"Polaris", por Richard Parry

domingo, julho 07, 2024 Sidney Puterman


A história da civilização, durante muitos séculos, foi influenciada pelo ritmo dos descobrimentos. Enquanto houvesse terra desabitada (de caucasianos), haveria possibilidade de enriquecimento, refúgio e prestígio. Este ímpeto não esmoreceu nem mesmo quando restaram somente as calotas polares a serem "descobertas".

Apesar do duvidoso atrativo, somente no início do século XX o ser humano logrou atingir as duas extremidades congeladas do planeta. O Polo Sul e o Polo Norte. Este, mais próximo da Europa e dos Estados Unidos, era geograficamente mais acessível. Aventurando-se na imensidão e contra as armadilhas do gelo desconhecido, centenas de desbravadores morreram tentando alcançá-lo.

No século XIX, todos fracassaram.

O capitão Charles Hall foi mais um deles a tentar, em vão. Hall partiu de Washington, a bordo do seu navio Polaris, no dia 10 de junho de 1871, em busca da glória de ser o primeiro a por os pés no Polo Norte. Frise-se que ele não era sequer marinheiro, que dirá capitão. Mas envergava o título. 

Era, acima de tudo, um sujeito obstinado, que já tinha esquadrinhado o Ártico por terra, anos antes, à procura da desaparecida expedição Franklin. O processo lhe deu um amplo conhecimento das técnicas de sobrevivência no inverno groenlandês - o que, a seu ver, lhe qualificava para ser o grande conquistador do polo.

É a história desta fracassada - e provavelmente criminosa - aventura rumo ao Polo Norte que Richard Parry nos traz. Quase que como um detetive, o autor refaz os passos de Charles F. Hall, do seu idealismo ingênuo até o que ele acreditava ser a concretização do seu sonho. Que, como já antecipei (sem spoiler, é um fato histórico), terminou em pesadelo.

Hall, sem um tostão de seu, para conseguir financiamento estatal bateu à porta de inúmeros políticos na capital federal. Foi bem-sucedido apenas em parte. Obteve a verba, mas comprometeu o projeto, e, por consequência, seu resultado. Teve que fazer tantas concessões para conseguir os cem mil dólares que precisava, que o time que embarcou no navio era tudo, menos um time.

À guisa de assegurar o mérito científico da expedição (coleta de exemplares da fauna e flora, análises do solo etc), Hall entubou uma equipe toda alemã. Por outro lado, como ele mesmo de capitão do mar não tinha nada, sofreu para conseguir quem lhe pilotasse o navio. Por trapaças do destino, acabou ficando com dois capitães no mesmo barco: um baleeiro, da sua confiança, e um outro de origem militar.

O baleeiro entendia de navegar em águas geladas; o militar trazia representatividade federativa; Hall confiava nas próprias habilidades de sobrevivência (e ainda levou alguns inuits com ele); e o cientista alemão Emil Bessels, imposto pelo Parlamento, achava que a estrela da expedição era ele mesmo.

O sonhador era americano, a grana idem, mas a grande maioria dos marujos era nórdica ou alemã. 

Nem mesmo o equipamento era top, como pedia a missão. O navio era uma embarcação de segunda mão. Ainda que reforçado sob a orientação do próprio Hall, não fora construído para superar as adversidades do gelo. Originalmente navegando sob o nome Periwinkle, foi rebatizado para Polaris.

Como você e qualquer marinheiro sabe, trocar o nome de um navio dá um azar danado.

E, como vemos acima, todo o possível para fazer com que a superstição desse certo (no caso, desse errado) foi feito. Uma malfadada excursão, liderada (?) por um  intrépido e atrapalhado explorador. Que, por todo o exposto, sem o saber, já tinha iniciado sua viagem pondo tudo a perder.

Com todo esse cata-cata embarcado, o texto de Parry vai ganhando fôlego e consistência à medida em que a narrativa avança. Os desafios oferecidos pela navegação em meio às placas de gelo e icebergs, as desavenças a bordo e em terra, a equipe dividida em grupos rivais - o autor oferece um registro meticuloso e bem articulado das informações que reuniu.

Parry se valeu não somente dos livros escritos à época, como até mesmo da viagem feita em 1968 por um grupo de pesquisadores, que visitou os pontos-chave da história do Polaris e a precária tumba de Hall. Com base no DNA de uma unha do açodado explorador, a ciência desvendou o que esteve escondido por quase um século.

Para quem gosta de história e aventura, e por meio delas conhecer o melhor (e o pior) do espírito humano, este é seguramente um livro a ser lido. Aproveite o inverno.

Editora Landscape, 302 páginas  |  1a edição, 2002  |  Tradução Natalia Sadowskij

Título original: "Trial by ice: the true story of murder and survival on the 1871 Polaris Expedition"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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