"Partículas elementares", por Michel Houellebecq

segunda-feira, outubro 28, 2019 Sidney Puterman

Houellebecq é sempre desconcertante. Esse seu estilo incomodoso já vinha delineado desde este "Partículas elementares", livro que o projetou, vencedor do prestigiado prêmio "Novembre" (e também eleito em 1998 o Livro do Ano na França). É um livro singular. Entremeia discurso pseudo-científico e elocubrações filosóficas com minuciosas formulações de sexo e violência - a maior parte delas de embrulhar o estômago. Seus parágrafos são simultaneamente repulsivos e elegantes. Eu já havia lido o autor em um de seus títulos mais recentes, "Submissão", de 2015. Ainda que distantes no tempo, há entre as duas obras inúmeros pontos em comum. Vi também que os personagens do livro de 1998 têm semelhanças com a própria biografia do autor, disponível na Wikipedia. Irônico e demolidor, como é a sua praxe, Houellebecq em seu "Partículas elementares" se dedica a circunvoluções diversas sobre o fracasso social do indivíduo contemporâneo. Para tanto, descreve o desenrolar da vida de dois meio-irmãos, que, na crise da meia idade, irão abrir mão da própria existência; um pelo suicídio e o outro pela internação voluntária. Mas não serão os únicos. Além da morte, o sexo ocupa espaço capital no texto - tão recorrente que, à época do lançamento, o livro foi tido por pornográfico. Diria eu que é menos pornô e mais escatológico (eu arriscaria também insinuar que, pelas descrições quase ginecológicas, o próprio autor deve ter tido seus problemas). Voltando à trama, ela contrapõe filhos de pais diferentes, abandonados na infância por uma mãe promíscua e ninfomaníaca. Com o sexo sempre como referência pendular, Michel (homônimo do escritor) Djerzinski é totalmente desinteressado pelo tema, enquanto Bruno Clement é obcecado pela conjunção carnal e por todas as formas heterossexuais de prazer. Curiosamente - sinal dos tempos -, há desde incesto a canibalismo, mas são escassas as menções homoeróticas. Voltando aos meio-irmãos, reafirmando o quão auto-referencial é a obra, ambos foram, como Houellebecq o foi, criados pela avó, e também com raízes nas ex-colônias francesas na África (como o autor, que é nascido na Île de la Reunion e passou seus primeiros anos na Argélia). O livro distribui os personagens de forma curiosa: embora Djerzinski seja o protagonista que domina o início e o fim do livro, períodos em que Clement sequer é mencionado, assintomaticamente todo o miolo do livro é ocupado por Bruno, com eventuais aparições de Djerzinski. Descompensação inusual. Não obstante seja um livro melancólico e com potencial para deprimir o mais eufórico animador de torcida, a metralhadora giratória de críticas à sociedade - francesa, europeia e norte-americana - e o seu alto grau de sarcasmo fazem da leitura uma enojada diversão. E, aqui ou acolá, reflexiva. Bruno, vítima de bullying no colégio e sexo-maníaco a partir da adolescência, nos apresenta as taras do francês mediano e os núcleos de naturismo e libertinagem da França dos anos 90. Um tal Minitel rosa é tantas vezes mencionado no texto que tive que pesquisar. Segundo o Independent.uk, o Minitel era uma espécie de pré-internet inventada pelos franceses no início dos anos 80, que chegou a ter nove milhões de usuários conectados a 25 mil terminais telefônicos - e o denominado Minitel rosa eram ligações de cunho sexual, caríssimas, onde Bruno gastava metade do seu salário de professor, em vão ("naquelas noites, eu colocava um sonífero na mamadeira de Victor, e depois me masturbava conectado no Minitel rosa, mas nunca consegui encontrar ninguém"). Uma ramificação da cirurgia plástica, que Houellebecq reputa em voga na Europa do século 20, eu também desconhecia. Veja o queixume do pai de Bruno, especialista na área: "O idiota do Poncet acaba de recusar-se a investir no alongamento de picas. Acha que isso se parece muito com salsicharia. Não crê que o mercado masculino vá sobreviver na Europa. O imbecil. Tão imbecil quanto eu na época. Se eu tivesse 30 anos hoje, ah eu me lançaria no alongamento de picas." Vai que algum leitor alongou a sua e eu aqui achando isso inusitado. As bordoadas lançadas por Houellebcq têm alguns alvos prediletos. O funcionalismo público francês é esculhambado: "Muitos veranistas trabalhavam no setor social ou educativo e achavam-se protegidos da pobreza pelo estatuto de funcionário público." O professor Bruno se imola: "Não sirvo para nada. Sou incapaz de criar porcos. Não tenho a menor noção de como se produzem salsichas, garfos ou telefones celulares. Sou incapaz de produzir qualquer um dos objetos que me cercam, que utilizo ou devoro. Fora do complexo econômico-industrial, não conseguiria nem sequer sobreviver. Totalmente dependente da sociedade que me cerca, sou quase inútil. Tudo o que sei fazer é produzir comentários duvidosos sobre objetos culturais ultrapassados. Recebo, porém, um salário, amplamente superior à média. A maioria das pessoas em torno de mim está na mesma situação." Até o Brasil entrou no sarrafo: "Começava a encher o saco dessa estúpida mania pró-Brasil. Por que o Brasil? Conforme tudo o que sabia, o Brasil era um país de merda, povoado de brutos fanáticos por futebol e por corridas de automóvel. A violência, a corrupção e a miséria estavam no apogeu. Se havia um país detestável era o Brasil." Bruno falava à esposa, zombeteiro: "Eu poderia ir ao Brasil, em férias. Passearia nas favelas, num microônibus blindado; observaria os pequenos assassinos de oito anos, que sonham em se tornar chefes de bando aos 13." Uma ácida discriminação de gênero também dá as caras: "As meninas esperavam, mais abaixo, já com os sinais de uma estúpida resignação de fêmeas." Bruno tem um péssimo relacionamento com o filho: "É difícil imaginar alguém mais babaca, mais agressivo, mais insuportável e mais odioso do que um pré-adolescente, especialmente quando está junto de outros garotos da sua idade. O pré-adolescente é um monstro duplicado em imbecil, de um conformismo quase inacreditável. (...) Como as pessoas conseguem viver sob o mesmo teto que um pré-adolescente?" Ainda a prole: "Fica-se com o filho um fim de semana a cada 15 dias; calhordice. Inteira e completa calhordice. Na realidade, nunca os homens se interessaram pelos filhos, nunca sentiram por eles amor, sentimento que lhes é totalmente estranho. Conhecem apenas o desejo, o desejo sexual em estado bruto e a competição entre machos." Sempre que possível, debocha do consumismo, da publicidade, da ecologia ("cago e ando para a natureza") e da extrema-direita ("Poderia ter aderido à Frente Nacional, mas para que comer chucrute com imbecis? De qualquer maneira, as mulheres de direita não existem, e trepam com paraquedistas"). Se o já referido "Submissão" era todo centrado na ameaça da ascensão islâmica sobre a sociedade francesa, neste seu segundo livro a crença já era referida: "Sei bem que o islamismo - de longe a mais estúpida, a mais falsa e mais obscurantista de todas as religiões - parece atualmente ganhar terreno; mas isso não passa de um fenômeno superficial e transitório: a longo prazo, o islamismo está condenado, ainda mais do que o cristianismo." Nenhuma vítima, porém, foi mais aquinhoada do que os hippies: "Os imbecis dos meus pais pertenciam ao meio libertário, vagamente beatnik, nos anos 50. Desprezo essa gente, chego mesmo a odiá-los. Representam o mal, geraram o mal." Empolgado, o autor rompe as barreiras do bom-senso na sua cruzada anti-movimento hippie, afirmando: "Segundo Daniel Macmillan, a destruição progressiva dos valores morais ao longo dos anos 60, 70, 80 e 90 constituía um processo lógico e inexorável. Depois de terem esgotado o gozo sexual, era normal que os indivíduos, liberados de todas as interdições morais correntes, procurassem os prazeres mais amplos da crueldade. Os serial killers dos anos 90 eram os filhos naturais dos hippies dos anos 60. Sob a fachada de performances artísticas, gente como Nitsch, Muehl ou Schwarzkogler massacraram animais em público, arrancaram e despedaçaram órgãos e vísceras." Esta obsessão do autor de juntar em um mesmo balaio o idealismo da geração Paz & Amor, a violência ritualística contra os animais e a matança indiscriminada de seres humanos não faz, para mim, o menor sentido. De onde foi que ele tirou isso, maluco? Sei lá. Talvez trauma da juventude. Mas atente que estas dissertações polêmicas estão na boca de Bruno, não na do autor. Eu é que acho um tanto cínica a dissociação formal entre escritor e personagem. Bem, vamos fechar essa bagaça. Este um tudo é o livro. E nesta resenha estou privando meus três leitores das dezenas de nauseabundas descrições de sexo - Michel vê na atração sexual uma compulsão repugnante. Embora em algumas passagens ele seja mais gentil, descrevendo o ato de amor como em um livro de Ciências: "Annabelle ajudou-o a despir-se e masturbou-o lentamente para que pudesse entrar nela. Michel não sentia grande coisa, exceto a suavidade e o calor da vagina. Parou , rapidamente, de mexer-se, impressionado com a evidência geométrica do acasalamento, maravilhado também com a flexibilidade e a riqueza das mucosas. Ele fechou os olhos, sentiu mais fortemente a existência do próprio sexo, recomeçou o ir e vir. Pouco antes de ejacular, teve uma visão da fusão dos gametas e das primeiras divisões celulares. Parecia uma fuga para a frente, um pequeno suicídio. Uma onda de consciência percorreu-lhe o pênis. Sentiu o esperma saltar. Annabelle recebeu-o com um longo suspiro. Ficaram imóveis." O cara é bom, né? Lendo o trecho, você poderá até dizer que exagerei nas tintas com que pintei as menções sexuais na obra de Houellebecq. Será? Segue uma outra passagem: "Certa noite, convidado para um bacanal, David reconheceu, na televisão de um dos quartos, um dos seus filmes. Na fita, gravada um mês antes, cortava um membro masculino com uma motosserra. Muito excitado, agarrou uma menina, de uns 12 anos, amiga da filha do anfitrião. A garotinha debateu-se um pouco, antes de começar a chupar-lhe o pau. Na tela, ele aproximava lentamente a motosserra, roçando as pernas de um homem de uns 40 anos, completamente amarrado, com os braços em cruz, urrando de medo. David gozou na boca da garota no momento em que a lâmina decepava o sexo do outro. Pegou a menina pelos cabelos, virou-lhe brutalmente a cabeça e forçou-a a olhar o longo plano fixo do toco que mijava sangue." Com esta narrativa crua e biliosa, é compreensível porque este franco-africano é controvertido. E não duvide que esta não é nem de longe a mais indigesta das citações (se não tive a caridade de poupar os leitores desta, poupá-los-ei de outras). Apesar da reverência que faço ao seu talento, Michel Houellebecq não é para qualquer um. Não à toa é hoje um autor maldito, ainda que reputado o maior escritor francês vivo. Avalie você pelo cardápio. Eu, à mesa, sou vegetariano. Mas para leitura meu estômago é forte.

Editoras Sulinas, 296 páginas

P.S.: A bela cidade ao fundo é Auxerre, na Borgonha francesa. Cidadezinha adorável, adjetivo que, atesto, não tem absolutamente nada a ver com o livro.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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