"Rato de redação - o Sig e a história do Pasquim", por Márcio Pinheiro
"Que linguagem mais desabrida é essa, Sidney?"
O Sig - um ratinho grotescamente desenhado e que era uma espécie de "Louro José" do jornal - me interpelou na lateral de uma das páginas. Eu era um mero leitor desbocado, que escreveu pro Pasquim xingando sei lá o quê. Ser respondido, e com destaque, pelo próprio Sig, "em pessoa", era muito mais do que um adolescente aspirante a jornalista poderia sonhar.
O "diálogo", lógico, reforçou meus laços com o Pasquim. Mas eles já eram firmes. Desde guri achava aquela bagunça gráfica e textual o ó do borogodó. Os caras eram anárquicos, engraçados, meio pornográficos, meio subversivos. Destoavam do mainstream. Eu adorava.
Verdade que eu estava ainda muito aquém de entender na plenitude todos os subtextos. Mas era safo o suficiente pra sacar que os caras eram bons. Depois, já mais taludo, lia o jornal no ônibus para a Praça XV e na barca para Niterói, rumo à faculdade. Me tornei um leitor mais dentro do padrão. Mas o pior é que o pasca se tornou mais dentro do padrão também.
Assim, quando soube do lançamento de uma "biografia" do velho jornaleco, não relutei. Mesmo sem esperar muito, comprei o livro - e tive uma baita surpresa. O trabalho de recuperação da história do tabloide feito por Márcio Pinheiro é sensacional.
Vai aos primórdios e conta como a turma formada por Tarso de Castro, Jaguar, Ziraldo, Millôr Fernandes, Paulo Francis, os Sérgios Cabral e Augusto, Ivan Lessa, Henfil e tantos outros inventou, nos bares de Ipanema, um dos maiores mísseis jornalísticos que o Brasil já viu.
Um reles pasquim que chegou a imprimir duzentos mil exemplares por edição, em plena ditadura militar. Não é pouca coisa.
Como este fenômeno aconteceu? Como um jornal altamente politizado, e de esquerda, foi um sucesso editorial no país do AI-5, da repressão e da tortura?
É a trajetória do jornaleco, com todas as suas vidas e falências, seus acertos e fracassos, suas incontáveis escalações, suas brigas e prisões, que o autor Márcio Pinheiro nos serve de bandeja. E de prata, meus amigos. O jornalista não economizou em pesquisa e sequer repassou o preju. O livro, além de tudo, custa uma merreca: R$ 36,00 no papel e R$ 29,90 no pixel.
Mas voltemos à vaca fria. Eu, leitor imberbe, não sabia, mas o Pasquim que eu lia já era um produto requentado. Remendado. Esvaziado. Com um ou outro brilhareco, só que bem menos independente e despirocado do que um dia fôra. Eu, confesso, ainda achava o máximo. Mas seu tempo tinha passado.
Soube pelo texto do Márcio que a primeira grande avalanche de circulação foi bem antes, no final da década de 60. Mal foram lançados, numa pegada mais experimental do que planejada, e os três mil exemplares impressos não deram nem para a saída. Logo estavam imprimindo cinquenta mil, cem mil, duzentos mil (acredite, isso já no número 27 do jornal).
Emílio Garrastazu Médici era o presidente. O sujeito morava (antes, e também depois) na minha rua em Copacabana, a Júlio de Castilhos. Foi o período mais tenebroso da ditadura. Já eu, moleque, só reparava que ele, mesmo figurão, ia pro Maraca e escutava o jogo no radinho.
Pois era justamente quando o Brasil tinha o presidente mais meganha do período militar, tempos de DOI-CODI e de Araguaia, que a rapaziada lançou um jornal para zombar do governo. E, embora tenham publicado dezenas de páginas com muito mais nitroglicerina, o que fez transbordar o copo na relação com a ditadura foi uma reles piadinha.
Reles, né, mas acabou todo mundo preso.
E, quando eu digo "todo mundo", era todo mundo mesmo. Foi a redação toda para o xilindró, onde ficaram alguns meses. O motivo? Uma charge em que o célebre quadro "Independência ou morte", de Pedro Américo, foi debochadamente reproduzido, com D. Pedro I gritando: "Eu quero mocotó!!"
Contextualizando: "Eu quero mocotó" era uma música de Jorge Ben, que dias antes havia sido interpretada na TV pelo maestro Erlon Chaves - e por uma dúzia de morenas rebolando em colants cor de pele. A performance foi, digamos, sensual. E a música já pedia isso, pois "mocotó" se referia ao mocotó das meninas mesmo e o maestro era um sacana. O regente foi pra delegacia.
Assim, a charge se tornou duplamente ofensiva para o governo militar, que colocou a cambada toda em cana, à exceção de Millôr, Henfil e Miguel Paiva. Jaguar foi de táxi para a prisão, mas parou no caminho para tomar um porre. Mais tarde, reclamou que "paguei para ser preso".
Todos saíram mais gordos da temporada na Vila Militar de Realengo. "A equipe, presa nos primeiros meses de novembro, passaria o Natal de 1970 na cadeia, recebendo perus, doces e uísques, contando com a vista grossa dos carcereiros".
Jaguar, bebedor inveterado, "subornava os guardinhas, para que lhe trouxessem garrafas de cachaça - e quando o coronel vinha falar com eles, precisavam tapar a boca para disfarçar o bafo".
Em janeiro de 1971 estavam todos liberados. Algumas inocências tinham sido perdidas (não, não é o que você está pensando). Os que foram presos desconfiavam dos que permaneceram soltos. Principalmente do Millôr, que foi quem, na verdade, tocou o jornal, enquanto a redação bebia na cadeia.
Outra coisa é que os quase dois anos de sucesso tinham gerado muito dinheiro. Mas ninguém sabia onde estava o dinheiro. Em fevereiro, Tarso de Castro, o grande idealizador da porra toda, deu no pé.
A nova fase do tabloide, ou sua segunda vida, começaria a partir daí, capitaneada pelo próprio Millôr e os remanescentes Jaguar, Ziraldo, Henfil e Sérgio Cabral (que ficaria pouco tempo, reclamando que "não conseguiu comprar nem uma bicicleta com o que ganhou lá"). As capas de duplo sentido e as entrevistas regadas a álcool e camaradagem mantiveram o jornal na crista da onda, para usar uma expressão da época.
Henfil ganhou protagonismo, com seus personagens virulentos, como o Cabôco Mamadô. O personagem era "responsável pelo cemitério dos mortos-vivos, sepulcrário onde o cartunista enterrava todos aqueles que não se adequavam ao seu padrão de resistência e crítica aos militares", conta o jornalista, ressaltando que "com a sua régua moral e intelectual, Henfil media os que considerava como sendo colaboradores e/ou simpatizantes da ditadura e, sem piedade, destinava-os ao enterro".
Patrulha ideológica, que chama? Uma tia-avó do cancelamento.
Henfil era brilhante, o que não o impediu de "enterrar" Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Nara Leão e Elis Regina. Teria se arrependido no futuro.
Em uma das suas derradeiras reencarnações, o Pasquim se tornou cabo-eleitoral de Leonel Brizola. Tentando contornar sua inviabilidade comercial com a tiragem magra dos seus últimos anos, chegou até a abandonar o formato tabloide e virar standard - o que, lógico, não deu certo.
Aliás, muita coisa não deu certo na história do Pasquim, como a gente descobre no livro.
Márcio Pinheiro nos revela as muitas vidas do Pasquim que eu jamais desconfiara. Eu, que não testemunhei nenhuma das primeiras, e fui cooptado pela aura irreverente do jornal, mal sabia que me apaixonara pelo esqueleto do que um dia fôra a alma do jornaleco.
A briga pelo poder, a dança das cadeiras na redação, a partidarização explícita da publicação, tudo isso é minuciosamente dissecado pelo biógrafo do Sig. A história da cultura brasileira fica devendo essa ao escritor. O que hoje parece desimportante teve um dia importância capital.
O Pasquim revolucionou o jornalismo brasileiro. Trouxe uma nova abordagem e se tornou um ícone da década. As gírias e neologismos foram tantos ("paca", "duca", "sifu", "mifu" etc), lembra Pinheiro, que Ziraldo lançou uma página intitulada "Doyouspaquinglish?"
Nem tudo eram flores, vale frisar. Reflexo da época, o Pasquim era hedonista, machista e racista.
Em singela homenagem, comecei a ler o livro na praia de Ipanema, o mítico bairro da galera ("O Pasquim era Ipanema engarrafada", dizia Sérgio Augusto, um dos fundadores). Mas praia, mesmo, era o último lugar onde, nos anos 70, se poderia encontrar um jornalista do Pasquim. A praia deles era outra.
Velhos tempos.
Matrix Editora, 190 páginas | 1a edição | Copiráite 2022
Obs.: Para aqueles que notaram que eu grafei O Pasquim e o Pasquim, com e sem o artigo, não pensarem que é só bagunça, explico que em suas primeiras vidas o título do jornal tinha o artigo, e depois suprimiu-o. Aí pus (ou não) o artigo dependendo da época à qual me referia.
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