"Varsóvia 1920", por Adam Zamoyski

segunda-feira, outubro 14, 2019 Sidney Puterman

A guerra russo-polonesa de 1920 é uma guerra que o mundo desconhece. Mais uma delas. Opôs, em um intrincado campo de batalha, a Rússia comunista à Polônia recém-independente. A Europa de então estava esgarçada, com suas fronteiras internas fragilmente reconfiguradas ao fim da Primeira Grande Guerra. Neste cenário volátil, a Polônia, após mais de um século privada de ter sua existência reconhecida como nação (condição então reconquistada em 1918), ainda comemorava a sua recente autonomia quando viu este seu tão ansiado direito de existir ameaçado. As hordas bolcheviques de Lenin avançavam em direção a Varsóvia, sem a gentil oferta de alternativas diplomáticas. A Rússia, que no início deste mesmo ano de 18 se rendera aos alemães, exaurida pela sua própria revolução, se recuperara militarmente, depois de aniquilar o Exército Branco. Tinha agora projetos políticos audaciosos para o seu entorno. Com a derrota alemã diante da Entente liderada pelos ingleses e americanos, e a ainda conturbada restauração da soberania polonesa após mais de um século de dominação, o líder do governo bolchevique da Rússia, Vladimir Ilich Lenin, viu aí uma tentadora janela de oportunidade. Opto por citar aqui o emblemático líder: "Ao atacar a Polônia, atacamos os Aliados; ao destruir o Exército polonês destruímos a paz de Versalhes, sobre a qual descansa todo o atual sistema de relações internacionais." Assim, Lenin, já à época secundado por Stalin, decidiu invadir a Polônia antes que esta tivesse o tempo necessário para se reestruturar. A diretriz russa mantinha o então bem-sucedido padrão revolucionário: os camponeses deveriam ser instados a aderir ao comunismo e aos proprietários de terras, profissionais liberais, professores, intelectuais, militares e camponeses recalcitrantes restariam a prisão - provavelmente nos gelados e famélicos campos de trabalho na Sibéria - ou a execução em massa, procedimento ainda mais simples, desprovido de formalidade e de julgamento. Confiante no seu poderio bélico e no seu inesgotável contingente humano, a ocupação do território polonês e a tomada da sua capital pareciam uma mera questão de vontade. Não foi assim que se deu. Os poloneses organizaram um exército que superou em muito a expectativa do mais pessimista dos russos, que negligentemente os tinham subestimado. E o resultado deste conflito, cem anos depois, permanece sendo um evento histórico de suma importância. A vitória polonesa influenciou na recomposição das forças europeias - fator decisivo para a eclosão e desdobramento da Segunda Guerra Mundial (a propósito, o título da versão inglesa é revelador: "Warsaw 1920: Lenin's failed conquest of Europe"). Não obstante sua relevância para o mundo moderno, o encarniçado embate foi também o último grande confronto em moldes semi-medievais, com a cavalaria como a grande protagonista. No combate russo-polonês não se fez a guerra de trincheiras, escaldados que estavam ambos os lados com o impasse da grande guerra anterior: baixa conquista de terreno, alta mortalidade, custos exorbitantes. Os tanques (que comandariam a guerra mundial seguinte) ainda não eram suficientemente operacionais e a participação aérea (quase que exclusivamente polonesa, os russos ainda engatinhavam na aviação, pasme) se limitava aos vôos de reconhecimento, com efeitos práticos limitados. A aposta dos russos em uma invasão rápida prometia resultados seguros, evitando dar tempo aos poloneses de organizarem sua defesa. Mas, se taticamente acertaram no timing, desconsideraram a capacidade de combate dos poloneses, que, emprestados a diversas nacionalidades, nos anos anteriores marcharam com os próprios russos, com os austríacos, com os alemães e com os franceses, no que acabavam lutando entre si. Mas a esta autêntica colcha de retalhos sobrava experiência no campo de batalha e, unidos, eram um osso duro de roer. Na diáspora, eram soldados em busca de uma pátria - e agora, enfim, vestiam a surrada camisa do seu time do coração, com perdão por esta barata analogia esportiva. Mas nada disso era do interesse da confiante e onipotente Rússia. Convictos do triunfo, os principais comandantes russos, seguindo instruções de Lenin e Stalin, optaram até mesmo por dividir parte das forças entre o ataque à Polônia e uma cunha mais ao sul, imaginando que a resistência polonesa seria rala. Ledo engano. O comissariado político não soube ler a guerra que ele mesmo provocara. O inimigo era ativo. Liderados por Józef Pilsudski (hoje tido como o grande artífice do ressurgimento  da nação polonesa), que superou as dissensões internas do país recém-formado, o exército polonês tomou a iniciativa e atacou as formações russas que se aproximavam de Varsóvia, antes que fossem atacados. Durante um mês, os dois países se engalfinharam em escaramuças diversas. Ambos os lados ganharam e perderam batalhas. As forças polonesas mal tinham uniformes. As forças russas vinham em grande número, mas eram um arremedo de soldados ("o praça médio do Exército Vermelho era um camponês recrutado, que talvez tenha sobrevivido a umas duas campanhas sangrentas na Grande Guerra, sendo em seguida apanhado pelo redemoinho bárbaro da Guerra Civil, sem saber por que e para que lutava, e que só queria voltar para sua aldeia; andrajoso, coberto de piolhos, com diarreia crônica, sempre faminto e, acima de tudo, aterrorizado, exprimia seu medo e seu sentimento de privação estuprando e matando todos aqueles que ele percebia estar do lado do inimigo, e conspurcando tudo que não podia possuir"). Apesar de reveses pontuais, e de terem sido abalados pelo inesperado ataque polonês, as divisões russas vinham se aproximando da capital e tudo levava a crer que qualquer resultado que não fosse o esmagamento das forças polonesas seria inesperado: o enorme contingente russo superava qualquer erro estratégico cometido por seus generais. Por mais que fossem mortos, aprisionados e postos fora de combate, havia sempre o dobro de russos preparados para entrar em ação na manhã seguinte. Além da superioridade numérica, havia o alto investimento em propaganda, não somente para dar aos próprios homens motivo para a luta, como para provocar deserções no exército inimigo e também conquistar a adesão da população. Um bom exemplo são as palavras de ordem do principal comandante russo, Mikhail Tukhachevsky, lidas para todas as companhias da Frente Ocidental Russa. Demonstram bem como a liderança soviética tratava a questão: "SOLDADOS DO EXÉRCITO VERMELHO! Chegou a hora do ajuste de contas. Afogaremos o governo criminoso de Pilsudski no sangue do Exército polonês derrotado. Voltem os olhos para o Ocidente. É no Ocidente que está sendo decidido o destino da Revolução Mundial. Por cima do cadáver da Polônia Branca fica a estrada para a Conflagração Mundial. Levaremos na ponta das nossas baionetas a felicidade e a paz às massas trabalhadoras da humanidade. Chegou a hora do ataque! Rumo ao Ocidente! Rumo a Vilnius, Minsk, Varsóvia - Avante!" A retórica d'antanho era realmente inflamada (quanto às tais "paz e felicidade", o regime soviético produziu nas duas décadas seguintes um montante de 30 milhões de russos mortos). Mas, discursos à parte, fato é que decisões equivocadas dos líderes do Exército Vermelho (onde talvez a mais danosa tenha provindo de Stalin, que viria a errar novamente na reação à invasão alemã, 21 anos depois) levaram, entretanto, a um teatro de guerra onde a Polônia teria uma chance de vitória, caso fizesse o movimento certo - e Pilsudski o fez. Numa época em que a comunicação entre tropas e exércitos era precária e disfuncional, com informações chegando distorcidas e atrasadas, com os próprios comandantes desconfiando uns dos outros, o que os russos poderiam fazer para inviabilizar a própria ofensiva foi feito. O propalado cerco a Varsóvia foi desbaratado por ataques pontuais da cavalaria polonesa. Divisões russas que deveriam avançar em bloco abriram em direções opostas e inviáveis para uma cobertura eficaz. Tanto, que muitos exércitos russos, após a vitória polonesa, tiveram que se refugiar na Prússia, pois não tinham mais acesso seguro às linhas férreas para retornarem à Rússia. Em um recurso desesperado, Lenin exortou seus comandantes a prometerem generosas fatias de terra para os camponeses na Polônia, desde que eles se voltassem contra seus "senhores" - os poloneses. A Rádio Moscou irradiava: "Somos seus irmãos no trabalho. Queremos, juntos com vocês, esmagar e destruir os seus Senhores". O estratagema tinha dado certo na revolução bolchevique, o que levava Lenin a acreditar, senão em uma reviravolta, ao menos em um retardamento do colapso russo, lhe permitindo negociar condições vantajosas para o cessar-fogo. Mas na verdade a guerra já estava perdida para o Exército Vermelho. Na última ofensiva, as forças polonesas cobriram 450 quilômetros e fizeram 12.670 prisioneiros, tendo por baixa apenas 250 mortos e feridos. Ao todo, dez dias de combate renderam 66 mil prisioneiros e a apreensão de 231 canhões e 1.023 metralhadoras. As forças soviéticas tiveram 25 mil mortos e 80 mil integrantes internados na Prússia Oriental. Oito das vinte e uma divisões soviéticas foram desintegradas. Das treze divisões que conseguiram fugir dos poloneses, apenas sete estavam remotamente operacionais. A Rússia perdeu a guerra e, contando os mortos, feridos, capturados e internados, mais de 200 mil homens - embora tenha pateticamente se recusado a reconhecer seu fracasso. A imprensa mundial, surpresa com o desenlace, noticiou a vitória polonesa e a retirada russa. Os russos mandaram um telegrama ao Times de Londres, em 9 de setembro de 1920: "Rádios polonesas e francesas espalham falsas notícias sobre vitórias polonesas. Na verdade, forças russas estão intactas, a retirada foi executada em plena ordem. Notícias de rádios polonesas sobre grande vitória são uma lenda." A paz entre os dois países ainda demorou meses a ser assinada: apenas em 18 de março do ano seguinte. Os soviéticos não conseguiram, naquela ocasião, retomar as terras polonesas (o que obteriam 18 anos depois, no acordo entre Hitler e Stalin, no pacto nazi-soviético batizado de Molotov-Ribbentrop, dois sujeitos medíocres), nem os poloneses conseguiram retomar as demarcações da Polônia histórica - mas preservaram, por pouco mais uma década e meia, sua soberania. Ou seja: sopesando os ganhos de ambos os lados, de pouco valeu a guerra que ceifou tantas vidas. Segundo Zamoyski, "os acontecimentos de 1920 não só parecem irrelevantes, mas quase esdrúxulos. O terrível Armagedon encenado de um lado a outro na região, duas décadas depois, e a noite escura do comunismo que a engoliu por meio século, em seguida, os fazem parecer quase liliputianos. As fronteiras então julgadas tão importantes foram varridas para o esquecimento, e  também as estruturas do Estado, a que tanto valor foi dado." Porém, se não atendeu às ambições dos seus líderes, o confronto teve consequências na futura ordem mundial. Retornando ao autor, "os acontecimentos de 1919-1920 afetam as atitudes não só na Rússia e na Polônia, mas em toda a região e até mesmo no mundo. Cristalizaram a crença de que a Rússia sempre seria um poder imperialista e uma ameaça ao seus vizinhos, não importa quem estivesse no leme. Fortaleceram a convicção de extrema-direita de que o socialismo jamais seria uma força política benéfica. O que encorajou certa desconfiança na democracia e levou muita gente a preferir governos de 'homens fortes', mesmo à custa de certa perda de liberdade pessoal. Mussolini, o almirante Horthy, o general Franco, Salazar e Hitler, sem falar em outros líderes mais ou menos ditatoriais, foram todos diretamente beneficiados." Esta ponderação do autor nos lembra que o medo do ruim muitas vezes abre brecha para a implantação do pior. Por fim, acima de tudo, se a guerra russo-polonesa de 1920 deixou algumas lições equivocadas - os poloneses passaram a confiar demais no adestramento e no moral e os russos apostaram ainda mais no gigantismo dos exércitos, em detrimento das armas -, foi a atenção dedicada pelo Exército polonês ao monitoramento das transmissões de rádio que levou à quebra do código alemão na Segunda Guerra, permitindo que em Bletchley Park as ordens da máquina de guerra alemã fossem lidas e repassadas às forças aliadas. Ecos do passado. O conflito russo-polonês de 1920 foi uma curta e pequena guerra que aconteceu no vácuo de duas longas e grandes guerras. Foi consequência de uma e teve influência na outra. Até hoje o mundo em que vivemos foi desenhado pelos resultados da Segunda Guerra - o que nos intima a conhecer em detalhes o seu contexto. E a pequena obra ainda é enriquecida pelas entrevistas com sobreviventes de combate, feitas por Zamoyski nos anos 80. Sobre este evento que completará um século no ano que vem, parte do que é contado no livro foi ouvido dos próprios personagens. "Tive bastante sorte em me interessar por estes acontecimentos há alguns anos, quando muitos participantes, e até mesmo alguns atores decisivos, ainda eram vivos", ressalta Adam Zamoyski. "Havia algo de excitante e irreal em estar sentado num apartamento londrino decrépito ou numa casa de tábuas em algum lugar na vastidão dos subúrbios americanos, falando com alguém que encarara a morte de frente na ponta de uma lança ou que vira o brilho dos óculos de Trotsky."

Record, 206 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: