"O homem dos pedalinhos", por Bruno Leal Pastor de Carvalho
Ano passado li um outro livro dedicado a este mesmo personagem e seus pedalinhos. Um romance curto, narrado em voz feminina, onde Herbert Cukurs - o personagem em um questão - era um quarentão sedutor. Chamava-se "O cisne e o aviador". O cisne ao qual se referia o título era uma judia emigrada para o Brasil. Na trama, ela se envolvia com um aviador matador de judeus.
Já esta obra de Bruno Leal é uma pesquisa robusta sobre a fuga de um criminoso de guerra para a América do Sul. O aviador é o mesmo. Mas aqui, ainda bem, o cisne se resume à imagem mequetrefe escolhida pela Fundação Getúlio Vargas para ilustrar a capa. Volto a ela no fim.
O aviador, protagonista que titula ambas as obras, foi um sujeito atípico. Herói na Letônia, um pequeno país báltico, é considerado até hoje um pioneiro da aviação. Fez travessias mirabolantes com um avião que ele mesmo montou, indo da Europa à África. Noutra feita, sobrevoou a Ásia. Quando a Alemanha nazista ocupou a Letônia, se integrou às forças da SS.
Aderiu ao pior da corja que invadiu sua pátria e se engajou na execução dos dezenas de milhares de judeus do país. Depois, com a derrota dos alemães, fugiu para a França e de lá para o Brasil. Chegou aqui legalmente, em 1946, com seu nome verdadeiro, e acompanhado da sua família (esposa, sogra e três filhos). Veio também com eles uma moça judia (!), Miriam Kraicners.
(Uma dúvida: será que essa tal Miriam é o cisne do outro romance, ou teria sido inspiração para ele?)
No Rio de Janeiro, Cukurs trabalhou como instrutor de vôo e logo abriu um negócio de pedalinhos na Lagoa Rodrigo de Freitas. A atração se tornou um sucesso e rendeu a ele uma série de matérias positivas nos jornais. Junto com a fama, porém, veio um indesejado reconhecimento público. Judeus letões emigrados o identificaram. Foi denunciado pelo que era, um genocida sanguinário. Seus pedalinhos foram danificados pelos judeus e a prefeitura suspendeu sua licença para operar no local.
A mídia que antes o celebrara passou a acusá-lo. Associações judaicas pleitearam sua expulsão do país. Ao mesmo tempo, o letão estava com seu pedido de naturalização em andamento. Se o escândalo acabou por impedir que o governo autorizasse o pedido (politicamente não ficava bem), por outro lado não teve força suficiente para provocar sua expulsão do país, como ansiado.
Armou-se um cabo de guerra que não saiu do lugar, estacionado na burocracia federal.
Esperando baixar a fervura, Cukurs foi com a família para São Paulo, onde se estabeleceu e montou novos negócios, entre vôos de turismo e agricultura, sempre bem-sucedido. O aviador era talentoso, ousado e hábil nos relacionamentos. Enquanto isso, na esfera jurídica, ambos os processos permaneceram em aberto: o da naturalização e o da expulsão. Mas em banho-maria.
E daí a coisa não avançou. Se alguma notícia punha o letão em evidência, o assunto logo caía no esquecimento. E assim o aviador assassino foi levando a vida em território brasileiro.
Mas com o sequestro do nazista Adolf Eichmann empreendido pelo Mossad (o serviço secreto israelense), no início dos anos 60, o assunto Cukurs foi requentado. O genocida esquecido (por uma década e meia) passou a ser o genocida lembrado.
Eichmann, para quem não sabe (tem a biografia do dito cujo aqui no blog, o excelente "Caçando Eichmann", por Neal Bascomb), tinha fugido para a Argentina e se estabelecido com a família em Buenos Aires, sob nome falso. O alemão fôra o principal burocrata da máquina nazista de genocídio, um super barnabé, da confiança de Heindrich - mas sem prestígio entre seus pares.
Localizado e denunciado, os judeus montaram um esquema cinematográfico (tanto, que já rendeu mais de um filme, o último com o oscarizado Ben Kingsley no papel de Eichmann) para sequestrar o medalhão. Os argentinos deram um ataque de pelanca ao verem sua soberania ultrajada; afinal, eles se davam o direito de ser um paraíso de fugitivos nazistas e Israel mostrou que, se a carne portenha era boa, o serviço local tinha os seus furos.
Herbert Cukurs ficou apavorado, dizem, com a perspectiva de ter um destino equivalente. Eichmann, depois de sequestrado e embrulhado como um presunto, foi julgado em Tel Aviv e depois enforcado. Temendo pelo próprio pescoço, com aparente razão, o aviador se apresentou à polícia paulista. Queria do governo brasileiro a proteção que o governo argentino não conseguiu dar ao alemão.
(Frise-se que até hoje o governo é acusado de ter sido conivente com a permanência de Herbert Cukurs no país, como destacou uma reportagem da Folha de São Paulo de alguns anos atrás.)
Este é justamente o ponto do autor. Para investigar a suspeita de uma pretensa proteção governamental, Bruno Leal fez uma extensa pesquisa em documentos oficiais e no noticiário da época, em busca da confirmação desta postura parcial. Houve ou não acobertamento e proteção federal para o criminoso? Ele nos oferece suas conclusões, em bem explicados pormenores.
O lento avanço burocrático dos pleitos dos acusadores e do acusado. As dificuldades das instituições judaicas na obtenção de documentos que comprovassem as atividades genocidas de Cukurs. Seu esforço em obter a naturalização. Está tudo no livro.
Assim, o conteúdo da obra é menos sobre Herbert Cukurs e sobre os crimes que recaíam sobre ele, e muito mais sobre a conduta do governo brasileiro na gestão do caso.
Conta também, de forma resumida, como os judeus pegaram o seu antigo algoz.
Dito isto, não vou deixar passar em branco a imagem que ilustra a capa de "O homem dos pedalinhos". É a foto em primeiro plano de um pedalinho com bico de cisne. Em segundo plano, a lagoa, com um barquinho e a mata nas margens. Ao fundo, edifícios.
Fácil de acertar o logradouro, né? Já sabíamos que o aviador montou pedalinhos na Lagoa Rodrigo de Freitas - uma lagoa com barquinhos, vegetação e prédios em toda a sua circunferência. Resta óbvio que a lagoa da foto é a lagoa do "homem dos pedalinhos"... Só que não. Cresci jogando bola na Lagoa. E basta olhar a foto para ver que aquela da foto não é a lagoa da qual trata o livro.
Impressionado pela pachorra, resolvi fuçar. Vi na ficha que a foto era do banco de imagens Pixabay, tirada pelo fotógrafo Igor Ovsyannykov. Se no site de imagens não consegui pesquisar pelo nome do fotógrafo, um russo, no Google achei seu portfolio virtual. E lá, entre centenas de fotos, encontrei a foto de capa. Sua lagoa fica em Bangcok, Tailândia. Mais precisamente no Lumphini Park (https://pixabay.com/pt/users/6222956/?tab=all&order=latest&pagi=4).
Ou seja, o pedalinho, o cisne e a lagoa da capa de "O homem dos pedalinhos" são todos tailandeses. Por que diabos a editora, cujo endereço é Rua Jornalista Orlando Dantas, 9, em Botafogo, a míseros 5 quilômetros da Lagoa Rodrigo de Freitas (dá pra ir andando, de uber deve dar 15 minutos, menos de vinte merréis), não usou uma foto real da lagoa em questão, que qualquer estagiário poderia tirar, e se valeu de uma foto de banco de imagens para montar uma capa graficamente bem meia-boca, permanece um mistério. Autenticidade é relevante em um livro lastreado em documentação.
Caraca, dar um pulinho na Lagoa com um celular e fazer umas fotos não mata ninguém, né não?
Só como exemplo, fiz uma pesquisa preguiçosa no Google e já catei de cara uma série de ótimas fotos da Lagoa. Não quer ir até lá? Faz contato com o autor de uma destas imagens que estampei aqui na ilustração do post, compra e publica na capa. Inclusive fazendo uma arte melhorzinha.
Bem, não vou me estressar mais do que já me estressei com isso. A capa marota (eu ia dizer estelionatária, mas deixa pra lá) não interfere no conteúdo. Só pega mal.
Já o texto é uma contribuição valiosa para quem tem interesse na participação brasileira na ocultação do rebotalho da Segunda Guerra Mundial. Loas ao Bruno. O historiador é criterioso e demonstra isenção. Seu livro é uma grata surpresa em um país onde pesquisa consistente não é levada a sério.
E que, vale dizer para aliviar o lado dele, certamente não teve o direito de palpitar na capa.
Mas que foi uma tremenda bola fora da editora, foi.
FGV Editora, 335 páginas | 1a edição | Copyright 2021
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