"$ócio do filho", por Marco Vitale
Aqui no Brasil, se você quiser esconder uma estória, publique um livro. Ninguém vai ler. Você pode revelar as maiores atrocidades - reais, documentadas, inquestionáveis - e tudo passará olimpicamente despercebido. É uma das muitas vantagens de viver no Brasil. Neste singelo livro, Marco Vitale dá a cara a tapa e põe o dele na reta. Confessa o que viu e destrincha o que soube. Acompanhou de perto as venturas e desventuras do Grupo Gol (nem o carro, nem o avião) de Jonas Suassuna e seus sócios da realeza, Kallil, Fernando e Fabio. O principal atributo dos sócios (e seu dote comercial) era o fato de serem filhos de políticos do partido no poder. No caso, o do ex-prefeito de Campinas e o do ex-presidente da República. Os dois primeiros têm o sobrenome Bittar. O último é um Lula da Silva. A crer na verossímil narrativa de Vitale, as estrepolias do bando são de fazer corar cafetão. Tenho que dizer que, antes de me indignar, me diverti com a desfaçatez do grupo. O Brasil é demais. Aqui tudo se pode - e quem rouba não é mal visto, é até mesmo absolvido (prolixa e pomposamente, como provou quinta passada o STF) e idolatrado. Mas há exceções nesta bodega. O depoimento dado por Marco Vitale - que, ao recusar as vantagens da delação premiada, fez da sua denúncia um gesto de ativismo cívico - é legítimo. O autor do livro foi, por sete anos, um dos diretores do Grupo Gol. Assistiu e participou das principais ações comerciais. Trabalhou na gestação dos produtos, acompanhou sua comercialização e teve acesso aos resultados - de marketing, contábeis e financeiros. E nos oferece mais esta faceta patética da história do Brasil. De acordo com seu relato, o Grupo Gol criava serviços atrelados aos disparos de SMS, que eram vendidos ao poder público por um parceiro comum da área de telefonia, a Oi (por sua vez, propriedade da espanhola Telefónica). Os serviços iam da nulidade absoluta, como o Sempre Bela (onde o assinante pagaria para receber por SMS dicas banais de saúde, tipo "beba água muitas vezes ao dia") aos de alta complexidade, como o ambicioso Conexão Educação, onde os pais de todos os alunos matriculados na rede pública de ensino receberiam um SMS a cada vez que seu filho entrasse ou saísse da escola. Como disse Sérgio Cabral, no lançamento do produto (Cabral era o governador do estado e o contratante do serviço), "com este sistema, será possível acompanhar a frequência, o desempenho escolar e a quantidade de merenda servida a cada estudante". Você já sabe em quanto isto mudou a gestão escolar no estado: em um redondo zero à esquerda. Mas, na boca do cofre, saíram muitos zeros à direita. No projeto constava a instalação de equipamentos eletrônicos nos refeitórios de 1.591 unidades da rede. O aluno passaria o seu cartão magnético (o mesmo que geraria o SMS de frequência) e já sairia registrado o que comeu. Só estes aparelhos custaram quase doze milhões de reais. À época, R$ 5.260.00,00 - ou R$ 11.907.000,00 em valores de 2019, ou seja, R$ 7.484,00 a unidade (paridade do dólar a R$ 1,82 em 2009 e a R$ 4,12 em 2019). Um leitor de cartão magnético pelo qual você paga mais de sete mil reais, e ainda compra um milhar e meio deles aproveitando a "pechincha", é um prodígio, né não? santa comissão (e isto, com o dinheiro de um estado em breve falido, onde o elo comum entre a sequência de quatro diferentes governadores é o fato de todos terem ido presos). Mesmo pagando uma verdadeira fortuna por cada um dos 1.591 aparelhos, menos de 500 deles foram entregues (de acordo com o apurado posteriormente pelo Tribunal de Contas do Estado). E pasme com o total de usuários que passaram o cartão na geringonça cibernética: 3 (três). Isto mesmo que você leu: o cartão foi usado uma única vez por três alunos do Colégio Estadual Rosária Trotta, em Campo Grande. Mas o gasto do governo do RJ não se restringiu à compra dos equipamentos (não entregues e não usados). Foi muito além. Foram pagos R$ 93.700.000,00 (noventa e três milhões) à Oi, que repassou R$ 26.000.000,00 (vinte e seis milhões) à Gol Mobile, a quem coube a elaboração do software (atente que o Grupo Gol e suas empresas, terceirizados, quarteirizavam as incumbências, pois não possuíam equipe de desenvolvimento dos serviços para os quais eram contratados). O dinheiro entrava, mas tudo mais era feito tão nas coxas que o próprio termo de referência entregue pela Gol comprometendo-se a prestar o serviço era um rascunho mal-ajambrado e mal revisado ("A contratada deverá entregar o projeto da Rede de Integração para Gestão Escolar finalizado e em operação até (XX) dias após o término do cadastramento inicial dos alunos"). Não se deram ao trabalho de preencher os dados no copia-e-cola, feito às carreiras (o que não impediu a assinatura, nem o pagamento). Vitale dá diversos exemplos histriônicos. Este é só um deles. O que importa nisso é que nenhum dos serviços funcionava, de fato. Eles eram criados no papel e, mesmo sem um fiapo de programação, eram vendidos à Oi, que pagava uma fortuna à Gol pelo direito de oferecê-los em sua plataforma, e depois geravam valores mensais à própria Gol pela quantidade total de disparos no período, quantidade esta que, você já sabe, era descaradamente forjada. O conceito da tramóia era tão genial que o presidente Lula chamou o filho, um dos sócios, de "Ronaldinho dos negócios". Mas o pai coruja não só ocultava que o filho não fazia absolutamente nada (além de embolsar o dinheiro), como os negócios da empresa em si eram todos uma farsa nababesca - o governo petista dava vantagens bilionárias à companhia espanhola e ela, em troca, participava de operações comerciais com a empresa do filho do presidente, "comprando" serviços fictícios a preço de ouro. Vitale faz um trabalho minucioso, ao documentar todas as transações criminosas do grupo, reproduzindo no livro e-mails, notas fiscais, relatórios internos, editais, notícias de época etc, comprovando e circunstanciando cada um dos golpes contra o Erário. Em se tratando de um governo de esquerda, naturalmente a Cultura tinha lugar privilegiado na pauta. O autor foi inclusive testemunha de uma reunião de Lula com o ministro da Educação e Cultura do Paraguai, Luís Alberto Riart, em Assunção, onde Lula foi direto e incisivo no lobby para que o governo local fechasse negócio com o Grupo Gol, na compra do serviço Letivo, praticamente o mesmo do Conexão Educação: "Você tem que fazer negócios com eles", teria tido Lula ao ministro paraguaio, sem nenhuma cerimônia. O negócio acabou não saindo por conta de uma decisão contrária do próprio Lula, pois Dilma estava fechando um acordo em que o Brasil passaria voluntariamente a pagar US$ 360 milhões de dólares pela energia excedente de Itaipu, contra os US$ 120 milhões pagos até então. Era uma promessa antiga de Lula aos amigos guaranis, e fechar simultaneamente com o Grupo Gol poderia dar mais na vista do que o recomendado. A Folha de São Paulo, à época, estampou a manchete na capa: "Brasil vai pagar o triplo por energia de Itaipu". Estrambólica decisão unilateral do governo brasileiro, financiada com os impostos recolhidos do povo brasileiro. Esta "generosidade" com o dinheiro público deve ter tido sua razão de ser. Vá saber. Enquanto isso, as ideias pululavam na empresa. Alguns dos produtos criados não lograram vida longa, mas tiveram nomes ótimos, como o "Banco Banca", que a Gol tentou espetar no Banco do Brasil. O banco estatal, na proposta da empresa dos 4 sócios, ficaria com 49% das ações do novo banco. A ideia era instalar um terminal eletrônico nas bancas de jornal e elas fazerem de um tudo: sacar e depositar dinheiro, pagamento de contas, entrega de IR. Pelo histórico do Conexão Educação, já dá pra ter uma ideia de como seria a implantação do Banco Banca. Mas o Banco do Brasil teve uma crise de bom senso e vetou a ideia, mesmo vinda da empresa do Lulinha. Além dessas, dezenas de outras (incluindo um cano milionário no Cid Moreira) estão didaticamente disponíveis no minucioso livro de Vitale, com destaque para performances constrangedoras de enriquecimento ilícito, esbanjamento e ostentação, sempre às custas do suado dinheiro do contribuinte brasileiro. Até ilha em Angra os caras compraram e nela construíram um palacete, com direito a um bangalô faraônico para o ex-presidente (segundo Vitale, Lula foi algumas vezes à ilha, sempre no iate de amigos, mas jamais pernoitou no bangalô feito sob medida para ele, para frustração de Suassuna). O circo pegou fogo quando o Sitio de Atibaia apareceu na mídia. Se você não estava ligando os sócios do filho aos negócios do pai, aqui você vai se situar melhor. O sítio de Lula, que no papel não era de Lula, era na escritura pertencente à Suassuna e à Fernando Bittar (o afamado sítio ocupa a área de dois terrrenos, cada um deles de propriedade de um dos sócios da Gol). Internamente na empresa conhecido como o "Sítio do Presidente", a denúncia do rolo nos jornais levou Suassuna a um surto histérico, na descrição sempre jocosa de Vitale. O empresário achava Atibaia o fim do mundo (Eduardo Paes, envolvido em algumas maracutaias no livro, também achava o sítio um lugar de merda, comparável a Maricá, como ouvimos no áudio repercutido em cadeia nacional), e, com o escândalo do tal sítio em seu nome e as buscas da Polícia Federal, não se conteve na ligação com o ex-presidente, se auto-adotando, em pânico: "Pai, você viu o que fizeram comigo? Pai, me ajude! Pai, eu preciso de um advogado que seja bom neste tipo de assunto. Pai, vai custar muito caro?" Ossos do ofício. Neste ramo alternativo dos negócios, nem sempre se voa em céu de brigadeiro. Tem vez que a cana bate na porta e o testa-de-ferro apanhado com a boca na botija, por mais safo que seja, não acha onde se esconder. O livrinho é curto, bem escrito, bem-humorado e com dezenas de fac-similes de documentos corroborando as afirmações do corajoso autor. Não é qualquer um que teria peito para por a mão nessa cumbuca e entregar os podres da quadrilha. No início de 2019, Marco Vitale registrou um boletim de ocorrência, relatando ter sido ameaçado de morte por Jonas Suassuna; o qual, por sua vez, negou. Fico na torcida que tenha sido um mal-entendido. As penas são muito mais severas. Fato é que as armações descritas no livro não são as primeiras, nem serão as últimas envolvendo administração pública no país. Onde há dinheiro público, há ganância e falta de escrúpulos ao redor - ainda mais em um país onde a Justiça faz vista grossa para o pessoal mais indolente e guloso. Fazer o quê? Ainda somos a terra de Macunaíma. O livro de Vitale é uma contribuição valiosa à história do Brasil, seja lá o que ainda venha a acontecer esta semana.Edição do Autor, 215 páginas
P.S.: A ilustração da capa é de autoria do pintor pernambucano Manasses Andrade. O cidadão, conterrâneo de Lula, deu à sua obra o título de "Cabeça de larápio". Pesquisei na rede, mas não consegui saber mais sobre o artista.
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