precisamos, além deste livro?"
Ops: nem Joachin Fest, nem Ian Kershaw, dois dos mais conceituados biógrafos de Hitler, afirmam que foi ele o autor do incêndio do Reichstag. Mas as suspeitas permanecem.
Para se ter uma ideia de como o partido nazista trabalhava bem a venda de Mein Kampf, a editora do título, a Eher-Verlag, pouco mais de um mês após Hitler assumir o poder, já veiculava um encarte no Völkisher Beobachter (hebdomadário nazista), chamando a obra de "o livro do dia" e pondo em letras garrafais: "Que fará Hitler? perguntam-se hoje milhões de alemães. Para sabê-lo basta ler o seu livro. Desse modo, você poderá conhecer seus objetivos e sua vontade. Ninguém, seja amigo ou adversário, pode continuar indiferente a este livro".
O ano de 1933, a propósito, foi um ano de "passar a boiada", como diria Ricardo Salles, nosso ex-ministro sarará. De acordo com o intrincado sistema político alemão, eleições locais iam se sucedendo, e o chanceler entrava nelas com todo o peso do cargo. Em 5 de março, o partido nazista amealha 12 milhões de votos, o que correspondia a 43,9% dos eleitores. Duas semanas depois, a fera multivotada já mostra os dentes. O campo de concentração de Dachau é inaugurado e no dia seguinte Hitler obtém plenos poderes. Em 7 de abril, as primeiras leis raciais excluem os judeus da vida pública; em 22 de junho o Partido Socialista é proibido; em 14 de julho o Partido Nazista é proclamado partido único; em 12 de novembro, a Alemanha se retira da Sociedade das Nações (uma antecessora da ONU criada após a Primeira Guerra, no intuito de evitar uma segunda).
Como diz a galera hoje, Hitler tratorizou, passou por cima, em 1933. Neguinho deixando.
Neste mesmo ano, Explicações sobre Mein Kampf, uma síntese ilustrada do livro, é distribuída nas escolas. À juventude alemã são também oferecidas outras publicações com ilustrações coloridas, como A raposa da planície merece tanta confiança quanto o juramento do judeu (pode rir) e Mamãe, fale-nos de Adolf Hitler. Se alguém achava que a manipulação marqueteira fosse invenção da contemporaneidade digital, pode esquecer.
No que tange à qualidade da leitura, Viktine nos oferece o oposto de Mein Kampf. A edição da Nova Fronteira traz conteúdo avalizado e letras grandes (ainda que, na página 50, uma ação datada de 31 de fevereiro [!] nos lance dúvidas amargas). No quinto capítulo, o autor lista as traduções da obra mundo afora, com direitos vendidos para 14 países, incluindo Espanha, Hungria, China, Japão, Holanda, Dinamarca, Suécia, Itália e... Brasil.
Aqui, a edição bombou, com três edições ao longo da década de 30. Em breve espero falar do pouco comentado (injustamente) livro de Pedro Doria, Fascismo à brasileira. Nele iremos encontrar vasta informação sobre a aceitação do ideário nazista em terras tupiniquins - por incrível que pareça, as teses eugenistas eram incrivelmente populares nesse país de caboclos.
Brasileiro nazista é um contrassenso em si. Fico em dúvida se é para rir ou para vomitar.
Vale destacar que, embora todo o racismo fanático do original alemão tivesse sido vertido para os outros idiomas, Hitler decidira vetar os trechos mais cabulosos da sua política externa. Até mesmo por isso, uma edição francesa não foi oficialmente autorizada, já que vira e mexe o livro pregava a extinção da França, argumento bem pouco simpático para o consumo popular.
Sigilosamente, entretanto, a Nouvelles Éditions Latines - fundada para defender a união, sob a bandeira fascista, de todos os povos latinos -, trabalha na tradução integral do livro. Trechos já haviam sido publicados ainda em 1933, no resumo Hitler em suas próprias palavras, de acordo com o livro Mein Kampf (uma edição pirata, com 170 páginas, de um francês germanófono).
Já o livro da Nouvelles, "Mon combat", a despeito das raízes fascistas do seu editor, Fernand Sorlot, visa advertir a opinião pública quanto ao pacifismo de araque do chanceler. E, ao mesmo tempo, percebeu na edição o potencial que a credenciava como uma galinha dos ovos de ouro.
Publicada em capa laranja e com 688 páginas - bem semelhante à velha edição em português que me serviu de fonte -, a nota introdutória justifica a iniciativa da versão francesa: "Hitler até agora se tem recusado obstinadamente a permitir a publicação em francês de Mein Kampf", alerta. Sorlot se defende, lembrando que a edição não trabalha pelo ódio, nem pela hostilidade, e esclarece que "quando ameaças tão claras foram atiradas em rosto de um povo, não se tem mais o direito moral de impedi-lo de tomar conhecimento delas".
Hitler não ficou nem um pouco satisfeito com mais esta edição clandestina, que ignorava o copyright da Eher-Verlag, e recorreu à justiça francesa. Os advogados do austríaco defendem que se trata de obra sujeita às regras do direito autoral; Sorlot afirma que é de interesse público saber que o autor afirma ser a França "o mais perigoso e infame inimigo da Alemanha, e que para isso é necessário atingi-la bem no coração"; a justiça francesa dá crédito aos advogados de Hitler, questionando se Sorlot está em posição de avaliar o interesse público e encerra dizendo que "num país civilizado a necessidade não cria o direito".
A sentença do país civilizado foi exarada em 18 de junho de 1934, com esta frase lapidar. Já eu, civilizadamente, digo que o paradoxo da democracia é permitir democraticamente que os anti-democratas se valham da liberalidade da democracia para solapá-la.
Apesar de todas as evidências belicosas de Hitler, o próprio, entrevistado em 1936, as negou todas, na entrevista concedida ao nazi francófono Otto Abetz, que se diz satisfeito com as declarações pacíficas do führer. O próprio as endossa:
"Eu estava na prisão quando escrevi esse livro. Éramos inimigos. Hoje não existe mais motivo de conflito. Você quer que eu faça correções no meu livro, como um escritor que preparasse nova edição de suas obras? Mas eu não sou um escritor, sou um político. Minha retificação? Eu a faço diariamente em minha política exterior, toda voltada para a amizade com a França".
Como já vimos, a amizade custou aos franceses meio milhão de mortos.
O imbroglio envolvendo o interesse francês em publicar o livro que ameaçava a existência francesa se estendeu por anos. Apenas em 1939 vem a público uma edição integral, publicada pela Défense Française, que ignorou descaradamente os direitos autorais.
Quase que simultaneamente, um livro chamado Hitler me disse, escrito por Hermann Rauschning, baseado em conversas que ele supostamente teria tido com Hitler, tornou o cenário ainda mais embaralhado. Rauschning, antigo chefe do partido nazista em Dantzig, já manda ver, na introdução, a sua visão pessoal.
"Se esse indivíduo triunfar, não serão mudadas apenas as fronteiras. Ao mesmo tempo haverá de desaparecer tudo aquilo que para o homem tinha um sentido ou um valor", afirma o ex-parceiro.
"Um homem reduz aqui toda a época ao absurdo", prossegue Rauschning. "A nós é mostrado um espelho no qual vemos, sem dúvida deformada mas parcialmente reconhecível, uma imagem de nós mesmos. E isto não se aplica apenas ao alemão, Hitler não é apenas a expressão do pangermanismo, ele representa também toda uma geração acometida de cegueira".
Que dizer mais? Quer mais aviso do que estes? E nenhum deles foi suficiente para impedir que o nazismo acontecesse e levasse a civilização à maior catástrofe de sua história.
Não vou me estender mais do que já fiz. Este Mein kampf, a história do livro é muitas léguas melhor do que o livro que comenta, o Mein Kampf, de Adolf Hitler, e traz revelações de quilate - muitas mais do que os acepipes que trouxe aqui. Quer uma sugestão? Pesquise o livro. Leia-o.
No meu caso, foi sumamente interessante lê-lo logo em seguida à leitura do próprio Mein Kampf. Como reiterei incontáveis vezes, o assinado pelo criminoso de guerra é um livro verborrágico, bilioso, tomado de sandices estapafúrdias. Desconfortável. Já Vitkine abre um par de janelas panorâmico sobre a História.
Eu as entreabri e deixei a luz entrar. Para que o leitor interessado possa ir direto à sua livraria preferida na internet e encomendar esta obra tão pouco conhecida. Não merece o anonimato.
Editora Nova Fronteira, 227 páginas | 2010 | Tradução Clóvis Marques | Copyright 2009
Título original: "Mein kampf, histoire d'un livre"
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